PREFÁCIO

 

Sou Ministro Luterano. Passei mais de 14 anos em diferentes prisões por causa de minha fé cristã, mas não é este o motivo que me leva a escrever este livro. Sempre fui avesso à idéia de que a pessoa uma vez presa injustamente deva escrever ou pregar a respeito dos seus sofrimentos. Campanella, o notável autor de "Cidade do Sol", esteve encarcerado durante 27 anos, nos quais sofreu torturas, como passar 40 horas deitado numa cama de pregos. Isto nós sabemos porque seus biógrafos contaram, não que ele o tivesse dito.

Os anos de prisão não me pareceram demasiado longos porque descobri, sozinho em minha cela, que além da fé e do amor, há em Deus um deleite: um profundo e extraordinário êxtase de felicidade, a que nada no mundo se pode comparar. Saindo do cárcere, assemelhava-me a alguém que descia do cume de uma montanha, de onde tivesse descortinado, na extensão de quilômetros ao redor, a paz e a beleza dos campos, e agora voltava à planície.

Primeiro devo explicar por que, há mais de dois anos, vim para o Ocidente. Fui solto em 1964, juntamente com alguns milhares de outros presos políticos e religiosos, porque a República Popular Romena adotara uma política mais "amistosa" em relação ao Ocidente. Deram-me a menor paróquia do país. A minha congregação contava 35 membros. Se esse número subisse para 36, disseram-me, iria haver perturbação. Eu, porém, tinha muito que narrar e havia muita gente que queria me ouvir. Viajava secretamente para pregar em povoados e aldeias. Antes que a polícia soubesse que um estranho estava em terras de sua jurisdição, eu saía. Mas isso tinha de parar. Pastores que me ajudaram foram demitidos pelo Estado e eu podia tornar-me a causa de novas prisões e confissões arrancadas à força de torturas. Tornava-me um peso para aqueles a quem desejava servir, e também um perigo.

Amigos insistiram comigo que eu deixasse o país e, assim, estando no Ocidente, eu falasse em favor daquela igreja secreta. De declarações feitas por líderes da Igreja no Ocidente concluía-se que alguns não sabiam e outros não queriam saber a verdade sobre perseguição religiosa movida pelos comunistas. Prelados procedentes da Europa e da América iam fazer visitas amistosas aos nossos inquisidores e perseguidores, quando então se sentavam a banquetear-se com eles. Perguntávamos a eles qual a razão disso. "Como cristãos", diziam, "temos que proceder amigavelmente com todo mundo, como o senhor sabe. Até com os comunistas". Por que, então, não se mostravam amigos com os que sofriam? Por que nada perguntavam (nem uma palavra sequer), a respeito dos padres e pastores que haviam morrido na prisão ou debaixo de torturas? Ou por que não deixavam um pouco que fosse de dinheiro para as famílias desses mártires, que haviam ficado?

O Arcebispo de Cantuária, Dr. Ramsey foi em 1965 e assistiu a um serviço religioso. Ele não sabia que a congregação consistia de oficiais e agentes da polícia secreta e suas esposas; as mesmas pessoas que comparecem em cada ocasião daquelas. Essa mesma gente já ouvira visitantes como rabinos e muftis, bispos e batistas. Tais visitantes, voltando para casa, comentavam favoravelmente, segundo lemos, a liberdade que, como julgavam, imperava na Romênia. Um teólogo inglês escreveu um livro em que declarava que Cristo teria admirado o sistema presidiário comunista.

Nesse ínterim perdi a licença que tinha para pregar. Fui posto numa lista negra e passei a ser constantemente seguido e vigiado. Algumas vezes ainda preguei em casas de amigos que não ligavam ao perigo que isso representava, pelo que não fiquei surpreendido quando, algum tempo depois de terem começado as negociações secretas para a minha partida rumo ao Ocidente, um estranho convidou-me a ir à sua casa. Deu-me o seu endereço, não declinando o seu nome. Quando o procurei, estava sozinho.

"Quero prestar-lhe um serviço", disse-me. Reconheci que era um agente da polícia secreta. "Um amigo meu diz que os dólares para o senhor foram recebidos. Provavelmente o senhor gostaria de deixar logo o país. O meu amigo está preocupado. O senhor é um homem que fala com franqueza e acaba de sair da prisão. Eles pensam que seria melhor o senhor ficar detido por um pouco mais, ou um membro de sua família permanecer aqui como fiador de sua boa conduta. Naturalmente sua soltura será incondicional". Não lhe garanti nada. Eles tinham os dólares que deviam ser suficientes. Organizações cristãs do Ocidente haviam pago 2.500 libras pelo meu resgate. Negociantes recebem dinheiro estrangeiro e isso ajuda o orçamento da República Popular. Os romenos gostam de pilheriar, dizendo: "Venderíamos o Primeiro Ministro, se alguém quisesse comprá-lo". Vendem-se judeus a Israel a 1.000 libras por cabeça, membros da minoria germânica à Alemanha Ocidental, armênios à América. Cientistas, médicos e professores custam umas 5.000 libras cada um.

A seguir, fui chamado à repartição da polícia. Um dos funcionários disse-me: "Seu passaporte está pronto. Pode ir quando quiser e para onde quiser e pode pregar quanto queira. Só não fale contra nós. Atenha-se ao Evangelho. Do contrário, será reduzido para sempre ao silêncio. Podemos alugar um ”gangster" que se encarregará disso por 1.000 dólares, ou o traremos de volta para cá, como já fizemos com os outros traidores. Podemos aniquilar sua reputação no Ocidente; para isso inventaremos um escândalo em que dinheiro ou sexo esteja envolvido". Disse-me que eu podia sair. Era essa a minha liberdade incondicional.

Vim para o Ocidente. Médicos examinaram-me. Um deles me disse: "O senhor está todo crivado que só peneira". Não conseguia acreditar que os meus ossos se tivessem restabelecido e a minha tuberculose se houvesse curado sem cuidados médicos. "Não me fale em tratamento", disse-me. "Fale isso com Aquele que o manteve vivo e no Qual eu não creio".

Começava o meu novo pastorado em favor da igreja subterrânea - igreja secreta. Encontrei-me com amigos de nossa Missão Escandinava, na Noruega. Pregando lá, uma senhora do banco da frente começou a chorar. Depois me disse que fazia anos lera a notícia da minha prisão, e desde aquele tempo vinha orando por mim. "Vim hoje à igreja sem saber quem ia pregar", disse ela. "Enquanto ouvia, descobri quem era o pregador e chorei". Vim a saber que milhares de pessoas estiveram orando por mim, como oram ainda pelos que estão nas cadeias comunistas. Crianças, a quem eu nunca vira, escreviam-me, dizendo: "Por favor, venha à nossa cidade; as nossas orações a seu favor foram respondidas".

Em igrejas e universidades, por toda a Europa e na América, encontrei pessoas que, apesar de muitas vezes profundamente comovidas com o que eu dizia, não criam que um perigo realmente as ameaçava. "O Comunismo aqui seria diferente". Na Romênia também pensávamos assim, na época em que o Partido era insignificante. O mundo está cheio de pequenos partidos comunistas, que estão à espreita. Com um tigre novo a gente pode brincar: crescendo, ele nos devora.

Defrontei líderes da Igreja no Ocidente que me aconselharam a pregar o Evangelho e a evitar ataques ao Comunismo. Esse conselho também recebi da polícia secreta de Bucareste. O mal, todavia, deve ser chamado pelo seu próprio nome. Jesus disse aos fariseus que eles eram "víboras" e por isso, e não por causa do Sermão do Monte, é que foi crucificado.

Denuncio o Comunismo porque amo os comunistas. Podemos odiar o pecado enquanto amamos o pecador. Sobre os crentes pesa o dever de conquistar as almas dos comunistas, e se falharmos nisto eles cairão sobre o Ocidente e daqui, de igual modo, arrancarão o Cristianismo pelas raízes. Os chefes vermelhos são infelizes e desgraçados. Podem ser salvos, e o modo de Deus agir com esta finalidade é enviar um homem. Ele próprio não foi tirar os israelitas do Egito, mas para isso destinou Moisés. É assim que nos cumpre ganhar para Deus líderes comunistas em todas as esferas - no campo das artes, das ciências e da política. Conquistando os que possam modelar a mente dos homens atrás da Cortina de Ferro, poderemos ganhar os povos que eles dirigem e sobre os quais exercem influência.

A conversão de Svetlana Stalin, filha única do maior assassino de cristãos em massa, uma alma criada na mais rigorosa disciplina comunista, prova que há uma arma contra o Comunismo mais poderosa do que bombas atômicas: é o amor de Cristo!

 

RlCHARD WURMBRAND

 

PRIMEIRA PARTE

 

A primeira metade da minha vida terminou em 29 de Fevereiro de 1948. Caminhava eu sozinho por uma rua de Bucareste quando um carro Ford, de cor preta, parou de súbito do meu lado e dois homens pularam de dentro. Pegaram-me pelos braços e empurraram-me para o assento traseiro do veículo, enquanto um terceiro, ao lado do motorista, ficou apontando uma pistola para mim. O carro disparou, passando pelo meio das poucas viaturas em trânsito naquela manhã de domingo. Depois, numa rua chamada Calea Rahova, viramos e entramos por um portão de aço. Ouvi seu ruído forte ao fechar-se atrás de nós.

Meus seqüestradores pertenciam à Polícia Secreta Comunista. Era ali a sede deles. Uma vez lá dentro, os meus documentos e mais pertences, gravata, cordões dos sapatos e por fim o meu próprio nome foram arrebatados de mim. "De agora em diante", disse-me o oficial de serviço, "o seu nome será Vasile Georgescu".

Era um nome comum. As autoridades não queriam nem que os guardas soubessem a quem eles estavam vigiando, no caso de circularem indagações lá de fora, onde eu era bem conhecido. Eu tinha de desaparecer, como tantos outros, sem deixar rastro.

Calea Rahova era um presídio novo e eu era o seu primeiro preso. A experiência de prisão, entretanto, para mim não era novidade. Durante a guerra, eu havia sido preso pelos fascistas que dominavam na época de Hitler e outra vez quando os comunistas assumiram o poder. No alto da parede de concreto da cela havia uma janelinha; no piso, duas camas de tábuas e o costumeiro balde em um canto. Sentei-me a esperar pelo interrogatório, sabendo as perguntas que iriam fazer-me e as respostas que lhes deveria dar.

Conheço bastante o que é medo, mas naquele momento não senti nenhum. Aquela prisão e tudo quanto a ela se seguiu, era a resposta a uma oração que eu fizera, esperando que iria dar novo sentido à minha vida passada. Não sabia que coisas estranhas e maravilhosas estavam reservadas para mim.

Meu pai tinha em casa um livro que orientava os jovens na escolha de profissões, como a de advogado, médico, oficial do exército e outras. Certa vez, quando eu tinha uns cinco anos, ele trouxe-nos o livro, perguntando aos meus irmãos o que eles queriam ser. Depois de terem feito sua escolha, meu pai voltou-se para mim, que era o caçula. "E você, Richard, que deseja ser?" Olhei mais uma vez para o título do livro - "Guia Geral de Profissões" - e fiquei pensando. Depois respondi: "Quero ser um Guia Geral".

Cinqüenta anos se passaram, quatorze dos quais em prisão e tenho pensado muitas vezes naquelas palavras. Dizem que bem cedo na vida é que fazemos nossas escolhas. Não conheço nada que melhor defina meu presente trabalho do que esse título de "guia geral". Entretanto, a idéia de me tornar um pastor cristão estava muito longe de mim e dos meus pais, que eram judeus. Meu pai morreu quando eu tinha nove anos e a nossa família sempre sofreu penúria de dinheiro e de alimento. Um senhor, certa vez, ofereceu-se para me comprar uma roupa. Quando fomos à loja e o vendedor apresentou uma das melhores o homem disse: "Esta é boa demais para um menino como este".

Parece que ainda escuto sua voz. Meu estudo em escola foi deficiente, porém tínhamos em casa muitos livros. Antes dos dez anos eu já os havia lido, tornando-me tão cético quanto Voltaire, a quem admirava. Não obstante isso, a religião me interessava.

Assistia a rituais em igrejas ortodoxas e católico-romanas e, certa vez, numa sinagoga, vi um conhecido a orar por sua filha enferma. Ela morreu no dia seguinte e eu perguntei ao rabino: "Qual é o Deus que não ouviria uma oração como aquela, desesperada?" Ele não me deu resposta. Não podia eu crer em um ser Todo-Poderoso que deixava tanta gente a padecer fome e a sofrer, e menos ainda que ele tivesse posto na terra um varão de tanta bondade e sabedoria como Jesus Cristo.

Cresci e entrei para o mundo dos negócios de Bucareste. Estava me saindo bem, e antes dos vinte e cinco anos tinha bastante dinheiro para gastar em bares e cabarés luxuosos, com as meninas da "Pequena Paris", como chamavam àquela capital. Não ligava ao que acontecesse, contanto que minha sede de novas sensações fosse aplacada. Levava uma vida que muitos invejavam, mas que, no entanto, deixava-me em grande aflição mental. Sabia que tudo aquilo era falso e que eu estava jogando fora, como lixo, algo em mim que era bom e que podia ser usado. Embora estivesse certo de que não existia Deus, ansiava em meu coração que fosse de outro modo e que houvesse uma razão para a vida no universo.

Certo dia, eu fui a uma igreja e fiquei com outras pessoas diante de uma imagem da Virgem. Elas rezavam e eu tentei acompanhá-las, dizendo: "Ave Maria, cheia de graça..." mas sentia um vazio dentro de mim. Eu disse à imagem: "De fato, és como pedra. Tantos a pedir e nada tens para eles".

Depois que me casei continuei a andar atrás de outras moças. Prossegui na caça de prazeres, mentindo, trapaceando, sem refletir em nada, prejudicando outros até que, aos vinte e sete anos, tais excessos, combinados com as privações de outros tempos, acabaram levando-me à tuberculose. Naquela época essa era uma moléstia perigosa, chegando eu a ponto de me ver às portas da morte. Tive medo. Em um sanatório do interior repousei pela primeira vez em minha vida. Deitado, punha-me a olhar as árvores lá fora e me recordava de fatos passados. Estes se apresentavam a mim como que em angustiantes cenas teatrais: minha mãe chorando por mim; minha esposa também chorando; e tantas jovens indefesas igualmente em pranto. Eu as havia seduzido e difamado, ridicularizado e enganado, não passando de um impostor. Deitado ali, as lágrimas me vieram aos olhos.

Naquele sanatório orei pela primeira vez em minha vida, a oração de um ateu. Disse algo como o seguinte: "Deus, sei que Tu não existes. Mas, se por acaso existes, o que eu nego, cabe a Ti que Te reveles a mim; não sou eu que tenho o dever de procurar-Te".

Toda a minha filosofia até aí tinha sido materialista, porém meu coração não se satisfazia com ela. Teoricamente cria que o homem não passava de matéria e que, morrendo, decompunha-se em sais e minerais. Havia, no entanto perdido meu pai e assistido a outros funerais, e jamais podia pensar nos mortos senão como pessoas. Quem pode pensar que um filho seu, morto, ou esposa seja um amontoado de minerais? São sempre as pessoas queridas o que temos em mente. Pode nossas mentes iludir-se de tal forma?

Meu coração estava pleno de contradições. Passara horas em lugares barulhentos de distração, entre jovens semi-nuas e música excitante, porém gostava também de passear sozinho nos cemitérios, algumas vezes em época de inverno, quando os túmulos se cobriam de neve pesada. Dizia a mim mesmo: "Um dia também serei defunto e a neve me cobrirá a sepultura, enquanto os vivos estarão rindo, a gozar a vida. Não me será possível participar das suas alegrias. Nem chegarei, a saber, quais serão elas. Simplesmente não existirei mais. Depois de breve tempo ninguém mais se lembrará de mim. Assim, pois, qual é a vantagem destas coisas?”.

Considerando os problemas sociais e políticos, pensava que talvez um dia a humanidade encontraria um sistema que proporcionasse liberdade, segurança e saúde a todos. Quando todos estão felizes, ninguém quer morrer. O simples pensamento de que um dia deixará sua feliz vida pode fazê-los mais infelizes do que nunca. Recordava-me de haver lido que Krupp, o homem que se tornou milionário com a invenção de armas mortíferas e se horrorizava com a morte. Não permitia a ninguém que pronunciasse a palavra "morte" em sua presença. Divorciou-se da esposa porque esta lhe contara a morte de um sobrinho. Tinha ele tudo, porém era infeliz sabendo que a felicidade não podia durar muito, teria de deixá-la para trás e ir apodrecer numa sepultura.

Conquanto tivesse lido a Bíblia pelo seu valor literário, minha mente fechava-se no ponto que os adversários provocaram a Cristo: "Se és filho de Deus, desce da cruz". Ao invés disso, Ele morreu. Pareceu isso provar que os Seus inimigos tinham razão, e não obstante sentia que meus pensamentos se dirigiam espontaneamente a Cristo. Dizia a min mesmo: "Gostaria de poder encontrá-lo e com Ele conversar". Todos os dias minha meditação encerrava-se com este pensamento.

Havia no sanatório uma senhora que não se afastava do seu quarto, tão grave era o seu estado de saúde. De algum modo ouviu falar a respeito de mim e mandou-me um livro sobre os Irmãos Ratisbona, fundadores de uma ordem cujo objetivo era a conversão de judeus. Outros tinham estado orando por mim, também judeu, enquanto desperdiçava minha vida.

Após alguns meses em tratamento, obtive ligeira melhora, e fui convalescer numa aldeia, situada num monte onde me tornei amigo de um velho carpinteiro. Certo dia ele me deu uma Bíblia. Não era uma Bíblia como outras o que depois vim a saber, pois ele e a esposa haviam passado horas sobre ela a orar por mim.

Ficava eu deitado no sofá, em minha casa de campo, a ler o Novo Testamento, e à medida que os dias iam passando Cristo me parecia tão real como o era a senhora que me levava as refeições. Nem todos, porém que reconhecem Cristo se salvam. Satanás também crê, e não é crente. Eu disse a Jesus: "Nunca terás a mim como discípulo. O que eu quero é dinheiro, é viajar, é gozar. Já sofri bastante. O teu caminho é o da Cruz, e ainda que seja o caminho da verdade, não te seguirei". Sua resposta veio-me à cabeça com a força de argumento: "Venha comigo por este caminho! Não tema a Cruz! Você verá que isto será o maior gozo".

Continuei lendo e outra vez as lágrimas me vieram aos olhos. Não podia deixar de comparar a vida de Cristo com a minha; Seu modo de ver as coisas era tão puro; o meu tão viciado. Sua natureza era tão desprendida e altruísta; a minha tão voraz e cobiçosa. Seu coração era tão cheio de amor; o meu tão cheio de rancor. Minhas velhas certezas começaram a desmoronar-se em face desta sabedoria e veracidade. Cristo sempre apelara às profundezas do meu coração, a que minha consciência não tinha acesso, e agora dizia eu a mim mesmo: "Se eu tivesse a mente que Ele tem, poderia firmar-me nas conclusões dela". Eu era como o homem do velho conto chinês, a caminhar penosamente e exausto debaixo de uma soalheira, chegando por fim a um grande carvalho, em cuja sombra repousou. "Que felicidade foi a chance de encontrar-te!" A que o carvalho respondeu: "Não foi chance nenhuma. Eu estava esperando você aqui há 400 anos". Cristo esperara por mim toda a minha vida. E agora se dava o nosso encontro.

Essa conversão ocorreu seis meses após meu casamento com Sabina; moça que nunca tivera um lugar no pensamento para coisas espirituais. Foi um golpe terrível para ela. Era uma jovem formosa, que na infância passara por tantas privações. Esperava agora que uma vida mais feliz começasse. E eis que o homem a quem amava, seu companheiro de prazeres, transformava-se num crente devoto a lhe falar em ser pastor. Mais tarde confessou-me que tivera até pensado em suicidar-se.

Certo domingo, quando me propunha a assistir a um culto vespertino, ela desatou em prantos. Dizia desejar ir ver um filme. "Está bem", disse-lhe eu. "Iremos - porque amo você". Andamos de cinema em cinema e escolhi o filme que parecia mais sugestivo. Quando saímos, levei-a a um bar, onde ela se serviu de bolo de creme. Então eu disse: "Agora vá para casa dormir. Preciso procurar uma garota e levá-la a um hotel".

- Que você está dizendo? (ela perguntou)

- Falei bem claro. Você vá para casa. Vou procurar uma jovem para levá-la a um hotel".

- Como é que você diz uma coisa desta?

- Ora, você me fez ir ao cinema, onde viu como foi que o herói procedeu - por que não devo fazer o mesmo? Se amanhã e nos dias seguintes voltarmos a ver filmes dessa ordem... qualquer homem acaba fazendo o que vê lá; mas se você quer que eu seja bom marido, vá à igreja comigo algumas vezes.

Ela refletiu. Depois, calma e sossegadamente começou a ir sempre mais à igreja. Mas ainda suspirava pela vida alegre e quando queria ir a alguma parte, eu a acompanhava. Certa noite fomos a uma festa de muita bebedeira. O ar estava cheio de fumaça. Casais dançavam e se entregavam abertamente as carícias do amor. De repente minha esposa se aborreceu com tudo aquilo, e disse: "Ah, vamos embora! E já!".

Perguntei: "Por quê? Chegamos ainda há pouco". Ficamos até à meia-noite. Outra vez ela quis ir para casa, e outra vez recusei. Repetiu-se isso a 1 hora da madrugada. E outra vez às 2 horas. Quando vi que ela estava completamente enjoada, concordei em sair.

Viemos para o ar puro. Sabina disse: "Richard! Vou diretamente à casa do pastor para que ele me batize. Será como tomar um banho depois de toda aquela sujeira". Ri e observei: "Você já esperou tanto. Pode aguardar agora que o dia amanheça. Deixe o pobre pastor dormir".

Toda a nossa vida mudou. Antes, brigávamos por ninharias. Um divórcio não estaria fora de cogitação, se ela interferisse em minha vida de prazeres. Nasceu-nos um filho. Mihai foi um presente de Deus, porque nos primeiros tempos não queríamos um menino, o qual podia embaraçar nossos divertimentos. Sentimo-nos felizes quando o Rev. George Stevens, presidente da Missão da Igreja da Inglaterra em Bucareste, convidou-me para servir como secretário da mesma. Fiz o que pude para acomodar meus instintos de comércio, porém surgiu uma dificuldade quando persuadi um agente de seguros a aceitar um suborno em troca do arquivamento de uma exigência que ele fazia da Missão. Para surpresa minha, o Sr. Stevens parecia não entender o arranjo proposto por mim. "Mas, quem é que está com a razão?" perguntou. "A Companhia, ou nós?" Respondi que de fato a exigência tinha sua razão. "Então devemos pagar", acrescentou ele, dando por encerrada uma barganha que para mim era vantajosa.

Em 1940 as relações entre a Romênia e a Inglaterra foram suspensas. O Clero inglês teve de deixar o país. Como não houvesse outra pessoa, tive de assumir o trabalho da igreja.

Aprendi por mim mesmo a pregar, ordenando-me pastor luterano. Eu tinha considerado as denominações rivais, existentes na Romênia. A igreja ortodoxa, à qual pertenciam quatro de cada cinco pessoas, parecia muito afeiçoada a pompas externas. Senti a mesma coisa com relação ao ritual católico: um domingo de Páscoa, depois de ouvir sentado toda a liturgia em latim e uma alocução política feita pelo bispo, saí sem ouvir sequer, em minha própria língua, que Cristo ressuscitou dos mortos. Atraíam-me os cultos protestantes, mais simples, em que o sermão, pelo qual se podia ensinar e apresentar uma festa para gozo do espírito, era a parte central. E depois, sem a grandiosidade que lhe fora peculiar, eu tinha certa afinidade espiritual com Martin Lutero. E assim me tornei luterano.

Sempre tive minhas cautelas com o pessoal do clero, e acima de tudo com aqueles que me perguntassem se eu estava "salvo". Agora, se bem que não usasse veste clericais, tinha o impulso irresistível de encerrar o mundo inteiro em minha paróquia. Não podia fazer muitas conversões. Conservava comigo uma lista dos componentes de minha congregação e quando num ônibus e em salas de espera, puxava-a do bolso e me perguntava o que cada um estaria fazendo naquele momento. Se algum deles desertava, eu ficava prostrado em angústia durante horas. Era um sofrimento físico, como se um punhal me atravessasse o peito. Pedia a Deus que me livrasse daquilo. Não podia continuar assim.

As condições de Stalin para auxílio econômico a Hitler durante a guerra incluíam a partilha da Europa Oriental. Um terço de nosso território nacional foi divido entre a Rússia, a Bulgária e a Hungria. A influência nazista apoiou a expansão de um movimento denominado "Guarda de Ferro", cujos membros procuravam utilizar-se da igreja ortodoxa, para fins de terrorismo político. Na noite antes do assassinato do Primeiro Ministro Calinescu, seu principal opositor, nove fanáticos passaram horas prostrados no chão de uma igreja, seus corpos dispostos na forma de cruz. Depois disso, a Guarda de Ferro prestou auxílio ao protegido de Hitler, General lon Antonescu, para a conquista do poder. O rei Carol foi forçado a abdicar em favor do seu jovem filho Miguel, em cujo nome Antonescu governou como ditador.

Agora a Guarda de Ferro tinha carta branca para agir com judeus, comunistas e protestantes. Assassinatos eram perpetrados nas ruas. Nossa Missão foi acusada de traição. Todos os dias eu recebia ameaças. Certo domingo, do púlpito, vi um grupo de homens, vestindo a camisa verde da Guarda de Ferro, enchendo silenciosamente os últimos bancos da igreja. A congregação, de frente para o altar, não se apercebia dos intrusos, mas eu os vi empunhando revólveres. Eu pensava: se este vai ser meu último sermão, deverá ser bom mesmo.

Falei sobre as mãos de Jesus. Disse como haviam enxugado lágrimas, pego em crianças e alimentado famintos. Haviam curado enfermos, foram pregadas na cruz e abençoaram os discípulos antes que Ele subisse ao céu. Depois ergui a voz, "Mas quanto a vós outros? Que tendes feito com as vossas mãos?" A congregação olhava com espanto. Todos seguravam seus livros de orações. Trovejei, "Vós estais matando, espancando e torturando pessoas inocentes! Chamais a vós mesmos cristãos? Limpai as mãos, pecadores!".

 

Os homens da Guarda de Ferro pareciam cheios de furor. Apesar disso não cuidaram de interromper o culto. Levantaram-se de revólveres nas mãos enquanto elevei uma oração e impetrei a bênção, depois do que os assistentes começaram a sair. Quando quase todos se tinham retirado sem novidade, desci do púlpito e passei por trás de uma cortina. Antes que eu atravessasse uma portinhola, fechando-a a chave, ouvi rumor de passos apressados e gritos: "Onde está Wurmbrand? Vamos a ele!". Aquela passagem secreta tinha sido construída muitos anos antes. Através de corredores ganhei a rua ao lado, e assim escapei.

Com o prosseguimento da guerra, muitas pessoas das minorias cristãs: adventistas, batistas, pentecostais; foram massacradas ou levadas para campos de concentração com os judeus. Toda a família de minha esposa desapareceu; nunca mais os vi. Fui detido pelos fascistas em três ocasiões; processado, interrogado, espancado e preso. Deste modo fiquei bem preparado para o que havia de vir sob o domínio comunista.

Através da janela da prisão em Calea Rahova podia ver um canto do pátio. Um dia, enquanto olhava, um clérigo deu entrada pelo portão. Caminhava a passos rápidos pelo asfalto, penetrando numa porta: era um informante, que ia dar relatório de sua congregação.

Eu sabia que me aguardavam interrogatórios, maus-tratos, possivelmente anos de prisão e morte, e não sabia se minha fé seria bastante forte. Lembrava-me então que na Bíblia está escrito 366 vezes: uma para cada dia do ano; "Não temas!" Trezentos e sessenta e seis vezes e não somente trezentos e sessenta e cinco, para que não se excluam os anos bissextos. E o que me aconteceu foi em 29 de fevereiro; coincidência que me dizia não precisar ter medo!

Os interrogadores não se mostravam impacientes por me ver, porque as prisões comunistas assemelham-se a arquivos, cujas gavetas se puxam à medida que alguma informação se torne necessária. Fui interrogado repetidas vezes durante todos os quatorze anos e meio que passei preso. Sabia que aos olhos do Partido minhas ligações com as missões da igreja ocidental e com o Concílio Mundial de Igrejas eram traiçoeiras, desleais, mas havia muito mais coisas de importância que eles não sabiam e que de mim não deviam ouvir.

Havia-me preparado para prisão e torturas, como um soldado que em tempo de paz se prepara visando as cruezas da guerra. Estudara as vidas de cristãos que tinham enfrentado iguais sofrimentos e tentações para que se entregassem, e pensava como era que eu podia acomodar-me às experiências deles. Muitos que não se prepararam assim foram esmagados pelo sofrimento ou foram seduzidos a dizer o que não deviam. Os interrogados sempre diziam a clérigos: "Como cristãos vocês devem prometer dizer a nós toda a verdade sobre tudo". De minha parte, visto como tinha certeza de que me dariam como culpado fosse o que fosse que eu dissesse, decidi que sob torturas incriminaria a mim mesmo e nunca trairia amigos que me haviam ajudado a divulgar o Evangelho. Assim, fiz o plano de deixar meus inquiridores ainda mais confusos no final de suas investigações do que no princípio. Queria desnorteá-los por completo.

Minha primeira tarefa era conseguir de algum modo mandar aviso aos meus colegas e à minha esposa sobre o lugar em que me encontrava. Pude peitar um guarda para que se fizesse intermediário, porque naquele tempo minha família ainda tinha dinheiro. Ele recebeu umas 500 libras para levar recados nas poucas semanas que se seguiram. Depois, tudo quanto era nosso foi tomado.

O guarda levou-me a notícia de que o Embaixador da Suécia havia protestado contra o meu desaparecimento, dizendo que eu tinha na Escandinávia e na Inglaterra muitos que me queriam bem. A Sra. Ana Pauker, Ministra do Exterior, respondeu que nada se sabia do meu paradeiro, visto que eu deixara o país ocultamente fazia já algum tempo. O Embaixador, na qualidade de emissário neutro, pôde a custo exercer maior pressão, no fim de tudo perante a Sra. Pauker, mulher à frente da qual homens fortes se acovardavam. Eu a avistara antes e cheguei a conhecer o seu pai, um clérigo de nome Rabinovici, que me declarou com tristeza: "Ana tem o coração vazio de piedade por tudo quanto é judaico". Estudou medicina, depois passou a ensinar na Missão da Igreja Inglesa antes de abraçar o Comunismo e de se casar com um engenheiro das mesmas idéias, chamado Mareei Pauker. Ambos foram presos por conspiração, porém ela se mostrava partidária mais violenta. Foi residir em Moscou e Mareei acompanhou-a, com pouco entusiasmo. Em um dos expurgos promovidos por Stalin antes da guerra, ele foi executado: fuzilado, como se disse, pela mão da própria esposa, sendo que poucos punham em dúvida esta versão. Ana só exteriormente era mulher: intimamente era como Lady Macbeth: "cheia, da coroa à ponta dos pés, da mais terrível crueldade". Depois de passar os últimos tempos da guerra como cidadã soviética em Moscou, no posto de oficial do Exército Vermelho, voltou a exercer o cargo de Ministro do Exterior, para se tornar dominadora na Romênia.

Tamanha era a sua lealdade à Rússia, que certo dia, sendo o tempo claro, perguntou-lhe alguém por que andava em Bucareste com a sombrinha aberta, ao que ela respondeu, segundo boatejavam: "Não ouviu você o aviso meteorológico? Está chovendo grosso em Moscou".

Depois que um grupo de líderes políticos, chefiados pelo jovem Rei Miguel, retirou corajosamente do poder o General Antonescu, dando assim por encerrada sua parceria com a Alemanha, convocou-se uma reunião em Moscou para se decidir a configuração do mundo de após-guerra. Churchill perguntou a Stalin: "Que tal você predominar em 90 por cento da Romênia, cabendo a nós 90 por cento do direito de opinar na Grécia?" E escreveu estas palavras numa folha de papel. Stalin fez uma pausa. Depois, com um lápis azul, riscou um sinal grande no papel e passou-o para trás. Tropas russas de um milhão de homens invadiram a Romênia. Eram estes os nossos novos "aliados".

"Os russos estão chegando!" era uma frase que, para nós, não tinha nada de engraçado. Os novos ocupantes tinham uma única idéia na vida: beber, roubar e saquear os "capitalistas exploradores". Milhares de mulheres, de todas as idades e condições, eram raptadas por soldados que invadiam suas casas. Homens eram roubados em via pública, arrebatando-se deles novidades tais como bicicletas e relógios de pulso. Quando pelo fuzilamento se restabeleceu a ordem no Exército Vermelho e as lojas começaram a levantar suas persianas, as tropas visitantes ficavam admiradas diante dos artigos expostos à venda e ainda mais quando vieram, a saber, que a maioria dos fregueses era fazendeiros e operários de fábricas.

A capitulação, proclamada em 23 de agosto de 1944, ainda é celebrada todos os anos como o dia da libertação da Romênia. De fato, usaram-se os seus termos para espoliar o país de toda a sua marinha de guerra, a maior parte de sua frota mercante, a metade da sua frota terrestre e todos os automóveis. Produtos de granjas, cavalos, gado e todo o nosso estoque de óleo e petróleo eram desviados para a Rússia. Foi assim que a Romênia, conhecida como celeiro da Europa, viu-se reduzida a uma área de fome.

No dia em que me converti, orei: "Ó Deus, eu era ateu. Deixa-me agora ir à Rússia para trabalhar como missionário entre os ateus, e não reclamarei se depois tiver de passar todo o resto da minha vida em prisão". Deus, no entanto não me levou a empreender a longa viagem à Rússia. Ao invés disso, os russos vieram a mim.

Durante a guerra, a despeito da perseguição, os membros de nossa missão aumentaram grandemente em número. Muitos dos que haviam atormentado judeus e protestantes, agora adoravam ao lado de suas vítimas de antes.

Passada a guerra, continuou meu trabalho pelas missões da igreja ocidental. Tive um gabinete equipado, secretárias; uma "frente" para a minha campanha. Falo bem o russo. Era-me fácil conversar com soldados russos nas ruas, lojas e trens. Não usava uniforme clerical, de modo que me supunham um cidadão vulgar. Os jovens, especialmente, estavam desconcertados e saudosos do lar. Apreciavam que lhes mostrássemos aspectos de Bucareste, bem como receber convites para visitar uma casa de amigos. Nisto recebi auxílio da parte de muitos jovens crentes que também falavam russo. Dizia eu às moças que elas podiam usar a sua beleza para ajudar a levar homens a Cristo. Uma jovem viu um soldado sozinho num bar. Sentou-se ao seu lado e aceitou o oferecimento que o rapaz lhe fez de um copo de vinho; depois sugeriu que saíssem para alguma parte, onde pudessem conversar mais tranqüilamente. "Com você, em qualquer parte!" disse o russo, e ela o levou à minha casa. O soldado converteu-se e levou outros a ter contato conosco.

Secretamente publicamos o Evangelho em russo. Mais de 100.000 exemplares foram distribuídos em bares, parques, estações ferroviárias, onde quer que se achassem russos; isso durante mais de três anos. Eram passados de mão em mão, até que ficavam amarrotados. Muitos de nossos auxiliares foram presos, porém nenhum deles me denunciou.

Ficávamos admirados não tanto com o número de conversões, senão com a sua naturalidade. Os russos ignoravam religião por completo, mas era como se no profundo dos seus corações buscassem a verdade. Agora reconheciam-na com deleite. Na maioria dos casos eram jovens camponeses, que tinham trabalhado na lavoura, plantando e colhendo, e sentiam no íntimo que alguém põe a natureza em ordem. Contudo haviam-se criado ateus e acreditavam que o eram, assim como tantos acreditam que são cristãos, quando não o são.

Encontrei um jovem pintor, oriundo do extremo da Sibéria, quando viajava de trem. Falei-lhe de Cristo, no percurso da viagem. "Agora compreendo!" disse ele. "Eu só conhecia o que nos ensinaram nas escolas, que a religião é um instrumento do imperialismo, e assim por diante. Mas eu costumava andar em um velho cemitério perto da minha casa, onde podia ficar só. Muitas vezes me dirigia a uma casa pequenina, abandonada entre os túmulos". (Compreendi tratar-se de uma capela ortodoxa, do cemitério). "Na parede havia a pintura de um homem pregado a uma cruz. Pensava eu, Ele deve ter sido um grande criminoso, para receber tal castigo". Mas, se foi um criminoso, por que seu retrato haveria de ser colocado num lugar de honra - como se fosse Marx ou Lênin? Conclui que a princípio o tiveram por criminoso, e que depois o acharam inocente, e assim, tocados de remorso, expunham daquele modo a sua “gravura”.

Eu disse ao pintor: "Você está a meio-caminho da verdade". Quando chegamos ao nosso destino, horas depois, ele sabia tudo quanto lhe pude dizer de Jesus. Ao nos separarmos, ele disse: "Planejava roubar algumas coisas esta noite, como todos fazemos. Mas agora poderei fazer isso? Creio em Cristo".

Também trabalhamos entre comunistas romenos. Todo livro tinha de passar pela censura deles. Apresentávamos obras que levavam no frontispício o retrato de Karl Marx. Poucas das primeiras páginas repetiam os argumentos dele e os de Lênin contra a religião. O censor não ia além daí, o que era bom, visto como o restante do livro era cem por cento cristão. O censor gostou de outro dos nossos títulos: "Religião, ópio do povo". Diante de pilhas de livros, velhos e novos para ler, não se dava ao trabalho de olhar por dentro, onde encontraria só argumentos cristãos. Algumas vezes um censor deixava passar qualquer coisa em troca de uma garrafa de aguardente.

O número de comunistas romenos havia crescido, passando de poucos milhares para milhões, porque um cartão do Partido podia significar a diferença entre comer e passar fome. Stalin instalara um governo de "frente unida", de sua própria escolha, tendo a dirigi-lo o líder da "Frente de Lavradores", de nome Groza. À parte Ana Pauker, que segundo se dizia "inventara" Groza, o poder dos russos era exercido mediante três veteranos camaradas do Partido: Lucretiu Patrascanu, nomeado Ministro do Interior assumiu o comando da polícia e da "segurança", e Gheorghe Gheorghiu Dej, um rijo ferroviário, que era o Primeiro Secretário do Partido.

Assisti, na qualidade de observador, a uma reunião de padres ortodoxos, onde Gheorghiu Dej falou, depois que os comunistas assumiram o poder. Jovial e atarracado assegurou a todos estar preparado a "perdoar e esquecer". Apesar das muitas ligações da igreja deles, no passado, com a Guarda de Ferro e outras organizações de ala-direita, o Estado ia continuar a pagar-lhes salários, como antes. Suas observações finais, acerca da identidade dos ideais cristãos e dos comunistas, mereceram aplausos.

Em ocasiões informais Gheorghiu Dej foi franco em declarar seu ateísmo e sua convicção de que o Comunismo se propagaria pelo mundo inteiro e, no entanto falava com indulgência a respeito de sua velha mãe, que enchia o lar dele de ícones e criou as filhas como fiéis ortodoxas. Durante onze anos de prisão sob o velho regime, Dej tivera tempo de estudar a Bíblia e discutir religião com muitos secretários aprisionados, aos quais expressava simpatia. Fugindo da prisão pouco antes da chegada dos russos, teria sido capturado e morto pelo ditador Antonescu, se não tivesse sido protegido por um padre amigo. Todavia, se a religião chegou a tocar sua vida nos dias de luta, nenhum lugar havia para ela agora que ele estava por cima. A esposa, que por tanto tempo esperara pelo seu retorno, foi desprezada, tomando-lhe o lugar uma estrela de cinema. A casa vivia cheia de serventes e pessoas envolvidas em processos judiciais; Dej era rico e famoso, e nenhuma disposição tinha para ouvir a quem quer que fosse.

Quando alguém dirigiu a conversação, na reunião que teve com os padres, levando-a para o terreno espiritual, ele replicou com os argumentos normais do Partido. Assegurou-nos que todos íamos ter completa liberdade de consciência na nova Romênia, e em troca meus colegas prometeram não causar nenhuma perturbação ao Estado. Eu ouvia e guardava comigo minhas restrições. Muitos padres sobressaíram-se naquela reunião como campeões do modo comunista de vida, mas cedo ou tarde tropeçaram em alguma doutrina do Partido e acabaram sendo presos.

A campanha para minar a religião progrediu com rapidez. Todos os fundos e propriedades da igreja foram nacionalizados. Um Ministro de Cultos comunista controlava completamente o clero, pagando-lhes salários e sancionando nomeações. O ancião Patriarca Nicodim, um recluso virtual, foi aceito como figura-de-proa dos ortodoxos, mas o Partido precisava de um instrumento mais dócil, e Dej conhecia o homem adequado: o padre que o havia escondido dos fascistas um ano antes. E assim foi que o padre Justiniano Marina, obscuro professor de seminário, provindo de Rimincul Vilcea, foi feito bispo. Em breve todos os quatorze milhões de romenos ortodoxos, freqüentadores da igreja, vieram a saber que ele era o seu Patriarca só no nome.

A tarefa seguinte foi separar os católicos romanos dos católicos gregos, dos quais havia dois milhões e meio. Os católicos gregos, comumente chamados Uniatas, embora guardem muitas tradições propriamente suas (inclusive o direito que os padres têm ao casamento), aceitam a supremacia do Papa. Eram agora assaltados e à força se uniram à obediente Igreja Ortodoxa. A maioria dos padres e todos os bispos que se opuseram a esse consórcio forçado, foram presos, suas dioceses foram abolidas e confiscadas suas propriedades. Os católicos romanos, que receberam ordem de romper com o Vaticano, recusaram-se. Estes igualmente pagaram caro por sua resistência. Com os padres a encher os presídios e circulando pelo país inteiro, histórias sinistras do tratamento que recebiam, as religiões minoritárias só fizeram baixar a cabeça e esperar o desfecho da sua morte.

Não tiveram muito que esperar. Em 1945 um "Congresso de Cultos" foi convocado para se realizar no edifício do Parlamento da Romênia, reunindo-se ali 4.000 representantes do clero, que lotaram o salão. Bispos, padres, pastores, rabinos e teólogos muçulmanos aplaudiram quando foi anunciado que o Camarada Stalin (cujo retrato, em tamanho grande, pendia da parede) era o patrono do congresso. Preferiam não se lembrar que ele, ao mesmo tempo, era presidente da Organização Ateísta Mundial. O velho e temente Patriarca Nicodim abençoou a assembléia e o Primeiro-Ministro Groza abriu os trabalhos. Disse que ele mesmo era filho de um padre. Suas generosas promessas de apoio, secundadas por outros personagens que falaram depois, foram recebidas com reconhecimento e palmas.

Um dos principais bispos ortodoxos disse em resposta que no passado, muitos riachos políticos haviam afluído para o grande rio de sua igreja: verdes, azuis, tricolores, e agora ele saudava a perspectiva de que um vermelho viesse juntar-se àquele caudal. Um líder calvinista, outro luterano e o Rabino Chefe, cada qual por sua vez, se levantaram para falar. Todos manifestaram boa-vontade de cooperar com os comunistas. Minha esposa, ao meu lado, não podia mais suportar. E disse: "Vai e lava esta vergonha que atiram à face de Cristo!"

"Se eu fizer isso, você vai perder seu marido", respondi.

"Não quero ter por marido um covarde. Vá e fale", atalhou Sabina.

Pedi licença para falar e eles com prazer me convidaram à tribuna: os promotores do Congresso esperavam publicar no dia seguinte um discurso de congratulações do Pastor Wurmbrand, da Missão da Igreja da Suécia e do Concílio Mundial de Igrejas.

Comecei com uma ligeira observação sobre o Comunismo. Disse que, como clérigos, nosso era o dever de glorificar a Deus e a Cristo, e não aos poderes transitórios do mundo, e a manter o seu reino eterno de amor contra as vaidades da hora presente. E enquanto continuava, padres que durante horas estiveram sentados a ouvir lisonjas mentirosas acerca do Partido, pareciam despertar de um sono. Alguém começou a bater palmas. A tensão chegou ao máximo e eclodiu; aplausos ressoaram de súbito, onda após onda, delegados levantando-se e dando vivas. O Ministro de Cultos, ex-padre ortodoxo, de nome Burducea, que fora em outros tempos um fascista ativo, bradou da plataforma que estava cassado o meu direito de falar. Respondi que esse direito eu o tinha da parte de Deus, e continuei. Por fim desligaram o microfone, mas esse ponto o tumulto era tão grande no salão, que ninguém podia ouvir mais nada.

Com isso deu-se por fim a sessão do congresso daquele dia. Ouvi que o Ministro de Cultos tencionava cancelar minha licença de pastor e fui aconselhado a procurar auxílio do influente Patriarca eleito. Depois de várias tentativas, consegui entrar em contato com Justiniano, ao voltar ele de uma visita a Moscou, onde houvera grande agitação a seu respeito. De barbas negras, sorridente, convencido de sua nova dignidade, porém, não um insensato, era esse o homem que agora cuidava dos quatro quintos da população que na Romênia freqüentava as igrejas. De repente decidi que poderia empregar meu tempo com ele de melhor forma que conversando a respeito de meu próprio caso. Disse então que, desde que fora promovido, fora objeto de minhas orações constantes. A responsabilidade por quatorze milhões de almas devia na verdade ser uma carga terrível para alguém levar. Devia ele sentir-se como Sto. Irineu, que chorou quando o povo o fez bispo contra a sua vontade, dizendo: "Filhos, que fizestes - como me poderei tornar o homem que este cargo exige? A Bíblia diz que o bispo deve ser justo".

 

Enquanto eu falava, ele pouco dizia, mas depois que me retirei fez indagações entre amigos sobre mim. Por certo não se falou mais na cassação de minha licença. Posteriormente, quando fui detido pela polícia para um inquérito de seis semanas, Justiniano esteve entre os que ajudaram a obter minha liberdade. Ainda depois me convidou ao lashi, sede do seu episcopado, onde nos tornamos amigos. Era de espantar sua ignorância da Bíblia, mas isso não era exceção entre os padres ortodoxos. Ouviu com atenção quando lhe recordei a parábola do Filho Pródigo. Tomando suas mãos entre as minhas disse-lhe que Deus recebia com prazer os desviados que voltavam, mesmo que fossem bispos.

Outros crentes, além de mim, empregavam toda a sua influência sobre ele. Começara já uma vida de oração e amor a Deus em vasta escala contra a religião, pelo que o perdi de vista durante alguns anos.

A torrente do ateísmo avançava de par com a eliminação de partidos oposicionistas, porque depois de Stalin haver conseguido tudo dos seus aliados do tempo de guerra, as últimas reivindicações democráticas foram postas de lado. O grande líder do Movimento Nacional Camponês da Romênia, Luliu Maniu, foi submetido a julgamento com outras dezoito pessoas sob falsas acusações e, com a idade de mais de setenta anos, foi sentenciado a dez anos de prisão. Morreu na cadeia quatro anos depois. No reinado de terror, que se seguiu, estima-se em uns 60.000 os "inimigos do Estado" que foram executados.

Por ironia o Ministro da Justiça que presidiu todo esse expurgo, Lucretiu Patrascanu, de quarenta e sete anos, recebera muito auxílio de Maniu na defesa de comunistas perseguidos antes da guerra. Os dois também trabalharam juntamente com o Rei Miguel no planejamento do armistício que Patrascanu depois assinou em Moscou, em nome da Romênia. Uma vez Maniu reduzido ao silêncio, Patrascanu e outros líderes do Partido forçaram nosso mui querido e jovem rei a abdicar.

Veio então a proclamar-se uma República Popular. Quem, no entanto seria o seu líder? Não o títere Groza, por certo. Ana Pauker era detestada, até mesmo no Partido. Os demais tinham desavença entre si. Muitos dos admiradores de Patrascanu viam nele um comunista nacionalista que desviaria o país do extremismo Stalinista. Era um comunista tipo "ocidental", oriundo de uma família proprietária de terras, e o melhor que se podia dizer dele era que fora romeno antes de ser vermelho.

O problema da liderança foi assunto de vivos debates no Comitê Central do Partido.

Minha vida como pastor, até esse tempo, havia sido plena de satisfação. Tinha tudo quanto necessitava para a minha família. Gozava da confiança e do carinho dos meus paroquianos. Mas não sentia paz. Por que me permitia viver como sempre, quando uma ditadura cruel estava destruindo tudo quanto me era caro e quando outros sofriam por sua fé? Muitas noites, eu e Sabina oramos pedindo a Deus que nos desse uma cruz para levar.

Minha prisão, na ampla canoa que prosseguia por esse tempo, podia ser considerada resposta à minha oração, porém jamais podia supor que o meu primeiro companheiro de cela fosse o Camarada Patrascanu.

Quando a porta de minha cela em Calea Rahova se abriu, poucos dias depois de minha chegada, para que entrasse o alto Ministro da Justiça, julguei a princípio que ele ia interrogar-me na prisão. Por que teria eu tamanha honra? Mas logo a porta foi trancada atrás dele: e mais era de estranhar, sua camisa estava aberta no pescoço, sem gravata. Olhei para os seus sapatos muito polidos; nenhum cadarço. O segundo preso em minha cela novinha em folha era o homem que levara o Comunismo ao poder em nosso país.

Sentou-se na outra cama de tábuas e balançava os pés. Intelectual de mentalidade rija, não iria permitir que a transformação de Ministro em pássaro engaiolado afetasse a sua dignidade. Agasalhado em um dos nossos casacões, com que nos protegíamos da friagem de março, começamos a conversar. Embora eu soubesse que as suas doutrinas tinham esfrangalhado a justiça e causado tanta destruição, foi-me possível apreciá-lo como homem e acreditar em sua sinceridade. Tinha ele em pouco apreço sua prisão. Longe estava de ser aquele seu primeiro período de confinamento. Já houvera sido dito várias vezes pelos governantes na Romênia de tempos idos. Parecia que sua crescente popularidade havia unido os outros líderes do Partido contra ele. Num congresso, poucos dias antes, fora denunciado como traidor burguês na luta de classes pelo seu colega Teohari Georgescu, Ministro do Interior. Uma outra acusação, de ter sido "possivelmente ajudado pelas potências imperialistas", fora apoiada por Vasile Luca, Ministro das Finanças, que com ele estivera preso sob o antigo regime. As acusações recebiam ênfase da parte de Ana Pauker, outra amiga sua de outrora.

Vinham conspirando contra ele já por algum tempo, disse Patrascanu, mas um incidente em particular denunciou-o como não-comunista. Perguntara ele a um dos funcionários de Georgescu se havia verdade nos rumores de que prisioneiros estavam sendo torturados. "Por que não?", respondeu o homem, da parte do Ministério. Tratava-se de contra revolucionários que não mereciam piedade, especialmente quando se negavam a prestar informações. Patrascanu ficou profundamente conturbado. Será então este o pagamento, perguntou, de haverem lutado todos estes anos para levar o partido ao poder? Seu protesto foi noticiado a Georgescu, seguindo-se a denúncia no Congresso.

"Ao deixar a sala", disse, "vi novo motorista a me esperar no carro, o qual me observou", "Camarada Patrascanu, lonescu, seu chofer, adoeceu e levaram-no". Entrei no carro, dois secretas subiram atrás de mim - e aqui estou!".

Tinha certeza de que em breve seria reconduzido ao seu posto, e quando a ceia chegou, comecei a imaginar que isso bem que podia ser possível. Em lugar de cevadas cozidas, trouxeram-lhe frango, queijo, frutas e uma garrafa de vinho branco do Reno. Patrascanu sorveu um copo de bebida e afastou a bandeja, dizendo não estar com apetite.

Enquanto eu procurava comer sem muita voracidade, ele foi contando histórias divertidas. Uma foi em torno do senador suíço que desejava ser Ministro da Marinha. "Mas não temos marinha nenhuma!" observou o Primeiro-Ministro. "Que importa?" atalhou o senador. "Se a Romênia pode ter um Ministro da Justiça, por que não pode a Suíça ter um Ministro da Marinha?" Patrascanu ria muito com esta anedota, apesar de ridicularizar a "justiça" que ele havia implantado e da qual acabou sendo vítima.

Na manhã seguinte Patrascanu saiu escoltado da cela, supondo eu que para ser interrogado. Voltou irritado à noite, dizendo que não estivera a responder perguntas, mas a fazer uma preleção na universidade, onde ensinava Direito. O Partido queira que sua prisão ficasse em sigilo por enquanto, e ele com trinta anos de disciplina comunista atrás de si, tinha de curvar-se ao desejo deles. Conversava comigo porque com ninguém mais, mesmo fora da prisão, podia falar. Revelar, mesmo que fosse à esposa, estar ele "debaixo de inquérito", ou pedir conselho a alguém seria uma ofensa capital. Aquele isolamento pesava-lhe no sistema nervoso, sendo esta mesma a sua finalidade. Só podia abrir-se, ser autêntico, comigo, porque tinha razão de acreditar que nunca mais eu veria o mundo exterior.

Relatando-me algo de sua vida primitiva, interessava-me ver que ele se tornara comunista não por qualquer critério objetivo, mas em revolta contra tribulações de outrora. Seu pai, cidadão abastado, defendera os alemães com entusiasmo na Primeira Guerra Mundial, razão por que, com a vitória dos Aliados, toda a sua família sofreu ostracismo. O jovem Patrascanu teve de ir para a Alemanha, a fim de receber educação universitária, e, voltando, aderiu ao único partido político que lhe deu boas-vindas. Sua primeira mulher, comunista, morreu num dos expurgos stalinistas. Casou-se de novo com outro membro do Partido, acontecendo ser ela amiga de minha esposa, dos seus tempos de escola.

Procurei mostrar-lhe a origem de suas convicções. "O senhor assemelha-se a Marx e Lênin", disse eu, "cujas idéias e ações foram também o resultado de sofrimentos do passado. Marx sentia em si algo de genial, mas sendo judeu e residindo na Alemanha quando lá predominava o anti-semitismo, não podia dar vazão aos seus sentimentos senão como revolucionário. O irmão de Lênin fora enforcado por atentar contra a vida do imperador: ira e frustração levaram-no a querer subverter o mundo. Foi bem o que aconteceu com o senhor".

Patrascanu rejeitava essa idéia. Seus nervos encontravam alívio em discussões filosóficas contra a iniqüidade da igreja. Os calamitosos dias dos Papas Borgia, a Inquisição Espanhola, a selvageria das Cruzadas, a perseguição movida a Galileu, tudo isto vinha à tona da conversa.

"Mas são os crimes e erros da Igreja que nos fornecem muito mais o que admirar nela", retorqui. Patrascanu ficou surpreso. "Que quer dizer com isso?"

Respondi: "Um hospital pode ter mal cheiro de pus e sangue; nisto reside sua beleza, porque recebe doentes com as suas chagas repelentes e moléstias horríveis. A Igreja é o hospital de Cristo. Milhões de pacientes nela se tratam, com amor. Ela aceita pecadores, estes continuam pecando, e pelas transgressões deles a Igreja é censurada. Para mim, por outro lado, a Igreja é qual uma mãe que se posta ao lado dos filhos, até mesmo quando estes cometem crimes. A política e os preconceitos dos seus serventuários são adulterações daquilo que nos vem de Deus, isto é, a Bíblia e seus ensinos, o culto e os sacramentos. Sejam quais forem as suas faltas, a Igreja tem muita coisa sublime em sí. O mar afoga milhares de pessoas cada ano, mas ninguém põe ,em dúvida a sua beleza".

Patrascanu sorriu: "Eu podia alegar outro tanto em favor do Comunismo. Seus praticantes não são perfeitos: há canalhas entre eles; mas isto não quer dizer que haja erros em nossas teorias".

"Então julgue pelos resultados", atalhei, "como Jesus aconselhou. Ações lamentáveis têm manchado a história da Igreja, contudo ela tem sido pródiga em amor e cuidado pelo povo no mundo inteiro. Tem produzido uma multidão de santos, e tem a Cristo, o maior de todos eles, como seu cabeça. Quem são os ídolos do senhor? Homens como Marx, dado como ébrio pelo seu biógrafo Riazanov, diretor do Instituto Marx de Moscou. Ou Lênin, cuja esposa nos conta ter sido ele jogador e cujos escritos destilam veneno. "Por seus frutos os conhecereis". O Comunismo tem feito desaparecer milhões de vítimas inocentes, tem levado países à bancarrota, tem enchido o ar de mentiras e temor. Onde está o seu lado bom?"

Patrascanu defendeu "a lógica da doutrina do Partido". Respondi que as doutrinas, como tais, nada significam. "O senhor pode cometer atrocidades dando-lhes nomes bonitos. Hitler falava de uma luta pró Lebensraum (espaço vital) e trucidou populações inteiras. Stalin disse:” Precisamos cuidar das pessoas como flores “, e matou a esposa, a dele e a sua".

Patrascanu parecia incomodado, mas foi franco. "Nosso propósito de longo alcance é comunizar o mundo. Poucos há que querem percorrer todo esse caminho conosco, mas é-nos sempre possível achar alguns que se dispõem, levados por suas razões particulares, a caminhar conosco por certo tempo. Primeiro tivemos as classes dominantes da Romênia e o rei, que apoiaram os Aliados contra os nazistas. Quando eles acabaram de servir aos nossos propósitos, nós os destruímos. Conquistamos a igreja ortodoxa com promessas, depois nos servimos das seitas menores para miná-la. Utilizamo-nos dos fazendeiros contra os donos de terras e posteriormente os camponeses pobres contra os fazendeiros ricos; e agora todos serão coletivizados. Eram estas as idéias táticas de Lênin, e funcionam!".

Disse-lhe eu: "Ninguém ignora que todos os seus companheiros de jornada foram encarcerados, executados ou de alguma forma destruídos no passado. Como podem os senhores esperar que continuarão utilizando-se de pessoas e jogando-as fora depois?”.

Patrascanu riu. "Porque são estúpidas. Aqui está um exemplo. Dez anos depois da Primeira Guerra Mundial, o Grande pensador Bolchevique Bukharin opôs-se aos planos de Trotsky de fazer a revolução mundial pelas armas. Argumentava ser melhor esperar até que os países capitalistas começassem a brigar uns com os outros. A Rússia podia então aderir ao lado vencedor e arrebatar a parte do leão dos países vencidos. Era uma profecia notável - mas ninguém a levou a sério. Se o Ocidente tivesse sabido que metade da Europa e dois terços da Ásia se tornariam comunistas como resultado disso, a última guerra jamais teria sido feita. Felizmente nossos inimigos não escutam nossos argumentos nem lêem nossos livros, por isso podemos falar abertamente".

Chamei-lhe a atenção para uma falha no seu argumento: "Não vê, Sr. Patrascanu, que assim como os senhores utilizam as pessoas e depois as lançam para um lado, de igual modo os seus camaradas o têm usado e lançado fora? Não enxerga o senhor a lógica maligna da doutrina de Lênin?"

Desta vez a amargura de Patrascanu se pôs à mostra. Disse: "Quando Danton foi levado à guilhotina e viu Robespierre a observá-lo de uma sacada, bradou-lhe: Você virá depois! -Asseguro-lhe agora que esses virão depois de mim - Ana Pauker, Georgescu e Luca, por igual".

E assim aconteceu, dentro de três anos. Naquela noite não falamos mais, contudo, às 22 horas, quando já tínhamos ido para a cama, a porta abriu-se e meu novo nome foi chamado. Três homens estavam do lado de fora. Um deles, a quem depois conheci como Appel, mandou que me vestisse. Obedeci, e Patrascanu cochichou-me que vestisse o casacão também. Serviria para abrandar as pancadas. Uma espécie de óculos pretos, de proteção, foram-me postos nos olhos para que eu não visse para onde me levavam. Fui conduzido através de um longo corredor a uma sala onde me fizeram sentar numa cadeira. Tiraram-me as vendas dos olhos.

Estava diante de uma mesa, tendo à frente de meus olhos uma luz viva e desagradável. A princípio via somente uma figura indistinta, do lado oposto, mas adaptando-se minha vista àquele brilho, reconheci um homem chamado Moravetz. Ex-inspetor de polícia, que sofrera um contratempo por revelar segredos aos comunistas, tinha sido agora recompensado com a função de inquiridor.

"Ah", disse ele, "Vasile Georgescu. Você tem papel e caneta naquela cadeira. Leve sua cadeira e descreva suas atividades e sua vida". Perguntei o que lhe interessava de modo particular.

Moravetz franziu sarcasticamente a sobrancelha, "Como padre, você tem ouvido algumas confissões. Trouxemo-lo aqui para que nos relate isso".

Escrevi um esboço de minha vida até ao tempo de minha conversão. Depois, julgando que essa declaração chegaria ao conhecimento dos líderes do Partido e produziria algum efeito, expliquei minuciosamente como sendo ateu, como eles, tive os olhos abertos para a verdade. Escrevi durante uma hora ou mais, quando Moravetz me tomou o papel, dizendo. "Por hoje basta". Fui levado de volta à minha cela, encontrando Patrascanu a dormir. Alguns dias se passaram novamente sem que me inquietassem. Os comunistas invertem os métodos normais da polícia, que consistem em fazer o prisioneiro falar enquanto se acha sob o choque da captura. Preferem deixá-lo "amadurecer". O inquiridor não diz nunca o que quer; apenas aborda sua presa dando-lhe esta ou aquela direção, insinuantemente, de modo a provocar ansiedade e sentimento de culpa. Enquanto a pessoa dá tratos à bola para descobrir o motivo de sua prisão, aumentam-lhe o nervosismo com outros ardis: um julgamento constantemente adiado, a detonação das armas de um pelotão, gravada em "tape", gritos agudos de outros presos. Começa a fazer falsos juízos. Um lapso ou descuido conduz a outro, até que a exaustão o força a admitir sua culpa. O inquiridor passa a mostrar simpatia. Dá esperança ao preso de um paradeiro ao seu sofrimento, se ele admitir que merece o castigo e disser tudo. Assim foi que Appel voltou poucos dias depois, começando o primeiro de meus inumeráveis interrogatórios.

Desta vez fui levado a uma sala do subsolo, poucos degraus abaixo de minha cela, por Appel, que me deu uma cadeira, ofereceu-me um ‘toffeë' (doce de caramelo) que tirou de sua pasta, e instalou-se num sofá. Um dos seus colegas tomava notas. Mascando firme, Appel conferia itens de minha declaração e observou que o pensamento de uma pessoa era orientado pela classe a que pertencia. Não sendo eu de origem proletária, estava propenso a ter opiniões reacionárias. Eu tinha certeza de que Appel também não era proletário, e fiz ver que nenhum dos grandes pensadores do Partido foi "operário" naquele sentido.

Marx foi filho de um advogado, o pai de Engel foi proprietário e Lênin veio da nobreza. A classe, só por si, jamais ditou as convicções de ninguém. Appel interrompeu. "Quais eram suas relações com o Sr. Teodorescu"?

"Teodorescu?" perguntei. "Existem muitos com este nome. A quem o senhor se refere”?

Mas Appel não o disse. Pelo contrário, passou a discorrer sobre a Bíblia e as profecias de Isaías acerca da vinda do Messias. De vez em quando, sem avisar, mencionava os nomes de pessoas que haviam ajudado a distribuir meus livros com os soldados soviéticos, ou encaminhavam socorro vindo do Concílio Mundial de Igrejas. As setas vinham aparentemente ao acaso. Appel era sempre cortês e nunca insistia. Parecia mais interessado em minhas relações às perguntas súbitas do que em minhas respostas e, depois de outra hora, fui levado de volta à cela para pensar na significação daquilo.

Patrascanu procurava divertir-se às minhas custas, conversando a respeito dos planos do Partido para desarraigar o Cristianismo da Romênia. Já Ana Pauker, Georgescu e outros membros do Comitê Central haviam estado secretamente com Justiniano, decidindo que este serviria bem aos propósitos deles. "Justiniano", afirmou, "tem tanto a ver com Deus quanto eu com o Imperador do Japão. Relativamente ao velho Patriarca Nicodim, está caduco. Que respeito se pode ter a um homem que expediu encíclicas no começo da guerra, convocando todo o mundo a combater o dragão Bolchevique de sete cabeças, e depois, quando rompemos com Hitler, incitava o seu rebanho a marchar com o glorioso Exército Vermelho contra o monstro nazista? Foi o que ele fez, e o país inteiro sabe disto. São estes os príncipes da Igreja, e o resto não lhes fica atrás. Eles não ficarão com você muito tempo".

Respondi-lhe que se ele não saísse da prisão logo, como esperava, poderia entrar em contato com cristãos mais exemplares. "O Patriarca Nicodim é um bom homem", continuei, "mas está velho e cansado. Nem posso condenar o futuro Patriarca Justiniano e os outros que têm sido logrados, ou forçados a enveredar pelo caminho que o senhor tomou. É o mesmo que abusar alguém de uma jovem e depois chamá-la prostituta".

Pensei, com essa cutucada, alcançar meu objetivo, visto como Patrascanu era propenso a falar com gosto e rudeza sobre sexo. Aliás, procurei fazê-lo ver o que era o amor cristão. Estava muito absorvido pelos seus contratempos, a princípio, para ouvir muita coisa, mas era um homem estudioso, desapontado por nada ter para ler, e então discutia para se distrair. Sobre religião avançou ele, "Na escola estudei tudo isso. Costumava rezar, porém depois abandonei".

Inquiri por quê.

"O Jesus de vocês exige demais. Especialmente tratando-se da juventude".

Disse-lhe eu: "Nunca me apercebi que Jesus pedisse alguma coisa do homem. Quando meu filho Mihai era criança, certa vez, lhe dei dinheiro para que me comprasse um presente de aniversário. Assim, Jesus concede-nos as virtudes que parece pedir de nós, e nos faz pessoas de melhor caráter. Mas talvez o senhor não tivesse bons professores de religião".

- É provável. Não são muito comuns. Patrascanu ergueu-se e bocejou. "Além do mais, há muita coisa intragável no Cristianismo".

- Dê um exemplo.

- A humildade, e em especial a submissão à tirania. Veja a epístola de S. Paulo aos Romanos. Diz que toda autoridade vem de Deus, pelo que devemos comportar-nos bem, pagar com prontidão nossos impostos e não dar coices contra aguilhões; e isto num tempo em que Nero dominava o mundo!

Retorqui-lhe, "Leia de novo a Bíblia e o senhor a achará carregada de fogo de revolução. Começa com os escravos hebreus, revoltados contra Faraó. Prossegue com Samuel, Jaeljeú e muitos outros rebeldes à tirania. Antes de avançar, pergunte a si mesmo como foi que a autoridade aprovada por Deus chegou ao poder. De ordinário é isso resultado de uma sublevação de modo que submissão à autoridade significa submissão àqueles que fizeram com êxito uma revolução. Washington tornou-se autoridade por derrubar os ingleses".

"Como Lênin desbancou os Czares", observou Patrascanu.

"Só para introduzir um regime pior de terror. Chegará um dia o homem que também há de dar cabo da tirania comunista, e instaurará um governo livre. Será essa autoridade procedente de Deus. Devemos submeter-nos a ele. O que essa passagem da Escritura ensina realmente não é submissão a tiranos, mas é evitarmos derramamento inútil de sangue em revoluções sem possibilidade alguma de vitória".

Patrascanu continuou, "Que diz sobre 'Dai a César o que é de César?' Com este axioma Jesus não estava com certeza insistindo na submissão dos judeus ao tirano de Roma?”

"O primeiro César foi um usurpador", disse eu, "até mesmo em Roma. Era um general que se fez ditador. Seus sucessores não tinham mais direitos na Palestina, que se tornara colônia romana à força, do que os russos têm aqui. Ironicamente, até Jesus poderia dizer: Dai a César o que lhe devemos; um pontapé no traseiro para expulsá-lo daqui!”. Patrascanu deu uma gargalhada. "Se todos os clérigos explicassem a Bíblia como você, não tardaria que a entendêssemos melhor", disse ele. Eu não tinha tal confiança. Uma noite pediu-me que lhe declarasse a fé cristã em poucas palavras. Recitei o Credo Niceno e depois disse, "Em troca, diga-me qual é de fato o credo comunista".

Patrascanu refletiu por um momento. "Nós comunistas cremos que dominaremos o mundo", disse isto e reclinou-se no seu colchão carunchento.

Na manhã seguinte foi levado da cela. Nunca mais o vi. Tínhamos tornado íntimos na semana que passamos juntos. Senti que fora tocado por muita coisa que eu lhe dissera, mas não estava nos seus planos admitir isso nem para si próprio. Anos depois vim a saber do que lhe aconteceu.

Meu inquiridor seguinte, um homenzinho chamado Vasilu, que gostava de falar pelo canto da boca, tinha uma lista de quesitos datilografados. O primeiro era o mais difícil: "Escreva os nomes de todas as pessoas que o senhor conhece, onde tem tido encontro com elas e quais têm sido suas relações com as mesmas". Havia muitos amigos a quem eu queria defender, mas se os omitisse e a polícia o soubesse, tornar-se-iam duas vezes suspeitos. Como eu hesitasse, Vasilu interveio de olhos fuzilantes, "Não se ponha a escolher. Eu disse 'todas' as pessoas".

Para começar escrevi os nomes dos meus paroquianos e auxiliares que conhecia. A lista ia já numa página ou duas. Acrescentei os membros comunistas do Parlamento e todos os companheiros de viagem e informantes que pude lembrar.

"Pergunta Número Dois", disse Vasilu. "Que tem o senhor feito contra o Estado”?

"De que me acusam?" indaguei.

Vasilu deu um murro na mesa, "O senhor sabe o que tem feito. Desembuche! Comece pelos seus contatos com o seu colega ortodoxo Padre Grigoriu, e o que pensa dele. Escreva logo e não pare!" Os clérigos eram sempre inquiridos uns a respeito de outros: os protestantes sobre padres ortodoxos, os católicos acerca de adventistas, e assim por diante, para a provocação de rivalidades sectárias. Qualquer coisa que se escrevesse podia ser usada como armadilha. Um preso recebia a ordem: “Assine com um apelido!: aqui é assim que se faz". Quando tinha feito várias declarações debaixo de nomes diferentes, pediam-lhe que denunciasse um amigo, com a advertência de que se recusasse a fazê-lo, a todo o mundo se diria ser ele um informante que já fizera relatos sob nomes falsos. Bastava essa ameaça para que muitos se tornassem verdadeiros informantes. Durante as prolongadas esperas em solidão, entre um e outro inquérito, preparavam-se novos quesitos, procurando o preso lembrar-se do que dissera antes e do que ocultara. Os inquiridores costumavam ir aos pares, com os quesitos escritos a máquina. Se acontecia de um sair, o outro não falava enquanto aquele não voltasse. Alguns deles, naqueles primeiros tempos, eram homens bastante decentes que tinham de viver fosse como fosse. Um deles, quando o seu companheiro saiu da sala, mostrou-me relatos feitos contra mim. Vários estavam assinados por pessoas de minha confiança, podendo eu imaginar a pressão que sobre elas tinha sido feita.

Eu estava ainda na primeira fase de um longo processo. A quantidade de prisioneiros era enorme e os inquiridores competentes, poucos porém, outros mais estavam sendo treinados todos os dias nos métodos soviéticos. Pelo menos tive tempo de preparar-me. Recebi novo alento quando um barbeiro, enquanto me barbeava, segredou-me que Sabina estava passando bem e levando adiante nosso trabalho. O alívio foi indescritível. Pensava que minha esposa tinha sido também presa e Mihai, meu filho, passasse fome ou estivesse dependendo da caridade de vizinhos. Agora estava pronto a me esmerar em tantos capítulos de minha biografia espiritual quantos quisessem os inquiridores. Sobre outros assuntos revelava o menos possível. O simples fato de um amigo ter visitado uma vez o Ocidente podia resultar na prisão de sua família e fazê-lo levar uma bárbara surra.

Os interrogatórios continuaram meses a fio. A pessoa tinha de convencer-se primeiro do seu crime para possibilitar deste modo os ideais comunistas serem implantados, e eles só criariam raízes quando o indivíduo se rendesse à crença de que estava inteiramente e para sempre em poder do Partido, entregando a este todos os retalhos do seu passado.

Dizia-se por aquela época na Romênia que a vida consistia em quatro "autos": a "autocrítica", que tinha de ser registrada com regularidade nos escritórios e fábricas; o "automóvel", que levava as pessoas à Polícia Secreta; a "autobiografia", que eram obrigadas a escrever; e a "autópsia". Sabendo que torturas me aguardavam, resolvi matar-me antes a trair os outros. Sobre isto não alimentava escrúpulos morais, porque a morte de um crente significa sua partida para junto de Cristo. Lá poderia eu dar-Lhe explicações e por certo ele me compreenderia. Se Sta. Úrsula foi canonizada por se matar, antes que perder a virgindade às mãos dos bárbaros que saquearam seu mosteiro, então o dever que eu tinha de proteger meus amigos era também mais importante do que a vida.

O problema era assegurar os meios do suicídio, antes que suspeitassem do meu intento. Guardas revistavam os presos e suas celas constantemente, à procura de instrumentos de morte: estilhaços de vidro, pedaços de corda, lâminas de barbear. Certa manhã, por ocasião da visita rotineira do médico, disse-lhe que não podia lembrar de todos os detalhes que os inquiridores precisavam porque já fazia semanas que não dormia. Prescreveu-me um comprimido à noite para dormir; um guarda, toda vez que eu o tomava, perscrutava minha boca para ver se o engolia. Mas o fato era que eu o prendia debaixo da língua e daí o retirava quando o guarda saía. Mas onde esconder minha presa? Não no copo, que estava sujeito a qualquer imprevisto. Não no meu colchão de palha que todos os dias era sacudido e dobrado. Havia o outro, que fora de Patrascanu, Ia abrindo nele alguns buracos, onde todos os dias ocultava um comprimido no meio da palha.

No fim do mês eu tinha trinta comprimidos. Era para mim um conforto, em face do receio de sucumbir debaixo de torturas. Tinha, porém, crises quando pensava em tomá-los. Estávamos no verão. Ouvia rumores familiares, que me vinham do mundo lá fora. Era uma jovem a cantar, o bonde que rangia nos trilhos virando na esquina, mães que chamavam os filhos, "Silviu, Emil, Matei!" Sementes plumosas eram trazidas pelo vento e caíam suavemente no piso cimentado de minha cela. Perguntava a Deus o que Ele estava fazendo. Por que estava eu sendo forçado a dar fim à vida que se tinha dedicado ao seu serviço? Olhando para cima, uma noite, pela estreita janela, vi a primeira estrela aparecer no céu escuro. Veio-me ao pensamento que Deus enviava aquela luz, a qual começara sua jornada aparentemente inútil fazia bilhões de anos, e agora atravessava as grades de minha cela para consolar-me.

Na manhã seguinte um guarda entrou e, sem dizer palavra, pôs o catre sobressalente ao ombro, com os meus compridos lá amealhados, e levou-o para outro detento. Fiquei transtornado a princípio. Depois ri, sentindo-me mais calmo do que semanas antes. Como Deus não queria o meu suicídio, iria dar-me forças para suportar o sofrimento que se avizinhava. A Polícia Secreta tinha sido paciente, disseram-me, mas agora chegava a vez de aparecerem resultados. O Coronel Dulgheru, o notável investigado nela, não falhava em conseguí-los. Sentou-se diante de sua carteira, imóvel e ameaçador, com as delicadas mãos estendidas para adiante. "O senhor tem estado a brincar conosco", disse-me.

Dulgheru, antes da guerra, tinha trabalhado na Embaixada soviética. Depois, sob os fascistas, foi internado e assim confraternizou com Gheorghiu Dej e outros prisioneiros comunistas. Notaram sua tenacidade, inteligência e crueldade. Pois aí estava, com poderes a ele confiados de vida e morte.

Imediatamente começou a inquirir-me acerca de um homem do Exército Vermelho que fora apanhado a contrabandear Bíblias para a Rússia. Até então os investigadores pareciam nada saber do meu trabalho entre os russos, mas apesar de o soldado detido não ter revelado o meu nome, descobriram que estivemos juntos. Agora, mais do que sempre, eu tinha de pesar cada palavra, porque na verdade eu balizara o homem em Bucareste e o alistara em nossa campanha.

Dulgheru era persistente nas perguntas. Pensava estar sentindo o faro de algo importante. Nas semanas seguintes fiquei extenuado por uma variedade de meios. As camas foram retiradas da cela e eu tinha muito mal uma hora para dormir por noite equilibrado numa cadeira. Duas vezes por minuto a fresta do espia dava na porta um estalido metálico, aparecendo nele o olho do guarda. Muitas vezes, quando cochilava, ele entrava e me despertava. No fim perdi toda a noção de tempo. Uma vez despertei e vi a porta da cela entreaberta. Uma música suave ouvia-se no corredor; ou era ilusão? Depois o som tornou-se desafinado, ouvindo-se soluços de mulher. Ela se pôs a gritar. Era minha esposa! Não, não! Por favor, não me espanquem mais. Mais não! Não agüento!”Ouviu-se um chicote a estalar na pele nua de alguém. O grito era de horrorizar. Cada músculo do meu corpo retesava-se em contrações de terror. Pouco a pouco a voz foi sumindo, em gemidos; mas agora foi a voz de um estranho. Extinguiu-se no silêncio. Eu fiquei desfalecido, trêmulo e banhado em suor. Depois vim a saber que aquilo era uma gravação em "tape", porém todo preso que a ouvia pensava que a vítima era sua esposa ou namorada.

Dulgheru era um refinado selvagem, segundo o modelo dos diplomatas soviéticos com os quais se misturara. "É com pesar que ordeno torturas", disse-me. Sendo todo-poderoso nas prisões, podia dispensar notas e testemunhas e muitas vezes foi sozinho à minha cela, à noite, para continuar o interrogatório. Uma dessas sessões críticas arrastou-se durante horas. Inquiriu-me sobre meus contatos com a Missão da Igreja da Inglaterra. Que tinha eu feito lá? Disse que fora visitar a Abadia de Westminster. Ele ficou mais exasperado.

"O senhor sabe", disse com rancor, "que posso ordenar sua execução agora mesmo, esta noite, como contra-revolucionário que o senhor é?” Respondi, "Coronel, a oportunidade é sua de fazer uma experiência. O senhor diz que pode mandar fuzilar-me. Sei que pode. Então ponha aqui a mão no meu peito. Se o coração estiver batendo rápido, como demonstração de que estou com medo, saiba que não existe um Deus e vida eterna alguma. Mas, se bate tranqüilamente, como a dizer 'vou para aquele a quem amo', então o senhor deve refletir. Há um Deus e uma vida eterna".

Dulgheru esbofeteou-me e logo lamentou sua falta de domínio próprio.

"O senhor é um tolo!", disse. "Não vê que está completamente à minha mercê e que o seu Salvador, ou seja, lá como o queira chamar, não vai abrir as portas de nenhuma prisão? O senhor não verá mais nunca a Abadia de Westminster".

Respondi, "O nome dele é Jesus Cristo, e se ele quiser poderá soltar-me e, além disso, far-me-á ver a Abadia de Westminster". Dulgheru olhou-me com ferocidade, como se lhe faltasse o fôlego. Depois berrou, "Está certo. Amanhã você enfrentará o camarada Brinzaru".

Por isso esperava eu. O Major Brinzaru, ajudante do coronel, tinha sob o seu cuidado uma sala onde se guardavam porretes, cassetetes e rebenques. Seus braços eram peludos quais os de um gorila. Outros investigadores usavam o seu nome para intimidar. O poeta contemporâneo russo Voznesensky escreve. "Nos dias presente de sofrimentos indizível, bem feliz com efeito é aquele que não tem coração", e Brinzaru era um felizardo neste sentido. Apresentou-me sua coleção de armas. "De qual você se agrada?" perguntou. "Gostamos de ser democratas aqui".

Exibiu a sua arma favorita, um cassetete comprido, de borracha preta. "Leia o rótulo". Estava lá, MADE IN U.S.A. (fabricado nos Estados Unidos da América).

"Nós espancamos", disse Brinzaru mostrando num sorriso os dentes amarelos, "mas os seus amigos americanos nos fornecem os instrumentos para isso". Depois me mandou de volta à minha cela para que eu pensasse.

Disse-me o guarda que Brinzaru trabalhara antes da guerra para um político proeminente, sendo tratado como um da família. Depois que os comunistas assumiram o poder, ocasião em que foi alçado às fileiras da Polícia Secreta, um jovem preso foi levado à sua presença para investigação. Era um filho do tal político, que procurava desencadear um movimento patriótico. Brinzaru disse-lhe, "Quando você era criança eu costumava sentá-lo nos meus joelhos!" A seguir torturou o rapaz e executou-o com suas próprias mãos.

Curioso: Brinzaru não me deu a surra com que me ameaçou. Em sua ronda noturna de inspeção, empurrou com um piparote a tampa da fresta do espia para me observar um pouco. "Ainda aí, Georgescu? Que faz Jesus esta noite?"

Respondi, "Está orando pelo senhor". Afastou-se sem nada mais dizer.

No dia seguinte voltou. Sob sua supervisão fizeram-me ficar de pé, de frente para uma parede com as mãos erguidas acima da cabeça, de modo a tocar nesta com as pontas dos dedos. "Conserve-o nesta posição", ordenou ao guarda antes de se afastar.

Afinal começavam as torturas. Não quero considerá-las como de muita importância, mas precisam ser referidas porque eram comuns em todas as prisões da Polícia Secreta. Primeiro fiquei de pé durante horas, muito depois de meus braços terem ficado dormentes, e minhas pernas começarem a tremer e depois inchar. Quando desmaiava e caía no chão, davam-me uma crosta de pão e um gole d'água e me punham de novo em pé. Um guarda rendia o outro. Alguns deles forçavam as vítimas a tomar posições ridículas ou obscenas, e isto prosseguia, com breves intervalos, durante dias e noites. À frente ficava a parede para onde olhar.

Pensava eu nas paredes referidas na Bíblia, e me recordava de uma passagem de Isaías, que me deixava triste: Deus dizia a Israel que os seus pecados levantavam um muro de separação entre Ele e o povo. As falhas do Cristianismo permitiram que o Comunismo triunfasse, e era essa a razão de eu ter uma parede pela frente. Depois me lembrava de uma frase dos Salmos. "Com o Senhor salto muralhas". Eu também podia saltar aquela parede para o mundo espiritual da comunhão com Deus. Pensava, outrossim, nos espias judeus que retornaram de Canaã relatando que as cidades eram grandes e muradas; mas como as muralhas de Jericó ruíram, assim a parede à minha frente podia ir abaixo pela vontade de Deus. Quando o sofrimento me esmagava, recitava para mim mesmo uma frase do Cântico dos Cânticos: "O meu amado é semelhante ao gamo, ou ao filho da gazela; eis que está detrás da nossa parede". Eu imaginava Jesus postado atrás de minha parede, dando-me forças. Lembrava-me que, enquanto Moisés, sobre o monte, tinha as mãos erguidas, o povo escolhido marchava para a vitória. Talvez nossos sofrimentos estivessem ajudando o povo de Deus também a ganhar sua batalha.

De quando em quando o Major Brinzaru olhava para dentro e perguntava se eu queria cooperar. Uma vez, estando eu no chão, ele bradou, "Levante-se! Decidimos afinal deixá-lo ir ver a Abadia de Westminster. Você parte agora".

"Ande!" mandou o guarda. Procurei calçar os sapatos, mas os meus pés estavam muito inchados. "Vamos! Depressa! Fique fazendo voltas! Vou observar de fora".

A cela media doze passos ao redor: quatro passos, uma parede; dois; a seguinte; a seguir quatro; depois dois. Eu arrastava os pés, com umas meias furadas. A fresta do espia dava um estalido. "Mais depressa!" bradava o guarda. Minha cabeça começava a rodopiar. "Mais depressa - ou quer levar uma surra?" Dava com a cabeça pelas paredes, o que me doía muito. O suor ardia-me nos olhos. Rodeava, rodeava e continuava rodeando. Clique! "Alto! Dê meia volta! Ande!" E lá me punha a rodear, a rodear na direção contrária. "Mais depressa!" Cambaleava, e me aprumava. "Continue o movimento!" Quando caía, o guarda investia com um porrete e me dava forte pancada num cotovelo, enquanto com esforço violento eu me erguia. O sofrimento era tão angustiante que eu caía outra vez. "Ponha-se de pé! Continue andando! É este o seu manejo!"

Quase todo mundo tinha de passar pelo manejo ou picadeiro de adestramento, como era conhecido. Só depois de horas é que nos davam um pouco d'água ou alguma coisa para comer. A sede extinguia a fome. Era até mais lancinante do que as furadas a punhal quente pelas nossas pernas acima. O pior de tudo era ter que andar de novo depois de nos darem alguns minutos de descanso, ou poucas horas à noite, quando entorpecidos jazíamos no chão. As juntas rígidas, os músculos quebrados e os pés lacerados não suportavam o peso do corpo. A gente agarrava-se às paredes, e os guardas a berrar ordens. Quando não podíamos mais suster-nos de pé, ficávamos agachados, de gatinhas.

Não sei quantos dias e noites passei no manejo. Punha-me a orar pelos guardas, enquanto me movimentava. Pensava no Cântico dos Cânticos, em que se diz que a Noiva de Cristo dançava em honra do seu noivo. Dizia a mim mesmo, "Mover-me-ei com tanta airosidade como se fosse isto uma dança de amor divino, para Jesus". Durante certo tempo me parecia isso mesmo. Se alguém quer fazer tudo quanto tem de fazer, então o que faz é o que quer; e as mais severas tribulações, sendo voluntárias, tornam-se mais suportáveis. Quando me punha a dar voltas, parecia como se tudo girasse ao redor de mim. Acabava por não distinguir uma parede da outra, ou uma parede da porta, assim como sob a influência do amor divino não distinguimos entre os bons e os maus, e a todos podemos abraçar.

Estava virtualmente sem dormir havia já um mês, quando o guarda me colocou nos olhos uma espécie de óculos enegrecidos e me conduziu a um gabinete para nova entrevista. Era uma sala espaçosa e mobiliada. Atrás de uma mesa, sentados, estavam três ou quatro vultos, aos quais só podia ver indistintamente devido à luz ofuscante dos refletores diante do meu rosto. De pé diante deles, com algemas nos pulsos, descalço, tinha sobre mim apenas uma camisa rota e suja. Repetiram perguntas já conhecidas. Dei-lhes as mesmas respostas. Dessa vez havia uma mulher entre os investigadores. Em dado momento ela disse em voz estridente: "Se não responde corretamente, mandaremos esticá-lo no cavalete". A máquina de suplício que por último se usou na Inglaterra para arrancar confissões, há 300 anos, acrescentara-se às armas de persuasão do Partido! Eu disse, "Na epístola aos Efésios, S. Paulo diz que devemos esforçar-nos por alcançar a medida da estatura de Cristo. Se os senhores me esticam no cavalete, estarão ajudando-me a atingir meu objetivo". A mulher bateu com força na mesa, ouvindo-se uma discussão atrás do brilho forte dos refletores. Algumas vezes uma pronta resposta servia para desviar um soco. Não fui posto no cavalete; em lugar disso retrocedemos à Inquisição, às bastonadas nas solas dos pés.

Fui levado à outra cela. Cobriram-me com um capuz. Mandaram-me ficar de cócoras e abraçar os joelhos. Meteram-me uma barra de metal entre os cotovelos e os joelhos, e depois fui içado a uma tripeça, girando e ficando de cabeça para baixo, amarrados os braços que se uniam ao corpo, com os pés para cima. Seguravam minha cabeça enquanto alguém me vergastava as solas dos pés. As bordoadas eram como explosões. Algumas me atingiram as coxas e a base do espinhaço. Tinha vertigem e recobrava os sentidos por me ensoparem com água fria. Cada vez diziam que, se eu dissesse apenas um dos nomes que eles queriam, aquilo ia parar. Quando me tiraram da haste de metal precisei ser carregado para a minha cela.

Cada vez que me levavam àquela sala punham-me os óculos escuros, que me impediam de saber a localização dela. Algumas vezes conservavam os óculos em mim enquanto era esbordoado. Quando vemos que o golpe vai ser descarregado, recebemo-lo sem surpresa. Mas de olhos vendados, sem saber onde vai ser desferido, o medo é duas vezes maior.

Passei por outras torturas. Brinzaru tinha um chicote de nylon. Depois de algumas chicotadas com ele eu ficava sem sentidos. Uma vez encostaram um punhal à minha garganta, enquanto Brinzaru insistia que eu falasse, se quisesse viver. Dois homens fizeram-me deitar; seguraram-me com força, sentindo eu as garras deles e o punhal a me rasgar a pele. Outra vez perdi os sentidos; quando voltei a mim meu peito estava coberto de sangue. Puseram-me água pela garganta por meio de um funil, até que o estômago ficou cheio de arrebentar; então os guardas deram pontapés e me pisotearam. Era deixado numa cela com dois rafeiros, cães de guarda adestrados a avançar, rosnando, ao mais leve movimento, sem morder. Colocavam perto um pedaço de pão, mas ninguém se atrevia a pegá-lo. Eventualmente descobríamos que os cães não iam atacar; mas muitas vezes nos atacavam, ferindo nosso rosto a dentadas. Também fui marcado com ferro em brasa.

No fim assinei, a meu respeito, todas as "confissões" que eles quiseram: que eu era adúltero e, ao mesmo tempo, homossexual; que vendera os sinos da igreja e embolsara o dinheiro (embora nossa igreja fosse uma casa de oração, e não tivesse sinos); que sob o disfarce de trabalhar para o Concílio Mundial de Igrejas eu fazia espionagem com o objetivo de derrubar o regime, e isso por meio de traição; que eu e outros, tempos antes, tínhamos nos infiltrado na organização do Partido sob falsos pretextos e revelado seus segredos. Brinzaru leu essas confissões e perguntou: "Onde estão os nomes das pessoas às quais você passou os segredos?"

Ficou satisfeito quando lhe dei uma porção de nomes e endereço. Certamente por isso eu iria ser gratificado e promovido. Poucos dias depois recebi outro açoite. Tinham feito verificação dos nomes. Eram de pessoas que tinham fugido para o Ocidente ou já haviam morrido. Mas na folga que me deram recobrei um pouco de forças.

Talvez a espera fosse a pior tortura: deitado a ouvir gritos e choro, e sabendo que numa hora qualquer chegaria minha vez. Deus porém me ajudou a nunca dizer uma palavra que prejudicasse outras pessoas. Perdia os sentidos facilmente e eles me queriam vivo. Cada preso podia ser uma fonte de informações, útil em algum futuro contratempo na sorte do Partido, não tendo importância quanto tempo eles passassem detidos. Um médico comparecia às sessões de tortura para tomar o pulso e verificar se a vítima estava prestes a escapar para o outro mundo, quando a Polícia Secreta ainda precisava dela. Era aquilo uma imagem do Inferno, onde o tormento não tem fim e ninguém morre.

Era difícil lembrar a Bíblia. Não obstante, procurava ter sempre em mente a possibilidade de Jesus ter vindo à terra na qualidade de rei, mas ao invés disso escolheu ser condenado como criminoso açoitado. Os açoites infligidos pelos romanos eram horríveis, e a cada golpe que eu recebia lembrava-me que Ele também sabia o que era aquele sofrimento, e então me regozijava por partilhar dele com Cristo.

A zombaria e as humilhações também excediam a capacidade de ser suportada. Mais de uma vez Jesus disse que seria açoitado, escarnecido e crucificado. Eu costumava pensar que os escarnios comparados com açoites e crucificação, eram nada. Mas isso foi antes de ver um homem forçado a abrir a boca, para que outros nela escarrassem e urinassem, enquanto os nossos torturadores riam e proferiam zombarias.

Não e fácil crer, mas assim como os agentes da Inquisição espanhola tinham como coisa sagrada queimar hereges; assim muitos homens do Partido criam haver justificação para o que fizessem. O Coronel Dulgheru parecia ser um deles. Costumava dizer: "E no interesse vital da sociedade que pessoas sejam maltratadas, no caso de esconderem informação necessária à proteção do povo". Muito depois, quando ele me viu reduzido a frangalhos, a chorar de fadiga nervosa, disse-me como se estivesse compadecido: "Por que você não cede? É uma coisa dessas de todo fútil. Você não passa de carne e vai acabar arruinado". Eu, porem, tinha prova do contrário: fosse apenas carne não teria resistido. O corpo,no entanto é só a residência temporária da alma. Os comunistas firmando-se no instinto de autoconservação pensavam que um homem faria qualquer coisa para evitar ser extinto. Enganavam-se. Os crentes, que criam no que disseram perante a igreja, sabiam que morrer não era o fim da vida, senão o seu cumprimento; não era extinção, e sim a promessa de eternidade.

Eu já passara sete meses na prisão de Calea Rahova. Era outubro e o inverno já havia chegado. Sofríamos, dessa vez, muito frio, assim como fome e maus-tratos, e ainda tínhamos pela frente meses de inverno. Contemplando pela janela a neve acompanhada de chuva a cair no pátio da prisão, eu tremia de frio, mas não estava desanimado. O que eu fizesse por Deus com paciente amor na prisão seria pouco, mas o bem, nesta vida, sempre se afigura pouco, comparado com o montante de males. Enquanto no Novo Testamento o mal é pintado como enorme animal de sete chifres, o Espírito Santo apresenta-se como uma pombinha a descer voando. É a pomba que vence a besta!

Certa noite apareceu-me um prato com saboroso ensopado de carne, e quatro fatias de pão. Antes que os comesse, o guarda voltou, fez-me juntar meus pertences e segui-lo a um lugar onde outros presos estavam enfileirados. Com o pensamento no meu ensopado, fui de caminhão para o Ministério do Interior. É um edifício esplêndido, que os turistas muito admiram, os quais não sabem ser ele construído sobre uma vasta prisão com um labirinto de corredores e centenas de indefesos internados.

Minha cela ficava em profundo subterrâneo. Uma lâmpada acesa no teto alumiava as paredes desguarnecidas, uma armação de cama com três tábuas e um colchão de palha. O ar entrava por um cano no alto da parede. Não havia um balde, por isso tinha sempre de esperar que o guarda me levasse à privada. Esta era a pior imposição que faziam a qualquer detento. Algumas vezes faziam que esperássemos durante horas, enquanto riam de nossas súplicas. Homens, e também mulheres, deixavam de comer e beber com receio de que isso lhes aumentasse a agonia. Eu mesmo comi no prato em que atendi depois a uma necessidade física, sem lavá-lo depois porque não havia água para isso.

O silêncio aí era praticamente completo, e de propósito. Nossos guardas usavam botinas de sola de feltro e podíamos ouvir as mãos deles à porta da cela antes que a chave entrasse na fechadura, De vez em quando se ouvia o som longínquo de um preso martelando firme a sua porta, ou berrando. A cela media somente três passos em cada direção, por isso quando me deitava tinha sobre mim a lâmpada, que ficava acesa a noite inteira. Como desse modo não podia dormir, orava. O mundo exterior deixara de existir. Todos os rumores que estava acostumado a ouvir; do vento e da chuva no pátio; botas com tachões de aço nas pedras do calçamento; uma voz de pessoa, tudo se fora. Meu coração parecia contrair-se, como querendo parar naquele silêncio de morte.

Conservaram-me no confinamento solitário dessa cela nos dois anos seguintes. Não tinha nada para ler nem material de escrita. Por companhia tinha apenas meus pensamentos. Não era, porém um homem meditativo, mas uma alma que raramente conhecera calma. Eu tinha o meu Deus. Mas havia realmente vivido para servi-lo, ou fora aquilo simplesmente uma profissão?

O povo espera que os pastores sejam modelos de sabedoria, pureza, amor e fidelidade. Isso eles nem sempre podem ser verdadeiramente, porque também são homens. Desta forma, com menor ou maior intensidade eles começam a desempenhar o seu papel. Com o correr dos anos dificilmente poderão dizer quanto do seu procedimento vai cumprindo aquilo que se deseja.

Lembrava-me do profundo comentário que Savonarola escreveu em torno do Salmo cinqüenta e um na prisão, com os ossos tão quebrados que só pôde assinar o papel de sua auto-acusação com a mão esquerda. Dizia ele haver duas espécies de cristãos: os que sinceramente crêem em Deus, e os que, com igual sinceridade, acreditam que crêem.

Podemos diferenciá-los uns dos outros por suas ações em momentos decisivos. Se um ladrão, planejando roubar uma casa rica, vê um estranho que pode ser um policial, recua. Se, reconsiderando, acaba arrombando a casa, prova com isso não ter crido que o tal homem fosse um agente da lei. Nossas crenças provam-se pelo que fazemos.

Cria eu em Deus? O teste chegara agora. Estava só. Não havia salário a ganhar, nem opiniões excelentes a considerar. Deus só me oferecia sofrimentos - continuaria eu a amá-lo?

Comecei a relembrar um dos meus livros favoritos, "The Pateric", que discorria sobre certos santos do quarto século, os quais organizaram mosteiros no deserto, quando a Igreja estava sendo perseguida. Tinha 400 páginas, mas na primeira vez que me veio às mãos não comi, bebi ou dormi enquanto não terminei a leitura. Os livros cristãos assemelham-se ao bom vinho - quanto mais velhos, melhores. Continha a seguinte passagem:

Um irmão perguntou ao seu superior: "Padre, que é o silêncio?" A resposta foi: "Meu filho, silêncio é você sentar-se sozinho em sua cela, na sabedoria e no temor de Deus, defendendo o coração das setas abrasadoras do pensamento. Silêncio como este faz nascer o bem. Oh, silêncio despreocupado, escada para o céu! Oh, silêncio, em que a gente só cuida das primeiras coisas, e só fala com Jesus Cristo! Quem guarda silêncio é quem canta: "Meu coração está pronto para louvar-Te, ó Deus!" Imaginava eu como se podia louvar a Deus com uma vida de silêncio. A princípio, orava muito para ser solto. Perguntava: "Disseste na Escritura que não é bom o homem estar só; por que pois me conservas sozinho?" Mas à medida que os dias e semanas passavam, o único que me visitava ainda era o guarda, que me levava fatias de pão preto e uma sopa aguada, mas não me dizia nunca uma palavra.

 

Sua chegada lembrava-me todos os dias o ditado: "Os deuses andam com sapatos macios". Noutros termos, os gregos acreditavam que ninguém percebia a aproximação de uma divindade. Talvez aquele silêncio me aproximasse de Deus. Também talvez fizesse de mim um melhor pastor, porque notara que os melhores pregadores foram homens que, como Jesus, guardavam um silêncio íntimo. Quando a boca se abre muito, mesmo para falar o bem, a alma perde o seu ardor, assim como uma sala perde seu calor por uma porta que se abra.

Pouco a pouco fui aprendendo que da árvore do silêncio pende o fruto da paz. Comecei a descobrir minha verdadeira personalidade, tendo certeza de que pertencia a Cristo. Achei que mesmo onde estava, meus pensamentos e sentimentos se voltavam para Deus, e que podia passar noite após noite em oração, em exercício espiritual e louvor. Sabia agora que não estivera cumprindo a minha aspiração, embora acreditasse que sim. Organizei uma rotina que procurei observar nos dois anos seguintes. Ficava de vigília a noite inteira. Quando, às 22 horas, a campainha batia o sinal de silêncio, começava meu programa. Algumas vezes ficava triste, outras alegre, mas as noites não eram bastante longas para tudo quanto tinha a fazer.

Começava com uma oração em que lágrimas muitas vezes de agradecimento, raramente faltavam. As orações, como os sinais de radio, soam mais distintamente à noite: é então quando se ferem grandes batalhas espirituais. A seguir, pregava um sermão como o faria na igreja, começando com a frase "Amados irmãos", um sussurro que nenhum guarda pudesse ouvir, e terminando com "Amém". Por fim pregava a verdade completa. Não tinha que me importar com o que o bispo pensasse, a congregação dissesse ou os espiões relatassem. Não pregava ao vazio, Cada sermão era ouvido por Deus, seus anjos e santos; mas eu sentia que entre os que ao redor me ouviam, estavam os que me levaram a fé, membros do meu rebanho, tanto mortos como vivos, minha família e amigos. Eram eles a "nuvem de testemunhas" de que a Bíblia fala. Eu experimentava a "comunhão dos santos", referida no Credo.

Toda a noite falava à minha esposa e ao meu filho. Considerava tudo quanto neles era bonito e bom. Algumas vezes meus pensamentos alcançavam Sabina para lá das paredes do cárcere. Ela tem uma nota em sua Bíblia, escrita naquela época: "Hoje vi Richard. Estava deitada na cama, acordada, e ele se inclinou e me falou". Concentrara toda a minha força em transmitir-lhe uma mensagem de amor. Éramos ricamente recompensados em pensar um no outro por poucos minutos, todos os dias; apesar de tantos casamentos terem sido desfeitos pela prisão, o nosso permaneceu firme e se fortaleceu.

Pensar na família também me podia magoar. Sabia que Sabina fora muito pressionada para divorciar-se de mim. Se ela recusou e levava adiante o trabalho de sua igreja, era quase certo que acabariam prendendo-a. Depois Mihai, com apenas dez anos, seria deixando só. Virava o rosto para o colchão de palha e apertava-o com os braços, como se fosse o meu filho.

Uma vez levantei-me de um pulo, bati violentamente com os punhos na porta de aço, gritando:

"Restituam-me o meu menino!" Os guardas acorreram e me fizeram deitar, enquanto me aplicaram uma injeção que me tornou inconsciente durante horas. Quando voltei a mim, pensei que ia enlouquecer. Sabia de muitos a quem isso aconteceu.

Esse fato encorajou-me a pensar na mãe de Jesus, que ficou ao pé da cruz sem uma palavra de queixa. Não sei se teríamos razão em interpretar o seu silêncio como perfeito pesar: sentir-se-ia ela também orgulhosa porque o seu Filho dava a vida pêlos homens? À tardinha daquele dia, que era de Páscoa, ela deve ter cantado os louvores de Deus, seguindo o rito judaico. Também eu devia agradecer a Deus os sofrimentos pêlos quais meu filhinho pudesse estar passando. Por outro lado readquiri confiança: mesmo se Sabina desaparecesse, tínhamos amigos que sem dúvida cuidariam dele.

Um dos meus constantes exercícios espirituais era imaginar, como num quadro vivo mental, que eu entregava toda minha vida a Cristo: o passado, o presente e o futuro; minha família, minha igreja, meus arrebatamentos, meus secretos pensamentos; cada membro do meu corpo. Confessava meus pecados passados a Cristo sem reserva e via-o limpando-os com sua mão. Muitas vezes chorei.

Nos primeiros dias gastei muito tempo esquadrinhando minha alma. Foi um engano. Amor, bondade, beleza são criaturas tímidas, que se escondem quando sabem que estão sendo observadas. Sobre este ponto meu filho deu-me uma lição, quando tinha cinco anos. Eu o tinha reprovado, "Jesus tem um caderno grande; numa das páginas está o seu nome. Hoje de manhã Ele teve de escrever lá que você desobedeceu a sua mãe. Ontem você brigou com outro menino, dizendo que a culpa era dele; isso também foi escrito no caderno". Mihai disse, depois de refletir um minuto: "Papai, Jesus só escreve as coisas ruins que a gente faz, ou também as coisas boas?"

Meu filho estava tantas vezes no meu pensamento! Lembrava-me com prazer como ele me havia ensinado teologia. Quando li na epístola aos Coríntios: "Examinai-vos avós mesmos para ver se permaneceis na fé", ele perguntou: "Como vou examinar a mim mesmo?"

Respondi: "Bata com força no peito e indague: Coração, você ama a Deus?" Dei um murro no peito quando falei.

"Não está direito, não", atalhou Mihai. "Uma vez o homem que na estação bate nas rodas do trem com um martelo, deixou-me experimentar, e disse:” Você bata nelas de leve, no caso de estarem empenadas, não com força “. Assim também não tenho que dar uma pancada forte em mim para saber se amo a Jesus". Sabia eu agora que o silencioso "Sim" de meu coração, quando fazia a pergunta: "Você ama a Jesus?", era suficiente.

Cada noite passava uma hora, identificando-me com a mente dos meus principais adversários - o Coronel Dulgheru, por exemplo. Imaginando-me no seu lugar, achava milhares de desculpas para ele. Deste modo podia amá-lo e aos outros torturadores. Depois considerava minhas próprias faltas do ponto de vista dele, e alcançava nova compreensão de mim mesmo. É mais fácil consolar os outros do que a nós mesmos, assim como podemos ler com calma simpatia acerca das vítimas da guilhotina, mas ficamos chocados quando uma revolução nos ameaça. Assim agora, punha-me a inverter a época dos acontecimentos, pensando no presente como se ocorresse em tempos idos, e no passado como se acontecesse agora. Por esta forma pode-se até esperar ter um encontro com os outros de outrora.

Pensava no que faria se fosse um grande estadista, um multimilionário, o Imperador da China, o Papa. Sonhava no que seria a vida, se eu tivesse asas ou a capa da invisibilidade, e decidi ter encontrado por acaso uma definição do espírito humano como força invisível, alada, que pode transformar o mundo. Eram fantasias divertidas, mas que consumiam tempo. Um arquiteto atarefado não se põe a indagar o que poderia fazer com materiais inexistentes - pedras sem peso, vidro elástico. A meditação, como a arquitetura, deve ser construtiva. Tais digressões, porém, ajudavam-me a descobrir como é que entidades opostas podem unir-se na vida do espírito, compreendendo eu agora como Cristo pode encerrar tudo em si, ser o Leão de Judá e ao mesmo tempo o Cordeiro de Deus.

Não me faltavam divertimentos em minha cela vazia. Dizia gracejos a mim mesmo e inventava novos. Jogava xadrez, usando peças feitas de pão: as Pretas vs. as Menos-pretas de cal das paredes. Podia divertir minha mente de sorte que uma Preta não sabia do próximo movimento de uma Menos-preta, e vice-versa, e desde que não perdi uma partida em dois anos, achava que podia reivindicar o título de campeão.

Verifiquei que a alegria pode ser adquirida como hábito, da mesma forma como uma folha enrolada de papel quando se abre e depois é solta, volta naturalmente a ficar enrolada. "Regozijai-vos", é uma ordem de Deus. João Wesley costumava dizer que "nunca se entristecia, nem mesmo por um quarto de hora". Não posso dizer a mesma coisa de mim, mas aprendi a regozijar-me nas piores condições.

Os comunistas crêem que da satisfação material vem felicidade, mas na minha cela, sozinho, com frio, fome, andrajoso, dançava de alegria todas as noites. A ideia me veio com as lembranças da meninice, de ter observado dervixes a dançar. Houvera-me comovido, além do entendimento, pelo êxtase deles, a grave beleza daqueles monges muçulmanos, a graça dos seus movimentos, a rodopiar, enquanto proferiam o nome com que expressam a pessoa de Deus, "Alá!" Depois aprendi que muitos outros - judeus, pentecostais, primitivos cristãos, pessoas da Bíblia como Davi e Miriã, meninos acólitos da catedral de Sevilha na comemoração da Páscoa, mesmo hoje, também dançaram e dançam para Deus.

As palavras só por si nunca puderam expressar o que o homem sente na presença da divindade. Algumas vezes eu ficava tão cheio de gozo que me parecia prestes a arrebentar se não lhe desse expressão. Lembrava-me das palavras de Jesus: "Bem-aventurados sereis vós quando os homens vos odiarem e vos expulsarem de sua companhia, e vos vituperarem e de vós falarem mal por causa do Filho do homem. Regozijai-vos e exultai!" Eu dizia a mim mesmo: "Só a metade deste mandamento é que tenho cumprido. Tenho-me regozijado, o que não basta. Jesus diz claramente que também devemos pular (exultar)".

Quando a seguir o guarda perscrutou pela fenda da espionagem, viu-me a pular em volta da cela. As ordens deviam ser que procurasse cuidar de quem desse sinal de prostração, porque ele saiu às pressas e voltou com algum alimento da sala da administração: um pedaço grande de pão, algum queijo e açúcar. Recebendo-os, lembrei-me como a passagem em S. Lucas continuava, dizendo: "Alegrai-vos nesse dia e pulai de gozo -porque é grande o vosso galardão". Era um enorme pedaço de pão: mais do que a ração de uma semana.

Raramente deixei passar uma noite sem dançar, a partir desse dia. Embora nunca voltassem a me recompensar por isso, compus cânticos e os entoava baixinho, dançando com a minha própria música. Os guardas acabaram acostumando-se com aquilo. Eu não quebrava o silêncio e eles já tinham visto muitas coisas esquisitas naquelas celas subterrâneas. Amigos a quem mais adiante falei de dança na prisão, perguntaram: "Para que isso? Qual a sua utilidade?" Não se tratava de algo útil: Era uma manifestação de alegria, como a dança de Davi, um santo sacrifício oferecido no altar do Senhor. Não me importava se meus capturadores pensassem que eu estava maluco, visto haver descoberto uma beleza em Cristo que não conhecera antes.

Algumas vezes tinha visões. Um dia, quando dançava, pareceu-me ouvir chamar meu nome - não "Richard", mas outro nome, que não posso revelar. Sabia que tinha sido eu que fora chamado pelo meu novo nome e de súbito me veio à mente, não sei por que: "Este deve ser o Arcanjo Gabriel". E a cela encheu-se de luz. Não ouvi nada mais, porém compreendi que devia cooperar com Jesus e os santos na construção de uma ponte entre o bem e o mal, ponte de lágrimas, orações e sacrifícios pessoais que os pecadores atravessassem para se juntar aos bem-aventurados. Vi que nossa ponte tinha de ser tal que até os mais fracos em bondade pudessem usar Jesus prometeu que no Juízo Final os que tivessem alimentado os famintos e vestido os nus sentar-se-iam à sua mão direita, enquanto os malfeitores seriam lançados nas trevas exteriores. Hoje toda pessoa, com certeza, algumas vezes ajuda outros, e outras vezes deixa de fazê-lo: o corpo é um, mas o espírito, não. A Bíblia fala do homem "interior" e do "exterior"; do homem "novo" e do homem "velho"; do homem "natural" e do "espiritual". É o homem interior e espiritual que pode alcançar felicidade na vida eterna.

Vi que devia amar o homem como ele era, não como devia ser. Outra vez percebi grande multidão de anjos movendo-se calmamente através do escuro em direção da minha cama. Aproximando-se cantaram um cântico de amor, que Romeu poderia ter cantado para Julieta. Não podia crer que os guardas não ouvissem aquela música maravilhosa e arrebatadora, que para mim era muito real.

Prisioneiros que por muito tempo ficam solitários, não raro têm visões. Há explicações naturais para esses fenómenos que não os invalidam. A alma usa o corpo para os seus próprios desígnios. Essas visões ajudaram a sustentar minha vida: o que basta para provar não terem sido meras alucinações.

Certa noite ouvi pancadinhas na parede ao lado de minha cama. Novo prisioneiro tinha chegado à cela vizinha e estava dando-me sinal. Respondi, e com isso provoquei um frenesi de pancadas com renovado vigor. Dentro de pouco percebi que meu vizinho estava transmitindo um código simples: A - uma pancada; B - duas pancadas; C - três pancadas.

"Quem é você?" foi sua primeira mensagem.

"Um pastor", respondi.

Partindo desse começo cansativo, desenvolvemos um sistema novo: uma pancada indicava as cinco primeiras letras do alfabeto; duas pancadas, o segundo grupo de cinco; e assim por diante. De modo que B era uma pancada, seguida de uma pausa, depois mais duas pancadas; F eram duas pancadas seguidas depois de um intervalo por outra. Mas este código ainda não satisfez o meu novo vizinho. Ele conhecia o sistema de Morse e me transmitiu letra por letra, até que aprendi todas.

Disse-me por sinais o seu nome. "Deus o abençoe", respondi com esforço. "Você é cristão?"

Passou-se um minuto, "Não posso afirmar isso".

Era um técnico de rádio, como se revelou, que aguardava julgamento num processo de certa relevância. Tinha cinquenta e dois anos, era de saúde precária. Abandonara a fé poucos anos antes, casando-se com uma descrente. Estava em grande depressão física. Falava com ele através da parede todas as noites, tornando-me fluente no uso de Morse.

Não tardou que ele batesse: "Gostaria de confessar meus pecados.

Foi uma confissão interrompida com muitos silêncios: "Eu tinha sete anos... dei um pontapé num menino... porque ele era judeu... Ele me amaldiçoou... 'Que sua mãe... não o veja... quando ela estiver morrendo'... Mamãe estava morrendo... quando fui preso".

Quando o homem esvaziou o coração do fardo de tantas coisas, disse que se sentia mais feliz do que anos antes. Tornamo-nos amigos pelo sistema Morse, como outros se tornam amigos pela caneta. Ensinei-lhe versos da Bíblia. Dizíamos gracejos um ao outro e transmitíamos o movimento das peças em jogo de xadrez. Mandei-lhe mensagens acerca de Cristo, pregando em código. Quando o guarda me surpreendeu nisso um dia, fui transferido para outra cela, onde tive outro vizinho, com o qual comecei de novo. Com o tempo muitos aprenderam o código. Presos foram muitas vezes removidos, e mais de uma vez fui traído por informantes, de modo que passei a transmitir só versos bíblicos e palavras acerca de Cristo: não estava pronto a sofrer por argumentos políticos.

Homens eram forçados por confinamento solitário a mergulhar em fatos acontecidos e enterrados havia muito tempo. Traições e desonestidades de outras épocas voltaram á tona com inevitável persistência. Era como se entrassem na cela e fitassem as pessoas para censurá-las; Mãe, pai, meninas abandonadas havia tempo, amigos caluniados ou fraudados em direitos seus. Todas as confissões que ouvi em Morse começavam: "Quando eu era menino", "Quando estava na escola..." A memória de transgressões antigas lá estava como feroz cão de guarda diante do santuário da paz de Deus. Quando porém todas as outras portas de acesso ao céu se fecham para o homem, diz a Cabala que resta a bab hadimot, a porta das lágrimas, e era por essa que nós, prisioneiros, tínhamos de passar.

Certa manhã, quando um vizinho me transmitiu o aviso que aquele dia era Sexta-feira Santa, encontrei um prego no banheiro e com ele risquei a palavra JESUS na parede de minha cela, esperando que servisse de conforto aos que ali fossem parar depois de mim. O guarda ficou irado. "Você vai para a gaiola!", disse.

Fui levado por um corredor a um armário embutido em uma parede, alto para caber uma pessoa de pé, com vinte polegadas quadradas, dispondo de uns buraquinhos por onde o ar passava, e um outro por onde se metia o alimento. O guarda me jogou lá dentro e fechou a porta. Pontas agudas feriam minhas costas. Estremeci e inclinei-me para  frente, quando outra porção de cravos me furaram o tórax. O pânico apoderou-se de mim, mas o esforço me sustinha de pé. Depois, movendo-me cautelosamente no escuro, tateei os lados - tudo estava coberto de pontas de aço. Só me mantendo rigidamente erguido podia evitar a empalação. Era isso a gaiola.

Minhas pernas começaram a doer. Passada uma hora todos os músculos pareciam chagas. Meus pés, doloridos do manejo, inchavam. Quando sucumbi, lacerando-me nas pontas agudas, fizeram-me sair para um descanso, depois do que me puseram lá de novo. Procurei pensar nos sofrimentos de Cristo, mas os meus eram fortíssimos. Depois me lembrei que meu filho Mihai, quando bem pequeno, certa vez perguntou-me: "Que vou fazer, papai? Estou enfadado". Respondi: "Pense em Deus, Mihai!" Ele atalhou: "Por que pensar nele? Minha cabeça é pequena: a dele é bem grande. Assim é Ele quem deve pensar em mim". Dizia então a mim mesmo: "Não experimente pensar em Deus. Deixe de pensar seja em que for". Naquela escuridão sufocante recordava-me que os iogues indianos extinguem da mente todo pensamento, repetindo uma fórmula sagrada muitas e muitas vezes. Este método é também usado pêlos monges do monte Atos, na interminável reza deles chamada "oração do coração", em que dizem uma palavra em cada pulsação do coração: "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem misericórdia de mim!" Eu já sabia que Cristo era misericordioso, mas como costumava dizer à minha esposa todos os dias que a amava, assim pensava:

"Farei o mesmo com Jesus", comecei a dizer: "Jesus, querido noivo de minha alma, eu Te amo As pulsações silenciosas de um coração amoroso são uma música que vai longe, por isso repetia essa frase no mesmo ritmo. A princípio pareceu-me ouvir o sorriso escarninho do demónio: "Tu O amas, e Ele te deixa sofrer. Se Ele é onipotente, porque não te fez sair da gaiola?" Continuava eu a dizer silenciosamente: "Jesus, querido noivo de minha alma, eu Te amo". Em pouco tempo a significação daquelas palavras apagou-se e perdeu-se. Eu havia deixado de pensar.

Mais adiante tive muitas vezes de praticar esse abstraimento em momentos difíceis. Jesus diz no Evangelho segundo S, Mateus: "Porque na hora em que não penseis virá o Filho do homem". Tem sido esta a minha experiência com Ele. Deixe-se de pensar -e Cristo vira, de surpresa. Mas a claridade de Sua luz é difícil de suportar. Algumas vezes inverti o processo, fugindo do mesmo e voltando aos meus pensamentos.

Passei dois dias na gaiola. Alguns passaram uma semana ou mais, todavia o médico avisou que meu estado se tornara perigoso. Já estava entre a vida e a morte. Em consequência de meu confinamento prolongado e a falta de sol, alimentação e ar, meus cabelos deixaram de crescer. O barbeiro só espaçadamente me visitava. As unhas ficaram pálidas e amolecidas, como plantas conservadas no escuro.

Comecei a ter alucinações. Fitava meu corpo de estanho com água para convencer, em momentos de desespero, que não estava no Inferno, onde não há água - e então ele virava capacete. Via pratos deliciosos postos numa mesa que se estendia muito além da cela. De muito longe vinha minha esposa e se aproximava; trazia um prato com enorme pilha de salsichas fumegantes, mas eu rosnei para ela: "Isto é tudo? Como é pouco!" Outras vezes minha cela se expandia tornando-se biblioteca, com estantes e mais estantes de livros encadernados que subiam até desaparecer no escuro: novelas famosas, poesias, biografias, obras religiosas e científicas. Elevavam-se à minha frente. Outras vezes, milhares de rostos viravam-se ansiosamente para o meu lado: me via cercado de enormes multidões, esperando que eu falasse. Gritavam perguntas. Vozes respondiam. Ouviam-se aplausos e gritos em contrário. Um oceano de rostos estendia-se ao infinito.

Também me atormentavam sonhos de violência contra os que me haviam aprisionado, assim como fantasias eróticas. Este é um Inferno que não é facilmente entendido pêlos que não têm passado por ele. Eu tinha trinta e nove anos quando fui preso, gozava saúde e era vigoroso, e agora a recidiva da tuberculose despertava em mim um maior impulso genésico. Deitado e em vigília, ficava inflamado, vindo à mente mulheres e jovens, e depois apesar de procurar afugentá-las - sobrevinham-me visões de perversões e exagerações do ato do amor. Frustração e senso de pecado causavam-me um sofrimento horrível: algumas vezes agudo e causticante; outros, imprecisos, mas presente sempre.

Encontrei um meio de combater tais alucinações, tratando-as como intrusas hostis, tais como o vírus da tuberculose no meu corpo: longe de censurar-me pelas suas invasões, reivindicava as alucinações não como pecados mas como inimigas, pude planejar o meio de destruí-las. Maus pensamentos podem ser subjugados pelo raciocínio, se atentarmos calmamente nas suas consequências. Não procurava expulsá-las, sabendo que voltariam furtivamente por uma porta lateral; ao invés disso, deixava-as à vontade, enquanto ponderava quanto custaria na vida real se a elas me entregasse. Rendendo-me a tais tentações traria com certeza miséria a outras famílias e a mim próprio. Minha esposa teria que procurar divórcio. O futuro do meu filho ficaria arruinado. Meus paroquianos perderiam a fé. E depois, desprezado de todos, teria ainda que responder a Deus pêlos danos causados. Como os médicos empregam um vírus para combater outro, assim podemos empregar a máxima do diabo -"dividir para dominar" - e derrotá-lo. O demónio do orgulho - o medo de perder o bom conceito - pode ser dirigido contra o demónio da sensualidade. O demónio da avareza odeia os vícios que custam dinheiro!

Um dia, estando obstruídas nossas privadas, levaram-me ao banheiro dos guardas. Acima da pia, na parede, havia um espelho. Pela primeira vez, em dois anos, eu pude contemplar-me.

Era jovem e gozava saúde quando entrei para a penitenciária. Consideravam-me simpático, naquela época. Agora, vendo a que ponto chegara, ri de mim mesmo: riso triste, homérico. Tantos que me admiravam antes e me amavam, se pudessem ver agora o velho medonho que ali estava a me fitar, ficariam apavorados. Era uma lição para mim: o que é realmente belo em nós é invisível aos olhos físicos. Ainda ia ficar mais feio - um esqueleto e uma caveira - e, lembrando disso, minha fé e o desejo de me apegar à vida espiritual eram fortalecidos.

Vi no banheiro um pedaço de jornal, o primeiro em que peguei desde minha prisão. Estava lá a notícia de que o Primeiro Ministro Groza havia tomado a decisão firme de exterminar os ricos, o que achei engraçado - um governo inclinado a liquidar a riqueza, quando o resto do mundo envidava esforços por dar fim à pobreza. Procurei o nome de Patrascanu se por acaso tinha sido reconduzido à posição de antes, mas não o encontrei entre os Ministros, na Câmara onde Groza proferiu seu discurso.

Voltado escoltado à minha cela, ouvi a mulher chorando e gritando como louca. Seus berros estridentes pareciam vir de uma prisão em nível abaixo de nós. Chegaram tais gritos a paroxismos, depois foram de súbito silenciados.

Poucos dias depois novo prisioneiro foi posto na cela contígua à minha. Bati a mensagem: "Quem é você?" e recebi pronta resposta. Era lon Mihalache, que fora membro de vários governos de antes da guerra e colega do notável líder político luliu Maniu. Quando começou o terror do Partido, Mihalache aderiu a um grupo que tentou evadir-se. Foi preso no aeroporto e, em outubro de 1947, foi sentenciado à prisão perpétua. Tinha mais de sessenta anos. "Passei toda a minha vida lutando para ajudar meus patrícios, e esta é a recompensa", disse ele.

"Quando é de sua vontade tudo quanto acontece, então o que acontece é apenas o que o senhor quer", disse-lhe por sinais. "A renúncia é o caminho da paz".Ele retrucou-me, "Não há paz sem liberdade".

Continuei: "Num país onde reina a tirania... cadeia é lugar de honra".Disse-me que para ele Deus desaparecera.

Atalhei por sinais: "Deus nunca desaparece de ninguém... Nós é que somos os desaparecidos... Se nos encontramos a nós mesmos... achamos a divindade dentro de nós... A prisão pode ajudar-nos nessa busca". Respondeu que ia tentar outra vez.

Antes de Mihalache ser removido dois dias depois, disse-me que a mulher cujos gritos tínhamos ouvido era a esposa de um ex-Primeiro-Ministro, lon Gigurtu. A maneira como seus bramidos pararam mostrou que lhe deram injeção para fazê-la calar-se. Quando logo mais bati na parede, não houve resposta. Mihalache fora embora.

Logo depois disso recomeçou meu interrogatório. Passou a ser dirigido pelo Tenente Grecu, um jovem forte, inteligente e confiante em si mesmo, imbuído da crença de estar construindo um mundo melhor. Sua inquisição levou-nos a reconsiderar uma vez mais a obra de alívio à fome de que eu fora encarregado pela missão da igreja escandinava. Negaria eu ainda, perguntou-me, que o numerário recebido fora empregado na espionagem?

Respondi: "Posso compreender suas suspeitas de estarem os ingleses e americanos gastando dinheiro aqui em espionagem, mas que interesse podia ter a Noruega ou a Suécia em tais atividades?"

Ele me redarguiu: "Uma e outra são instrumentos de que se servem os imperialistas".

"Mas a Noruega tem fama de possuir espírito democrático, e a Suécia tem governo socialista já há quarenta anos".

"Tolice!" retorquiu-me. São fascistas como todas as outras".

Em nosso próximo encontro Grecu me disse haver refletido que eu podia ter razão.

Inquiriu a seguir sobre a distribuição do Evangelho em russo. Sugeri que um dos diretores da Sociedade Bíblica, de nome Emile Klein, podia tê-la promovido. Perguntou por que eu fizera repetidas visitas à cidade de lashi (um dos centros desse trabalho). Respondi que tinha um convite para sempre comparecer à residência do atual Patriarca.

Na manhã seguinte fui de novo chamado. Grecu estava na sua carteira, segurando um bastão de borracha.

"Sua conversa foi mentira", bradou. "Emile Klein morreu antes de você ser preso. Por isso foi que falou nele. Verificamos as datas de suas viagens a lashi - o Patriarca Justiniano dificilmente estaria lá".

Empurrou a cadeira para trás. "Basta! Aqui está papel. Sabemos que você se tem comunicado em código com outros presos, inclusive Mihalache. Agora precisamos saber com exatidão o que cada um deles disse. Queremos saber que outras infrações do regulamento da prisão você cometeu. E diga a verdade. Se não..."

 

Bateu na carteira com o bastão: "Tem meia hora para isso", disse e foi saindo da sala.

Sentei-me para escrever. A primeira palavra tinha de ser "Declaração". Tive dificuldade em começar: já fazia dois anos que não pegava em caneta. Admiti haver infringido regulamentos. Transmitia por sinais a mensagem do Evangelho para o outro lado das paredes. Amealhara comprimidos para me suicidar. Fizera uma faca de um pedaço de estanho, figuras de jogo de xadrez com pedaços de pão e cal da parede. Comunicara-me com outros presos, cujos nomes não sabia. (Não disse que ouvira confissões e até levara alguns à fé pelo sistema de Morse). Escrevi: "Nunca falei contra os comunistas. Sou discípulo de Cristo, que nos capacita amar os nosso inimigos. Compreendo-os e oro pela conversão deles, para que se tornem meus irmãos na Fé. Não posso declarar nada do que outros me transmitiram por sinais, porque um ministro de Deus jamais pode ser testemunha em processos judiciais. Minha profissão é defender, e não acusar".

Grecu voltou no tempo marcado, brandindo o bastão. Estivera surrando presos.

Tomou minha "Declaração" e começou a lê-la. Logo depois colocou o bastão para um lado. Quando terminou a leitura, lançou-me um olhar perplexo. Disse: "Sr. Wurmbrand (nunca antes me tratara por "senhor") por que diz que me ama? Esse é um dos mandamentos do seu Cristianismo, que ninguém é capaz de cumprir. Eu não amaria alguém que me trancasse em prisão solitária durante anos, que me fizesse padecer fome e me surrasse".

Respondi: "Não é questão de guardar um mandamento. Quando me tornei cristão foi como se tivesse nascido de novo, com um novo caráter cheio de amor. Como somente água pode manar de uma fonte, assim só o amor pode brotar de um coração amoroso".

Durante duas horas conversamos sobre o Cristianismo e suas relações com as doutrinas marxistas, com as quais ele se criara. Grecu surpreendeu-se quando eu disse que a primeira obra de Marx foi um comentário ao Evangelho de S. João; nem sabia que Marx, no prefácio de sua obra "Capital" escreveu que o Cristianismo - especialmente em sua forma protestante - é "a religião ideal para a renovação das vidas estragadas pelo pecado". Uma vez que a minha tinha sido infelicitada pelo pecado - disse-lhe - eu apenas segui o conselho de Marx quando me tornei cristão protestante.

Depois desse encontro Grecu me chamava ao seu gabinete quase que todos os dias, quando conversávamos uma ou duas horas. Confirmou as citações que lhe fiz. Isto se tornou o pretexto de longas discussões em torno do Cristianismo, nas quais pus em relevo o seu primitivo espírito democrático e revolucionário.

Repetidas vezes me afirmou: "Fui criado ateu e nunca serei outra coisa". Observei-lhe: "Ateísmo é um termo sagrado para os cristãos. Nossos antepassados, quando lançados às feras por causa de sua fé eram chamados ateus por Nero e Calígula. De sorte que se alguém se diz ateu, respeite-o".

Grecu sorriu. Continuei: "Tenente, um dos ancestrais era rabino - isso no século dezessete. Seus biógrafos registram que certa vez ele encontrou um ateu e disse: "Invejo você, caro irmão! Sua vida espiritual deve ser muito mais pujante que a minha. Quando vejo alguém atribulado, digo quase sempre, 'Deus que o ajude', e passo adiante. Você não crê em Deus, por esta razão toma sobre si o fardo dos outros e ajuda a todos quantos encontra".

"Os cristãos não criticam o Partido pelo seu ateísmo, mas por produzir ateus de tipo errado. Há deles duas espécies: os quais dizem: "Não há Deus, portanto posso praticar todo o mal que quiser"; e aqueles que raciocinam: "Visto que não há Deus,preciso praticar todo o bem que Ele faria, caso existisse". O maior ateu desta segunda espécie foi Cristo. Quando ele via pessoas famintas, enfermas e aflita, não passava de largo, dizendo: "Deus que os ajude". Agia como se toda a responsabilidade dos outros pesasse sobre Ele. Por isso o povo perguntava: "Este homem é Deus? Ele faz as obras de Deus!" Foi assim que descobriram que Jesus era Deus. Tenente, se o senhor pode tornar-se esta espécie de ateu, amando e servindo a todos, os homens cedo descobrirão que o senhor se tornou um filho de Deus; e o senhor mesmo descobrirá em si a Divindade".

Estes argumentos podem chocar algumas pessoas. Mas S. Paulo nos diz que os missionários entre judeus devem ser judeus, entre os gregos devem ser gregos. Com o marxista Grecu tive de ser marxista e falar a linguagem que ele entendesse. As palavras atingiram-lhe o coração. Começou a pensar e a amar a Jesus. Duas semanas depois, no seu uniforme caqui, na gola os distintivos azuis da Polícia de Defesa, confessou-se a mim, vestindo eu a roupa esfarrapada e remendada da prisão. Tornamo-nos irmãos. Daí por diante ele destemidamente ajudou os prisioneiros quanto lhe era possível, enfrentando dificuldades e perigos. Continuou prestando serviço ao Partido, mas só de lábios, exteriormente. Um dia, porém, desapareceu, ninguém sabendo o que lhe acontecera. Fiz cautelosamente alguma investigação entre os guardas, pensando eles que tinha sido preso. Ocultar uma verdadeira conversão não é coisa fácil. Seu emprego desagradável. Deus olha para o coração e vê numa boa súplica a promessa de vida nova no futuro.

Durante meu segundo ano de detenção, uma dessas almas divididas foi em minha cela. Todo o tempo que esteve comigo suas mãos permaneceram algemadas nas costas. Tinha eu de lhe dar comida e fazer tudo para ele.

Dionisiu era um jovem escultor, cheio de ideias novas naquele mundo que só pedia bustos lisonjeadores de Stalin. Não tendo dinheiro com que comprasse alimento, assumiu um posto na Polícia Secreta que o obrigava a surrar prisioneiros, mas ao mesmo tempo corria grande risco por adverti-los contra informantes. Quando viu que dele suspeitavam, decidiu fugir do país. Depois, estando perto da liberdade, foi compelido por algum impulso íntimo a voltar e entregar-se. Tais personalidades partidas encontram-se por toda parte sob o Comunismo. Dionisiu levou a vida inteira a ser empurrado em duas direções.

Durante dez noites inteiras ensinei-lhe a Bíblia. Seu senso de culpa desapareceu. Antes de ser removido de minha cela, disse: "Se um dos quinze padres de minha cidadezinha tivesse conversado comigo quando eu era mais moço, teria encontrado a Jesus há mais tempo".

Encontrei outros crentes ocultos trabalhando na Polícia Secreta, e alguns ainda desempenham seus deveres. Não se diga que um homem não pode torturar e ao mesmo tempo orar! Jesus fala-nos de um cobrador de impostos (ofício que na época não se exercia sem extorsão e brutalidade) o qual orou, suplicando misericórdia para si, pecador, e saiu para casa "justificado". O Evangelho não diz que aquele homem imediatamente abandonou o interrogatório não terminou com a partida do Tenente Grecu, porém Deus me concedeu o dom de esquecer os nomes de todos a quem poderia causar dificuldades. Embora enquanto preso compusesse mais de 300 poesias, num total de 100.000 palavras, e as lançasse ao papel quando fui solto, tornei-me inexpressivo, reticente durante o inquérito. Por esta causa tentaram novo ardil.

Sob o pretexto de que minha tuberculose se tinha agravado - e de fato eu tossia quase de contínuo - os médicos prescreveram-me nova droga, uma cápsula amarela que me fazia dormir muito e ter sonhos deleitáveis. Quando acordava, davam-me outra. Fiquei inconsciente por alguns dias, só despertando quando os guardas me levavam comida, que agora era leve e saudável.

Minha recordação do interrogatório reatado é confusa, indistinta. Sei que a droga não me faz trair meus amigos, porque quando adiante fui julgado, estive sozinho. Nenhum julgamento imponente dos homens da "rede de espionagem" do Concílio Mundial de Igrejas jamais ocorreu. Ministraram a droga ao Cardeal Mindszenty, a trotskystas e muitos outros. Ela debilitava o poder da vontade ao ponto de a vítima entrar num delírio de auto-acusação. Depois, eu passava a ouvir homens que, por seu turno, vinham bater ruidosamente na porta das celas, pedindo para ver o oficial político, afim de fazerem novas acusações contra si próprios. Aquele tratamento podia também produzir efeitos a longo prazo: homens que, meses antes, haviam tomado a droga, depois confessavam a mim pecados que nunca tinham tido oportunidade de cometer. Talvez a tuberculose em mim neutralizasse os efeitos dela. Ou talvez a dose que me ministravam era excessiva. Seja como for, pela graça de Deus, fui salvo de trair os outros.

Fiquei ainda mais fraco depois da droga, e um dia desfaleci por completo. Mas embora só pudesse levantar-me da cama com esforço extremo, minha mente ficou lúcida por algum tempo. Tinha até medo de sua lucidez.

Não é lendo que o grande Sto. António, Martinho Lutero e muitos outros homens de menor categoria viram o Demônio.

Eu mesmo o vi uma vez, quando menino. Sorriu para mim arreganhando os dentes. Esta é a primeira vez que refiro a isto, em meio século. Sozinho na cela, agora, senti outra vez sua presença. Estava escuro e fazia frio, e ele zombava de mim. A Bíblia fala de lugares "onde os sátiros dançam", e minha cela se fez um deles. Ouvia sua voz de dia e de noite: "Onde está Jesus? O teu Salvador não te pode salvar! Foste enganado e enganaste a outros. Ele não é o Messias - seguiste a quem não devias seguir!" Bradei em alta voz: "Então quem é o verdadeiro Messias que há de vir?" A resposta veio clara, mas por demais blasfema para ser aqui repetida. Eu tinha escrito livros e artigos provando que Cristo era o Messias, mas desta vez não pude pensar num só argumento. Os demônios que levaram Nyils Hauge, o grande evangelista norueguês, a vacilar em sua fé quando na prisão, eles que até fizeram João Batista duvidar, preso no cárcere, enfureceram-se contra mim. Eu estava desarmado. Minha alegria e serenidade tinham-se acabado. Antes havia sentido Cristo tão junto a mim, suavizando minhas amarguras, alumiando minha treva, mas agora exclamava: "Eloí, Eloí, lama sabactâni?", tendo a impressão de completo abandono.

Naqueles dias negros e horríveis, vagarosamente compus uma longa poesia que não pode ser facilmente aceita pêlos que não têm conhecido nenhum estado físico e espiritual igual ao meu. Foi a minha salvação. Por palavras, ritmo e exorcismo pude derrotar Satanás. Vai adiante uma versão sem rima e sem métrica, que apresenta o sentido exato do original romeno:

Desde menino frequentei templos e igrejas. Neles Deus era glorificado. Diferentes ministros cantavam e com zelo queimavam incenso. Afirmavam ser justo amar-te. Mas ao crescer vi tão profundos sofrimentos no mundo deste Deus que eu disse a mim mesmo: "Ele tem um coração de pedra. Se não fosse assim, Ele minoraria as dificuldades do caminho para nós". Crianças enfermas agitam-se febris nos hospitais: pais tristes oram por elas. O céu fica surdo. Pessoas a quem amamos vão pelo vale da morte, até mesmo se por elas prolongamos nossas súplicas. Homens inocentes são queimados vivos em fogueiras. E o céu queda-se em silêncio. Deixa que tais coisas aconteçam. Pode Deus estranhar-se, em voz baixa, até os crentes passem a duvidar? Famintos, torturados, perseguidos em seu próprio país, não têm resposta para tais perguntas. O Todo-Poderoso fica desacreditado pêlos horrores que nos assaltam.

Como posso amar o criador de micróbios e tigres que dilaceram os homens? Como posso amar aquele que tortura todos os seus servos porque um deles comeu do fruto de uma árvore? Mais triste que Jó, não tenho esposa, nem filho, nem pessoas que me confortem, e nesta prisão estou privado de sol e de ar, e o regime de vida é duro de suportar.

Da cama de tábuas em que me deito farão meu ataúde. Estirado nela, procuro descobrir por que meus pensamentos voam para ti, por que tudo quanto escrevo se dirige a ti. Qual a razão deste amor veemente em minha alma? Por que o meu cântico só tem a ti em mira? Sei bem que estou rejeitado; logo mais apodrecerei num túmulo.

 

A noiva dos Cantares de Salomão não amava ao inquirir se havia "razão de seres amado". O amor justifica-se a si mesmo. O amor não é para os sensatos, os que raciocinam. Pelo meio de mil provações ela, a noiva, não deixará de amar. Ainda que o fogo a consuma e as ondas a submerjam, ela beijará a mão que a fere. Se não encontra resposta para suas indagações, confia e espera. Um dia o sol brilhará nos lugares escuros e tudo terá sua explicação.

O perdão dos muitos pecados só fez que aumentassem o amor inflamado de Madalena. Ela, porém, deu perfume e derramou lágrimas antes que dissesses tua palavra de perdão. E ainda que não a disseras, mesmo assim ficaria sentada a chorar, tamanho era o amor que por ti nutria ainda que pecadora. Ela te amava antes que vertesse o teu sangue. Ela te amava antes que a perdoasse, tampouco te pergunto eu se é razoável amar-te. Não amo na esperança de salvação. Amar-te-ia mesmo que fosse em desventura eterna. Amar-te-ia mesmo dentro de fogo consumidor. Se recusares baixar até ao nível dos homens, ainda sereis meu sonho distante. Se recusares semear a tua Palavra, ainda te amaria sem ouvi-la. Se tiveres hesitado e fugido da crucificação, e eu não fosse salvo, ainda assim eu te amaria. Até mesmo se em ti eu descobrisse pecado, cobri-lo-ia com o meu amor.

Agora ousarei dizer palavras loucas, para que todos saibam quanto eu te amo. Ferirei agora cordas virgens, ainda não tocadas, e te magnificarei com música nova. Se os profetas houvessem predito outro, abandoná-los-ia, não a ti. Apresentassem eles milhares de provas, ficar-te-ia amando. Se adivinhasse que eras um enganador, oraria por ti com lágrimas, e embora não te pudesse acompanhar na falsidade, isso não diminuiria o meu amor. Por Saul, Samuel passou ávida em pranto e rigoroso jejum. Assim o meu amor resistiria, ainda que te soubera perdido. Se tu, e não Satanás, te houveras rebelado injustamente contra o Céu e perdido o encanto das asas, caindo como um arcanjo lá das alturas, em desesperança, ainda assim eu esperaria que o Pai te perdoasse e que um dia andarias com Ele outra vez pelas ruas áureas do Céu.

Se foras um mito, eu abandonaria a realidade e contigo viveria em sonho. Se viessem a provar que tu não existes, passaria a viver do meu amor. Meu amor é louco, sem motivo, como o teu também. Senhor Jesus procura achar felicidade aqui. Porque mais não te posso dar. Quando terminei este poema, não senti mais a proximidade de Satanás. Retirara-se. No silêncio, senti o ósculo de Cristo, e quem quer que seja beijado queda-se em silêncio. Voltaram a mim a tranquilidade e alegria.

 

SEGUNDA PARTE

 

Depois de quase três anos de confinamento solitários, cheguei às portas da morte. Tinha frequentemente lemoptises. O Coronel Dulgheru disse: "Não somos assassinos como os nazistas. Queremos que você viva - e sofra". Foi chamado um especialista. Querendo a todo custo evitar contágio, fez seu diagnóstico pela fresta do espia, na porta da cela. Vieram ordens sobre minha transferência para um hospital-presídio.

Fizeram-me subir das celas subterrâneas; no pátio do Ministério do Interior voltei a ver o luar e as estrelas. Deitado numa ambulância pude contemplar cenários conhecidos de Bucareste. Iam tomando a direção de minha casa e por um momento julguei que me levavam para lá, onde iria morrer. Quando já estávamos perto, a ambulância desviou-se e começou a subir a encosta de uma montanha, nos arredores da cidade. Vi então que nos dirigíamos a Vacaresti, um dos grandes mosteiros de Bucareste, o qual no decurso do último século foi transformado em presídio. A bela igreja e a capela paroquial agora eram armazéns. Muitas paredes, que separavam as celas dos monges, tinham sido derrubadas e agora havia salas espaçosas em que os prisioneiros viviam em grande número. Restavam poucas celas em que pessoas podiam ficar isoladas.

Enrolaram minha cabeça com um lençol antes de os guardas me retirarem da ambulância. Pegaram-me por baixo dos braços e assim fui ajudado a andar, atravessando o pátio, subindo algumas escadas e ao longo de uma sacada. Quando retiraram o lençol, vi-me sozinho em uma cela estreita e vazia. Ouvi um oficial dizer ao guarda, fora da varanda: "Ninguém tem permissão de ver este homem, exceto o médico, e mesmo assim você esteja presente". Minha existência ali tinha de permanecer em segredo.

O guarda, já meio grisalho, teve a curiosidade despertada por essa advertência. Quando o oficial se afastou, perguntou o que eu havia feito. Disse: "Sou um pastor e filho de Deus".

Inclinando-se para mim, sussurrou-me: "Louvado seja o Senhor! Eu sou um dos soldados de Jesus!" Era um membro secreto do "Exército do Senhor", movimento avivalista separado da igreja ortodoxa, o qual apesar de perseguido pelos comunistas e pelo clero, propagara-se rápido pelas vilas, arrebanhando centenas de milhares de adeptos.

O nome do guarda era Tachici. Trocamo-nos versículos da Bíblia e ele me ajudou o mais que pôde - guardas tinham sido sentenciados a doze anos de prisão pelo fato de darem uma maçã ou um cigarro a algum detento. Eu estava muito fraco para me levantar da cama, pelo que eram frequentes as dejeções nela. Em curto período, cada manhã, sentia lucidez mental, depois me agitava de um lado para outro e entrava em delírio. Dormia pouco. Havia, porém, uma janelinha pela qual pude voltar a contemplar o céu. Ao amanhecer era despertado por uns sons diferentes, que havia tanto não escutava: trinado dos pássaros!

Disse a Tachici: "Martinho Lutero, quando passeava pelos bosques, costumava tirar o chapéu para os passarinhos e dizer:

"Bom dia teólogos - vocês despertam e cantam, ao passo que eu, bobo velho, sei menos do que vocês e vivo preocupado com tudo, em vez de simplesmente confiar no cuidado do Pai celestial".

Da janela se via um canto do pátio coberto de relva, de ordinário desocupado. Algumas vezes médicos, de batas brancas, passavam apressados, sem sequer olhar de relance para cima. Tinham de praticar a medicina "no espírito da luta de classe".

Podia ouvir homens conversando, quando saíam para exercício. Em dias passados, algumas vezes tinha saudade do timbre da voz humana, mas agora me irritava. Nada valia o que diziam. Seus pensamentos pareciam triviais e falsos.

A voz de um ancião me veio da cela contígua, certa manhã. "Sou Leonte Filipescu. E quem é o senhor?"

Reconheci o nome de um dos primeiros socialistas da Roménia, indivíduo talentoso de quem o Partido se utilizara e depois abandonara: "Combata a sua doença", continuou, "Não ceda! Vamos ser libertados dentro de duas semanas".

"Como sabe?", perguntei. "Os americanos estão pondo os comunistas para trás, na Coreia. Estarão por aqui duas semanas mais".

 

Eu disse: "Mas ainda que não encontrem oposição, levarão por certo mais de quinze dias para chegar à Roménia".

"Asneira! Distância nada representa para eles. Têm jatos supersônicos!"

Não discuti. Os presos viviam de ilusões. Se acontecia a papa certa manhã ser um pouco mais grossa, aquilo queria dizer que um ultimato americano tinha amedrontado a Rússia, razão por que o tratamento que nos davam estava melhorando! Se alguém era derrubado no chão com o soco de um guarda, significava aquilo que os comunistas estavam aproveitando ao máximo o restante dos dias do seu predomínio. Os homens voltavam do pátio de exercício cheios de animação: "O Rei Miguel disse pelo rádio que estará de volta ao trono no mês vindouro".

Ninguém podia suportar o pensamento de ter de passar os próximos dez ou vinte anos preso. Filipescu ficou ainda mais convencido de uma soltura em breve quando foi removido, um mês depois, para outro hospital-presídio, onde nos iríamos encontrar outra vez. Para o seu lugar chegou um líder da Guarda de Ferro Fascista, Radu Mironovici, que se dizia fervoroso cristão, mas que sempre estava a extravasar o ódio aos judeus.

Pedi a Tachici que me ajudasse a levantar da cama e fui até onde estava Mironovici: "Quando você toma a Santa Comunhão em sua igreja ortodoxa, o pão e o vinho se transmudam no corpo e no sangue reais de Jesus Cristo?" Respondeu que sim.

"Jesus era judeu", disse-lhe. "Se o vinho se torna o seu sangue, então esse sangue é de judeu, não é mesmo?"

Relutantemente admitiu que sim. Prossegui: "Jesus diz que todo aquele que come o seu corpo e bebe o seu sangue terá vida eterna. Assim, pois, para ter vida eterna você precisa adicionar ao seu sangue ariano algumas gotas de sangue de judeu. Como é possível, então, odiar os judeus?"

Não teve resposta. Pedi que visse o absurdo de um seguidor de Jesus, que era judeu, odiar judeus - assim como era absurdo os comunistas serem anti-semitas, uma vez que acreditavam no judeu chamado Karl Marx. Mironovici dentre em pouco foi removido para uma cela distante, mas afirmou a Tachici: "Desmoronou-se uma parte de minha vida, que era falsa. Era um cristão que muito me orgulhava de seguir a Cristo".

Um dia em que minha temperatura era elevada e me sentia abatido, os guardas voltaram a mim. Enrolaram-me a cabeça com um lençol e me levaram por um corredor. Quando me descobriram a cabeça, vi-me numa sala grande, vazia, com janelas gradeadas. Quatro homens e uma mulher estavam sentados a uma mesa e me encararam. Ia ser julgado, e eles eram os meus juizes.

"Nomeou-se um advogado para defendê-lo", disse o presidente do tribunal. "Ele abriu mão do seu direito de chamar testemunhas. Pode sentar-se".

Guardas me fizeram ocupar uma cadeira, enquanto me davam injeção para me acalmar. Quando passaram as náuseas e a tontura, o promotor levantou-se. Disse que eu na Roménia defendia a mesma ideologia criminosa que Josef Broz Tito defendia na lugoslávia. Pensei que eu estivesse delirando. Ao tempo de meu aprisionamento o Marechal Tito era considerado um comunista modelo - não sabia eu que depois ele se tivesse revelado separatista e traidor. Continuou seu interminável discurso em torno do meu crime: trabalho de espionagem por intermédio das missões da igreja escandinava e do Concílio Mundial de Igrejas, propaganda de ideologia imperialista sob o disfarce de religião, infiltração no Partido sob o mesmo pretexto, sendo o meu real objetivo a destruição dele, e assim por diante. Enquanto ele continuava, senti que ia caindo da cadeira, fazendo eles uma pausa enquanto me aplicavam outra injeção.

O advogado da defesa fez o que pôde. Não foi muito. "Tem o senhor algo a dizer?" perguntou o presidente. Sua voz soava-me distante e a sala começou a escurecer. Uma coisa só me veio à cabeça aturdida.

"Eu amo a Deus", disse.

Ouvi minha sentença: vinte anos de trabalho forçado. O julgamento tomara dez minutos. Ao sair, envolveram-me outra vez a cabeça com o lençol.

Dois dias depois Tachici segredou-me: "Você vai embora. Deus o acompanhe!" Outro guarda veio após e, entre um e outro, fui conduzido ao portão principal. Um panorama de Bucareste estendia-se lá embaixo - a última vez que teria de vê-la nos seis anos seguintes. Os grilhões da praxe, pesando uns 23 quilos, foram postos a marteladas em volta dos meus tornozelos. Fui erguido para dentro de um caminhão, onde já estavam uns quarenta homens e poucas mulheres. Todos, até os doentes, estavam em grilhões. Perto de mim uma jovem começou a chorar. Procurei consolá-la.

"O senhor não se lembra de mim?" disse em soluços.

Olhei-a mais de perto, mas o seu rosto a ninguém me fazia lembrar.

"Eu pertencia à sua congregação". Depois que fui presa, a pobreza constrangeu-a a furtar - contou-me -e agora tinha sido sentenciada a três meses de prisão. "Tenho tanta vergonha". Suas palavras entrecortavam-se de soluços. "Eu estava na sua igreja, agora o senhor é um mártir e eu, uma ladra".

"Também sou pecador, salvo pela graça de Deus", atalhei. "Creia em Cristo e seus pecados lhe serão perdoados".

Ela beijou minha mão, prometendo que, ao ser libertada, faria minha família saber que me vira.

Num desvio de estrada de ferro passamos para um vagão especial, destinado a transporte de presos. As janelas eram pequeninas e foscas. Enquanto avançávamos ruidosa e vagarosamente através da planície na direção dos contrafortes dos montes Cárpatos, descobrimos que todos ali tínhamos tuberculose, sendo bem provável que nos levassem a Tirgul-Ocna, onde havia um sanatório sofrível para prisioneiros portadores daquela moléstia. Durante uns 400 anos indivíduos condenados tinham trabalhado nas jazidas locais de sal, e fazia trinta anos que um médico afamado, Romascanu, construíra o sanatório, doando-o ao Estado. Tivera boa celebridade antes que os comunistas dele tomassem conta.

Depois de uma viagem de 200 milhas, que tomou um dia e uma noite, chegamos à estação de Tirgul-Ocna, cidade de 30.000 habitantes. Com seis outros homens incapacitados de andar, fui posto numa carroça. Os demais foram arrastados, sob as vistas dos guardas, para um enorme edifício no perímetro da cidade. Quando era introduzido nele, vi um rosto conhecido. Era o Dr. Aldeã, ex-fascista, que se converteu e se tornou nosso amigo chegado. Depois que me ajudou a subir para um leito na sala de isolamento, ele me examinou.

"Também sou prisioneiro aqui", disse-me, "mas me deixam trabalhar como médico. Não há enfermeiras; há apenas um médico. De sorte que temos de cuidar uns dos outros da melhor maneira possível".

Tomou minha temperatura e fez seu diagnóstico.

"Não quero enganá-lo", disse. "Não há mais o que fazer no seu caso. O senhor pode ter ainda duas semanas de vida. Procura comer o que lhe derem, embora não seja do bom. Do contrário..." Bateu no meu ombro e saiu.

Nos dias seguintes dois homens morreram, dos que tinham ido de carroça lá da estação. Ouvi outro daqueles, com voz rouca, a argumentar com Aldeã: "Juro, doutor, que estou melhor. Afebre

vai baixando, eu sei. Ouça, por favor! Hoje escarrei sangue só uma vez. Não deixe que me levem para a Sala 4!"

Perguntei ao homem que me levou um mingau muito ralo o que acontecia na Sala 4. Baixou o prato com cuidado e respondeu: "Para lá mando os que estão desenganados!"

Procurei tomar o mingau, mas não pude. Alguém me fez toma-lo com uma colher. Eu não podia firmá-la na mão. O Dr. Aldeã me disse: "Sinto muito, mas eles insistem. O senhor vai ter que ir para a Sala Quatro".

E assim reuni-me aos meus companheiros de carroça.

Eu já podia estar morto. Presos faziam o sinal da cruz ao passar pelo pé de meu leito. A maior parte do tempo estive em coma. Se gemia, outros me viravam de lado, ou me davam água.

O Dr. Aldeã pouco podia fazer. "Se ao menos tivéssemos algum medicamento moderno", dizia. A estreptomicina, nova descoberta americana, estava operando prodígios contra a tuberculose, segundo rumorejavam, mas o Partido, segundo suas normas decidira que tudo era propaganda ocidental.

Nos quinze dias que se seguiram, quatro dos que haviam entrado na sala comigo morreram. Algumas vezes eu não tinha certeza se estava vivo ou morto. À noite meu sono era intermitente, acordando com dores agônicas. Outros presos me viravam de lado, numa média de quarenta vezes, para que as dores abrandassem. Pus escorria de uma dúzia de feridas. Meu tórax estava intumescido e a espinha também estava afetada. Escarrava sangue constantemente.

Alma e corpo estavam prestes a quebrar os laços que os uniam. Encaminhava-me para as fronteiras do mundo físico.

Perguntei ao anjo que me guardava: "Que espécie de guardião és tu, que não podes afastar de mim este sofrimento, nem sequer os pensamentos que nada têm de cristão?" E num fuzilar de luz ofuscante, cuja duração pareceu ser a de um milésimo de segundo, vi um vulto com tantos braços quanto os de Crisna, e ouvi sua voz: "Não posso fazer tudo quanto devo por você. Também sou um convertido".

Naquela época não conhecia a Bíblia nem dogmas. Minha mente não trabalhava, pelo que não podia julgar o valor objetivo daquela visão. Vinha-me uma vaga lembrança de que os místicos ortodoxos falavam de casos isolados em que anjos negros foram levados de volta ao serviço de Deus. Entretanto a conversão não podia mudar completamente o caráter dos que tinham sido muito maus, mesmo que o arrependimento tivesse sido profundo. Em qualquer caso, naquelas circunstâncias, a visão que me apresentava alguma explicação de coisas que me aconteciam ajudou-me bastante.

Sobrevivi à primeira crise. O olhar de piedade do Dr. Aldeã começou a mudar e ficar algo perplexo, à medida que eu me agarrava à vida. Não tomei remédio algum, mas durante uma hora, de manhã, a febre baixava um pouco e minha mente ficava mais clara. Comecei a olhar à volta e a ficar atento às coisas ao meu redor.

A sala tinha doze leitos, juntos uns dos outros, e algumas mesinhas. As janelas mantinham-se abertas, podendo eu ver homens a trabalhar num canteiro de hortaliças, e mais além muros altos e arame farpado. Eu estava muito calmo. Não havia sinetas de despertar nem guardas aos brados - de fato, não havia guarda nenhum. Eles temiam contágio e se mantinham à distância dos pacientes tanto quanto possível. Sendo assim, Tirgul-Ocna era administrada de longe e por negligência e indiferença tornou-se uma das prisões de menos rigor. Raramente se providenciava ou se fazia alguma coisa por nós. As roupas, que usávamos, eram as que tínhamos quando fomos detidos, emendadas e remendadas no decorrer dos anos com qualquer coisa que se pudesse encontrar.

Comida era levada por criminosos comuns até à porta da secção política, e daí conduzida às celas. Os que podiam andar iam receber sua ração; os demais a recebiam na cama. Consistia em sopa aguada de repolho, algumas vezes de legume ou um caldo ralo de cevada ou milho.

Alguns presos, em boas condições físicas, cavavam terra à roda do edifício. Os outros ficavam deitados em seus leitos de tábuas e passavam as horas a prosar. Na sala Quatro, no entanto, era diferente a atmosfera. Porque ninguém saía vivo de lá. Era conhecida como a "Sala da Morte".

Muitos morreram, no decurso dos trinta meses que lá passei, sendo seus lugares ocupados por outros. Há, porém, uma circunstância notável. Ninguém morreu ateu. Fascistas, comunistas, santos, homicidas, ladrões, padres, ricos proprietários de terras e os mais pobres camponeses eram metidos todos juntos numa pequenina cela. Entretanto nenhum deles morria sem fazer suas pazes com Deus e o próximo.

Muitos deram entrada na Sala Quatro como incrédulos de firmes convicções. Via a incredulidade deles sempre se desmoronar em face da morte. Eu ouvira dizer: "Se um gato atravessa uma ponte, isso não quer dizer que ela seja sólida; mas se um trem passa por ela, então é porque é sólida mesmo". Assim, pois, se alguém se diz ateu enquanto com a esposa se senta a tomar chá e a comer bolo, isso não é prova nenhuma de ateísmo. Uma convicção para ser genuína deve sobreviver a enorme pressão, e isto é o que não acontece com o ateísmo.

O velho Filipescu costumava recitar trechos de Shakespeare, a quem os apreciava, ou nos contava histórias de sua vida, para matar o tempo. Durante cinquenta anos fora revolucionário. A primeira de suas muitas prisões por agitação política deu-se em 1907. Mas em 1948 a Polícia Secreta foi no seu encalço: "Sofri pelo Socialismo antes de vocês nascerem", disse-lhes. Retorquiram que nesse caso ele devia ter aderido aos comunistas e partilhado dos frutos da vitória.

"Fiz ver àqueles moços: 'O Socialismo é um corpo vivo de dois braços - a Democracia Social e o Comunismo revolucionário. Decepe-se um deles e o Socialismo ficará aleijado'. Eles riram".

Filipescu foi sentenciado a vinte anos. Um guarda me disse: "O senhor vai morrer na prisão!" Respondi: "Não fui sentenciado à morte, por que então querem matar-me?"

Contou-nos que começara a vida como sapateiro, mas educara-se e aprendera a apreciar as coisas belas da vida. Aceitou os ensinos marxistas sobre a religião - que a igreja estava do lado dos opressores, que o clero era mantido pêlos ricos a fim de persuadir os pobres, que a recompensa deles receberiam no Céu.

Mas ninguém conhece as profundezas do seu próprio coração. Assim como tantos se julgam religiosos e não o são, assim alguns pensam que são ateus sem o serem. Filipescu negava a Deus, mas o que negava era apenas sua primitiva concepção dessa palavra, não as realidades do amor, da retidão e da eternidade.

Foi isso o que lhe sugeri.

"Creio em Jesus Cristo e O amo como o maior dos seres humanos", disse ele, "mas não posso pensar nele como Deus".

Sua condição piorava sem intermitências. Dentro de uma quinzena, após uma série de hemorragias, chegou ao fim. Pronunciou para mim, murmurando, suas últimas palavras: "Eu amo a Jesus". Naquela semana houve várias mortes, sendo ele jogado despido numa vala comum, cavada pelos presos.

O General Tobescu, ex-chefe do corpo degendarmes, disse de um canto em voz alta quando ouviu isso: "É esta a sorte que os socialistas ocidentais preparam para si, quando se fazem aliados dos comunistas".

O Abade Superior de Iscu, Tismânia, meu vizinho, benzeu-se. "Pelo menos podemos ser gratos por haver ele ido para Deus no final de tudo", disse calmamente.

O Sargento-mor Bucur discordou, do outro lado da sala. "Nada de sorte! Ele nos dizia que não podia pensar em Cristo como Deus".

Respondi: "Filipescu descobrirá a verdade, agora no outro mundo, porque amava a Jesus, que a ninguém rejeita. O salteador que no Gólgota se converteu e a quem Jesus prometeu o paraíso, chamou-o homem, apenas. Creio na Deidade de Jesus - e também no seu amor por aqueles que não podem vê-la".

Bucur não amava a ninguém, mas cultuava o seu conceito de Estado, ele próprio na qualidade de vice-rei da vila onde havia exercido sua justiça. Adorava contar a todo mundo como, sendo sargento da gendarmaria, tinha surrado ladrões e mendigos, espancado os próprios homens a seu serviço quando estes ousavam responder-lhe, e - especialmente, surrado judeus. "Não deixava marca nenhuma neles", dizia com orgulho. "Punha-lhes primeiro sacos de areia frouxa nas costas. Isso machucava e dói muito, mas eles não podiam queixar-se porque nada tinham a mostrar!"

Não podia entender por que fora deposto sob o novo regime. Estava pronto a dar sovas em anticomunistas com tanto gosto quanto outro qualquer no cumprimento do dever.

Conquanto muito doente, Bucur não queria admitir isso. Quando o Dr. Aldeã o examinava um dia, ele explodiu: "Por que estão me conservando aqui? Não tenho nada de doença. Não sou o que estes outros são!"

Aldeã olhou o termômetro, meneou a cabeça e disse: "Pelo contrário, você está muito pior que eles. Deve parar de discutir e pensar em sua alma!".

Bucur ficou irado: "Quem o senhor pensa que é?", exclamou depois que o médico saiu.

"Desconfio que Aldeã tem sangue de judeu", acrescentou - era a pior coisa que podia pensar de alguém.

Gostava de contender com Moisescu, um judeu baixinho, de meia-idade, cuja cama ficava junto à sua.

"A Guarda de Ferro sabia como tratar vocês", disse. "Você sabe", redarguiu Moisescu calmamente, "que fui preso na qualidade de membro da Guarda de Ferro?". O riso foi geral na sala, "Foi mesmo", protestou. "Após a Guarda de Ferro ter sido derrubada, era crime terrível possuir uma camisa verde, porque era considerada distintivo dela. Nós, judeus, perdemos tanto durante o seu domínio que cheguei a pensar: 'Eis uma oportunidade de voltar às nossas mãos alguma coisa do que perdemos. Vou comprar todas as camisas verdes que não foram vendidas, para tingi-las de azul e vendê-las'. Minha casa foi abarrotada de quantas camisas verdes havia em Bucareste. Foi quando a polícia apareceu para uma investigação. Não quiseram ouvir minhas explicações e assim fui classificado de Guarda de Ferro. E então aconteceu um judeus ser preso como simpatizante dos nazistas!"

Não obstante Bucur declara a plenos pulmões ser cristão militante, sua vida inteira foi uma luta com Deus. Ia à Igreja, mas não havia quem o orientasse. Os padres de sua aldeia não eram ministros de religião, senão mestres de cerimônias. Não podia compreender, agora, a razão de estar sofrendo e morrendo, nem qual a verdade que havia na fé.

Disse-lhe eu: "Você é de parecer, agora, que não há razão para esperança. Todavia o mais escuro da noite é o que se avizinha do nascer do sol. Os cristãos crêem que aurora vai raiar. A fé pode ser declarada em duas locuções:” ainda que o" e "mesmo assim". Lemos no Livro de Jó: "Ainda que o Senhor me mate, mesmo assim nele esperarei". Muitas vezes aparecem, correlacionadas na Bíblia, essas duas locuções. Ensinam-nos a ter fé nos momentos mais caliginosos".

Bucur sentia-se grato por alguém interessar-se no seu caso. Contudo não manifestava remorso algum pelas crueldades e maldades de outrora, até o dia em que viu que o Dr. Aldeã tivera razão. Sua vida declinava rápido. Disse com voz assustada: "Morro por meus pais".

Passou horas inconsciente. Voltando a si, declarou: "Quero confessar-me - diante de todos vocês. Tenho pecado tanto. Não posso morrer pensando nisso". Sua voz adquiriu uma calma estranha. Contou-nos como trucidara judeus em quantidade, agindo não para cumprir ordens, mas porque sabia que nunca seria castigado. Matara mulheres e um menino de doze anos. Tivera sede de sangue, como um tigre.

No fim de sua narração, murmurou: "Agora o Sr. Wurmbrand vai ter ódio de mim". Repliquei: "Não - você é quem odeia esta criatura que matava. Você a injuriou e repeliu de si. Não é mais aquele assassino. O homem pode nascer de novo".

Na manhã seguinte ele ainda vivia: "Não disse tudo ontem, tive medo", declarou-me. Atirara em crianças nos braços das mães. Quando a munição se acabava, esbordoava-as com cacete até morrerem. Sua história terrível parecia não ter fim, mas quando a deu por terminada caiu em prostração. Sua respiração era difícil e irregular. O peito arfava, como se lhe faltasse ar suficiente. Todos estávamos em silêncio. Suas mãos cerravam-se e se descerravam sobre o sujo lençol, e depois agarraram a pequena cruz que trazia ao pescoço. Da garganta vinha o ruído da agonia e logo após expirou.

Alguém chamou um preso no corredor. Dois homens entraram e levaram o corpo de Bucur. O sol matinal penetrou pelas janelas, alumiando-lhe o rosto, mas agora que os olhos estavam fechados e os traços rígidos da boca se haviam relaxado, sua feição cadavérica tinha uma expressão de profunda paz, que nunca na vida ele houvera conhecido.

Presos de outras salas do hospital vinham muitas vezes à Sala Quatro a fim de passar a noite conosco, prestando auxílio aos moribundos e os confortando.

Pela Páscoa um amigo levou alguma coisa enrolada num pedaço de papel para Valeriu Gafencu, um ex-soldado de cavalaria da Guarda de Ferro, Ambos procediam da mesma cidade. "Trouxe isto escondido", disse. "Abra!”

"Gafencu desembrulhou. Eram dois torrões de uma substância alvíssima açúcar! Já fazia anos que nenhum de nós via pedaços de açúcar. Nossos corpos depauperados ansiavam por aquilo. Todos os olhares caíram em Gafencu e na presa que ele sustinha nas mãos. Devagar embrulhou de novo.

"Ainda não vou comê-lo", disse. "Alguém pode estar em piores condições do que eu durante o dia. Mas, agradeço-lhe".Colocou o presente com cuidado ao lado da cama, onde ficou. Poucos dias depois minha febre subiu, enfraquecendo-me muito. O açúcar foi passado defuma cama para outra até que parou na minha.

"É um presente", disse Gafencu. Agradeci-lhe, mas deixei o açúcar intacto, para o caso de alguém precisar dele mais do que eu no dia seguinte. Quando minha crise serenou, dei-o a Soteris, o mais idoso de dois comunistas gregos, cujo estado era grave.

Durante dois anos o açúcar passou de mão em mão na Sala Quatro (e duas vezes esteve comigo); cada vez o paciente tinha forças de resistir a ele. Soteris e Glafkos eram guerrilheiros comunistas, que fugiram para a Roménia ao fim da guerra civil na Grécia. Foram detidos, como outros muitos dos seus camaradas, por serem maus combatentes. Agora não se cansavam de blasonar das suas proezas, antes que a maré da luta se voltasse contra eles. Assaltaram os famosos mosteiros do monte Atos, pilhando o que puderam levar e destruindo o que não levaram. Não se permitia a presença de mulheres no monte, e muitos dos 2.000 monges não as viam já fazia anos. "Levamos conosco um grupo de moças guerrilheiras", adiantou Soteris. "Vocês precisavam ver como aqueles marmanjos dispararam a correr!"

Soteris orgulhava-se do seu ateísmo, ao passo que pilheriava e tinha esperança de viver: mas à aproximação da morte, clamava a Deus por auxílio. Só a voz sumida do padre, a prometer-lhe o perdão celestial, podia sossegá-lo. Também ele, depois, encontrou grande força moral para renunciar aos dois pedaços de açúcar.

Seu corpo foi preparado para a sepultura por um preso de fora, que muitas vezes foi ajudar-nos. Era conhecido, respeitosamente, como "Professor", sendo Popp o seu nome. Raramente seu vulto de homem ilustrado, ombros baixos, aparecia desacompanhado de alguém que dele recebia lições de história, francês ou outra matéria.

Perguntei-lhe certa vez como conseguia haver-se sem material de escrita. Explicou: "Esfregamos um pedaço de sabão numa mesa e depois riscamos as palavras com a unha". Admirando-me de sua tenacidade, seus inocentes olhos azuis brilharam: "Eu costumava pensar que ensinava para viver. Na prisão aprendi que ensino porque amo os meus alunos!"

 

"O senhor tem vocação, como os padres dizem". "Bem, replicou, "aqui descobrimos o que valemos".

Ao perguntar-lhe se era cristão, pareceu embaraçado. "Pastor, tenho tido muitas decepções. Na minha última prisão em Ocnele-Mari, a igreja foi transformada em armazém. Pediram que alguém fosse derrubar a cruz da torre. Ninguém ligou. Por fim um padre voluntariamente atendeu ao pedido".

Disse-lhe que nem todos quantos recebem ordens sacras têm coração sacerdotal; nem todos quantos se têm chamado cristãos são discípulos de Cristo no verdadeiro sentido do termo. "O homem que vai ao barbeiro para barbear-se, ou encomenda roupa ao alfaiate não é discípulo dele, e sim freguês. Assim, quem se chega ao Salvador somente para ser salvo é cliente dele, não seu discípulo. Discípulo é aquele que diz a Cristo: "Como anseio realizar uma obra igual à tua! Ir de lugar em lugar expulsando o medo, e em substituição deixando alegria, verdade, consolo e vida eterna!"

Popp sorriu. "Mas que diz daqueles que se tornam discípulos na undécima hora? Tenho-me intrigado em ver tantos ateus convictos virarem crentes no fim".

Observei-lhe que nossas mentes não operam sempre no mesmo nível. "Um gênio pode conversar asneiras às vezes, ou brigar com a esposa, mas não é julgado por essas ações. Devemos respeitar nossas mentes, como à dele, quando operam no máximo de sua autenticidade - quando lutam por encontrar uma saída em momentos de crise suprema. Quando a mente se vê forçada a atravessar o desfiladeiro da morte é que a fachada de ateísmo quase sempre rui por terra".

"Como admitir que um homem qual o Sargento Bucur chegue a desejar com ardor confessar seus crimes de público?"

Respondi: "Já morei perto de uma estrada de ferro, mas nunca notei os trens durante o dia por causa do barulho da cidade. À noite, entretanto, ouvia bem distintamente os apitos. Assim é que a gritaria e alvoroço da vida podem fazer-nos surdos à voz mansa da consciência. Quando a morte se aproxima no silêncio da prisão, onde não há distrações, é que ouvimos a voz nunca antes ouvida".

O Abade interveio: "Na minha última prisão, em Aiud, havia um pobre homicida em confinamento solitário. Passava a noite a se levantar e bradar: Quem está na cela aí junto? Por que não para de bater na parede"."E parou?" indagou Popp. "Na cela junto não havia ninguém".

"Vou rematar com mais uma", disse Moisescu interrompendo. "No lugar em que por último estive, havia um Guarda de Ferro que tinha assassinado um rabino. Sentia e estava certo que o rabino montava nos ombros dele e lhe metia esporas nas ilhargas".

Não tendo forças para me banhar, o professor Popp tomou a si essa tarefa. Perguntei-lhe se havia chuveiros lá para os outros lados da prisão, onde ele estava. "Sim!" respondeu. "Na República Popular da Romênia temos as mais modernas instalações. Só que não funcionam! Os chuveiros não têm visto água já faz anos". Empertigou-se e continuou:

"O senhor já ouviu contar do comunista e do capitalista que morreram e se encontraram no Inferno? Viram eles lá dois porões. Em um estava o aviso "Inferno Capitalista" e no outro, "Inferno Comunista". Apesar de os dois homens serem de classes inimigas, começaram a raciocinar juntos para decidir qual dos infernos era o melhor. O comunista disse, "Camarada, entremos no departamento comunista. Lá, quando há carvão não há fósforos. Quando há fósforos não há carvão. E se acontece haver carvão e fósforos, a fornalha enguiça!"

O Professor continuou a banhar-me enquanto os outros riam. Aristar, que era fazendeiro, disse: "Os primeiros comunistas foram Adão e Eva".

"Por quê?", perguntou o obsequioso Popp. "Por que não tinham roupa nem casa e tiveram de dividir entre si uma maçã só - e ainda se julgavam no paraíso".

As piadas e histórias que contavam faziam-nos bem. Homens que passavam o dia inteiro deitados, só a pensar na sua miséria, tinham como obra de misericórdia alguém para ajudá-los a esquecer aquilo. Eu conversava muitas vezes durante horas a fio, embora doente e tonto de fome: uma história, como um pedaço de pão, podia segurar a vida de qualquer um. Quando Popp insistia comigo para que me poupasse, eu dizia que ainda sentia bastante disposição para mais uma anedota naquela manhã.

O Talmude conta-nos que um rabino passeava na rua, quando ouviu a voz do profeta Elias, a dizer: "apesar de você jejuar e orar, nunca mereceu o lugar elevado no Céu que está esperando por aqueles dois homens lá do outro lado da rua". O rabino correu para os forasteiros, perguntando-lhes: "Os senhores dão muito para os pobres?"

Eles riram: "Não, nós somos mendigos".

- Então os senhores oram continuamente, não é?

- Não. Somos ignorantes. Não sabemos orar.

- Digam-me então o que fazem.

- Dizemos gracejos. Fazemos pessoas rir, quando estão tristes.

Popp olhou com surpresa: "Está-nos dizendo que os que fazem os outros rir podem ter maior honra no Céu do que aqueles que jejuam?"

"É isto o que ensina o Talmude, que é um livro sapiencial judaico. Entretanto podemos também ler na Bíblia - no salmo dois - que Deus algumas vezes ri".

Popp observou, enquanto me ajudava a vestir roupa: "Ele aqui não acharia muito do que rir - mas onde Deus está, pastor, e por que não vem em nosso auxílio?"

Respondi: "Houve um pastor que foi chamado a ver um moribundo. Encontrou a mãe procurando consolar uma filha que chorava. A moça indagou: 'Onde está o braço protetor de Deus, a que o senhor se refere quando prega, pastor?” Replicou-lhe: "Está no seu ombro, sob a forma do braço de sua mamãe".

"Cristo está conosco de muitos modos na prisão. Primeiro, pode ser visto em nossos médicos crentes, que são castigados e maltratados, mas continuam ajudando-nos. Alguns funcionários médicos em Vacaresti também fizeram entrar lá remédios secretamente, e por isso ganharam dez anos de cadeia".

"Segundo, Cristo está aqui na pessoa dos padres e pastores que trabalham para suavizar a carga dos demais, e na pessoa de todos os cristãos que fornecem alimento, roupa e ajuda aos que estão em piores condições do que eles. Terceiro, Ele está conosco na pessoa dos que ensinam a seu respeito e também na dos que contam histórias. E o senhor tem Cristo ao seu lado não só através dos que lhe prestam serviço como também sob a forma daqueles a quem o senhor possa servir".

"Diz-nos Jesus que, no Juízo Final, Deus vai separar os bons dos maus, colocando-os à sua direita e à esquerda. Jesus dirá aos da direita:” Vinde, possuí o reino que vos está preparado desde da fundação do mundo, porque tive fome e me destes de comer; era estrangeiro e me fostes ver; nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; estive na prisão e me procurastes “. Os bons perguntarão:” Senhor, quando foi que fizemos tudo isso?”Cristo responderá:” Quando o fizestes ao menor dos meus irmãos, a mim o fizestes .”

Gafencu passara toda a sua vida adulta na prisão, mas à semelhança de outros membros da Guarda de Ferro, conquistados a fé cristã, não podia fazer o bastante que compensasse os erros passados. Todos os dias ele dava o exemplo de pôr à parte um pouco de sua magra ração para ajudar na alimentação dos mais fracos do nosso meio. Seu anti-semitismo ficara para trás, e quando alguns dos seus velhos amigos fascistas iam visitá-lo na Sala Quatro, saía-se de repente com a observação que os escandalizava:

"Eu gostaria de ver o país governado unicamente por judeus".

Seus camaradas fitavam-no horrorizados. "Sim", continuava Gafencu calmamente. "O Primeiro Ministro, legisladores, funcionários públicos - todos. Só imporia uma condição. Que fossem eles homens como os antigos governantes judaicos, como José, Moisés, Daniel, S. Pedro, S. Paulo e Jesus mesmo. Porque se sobre nós tivermos outros judeus da marca de Ana Pauker, a Romênia estará liquidada".

Gafencu fora preso contando dezenove anos. Passou a sua mocidade sem nunca conhecer uma moça. Quando outros conversavam sobre sexo, perguntava: "Que é isso?" Contou-me um dia: "Meu pai foi deportado da Bessarábia pelos russos. Não tivemos nunca o bastante para comer. Eu era castigado na escola, depois fui posto na cadeia por fugir e alistar-me na Guarda de Ferro. Nunca estive com uma só pessoa boa, de confiança e amável. Dizia a mim mesmo:” O que se diz de Cristo não passa de lenda. Não existe hoje no mundo ninguém com ele parecido, e não acredito que já houve “. Mas passados que foram poucos meses na prisão, tive de admitir minha falta de razão. Estive com homens doentes que davam a outros sua última fatia de pão. Numa cela vivi com um bispo de tanta bondade, que tinha a impressão de que o contato da roupa dele podia curar". Gafencu passou um ano na Sala Quatro, e todo esse tempo não podia deitar-se de costas, o que o fazia sofrer muito. Precisava ser apoiado de contínuo. Cada dia que passava era menor sua capacidade de governar o corpo, muitas vezes atendendo na cama suas necessidades. A seguir tinha de esperar, algumas vezes à noite durante horas, que alguém fosse fazer limpeza.

Pacientes mais fortes, da outra parte do presídio, tinham de se encarregar dos que não podiam tomar conta de si, lavando camisas, roupas de baixo, fronhas, algumas vezes vinte lençóis por dia, embora para isso tivessem de quebrar o gelo no pátio para encontrar água. O que era meu sempre estava rijo de pus e sangue, mas quando procurava impedir que um amigo o lavasse, ele se zangava.

Gafencu nunca se queixava. Sentava-se em silêncio na cama, algumas vezes movendo a cabeça de leve em sinal de afirmação ou de agradecimento. Quando se veio, a saber, que não ia viver muito, seus amigos, velhos e novos, rodearam-lhe o leito com lágrimas nos olhos. Suas últimas palavras foram: "O Espírito de Deus deseja-nos para si com afeição extrema".

Quando faleceu, os outros ajoelharam-se e oraram. Eu disse: "Jesus nos afirma que se uma semente não cai na terra e não morre, nenhum fruto poderá produzir, e que assim como a semente renasce em bela flor, assim o homem morre e seu corpo mortal se renova em corpo espiritual. E o seu coração, que chegou a encher-se dos ideais do Cristianismo, com certeza dará fruto".

Depois que um padre pronunciou uma oração. Gafencu foi envolvido no seu lençol e levado para a sala mortuária. À noite foi sepultado numa vala comum por criminosos sentenciados, aos quais cabia sempre aquela tarefa.

Levas de novos presos foram chegando sempre mais a Tirgul-Ocna, os quais nos puseram a par de fatos que estavam ocorrendo lá fora, parecendo-nos às vezes que nós, naquele presídio, dificilmente estaríamos em piores condições do que os “livres" operários e camponeses. Os salários nunca foram tão baixos. Proclamou-se que o dia de trabalho seria de oito horas, mas podiam-se trabalhar doze, sendo essa a diária "normal", e depois, o trabalho "voluntário" e preleções marxistas consumiam o resto do tempo que se podia dedicar à vida no lar; em qualquer caso, todo apartamento abrigava duas ou mais famílias.

Greves eram ilegais. Um recém-chegado, idoso e torto, antigo membro do sindicato de trabalhadores, de nome Bons Matei, disse-me: "Faz quarenta anos que fui preso por lutar a favor da jornada de trabalho de oito horas, e agora que o governo é comunista trabalho quatorze horas na prisão". Seu crime consistiu em escrever uma carta anônima ao Camarada Gheorghiu Dej, chefe do Partido, protestando a favor dos seus companheiros de trabalho e contra a grave condição deles, e dizendo que, em qualquer Estado capitalista, eles teriam o direito de negar-se ao trabalho. A Polícia Secreta foi ao seu depósito de material rodante e apreendeu exemplares de caligrafia dos 10.000 operários. Após semanas de investigação, Boris foi acusado de procurar fomentar uma greve, recebendo quinze anos de cárcere por tentativa de sabotagem.

Continuou ele firme no seu credo marxista. Não simpatizava com os grupos dissidentes que, com ele, deram entrada na cadeia: maçons, rotarianos, teosofistas, espíritas. Nem tinha pena dos poetas e novelistas que tinham sido trancafiados por seu descortino independente: foram por seu turno convocados ao Q.G. do Partido para receber suas ordens, devendo eles fazer outra coisa melhor que correr atrás do fogo-fátuo de verdades objetivas.

Boris argumentou que Lenin havia frisado em seus livros a importância de se encontrar na vida um ponto de vista a que se devia apegar. "A linha de conduta do Partido?" Perguntei. "Mas sua doutrina inverte todos os conceitos filosóficos. Se da minha cama contemplo a cela, vejo só a janela. Se olho de onde o senhor está sentado, vejo a porta. Se fito o chão, a sala não tem teto. Cada ponto de vista é em verdade um ponto de cegueira, porque nos incapacita de maneira total para enxergarmos outros pontos de vista. Somente quando abandonamos todos os "pontos de vista" e aceitamos nossa intuição do conjunto é que encontramos a verdade. S. Paulo diz: "O amor crê tudo" - não só o credo deste ou daquele grupo.

Mas falar em religião era provocar raiva em Boris. "Não há Deus nenhum, nem alma nenhuma! Só existe matéria. Desafio o senhor a que me prove o contrário".

Respondi que ele devia extrair seus argumentos de um livro de texto comunista, no qual eu via a seguinte definição de beijo: "Beijo é a aproximação de dois pares de lábios, transmitindo eles um ao outro micróbios de dióxido de carbono". "O amor, o desejo ardente, ou a falsidade que o beijo pode representar, isso não tem lugar na filosofia dos senhores. Esse esgotamento dos valores espirituais afeta o lado material da vida, isso que os senhores consideram de toda importância. Arranca dos operários o coração, de sorte que a qualidade inferior dos produtos de países comunistas tem-se tornado proverbial".

Boris interveio: "Conheço o dito de ter sido o descanso feito para o homem, não o homem para o descanso, porém todos existimos para beneficiar o Estado. A perda da liberdade individual e da propriedade privada são passos que levam” a liberdade universal “.

Eu pensei que até um cachorro luta com alguém que tente arrebatar-lhe o osso que tem, mas se uma sentença de quinze anos não curara Boris de suas ilusões, argumentar com ele provavelmente não adiantava. Ele também podia ser um da mais recente safra de informantes. As informações delatórias tinham-se espalhado como praga. A pessoa podia ser denunciada por falar em Deus ou orar alto; até por aprender ou ensinar uma língua estrangeira. Acontecia muitas vezes que o dedo delatório era de um amigo, dentro ou fora da prisão, de um filho, pai, esposa ou esposo. A pressão exercida para que se denunciasse era forte e cruel. De fato, o informante era provavelmente uma ameaça pior aos homens "livres" do que aos que jaziam atrás das grades. Na Sala Quatro falávamos mais livremente do que era possível acontecer em qualquer outra parte da Romênia, de vez que todos lá nos encaminhávamos para a morte.

Chegou o aniversário dos "dez dias que abalaram o mundo" a revolução russa do mês de novembro de 1917 - e o Professor Popp comemorou o fato com uma anedota. No primeiro aniversário da vitória do Bolchevismo, disse ele, os novos governantes realizaram uma caçada nas florestas perto de Moscou. Lá pelas tantas repousaram junto a uma fogueira e Lenin perguntou: "Digam-me, camaradas, o que é que vocês consideram o maior prazer da vida?" "A guerra", disse Trotsky. "Mulheres", acudiu Zinoviev.

"A oratória - a força de manter vasta multidão presa aos nossos lábios", disse Kamenev por sua vez. Stalin, como sempre, ficou taciturno, mas Lenin insistiu: "Diga-me a sua opinião!" Por fim, Stalin falou: "Nenhum de

vocês sabe o que é um verdadeiro prazer. Vou dizer: É odiarmos uma pessoa e durante anos fingir que a estimamos, até que um dia ela reclina confiantemente a cabeça no nosso peito. Nesse ponto cravamos-lhe um punhal nas costas. Não há na vida maior prazer do que este!"

Fez-se longo silêncio. Já por essa época conhecíamos algo da crueldade de Stalin: o resto, revelado depois de sua morte por seus próprios companheiros, provou a veracidade dessa história arrepiante.

 

 TERCEIRA PARTE

 

Por algum tempo veio a falar-se assustadoramente de um sistema de "reeducação" de prisioneiros, que se adotava nas penitenciárias de Suceava e Piteshi. Tal sistema dispensava livros, mas empregava açoites. Os mestres eram de ordinário vira-casacas da Guarda de Ferro, que formavam uma "organização de prisioneiros de convicções comunistas" (PCC). Ouvíamos referir os nomes de Turcanu, Levitkii e Formagiu, como sendo os organizadores desses grupos. Ao que se dizia, eles se portavam como selvagens.

Temíamos que esse processo fosse adotado entre nós, mas Boris chacoteava. Não podia crer que seus ex-companheiros esquerdistas viessem a permitir atrocidades.

Disse: "Eles sabem que 'o terror nunca extirpou ideias pelas raízes'. Foi o que Karl Kautsky, o pensador Social Democrata, escreveu no início da revolução russa".

Retorqui: "Sim lembro-me do que Trotsky, que foi Ministro da Guerra, respondeu: 'Sr. Kautsky, o senhor não sabe qual o terror que vamos pôr em prática". É uma ironia que as próprias ideias de Trotsky fossem desarraigadas efetivamente pelo terro­rismo na Rússia quanto o foi o Capitalismo".

O Abade interveio: "Temo que terror e tortura, praticados impiedosamente e por longo tempo, esmaguem a resistência de qualquer pessoa, a menos que Deus opere um milagre".

"Não creio em milagres", disse Boris: "Podemos passar sem eles, obrigado. Nada ainda abalou minhas convicções”.

A atmosfera no presídio piorou depois de uma breve visita de Formagiu, líder da "reeducação" em Piteshi, trazendo ele instruções para inaugurar o sistema entre nós. Até então, embora os suplícios ocorressem na maior parte do dia, sabia-se que cedo ou tarde os guardas se afastavam para comer ou dormir. Agora os "prisioneiros de convicções comunistas" vieram ficar conosco. Tinham o poder de espancar e intimidar à vontade, possuindo para isso cassetetes de borracha. Tinham sido escolhidos a dedo pelas autoridades dentre os piores prisioneiros e os mais violentos, sendo que não havia um grupo de dez ou vinte homens do PCC, e o número destes crescia sem parar. Os que se declarassem prontos a tornarem-se comunistas tinham de provar sua conversão, "convertendo" outros de modo igual.

Grosseira violência era realçada por períodos de mais apurada crueldade, sob supervisão médica para que os presos não morressem. Acontecia muitas vezes que médicos eram PCCs. Conheci um Dr. Turcu que, depois de examinar um companheiro de cela, aconselhava uma pausa, dava no homem uma injeção para aumentar-lhe a resistência e dizia aos reeducadores quando deviam recomeçar. Era Turcu quem decidia quando o homem chegava ao limite de resistência e podia ser jogado de volta na sua cela até ao dia seguinte.

Uma onda de loucura varria a prisão. Os pacientes tuberculosos eram despidos, deitados na laje fria e molhados com baldes de água gelada. Lavagem (comida de porco) era atirada ao chão na frente de presos que por vários dias não tinham visto comida; com as mãos atadas às costas eram forçados a lamber aquilo. Nenhuma humilhação, por mais vil que fosse, era dispensada. Em, muitas penitenciárias os valentões PCCs faziam presos engolir excremento e beber urina. Alguns choravam e suplicavam que pelo menos lhes desse o excremento deles próprios e não de outros. Alguns enlouqueciam e passavam a gritar por mais. Sentenciados eram levados a praticar de público atos de perversão sexual. Nunca imaginei que tais maneiras de levar a ridículo o corpo e a alma fosse possíveis.

Os que se apegavam à sua fé eram os que mais sofriam maus-tratos. Cristãos eram atados em cruzes durante quatro dias e diariamente as cruzes eram colocadas no chão. Mandava-se então que outros presos defecassem nos rostos e corpos deles. Depois disso as cruzes eram de novo levantadas.

Um padre católico, levado à Sala Quatro, contou-nos que na prisão de Piteshi, num domingo, fora empurrado para dentro da fossa sanitária, recebendo ordem de dizer a Missa sobre excremento e dá-lo aos demais presos em comunhão.

"O senhor obedeceu?" perguntei.

Ele cobriu o rosto com as mãos e chorou: "Sofri mais do que Cristo", afirmou.

Tais coisas se faziam com o incentivo dos administradores da prisão, e ordens vindas de Bucareste. Turcanu, Formagiu e os outros especialistas eram levados de uma prisão a outra para recrutarem PCCs e desse modo não deixarem que a campanha esfriasse. Líderes do Partido, até homens do Comitê Central, como Constantino Doncea e o Sub-Secretário do Ministério do Interior, Marin Jianu, foram observar aquela brincadeira macabra. Boris, que trabalhara com Jianu, rompeu pelo meio dos guardas para protestar, mas se Jianu chegou a reconhecer o seu ex-coleganão quis admitir aquela manifestação. "Não interferimos quando um porco ataca outro!" disse; noutras palavras, o Partido nada tinha a ver com os torturadores, mas permitia que torturassem. "Leve-o daqui", disse Jianu. Boris foi surrado até que em gritos pediu misericórdia.

O velho combatente sindicalista ficou de todo abatido. Exposto a humilhações e tortura dia e noite algo nele se consumiu. Rastejava para beijar as mãos de quem o surrava. "Obrigado, camarada", dizia. "Você me trouxe para a luz". E passava a tagarelar em torno das alegrias do comunismo, e como se tornara ele criminoso em persistir no erro. Depois de um colapso daquele, seu respeito próprio exigia dele um revezamento total de lealdade; do contrário pareceria ridículo aos seus próprios olhos. Boris aderiu ao grupo PCC. Um dos primeiros em que ele empregou seu cassetete foi o Dr. Aldeã.

O sistema de reeducação - importado da Rússia - produziu resultados incríveis. Vítimas deixavam escapar segredos que haviam guardado durante meses de interrogatório. Denunciavam amigos, esposas, pais. Daí a onda de milhares de novas prisões.

Por esse tempo um grupo de doentes das minas de chumbo foi trazido para uma cela especial em Tirgul-Ocna. A esses juntaram-se outros presos que, vendo serem padres alguns dos recém-chegados, confessaram-se e deste modo ganharam a confiança deles. Os homens procedentes das minas falavam livremente de suas secretas atividades religiosas e políticas. Depois foram removidos para uma cela maior, a fim de serem reeducados - e aí souberam que tinham estado a conversas com delatores.

Um deles foi levado contundido e sangrento para a Sala Quatro. Contou-nos que o "reeducador" em serviço era um jovem possante, de sorriso franco, que passava todo o tempo a grace­jar. "Isto dói?" perguntava. "Que pena!" Vamos experimentar outra coisa. Já gozou isto?". "Se eu pudesse agarrar aquele sujeito um dia", exclamava a vítima, "eu o esfolaria vivo". "Pois não", fremiu o velho fazendeiro Badaras. "E por cima sal e pimenta, sem falta!" Badaras recitava diariamente uma prece: "Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ó Deus, destrói os comunistas, faze-os sofrer, fere esses porcos!"

"Por que diz isso?" perguntei-lhe. "Não é de se esperar tal coisa de um cristão".

De punhos cerrados para o Céu, imprecava: "Digo isso porque Deus não há de receber no paraíso quem não amaldiçoar esses bastardos!"

Muitos, como Badaras, viviam a pensar como poderiam torturar os seus torturadores; acreditavam no Inferno somente para poder fritar nele os comunistas.

"Não devemos dar largas ao ódio", dizia eu. "Esses homens, como Boris, sucumbiam sob terrível pressão".

Boris no entanto era agora um assunto que irritava e pungia na Sala Quatro. A tentativa de provar sua conversão ao comunismo com o espancamento do Dr. Aldeã - que não escondia o desprezo que voltava a Tuircu e aos outros médicos PCCs - fez dele, Boris, um dos homens mais odiados na prisão. Aldeã sofria muito com uns furúnculos que tinha nas costas e nos ombros, pois Boris espancou-o exatamente nas costas. Presos teriam dado a vida por Aldeã, que a eles estava dando a sua. Depois da surra, o médico foi ocupar um leito na Sala Quatro. Após isto chegou alguém para dizer que um preso gravemente enfermo pedia a presença dele.

"O médico não pode andar, de tão doente que está!", disse o Abade. Aldeã perguntou: "Quem é ele?" "Boris", foi a resposta. Aldeã desceu penosamente do leito e ninguém lhe disse nada ao sair ele da sala.

O Abade Iscu falou algumas vezes de suas experiências nos acampamentos de escravos do canal Danúbio - Mar Negro, onde milhares morriam de maus-tratos e fome. O canal tinha sido começado a instigações da Rússia - de vez que ajudaria a escoar da Romênia os seus produtos com maior rapidez do que já vinha sendo feito e também por ser ele um projeto que prestigiaria nosso Governo. Era um plano gigantesco e de tal forma se tornara um símbolo das realizações comunistas, que, advertindo um grupo de engenheiros que não era provável que o rio viesse a suprir bastante água que desse para o canal e ainda para a rede de irrigação, eles foram fuzilados como "sabotadores da economia" do país. Os recursos da Romênia foram aplicados prodigamente na execução do projeto, e mais de 200.000 prisioneiros, tanto políticos como de crimes comuns, trabalharam nele de 1949 a 1953.

O Abade fora parar na Poarta Alba, uma das colónias penais ao longo da rota do canal. Vivendo em barracas desengonçadas, atrás de cerca de arame, 12.000 pessoas tinham, cada uma, de remover à mão oito metros cúbicos de terra por dia. Empurravam carrinhos de mão por ladeiras íngremes, sob as pancadas dos guardas. A temperatura no inverso chegava a 25 graus Celsius abaixo de zero, e a água, levada em barris, gelava. As doenças eram frequentes. Muitos presos penetravam em áreas proibidas ao redor do acampamento na esperança de serem fuzilados.

Os criminosos mais violentos ficavam encarregados de "brigadas", cada uma de mais ou menos cem presos, e recebiam, pelo que produzissem, pagamento em comida ou cigarros. Os cristãos eram agrupados na chamada "Brigada dos Padres"; bastava que aí alguém fizesse o sinal da cruz - ação reflexa entre os ortodoxos - para levar pancada. Não tinham dia de descanso nem Natal nem Páscoa.

Entretanto em Poarta Alba, informou o Abade, ele testemunhou as mais nobres ações. O jovem padre católico Cristea incorreu no ódio de um padre ortodoxo feito delator, que lhe perguntou: "Por que você fecha  tanto os olhos? É orando? Desafio que me diga a verdade: você ainda crê em Deus?"

Responder "sim" significaria no mínimo levar umas chicotadas.

O Padre Cristea ponderou-lhe: 'Sei, Andreescu, que você me tenta como os fariseus tentaram a Jesus, a fim de me acusar. Mas Jesus disse-lhes a verdade e é o que lhe digo. Sim, creio em Deus".

"Bem! Crê também no Papa?" prosseguiu Andreescu.

Andreescu foi apressado ao oficial político, que veio e chamou o jovem diante dos demais. Cristea estava magro e exausto: tremia de frio na sua roupa esfarrapada. O oficial, bem nutrido, envolto no seu casacão e usando um chapéu de pelica russa, foi dizendo: "Ouço contar que você crê em Deus".

O Padre Cristea abriu a boca para responder, e nesse instante alguém podia entender por que está escrito no Evangelho segundo S. Mateus, que Jesus "abria a boca" para proferir suas parábolas - uma coisa estranha por certo, visto como ninguém fala de boca fechada. E aí estava Cristea com os lábios só semi­abertos para falar, mas todos sentiam que uma pérola preciosa ia escapar de sua boca naquele momento decisivo. Os cristãos presentes ficaram cheios de pasmo.

Disse ele: "Quando fui ordenado, sabia que milhares de padres, através da história, tinham pago com a vida a sua fé. E sempre que subia ao altar, prometia a Deus: "Agora eu vos sirvo como estes belos paramentos, mas ainda que me trancassem em prisão eu ainda vos serviria". E assim pois, tenente, prisão não é argumento contra a religião. Eu creio em Deus".

O silêncio que se seguiu era quebrado apenas pelo ruído do vento. O tenente parecia procurar o que dizer sem achar. Por fim disse: "E você crê no Papa?" Veio a resposta: "Sempre tem havido Papas desde S. Pedro. E até que Jesus volte os haverá sempre. O atual Papa não procurou fazer paz com os comunistas, nem disso cogitarão os seus sucessores. Sim, acredito no Papa!"

O Abade terminou sua história, dizendo: "Achei difícil perdoar meu irmão ortodoxo que se fizera delator, e não sou adepto de Roma absolutamente, mas naquele instante foi como se gritasse Viva o Papa!"

"Que aconteceu ao Padre Cristea?" Alguém indagou. "Foi trancado uma semana na gaiola, onde se fica de pé e não se dorme; depois foi açoitado. Recusando-se a negar sua fé, desapareceu das vistas. Nunca mais o vimos".

A reeducação reclamava novas vítimas todos os dias e a impressão cada vez maior era que a menos que se fizesse alguma coisa todos acabaríamos "convertidos" ou mortos. À Sala Quatro chegou o rumor de que uma espécie de protesto estava-se preparando entre os presos comunistas, que eram os mais brutais de nosso meio: os guardas estavam mais prevenidos com eles, porque os que hoje estavam presos, ontem estiveram no poder e poderiam voltar a ele amanhã.

Os cristãos debatiam o que iam fazer: se houvesse um motim, dar-lhe-iam sua adesão? Ou estavam eles no caso de "oferecer a outra face"? Vários presos eram de parecer contrário a uma luta. Eu disse: "Costuma-se pintar Jesus como “manso e humilde" - mas Ele também foi um combatente. Expulsou os vendilhões do templo com um azorrague e aos seus primeiros seguidores apresentou como diretriz o Velho Testamento com o seu fogo e violência".

Decidimos cooperar com os rebeldes. Pouco podia ser feito em sigilo por causa dos muitos delatores no nosso meio e as desconfianças que havia entre anti-semitas e judeus, entre camponeses e donos de terras, entre ortodoxos e católicos.

Na cidade de Tirgul-Ocna, a única distração que havia era um jogo semanal de futebol, num estádio junto à prisão. No dia primeiro de maio, que coincidiu com uma explosão selvagem de reeducação, ouvimos que um jogo comemorativo do Dia do Trabalho ia realizar-se no estádio às 17 horas e que a cidade em peso estaria presente. Era uma oportunidade que tínhamos de fazer uma demonstração. O sinal seria o despedaçamento de uma janela.

Logo depois que o jogo começou ouviu-se um tilintar de vidro que se quebrava, e então o presídio inteiro explodiu o alvoroço. Janelas eram espatifadas. Pratos e canecos eram atirados fora com violência. Quebravam-se cadeiras. Alguém começou a cantar: "Ajudem-nos! Ajudem-nos!" Das janelas mais acima, que davam para o estádio, homens gritavam: "Somos torturados aqui! Seus pais, irmãos e filhos estão sendo assassinados!"

O jogo chegou ao fim. A multidão debandou e logo centenas de pessoas se postaram na estrada ao pé do muro. Dentro, um dos presos cortou os pulsos e os guardas começaram a zurzir com cacetetes. Os grupos na rua foram dispersados rapidamente por tropas a coronhadas. Restava a tarefa de pôr em ordem o presídio e apurar os estragos e acidentados. Entre eles estava Boris, que foi jogado ao chão a socos e ferido gravemente ao procurar socorrer outro preso que estava sendo pisoteado pelos guardas. Outra vez o Dr. Aldeã teve de atendê-lo. Mandamos recados amistosos, mas não houve resposta. Depois soubemos que ele fora removido para outra penitenciária.

Notícias do motim espalharam-se rapidamente pelo país. Não houve represálias imediatas; apenas o regime passou a ser mais severo. Os suspeitos de serem cabeças-de-motim foram removidos para outras prisões; privados da assistência médica que tinham em Tirgul-Ocna, muitos deles morreram.

O Abade Iscu veio a ter maiores acessos de tosse todos os dias. Seu corpo, gasto por anos de inanição e exposição às intempéries no canal, era atormentado por crises terríveis. Ficávamos deitados a vigiá-lo nas vascas da morte. Algumas vezes não reconhecia amigos que iam ajudá-lo. Quando ficava consciente, passava horas a murmurar orações, e sempre tinha palavras de conforto para os demais.

Outros sobreviventes do canal tinham chegado a Tirgul-Ocna. O que relatavam dos seus horrores soava como a notícia da escravidão dos israelitas no Egito, com a amargura adicional de terem os oprimidos de louvar os seus opressos. Um famoso compositor, entre os presos, fora forçado a escrever hinos de exaltação a Stalin, e ao som dos mesmos as brigadas marchavam para o trabalho.

Certa vez um homem teve síncope e um médico deu-o por morto. O Coronel Albon, o odiado comandante de Poarta Alba, bradou: "Porcaria!" Deu com o pé no cadáver. "Ponham-no a trabalhar!"

Meu leito ficava entre o do Abade e o do jovem Vasilescu, que (era uma vítima de espécie diferente do canal. Este era um criminoso comum que tinha sido encarregado da Brigada dos Padres. Fizera-a trabalhar até que todos sucumbiram. Mas por alguma razão o Coronel Albon começou a ter-lhe aversão, sendo ele tratado por seu turno com tanta brutalidade que também se avizinhava da morte. Sua tuberculose estava bem adiantada.

Vasilescu não era um moço mau por natureza. Tinha a fisionomia grosseira, cara larga com cabelos escuros, encrespados e baixos na testa, o que lhe dava a aparência de um touro assustado. Rijo, sem instrução, gostava demais do que considerava as coisas boas da vida para se fixar num estável; e ele tivera uma vida difícil. Assemelhava-se ao assassino assalariado de "Macbeth" - "aquele a quem os torpes reveses e bofetadas do mundo têm exasperado por tal forma que estou indiferente ao que faça para contrariar esse mundo".

Contou-nos: "Uma vez que vocês se vejam naqueles acampamentos farão seja o que for para de lá escapar, seja o que for! E Albon me disse que se eu fizesse o que me mandasse, eles me dariam Uberdade". Ele queria roupas, uma moça para levar a dançar. E o Partido dava-lhe licença de escolher entre aderir aos torturados ou aos torturadores.

"Levaram vários de nosso meio a um acampamento especial onde treinavam a polícia secreta", disse: "Uma das coisas que tínhamos de fazer era atirar em gatos e cães, e liquidar com espigões de aço os que ainda ficassem vivos!" Eu falei para eles: "Não posso fazer isso, não". Uma cara respondeu: "Então faremos com você".

Vasilescu tinha agora tristeza de si mesmo. Contou-me repetidas vezes as coisas terríveis que fizera no canal. Não pouparam nem o Abade. Vasilescu estava a olhos vistos as portas da morte, e procurei confortá-lo um pouco, mas ele não podia sossegar. Certa noite despertou ofegante, com a respiração difícil. "Pastor, estou-me acabando", disse. "Peço que ore por mim!" Cochilou e outra vez despertou, exclamando: "Creio em Deus!" e desatou a chorar.

Ao romper do dia o Abade Iscu chamou dois presos para junto de si e pediu: "Levantam-me daqui!". "O senhor está muito doente para andar", disseram. A sala inteira ficou em alvoroço. "Que é que há?" alguns perguntaram. "Deixe que nós façamos!"

"Vocês não podem fazer", respondeu. "Levantem-me!"

Levantaram-no. "Levem-me ao leito de Vasilescu", disse.

O Abade sentou-se ao lado do jovem que o havia antes torturado, e pôs a mão carinhosamente no seu braço. "Tenha calma", disse aquietando-o. "Você é moço. Era difícil você saber o que fazia". Enxugou o suor da testa do rapaz com um trapo. "Eu o perdoo de todo o meu coração, e o mesmo fazem outros cristãos. E se perdoamos, certamente Cristo, que é melhor do que nós, perdoará. Há no céu um lugar para você também". Recebeu a confissão de Vasilescu e lhe deu a Santa Comunhão, antes de ser recambiado ao seu leito.

À noite daquele dia o Abade e Vasilescu faleceram. Creio que de mãos dadas ambos entraram no Céu.

O Dr. Aldeã disse-me que eu precisava de um pneumotórax. Podia ser feito em poucos minutos, consistindo na introdução de uma agulha oca, por onde me entrasse ar nos pulmões para intumescê-los. Foi uma operação relativamente indolor, depois da qual ferrei no sono. Quando despertei, fiquei muito alegre por ver o Professor Popp sentado à beira do meu leito. Estivera fora alguns meses, na penitenciária de Jilava; também sofrera muito, submetido ao sistema de "reeducação". Conversamos durante horas.

Contou-me que tinha havido muitos suicídios em Jilava. O mesmo acontecia noutras prisões. Em Gherla e Piteshi homens lançavam-se dos andares superiores, até que os espaços entres as plataformas foram cobertos de arame que os aparasse. Alguns cortavam os pulsos com vidro, outros se enforcavam e ainda havia quem morresse depois de ingerir detergentes que se usavam na limpeza. Um pobre ancião, padre ortodoxo, lançou-se de cima de uma tarimba no chão, fraturando o crânio. Fizera isso várias vezes antes, sem resultado. Desta vez morreu.

"Fora torturado", disse o professor. "Receava que, se os reeducadores viessem sobre ele de novo, sucumbiria e trairia sua fé. Era um homem muito severo - um preso confessou-lhe que uma vez trabalhara para os comunistas, e o Padre loja proibiu-o de comungar durante quinze anos!"

Alguns dos suicídios eram afamados, como George Bratianu, um figurão da política da Romênia de antes da guerra. Não achou outro meio de dar cabo da vida senão negando-se a comer até morrer de inanição, sem ser notado entre os presos que nada sabiam nem se incomodavam. O chefe do Partido Liberal, Rosculet, matou-se no cárcere de Sighet: era um dos que tinham pensado que os comunistas "locais" não eram iguais aos do tipo russo; depois, porém, de lhe darem o título de Ministro dos Cultos, o Partido prendeu-o como contra-revolucionário.

As brutalidades da "reeducação" causavam inquietação em muitas penitenciárias, propagando-se seus rumores pelo país. Foi quando dois incidentes isolados trouxeram à luz a verdade.

Durante uma inspeção em Tirgul-Ocna, um odiado coronel da Polícia Secreta, Sepeanu, descobriu uma nova cerca. "Por que vocês construíram isto?" Indagou do Comandante Bruma. "A madeira podia ser muito mais bem empregada no espancamento desses contra-revolucionários". E riu a valer.

A história causou uma raiva feroz. A atmosfera de revolta estava a explodir em Tirgul-Ocna. Um ex-major exclamou: "Alguma coisa se precisa fazer!" E decidiu que ele era o homem talhado para isso. Quando Sepeanu se foi, o major pediu que um investigador fosse trazido especialmente de Bucareste, a fim de ouvir um segredo que ele deixara de confessar.

O investigador veio. O major disse-lhe: "O senhor sabe que estou cumprindo pena de vinte anos como criminoso de guerra, por haver executado prisioneiros russos. Como major de brigada, eu próprio não atirei naqueles homens. Vou dizer-lhe quem atirou. Foi um tenente chamado Sepeanu, que hoje é o coronel da Polícia Secreta".

E assim também Sepeanu foi julgado por crimes de guerra e sentenciado a vinte anos. Durante o julgamento referiu o que estava acontecendo nas prisões sob o sistema de "reeducação".

O segundo incidente envolveu outro chefe da Polícia Secreta. O Coronel Virgil Weiss fora amigo de Ana Pauker e outros do Governo. Depois se desaveio com eles, e acabou na prisão de Piteshi às mãos de Turcanu, chefe dos "Prisioneiros de Convicções Comunistas".

O homem que ajudava Turcanu a torturar vítimas contou-me depois que o Coronel Weiss desfaleceu três vezes numa hora, enquanto trabalhavam nele. Faziam-no recuperar os sentidos com água fria. Ele dizia: "Está certo - vou contar-lhes tudo quanto não disse - e vejamos se os seus patrões vão agüentar-se". Turcam cria que ia topar segredos que dariam a ele a soltura que lhe fora prometida. "Se você mentir agora eu o mato", advertiu. Weiss falou: "Tenho coisas importantes a dizer, mas não a você. Concernem a traidores que ocupam altos postos".

Foi levado a Bucareste, onde passou várias semanas hospitalizado. Membros do comité Central do Partido, rivais da súcia de Pauker, foram entrevistá-lo. Revelou ele que Pauker, Luca e Georgescu, ministros do Governo, tinham-no aliciado para que obtivesse passaportes falsos, com os quais pudessem escapar da Romênia, apressadamente, caso houvesse necessidade. Tinha também transferido grandes somas de dinheiro para bancos da Suíça.

A informação foi passada para Gheorghiu-Dej, Secretário Geral do Partido e principal tramador contra o grupo de Pauker.

O Coronel Weiss narrou a história da reeducação e exibiu para os amigos de Dej os efeitos dela no seu próprio corpo. Ficaram alarmados. Estava à vista outra reversão na sorte do Partido: eles podiam em breve esperar por igual tratamento. Alguns ignoravam tais excessos, e outros fingiam ignorá-los; mas agora começavam inquéritos. Os principais "reeducadores" foram interrogados na sede da Polícia Secreta e alguns deles, inclusive Turcanu, receberam pena capital.

O escândalo da reeducação usou-se como arma contra o Ministro do Interior, a cuja frente estava Theohari Georgescu, e no expurgo político de 1952 o triunvirato que havia governado a Romênia, desde que os comunistas assumiram o poder, foi derrubado. Os outros Ministros envolvidos nas acusações do Coronel Weiss, isto é, Vasile Luca e Ana Pauker, foram feitos bodes expiatórios da catastrófica inflação e dos desastres ocasionados pela coletivização.

Muitos dos que foram ajudar-nos na Sala Quatro eram agricultores que se tinham rebelado contra a coletivização forçada de suas terras. As cadeias da Romênia ficaram cheias deles. Milhares de outros tiveram de enfrentar pelotões de fuzilamento.

Contaram-me histórias de estarrecer. Suas propriedades tinham sido tomadas sob o regime da lei de "reforma agrária" de 1949, e nenhuma compensação receberam. Tornados vagabundos da noite para o dia, sem mais nada a perder, contra-atacaram. Funcionários públicos expunham-se a receber tiros, a levar surras ou serem queimados vivos com gasolina. Tudo sem nenhum proveito. Aos agricultores faltava organização. A rebelião deles ocorria em tempos e regiões diferentes, de sorte que o governo pôde sempre esmagá-los.

Um velho rijo, criador de ovelhas, de nome Ghica, narrou-me: "A Polícia Secreta mostrou-me dois rifles enferrujados. 'Desenterramo-los no seu celeiro', disseram. 'Se o senhor aderir à coletivização poderá evitar um processo'. Bem, concordei. Quando, entretanto, foram buscar meus animais, perdi a cabeça e procurei fazê-los parar com aquilo. Deram-me uma surra  e aqui estou cumprindo sentença de quinze anos. Perdi tudo. Terras, ovelhas, esposa, filhos!" Todos os fazendeiros lamentavam suas perdas no mesmo sentido.

Contou-me outro como fora despojado dos seus rebanhos. Pediu para ficar pelo menos com os chocalhos. Os funcionários riram, mas deixaram. O homem retirou os chocalhos do pescoço dos animais, levando-os para o seu palheiro onde os dependurou numa corda. A noite inteira ficou lá sentado, balançando os chocalhos de vez em quando. Quando amanheceu, saiu correndo pelo meio da vila em direção da sede do Partido, e lá, com uma facada, matou o secretário.

Um outro fazendeiro tinha dois cavalos que trabalhavam na lavoura. Seu maior prazer era alimentá-los e tratar deles. Quando os levaram, ele queimou os estábulos da fazenda coletiva.

Naquele ano, poucas pessoas da zona rural foram presas. Gheorghiu-Dej, enquanto teve nas mãos as rédeas do Partido, fez-se a si mesmo Primeiro Ministro, em 1952, e procurou ganhar popularidade diminuindo o ritmo da coletivização. Luca, Pauker e Goergescu foram demitidos dos seus cargos.

Chegou o inverno com pesadas nevascas. Grossos pingentes de gelo apareceram no teto, e geada branquicenta emoldurava a vidraça das janelas. Fora, o frio tornava ofegante a respiração. Em dezembro a neve chegou a l metro de 80 cm. Foi o mais rigoroso inverno de quantos houve em cem anos, disseram. Não havia sistema de calefação, mas agora tínhamos dois ou três lençóis para cada um, em lugar de um só do regulamento, porque sempre que morria um da Sala Quatro tomávamos a sua roupa de cama. Foi quando fizeram uma inspeção - e nos deixaram com um só lençol para nos cobrirmos. Dormíamos com as nossas roupas durante todo o inverno. Acontecia muitas vezes não termos pão. A sopa, feita de cenouras, das que não prestavam para se vender de tão carcomidas e moles que estavam, ficou ainda mais rala.

Na véspera do Natal a conversa na prisão adquiriu um tom de maior seriedade. Houve pouca briga, nenhuma praga, pouco riso. Todos nós pensávamos nas pessoas queridas de casa, havendo um sentimento de solidariedade com o resto do género humano, o que de ordinário ficava tão fora de nossas vidas.

Falei de Cristo, mas, o tempo todo tive meus pés e mãos frias como aço, meus dentes a estalejar, e uma sensação de peso gelado no estômago, causada pela fome, parecia espalhar-se pelo corpo todo, só ficando vivo o coração. Quando estanquei, um rapaz simples, agricultor tomou-me a palavra no ponto em que eu parei. Aristar nunca frequentara escola. Apesar disso falou com naturalidade, descrevendo a cena do Natal, como se tivesse ocorrido em seu próprio celeiro naquela semana, provocando lágrimas em todos quantos o ouviam.

Alguém começou a cantar na prisão, naquela noite. Começou baixinho, vindo-me ao pensamento, entre outras cogitações, minha esposa e meu filho. Mas pouco a pouco a voz foi aumentando de intensidade até ecoar nos corredores, fazendo todo o mundo suspender o que estava fazendo.

Estávamos em profundo silêncio quando ele acabou. Os guardas, reunidos lá para os seus aposentos em torno de um fogareiro, não se mexeram toda aquela noite. Começamos a contar histórias e quando me pediram uma, pensei no cântico e narrei para eles a seguinte lenda judaica: O Rei Saul levou Davi, o pastor de ovelhas, festejado por haver matado Golias, à sua corte. Davi apreciava a música e ficou contente em ver uma harpa muito bonita num canto do palácio real. Saul disse: 'Aquele instrumento custou-me caro, mas fui enganado. Só emite sons desafinados'.

Davi tomou a harpa a fim de experimentá-la, e nela tocou uma melodia tão encantadora que todos ficaram comovidos. A harpa parecia rir, cantar e chorar. O Rei Saul perguntou: "Por que foi que todos os músicos que chamei só tiraram ruídos dissonantes desta harpa, e só você pôde produzir música?"

Davi, o futuro rei, replicou: 'Os que vieram antes procuraram tocar nestas cordas o cântico que era deles mesmos. Eu, no entanto, fiz a harpa tocar o seu próprio cântico. Recordei, a dedilhá-la, como tinha sido ela uma árvore nova, os pássaros a chilrear nos seus galhos de folhas verdes, floridas, à luz do sol. Lembrei a seguir o dia em que alguns homens foram cortá-la, por isso ouvimo-la gemer ao toque dos meus dedos. Expliquei então que esse ainda não era o fim. Sua morte, como árvore, significava o começo de nova vida, em que glorificaria a Deus, como harpa; por este motivo, ouvimo-la em notas de alegria".

"Assim, pois, quando o Messias chega, muitos procuram cantar em sua harpa os seus próprios cânticos, vindo daí serem dissonantes os sons que emitem. Devemos cantar na sua harpa o seu próprio cântico, a melodia de sua vida, do seu entusiasmo, suas alegrias, dores, morte e ressurreição. Só assim a música será autêntica".

Foi uma melodia dessa natureza que ouvimos pelo Natal no presídio de Tirgul-Ocna.

Aristar faleceu em fevereiro. Tivemos de cavar sua sepultura afastando neve densa e quebrando a terra, dura como ferro, no pátio da prisão, ao lado do Abade Iscu, Gafencu, Bucur e uma quantidade de outros que ele conheceu na Sala Quatro. Seu leito foi ocupado por Avram Radonovici, que foi crítico de música em Bucareste.

Avram conhecia longos trechos das partituras de Bach, Beethoven e Mozart e podia cantarolá-los horas a fio - soavam tão bem quanto num concerto sinfônico. Levara, porém consigo uma dádiva mais preciosa. Por causa de sua tuberculose, que lhe afetara a espinha, estava engessado quando o levaram a Tirgul-Ocna, e observando, vimo-lo meter a mão naquela carapaça cinzenta e retirar um livrinho esfarrapado. Nenhum de nós, durante anos vira um livro de qualquer que fosse a espécie. Avram ficou lá silenciosamente a volver as páginas, até que se apercebeu dos nossos olhares curiosos pregados nele.

"Um livro seu..." falei. "Qual é? Onde o conseguiu?" "É o Evangelho segundo S. João", respondeu Avram. "Consegui escondê-lo aqui dentro do gesso, quando a polícia veio no meu encalço". Sorriu. "Gostaria o senhor que eu lho emprestasse?" Tomei o livrinho em minhas mãos como se fora um pássaro vivo. Nenhum medicamento salva-vida me podia ser mais precioso. Eu, que tinha decorado muita coisa da Bíblia e a havia ensinado no seminário, estava esquecendo-a cada vez mais. Muitas vezes procurei advertir-me da grande vantagem dessa falta de uma Bíblia enquanto lemos o que Deus disse aos profetas e santos, podemos esquecer de ouvir o que Ele tem a dizer-nos.

O Evangelho passou de mão em mão. Era difícil abandoná-lo. Julgo que para homens instruídos a penitenciária era mais dura de suportar. Operários de fábricas e agricultores encontravam lá um meio social mais variado do que conheciam antes, mas o homem dado a leitura era como peixe jogado na areia.

Muitos aprenderam todo o Evangelho de cor, sendo ele objeto de discussões diárias entre nós, mas precisávamos estar prevenidos sobre quais prisioneiros participariam do segredo. Esse Evangelho ajudou a levar muitos a Cristo, entre eles o Professor Popp que, por estar perto de muitos cristãos vivos, chegava agora com firmeza mais perto da fé. As palavras de S. João vieram completar a obra, mas havia uma última barreira a ser transposta.

"Tenho tentado voltar a rezar", disse o professor. "Mas entre recitar as fórmulas ortodoxas que aprendi em criança e pedir favores ao Todo-Poderoso, aos quais não tenho direito, não há muita coisa para dizer. Tal e qual o rei no "Hamlet", minhas palavras sobem e meus pensamentos ficam cá embaixo".

Contei-lhe o caso do pastor que fora chamado ao leito de morte de um ancião. Ia sentando-se numa poltrona, junto ao leito, quando o velho disse: "Por favor, não se sente aí!" O pastor então arrastou um tamborete, ouviu a confissão dos pecados do enfermo e lhe deu a Sagrada Comunhão.

O ancião reanimou-se e disse: "Deixe que lhe conte a história dessa poltrona. Há cinquenta anos, quando eu era rapaz, o velho pastor daqui me perguntou se eu dizia minhas orações. Respondi: "Não". Ninguém existe a quem eu dirija orações. Se eu gritasse a plenos pulmões, o homem no andar de cima não me ouviria, como iria Deus ouvir-me lá no Céu?" O velho pastor respondeu mansamente: "Neste caso não ore mesmo! Mas sente-se em silêncio de manhã, tendo outra cadeira à sua frente. Imagine que sentado na outra cadeira esteja Jesus Cristo, como Ele costumava sentar-se em tantos lugares da Palestina. Que diria você a Ele?" Eu disse: "Para ser honesto, diria que não cria nele". "Bem, disse o pastor, "isso mostra, pelo menos, o que existe de fato em sua mente. Você podia ir adiante e desafiá-lo: se ele existe, que dê provas disso! Ora, se você não gosta do modo como Deus dirige o mundo, por que não dizer-lhe isto? Não seria você o primeiro a queixar-se. O Rei Davi e Jó disseram a Deus que pensavam ser Ele injusto. Talvez você queira alguma coisa. Então diga-lhe exatamente o que é. Se o receber, dê-lhe graças. Todas essas permutas de ideias podem ser assunto de oração. Não recite frases sagradas! Diga o que realmente está no seu coração!"

O moribundo prosseguiu: "Eu não cria em Cristo, mas acreditava no velho pastor. Para satisfazê-lo sentei-me diante desta poltrona e simulei que Cristo estivesse aí sentado. Durante poucos dias aquilo foi um passatempo. Depois eu sabia que Ele estava comigo. Falava a um Jesus real acerca de coisas reais. Procurei e recebi direção. A oração tornou-se um diálogo. Moço, cinquenta anos já se passaram e todos os dias eu falo com Jesus aí nessa cadeira".

O pastor estava presente quando o homem faleceu, estendendo a mão, como seu último gesto, para o amigo invisível na poltrona.

O professor perguntou: "É assim que o senhor ora?" Respondi: "Gosto de pensar que Jesus está junto de mim, e que posso falar-lhe como faço com o senhor. Pessoas que tiveram contato com Ele em Nazaré não lhe recitavam preces. Diziam o que lhes ia no coração, e isto é o que devemos fazer".

Continuou Popp: "Que diz dos muitos que com Ele fala­ram na Palestina, há 2.000 anos, e não se tornaram seus discípu­los?" Respondi: "Durante séculos os judeus oraram pedindo a vinda do Messias, e ninguém fazia isso com maior eloquência do que o Sinédrio, a corte suprema deles. Todavia, quando Ele veio, injuriaram-no, cuspiram nele e o mataram, porque o que eles menos queriam era que alguém transtornasse a rotina confortável em que viviam. O mesmo se diga de muitas nações de hoje!" O Professor Popp tornou-se cristão. Disse-me: "Quando vi o senhor a primeira vez tive um pressentimento de que tinha algo para me dar". Tais intuições não são fora do comum nos presídios. Quando o mundo de fora fica afastado de nossas vistas, um sentido novo surge para o invisível.

Ficamos muito íntimos. Sentados juntos em silêncio algumas vezes, ele como que adivinhava o pensamento que se agitava em minha mente. E assim deve ser, mas raramente acontece entre amigos e entre o homem e sua mulher.

O degelo veio em março. Os pingentes de gelo passaram a derreter-se e a neve ficou em pedacinhos agarrados às paredes. Nas árvores, desfolhadas e nuas, começavam a aparecer rebentos, e os pássaros voltaram a cantar. Pelas nossas mãos friorentas, nossos pés envoltos em trapos e nossos rostos rígidos sentíamos que a vida voltava.

O presídio galvanizou-se com notícias novas. Um preso fora conduzido ao hospital da cidade onde uma mulher, que esfregava o assoalho, chorava. "Que é que há? Perguntou. "Nosso pai Stalin morreu", dizia soluçando. "Os jornais publicaram". Não vertemos nenhuma lágrima. Todo o mundo fazia conjecturas, excitado, sobre quais seriam as decorrências do fato.

Disse Popp: "Se Stalin morreu, com ele se foi o staünismo; uma ditadura não sobrevive ao ditador". "Mas o Comunismo sobreviveu a Lenin", observou alguém.

Poucos dias depois ouvimos apitos de trem e dobres de sinos que anunciavam os funerais de Stalin em Moscou. No presídio reboaram gargalhadas e maldições. Os guardas pareciam mal-humorados e os oficiais estavam nervosos. Ninguém sabia o que os próximos dias iriam trazer.

Depois de semanas de incerteza, chegou um funcionário de alta categoria do Departamento Legal e compreendemos que fora enviado a estudar as condições do presídio. Era recebido com silêncio e frieza ao passar de cela em cela perguntando se havia queixas a serem apresentadas. Muitos pensaram tratar-se de um ardil. Ao chegar ele à Sala Quatro eu disse: "Tenho alguma coisa para dizer, mas não começarei antes de o senhor me prometer que me ouvirá até ao fim".

"Foi para isto que vim aqui", disse cortesmente o serventuário púbüco. Falei: "Promotor, o senhor teve um renomado predecessor na história, chamado Pôncio Pilatos. Pediram a ele que julgasse um homem que ele sabia ser inocente. "Vou lá me envolver nisso?" pensou Pilatos de si para si mesmo. "Prejudicar minha carreira por causa de um carpinteiro judeu?"

"Apesar de já se terem passado 2.000 anos, o seu desserviço à justiça não caiu no esquecimento. Em qualquer igreja onde o senhor entrar, no mundo inteiro, ouvirá dizer no Credo que Jesus foi crucificado sob o governo de Pôncio Pilatos".

Os outros na Sala Quatro pareciam preocupados comigo. Continuei: "Examine o seu coração e verá que somos vítimas de injustiça. Ainda que fôssemos réus aos olhos do Partido, teríamos que expiar nossos crimes na prisão - mas isto aqui é uma pena de morte arrastada. Antes de o senhor redigir o seu relatório, veja a nossa comida, a falta de calefação e de medicamentos simples, a sujeira e as enfermidades. Pergunte a respeito de algumas das barbaridades que temos sofrido. Depois escreva a verdade. Não lave as suas mãos de homem que nada pode fazer, como Pilatos fez".

O promotor olhava-me melancolicamente, depois deu meia-volta e saiu sem dizer palavra. A notícia de que ele me prestara atenção espalhou-se pela penitenciária e encorajou outros a falar. Soubemos que antes de ele se retirar, palavras zangadas foram proferidas no gabinete do comandante. Mais tarde, naquele mesmo dia, os guardas se mostravam corteses, quase que a pedir desculpas. Uma semana depois o comandante foi demitido.

Melhorando a rotina na prisão, comecei a levantar-me do leito e a andar um pouco todos os dias. O Dr. Aldeã levou o funcionário médico para me ver.

Aldeã disse: "O seu caso é um enigma. Seus pulmões estão como uma peneira, as vértebras estão afetadas, não pude engessá-lo e não houve praticamente intervenção cirúrgica nenhuma. O senhor não está melhor, mas também não está pior, e por isso vamos tirá-lo da Sala Quatro".

Meus amigos ficaram contentes. Cobraram coragem pelo fato de, após dois anos e meio, ser eu o primeiro a deixar a cela vivo.

"Como foi que isto aconteceu, pastor?" disse um gracejando. "Por que esse corpo velho não obedeceu às ordens do médico e não morreu?"

Disse eu: "Acho que se você quiser descobrir uma razão médica para isso, haverá de descobri-la. Todavia na guerra aprendi uma lição em torno de procurar explicações. Encontrei alguns homens do Partido que tinham estado na Rússia. Ao indagar por que a União Soviética havia moderado sua campanha anti-religiosa naquela época, um deles me disse: "Ao senhor cabe infor­mar". Redargui que pensava ter sido uma concessão feita à Inglaterra e à América, que estavam prestando auxílio à Rússia na guerra. O oficial sorriu: "Esta é a explicação que eu daria, como comunista. Se eu fosse cristão, diria que era resposta de Deus às orações". Fiquei em silêncio, porque ele tinha razão. A Bíblia conta que certa vez uma jumenta repreendeu um profeta. Assim digo agora a vocês que, se me recuperei, foi por um milagre de Deus em resposta à oração".

Eu sabia que muita gente - prisioneiros com os quais esti­ve, e minha congregação também - orava por mim, entretanto durante muitos anos não soube que muitos milhares no mundo inteiro também oravam.

 

QUARTA PARTE

A SALA QUATRO tornara-se um altar em que as pessoas eram transformadas e transfiguradas para o exercício fé. Alegrava-me o fato de ainda estar vivo, mas abandonar aquela sala era baixar de nível. Deixando sua atmosfera de nobreza e sacrifício pessoal, voltei ao mundo de brigas, vaidade e fingimentos. Era triste e cómico ver quantos da classe superior se apegavam às suas ilusões. "Excelências" sujas cumpri­mentavam-se com "bom dia". "Generais" famintos indagavam uns dos outros como passavam de saúde. Eram intermináveis as discussões deles sobre sua volta opulência que lhes ficara para trás.

Um deles, Vasile Donca, aceitou um pedaço de cordão que lhe ofereci para com ele segurar as calças. Cordão era uma preciosidade no presídio. No dia seguinte, porém, falei com ele e fez que não me ouviu porque o tratei de "brigadeiro".

Donca, como muitos outros, faria qualquer coisa por um cigarro. Os guardas eram os únicos que possuíam fumo; e eram proibidos de passá-lo a outras pessoas. À noite fumavam uma quantidade de cigarros e jogam as pontas fora do pátio, que de­las ficava alastrado. Os encarregados de celas e os informantes delatores eram os primeiros que tinham permissão de sair cada manhã, de modo a monopolizarem a coleta de restos de cigarros. Às vezes, no entanto, algum outro preso descobria uma pontinha daquelas, e então os seus colegas rodeavam-no, fumando-a revezadamente na extremidade de um pino, à guisa de piteira.

Certa manhã um guarda acendeu o cigarro, recostado à porta da cela, perto do meu leito. Donca foi lentamente, fazendo voltas pela cela e começou a conversar com ele em voz baixa e insistente.

"Guarda! Quanto você quer por esse cigarro?" O guarda arregalou um sorriso. "Que tem o senhor para oferecer, brigadeiro?" Donca não tinha nada, mas experimentou blefar. "Não pense que não tenho amigos em altos postos. Você será recompensado por qualquer atenção que me der!" "Amigos influentes?" inquiriu o guarda. "Apesar de tudo o senhor é de fato comunista, brigadeiro?" "Sargento, sou um romeno leal à pátria". "Bem, se o senhor fosse um comunista romeno leal, eu lhe daria este cigarro"

Donca hesitou e olhou ao redor disfarçadamente. O guarda fez menção de se afastar. "Espere! Naturalmente sou um comunista romeno leal!"

O guarda acenou para os seus camaradas a fim de que fossem participar da brincadeira.

"O senhor dança ao som de uma música russa, brigadeiro? Dance para nós! Dance à maneira de um russo da Rússia! "E apresentou o cigarro.

De braços abertos, sorriso forçado, Donca começou a pular num pé e noutro. Os guardas romperam em gargalhadas. Os presos desviaram o rosto, ao remexer Donca por entre as pernas deles à procura do cigarro atirado ao chão.

Quando Donca se mudou para outro lugar, seu leito foi ocupado por outro ex-membro do Estado-Maior, General Stavrat. As dragonas não fazem o oficial assim como o hábito não faz o monge, e Stavrat era tudo o que Donca não era. Apesar de pequena estatura, sobrepujava os seus colegas de prisão em pura força de personalidade. Duro, não suportando fraquezas, e não obstante cheio de bondade e bom-senso, gostava de se dirigir ao pessoal da cela em geral chamando-os "Homens!"

Juliu Stavrat era general sem botas. Desfizeram-se das suas. Coube-me um par, com o qual saia em dias alternados para fazer exercício no pátio. Logo depois de sua chegada permitiu-me a entrega dos primeiros pacotes de alimento, dando-se-lhe um. Abriu-o diante dos circunstantes boquiabertos. Um murmúrio de estupefação percorreu o grupo. Presunto, salsichas defumadas, bolo de frutas, chocolate - que sacrifícios sua esposa não fizera para comprar tais coisas! Stavrat, que vivera de sobejos durante oito anos, embrulhou de novo seu farnel e se dirigiu ao meu leito. "Pastor", disse, "tenha a bondade de repartir isto com os homens".

Stavrat era cristão antes de ser soldado. Quando ouvimos que a Rússia tinha feito explodir sua primeira bomba atómica, ele disse: "Agora é que não devemos procurar uma intervenção militar americana em larga escala: melhor para nós será apodrecer na cadeia do que ver milhões de pessoas morrerem numa guerra atómica".

"O senhor pensa que isso destruiria a humanidade?" perguntei. "O futuro da humanidade tanto quanto o seu passado", disse, "não ficará ninguém para conhecer nossa luta e progresso através das eras". Stavrat tinha muito gosto pela História. Podia discorrer eloquentemente sobre o passado da Romênia.

"Mas se uma guerra nuclear nada resolve", acrescentou, "e a civilização não pode coexistir com o Comunismo, não sei qual seja a resposta".

"O Cristianismo é a resposta", disse eu, "numa forma vital. Pode transformar a vida dos grandes homens como dos de menor categoria. Lembre-se de muitos governantes bárbaros, como Clóvis da França, Estêvão da Hungria, Vladimir da Rússia, que se converteram e tornaram cristãos os seus países. A coisa pode repetir-se. Veremos derreter-se a Cortina de Ferro".

"Devemos começar com Gheorghiu-Dej?" disse Stavrat sorrindo.

"Uma ordem de grande envergadura!"

Gheorghiu-Dej, eclipsados todos os seus rivais, era agora o nosso ditador. Admita francamente que erros graves tinham sido cometidos, entre os quais o maior fora o projeto do canal Danúbio-Mar Negro. Depois de três anos em que milhões de libras haviam sido esbanjadas e mimares de vidas, perdidas, somente cinco das suas quarenta milhas projetadas se aprontaram. Os principais engenheiros e dirigentes do acampamento foram acusados de sabotagem. Três tiveram sentença de morte e dois foram sumariamente executados. Outros, em número de trinta, tiveram sentenças que variaram de quinze anos de cadeia a prisão perpétua. Nova pesquisa acabou provando que o Danúbio não podia suprir água suficiente para o projeto - exatamente como disseram os engenheiros no início da obra e em razão do que foram fuzilados. O canal foi abandonado. Tudo quanto daquilo continuou a ter utilidade, desse imenso investimento de tempo e dinheiro da Romênia na primeira década de domínio comunista, foram os campos de trabalho. Estes não podiam conter o pessoal que transbordava das penitenciárias.

Enquanto discorríamos sobre esse fiasco, o Professor Popp me chamava à parte. Disse: "Tenho evitado dizer-lhe uma coisa desde que voltei para Tirgul-Ocna. O Dr. Aldeã pensou que o choque seria forte demais para o senhor, na condição em que estava. Sua esposa está presa e já esteve no canal".

Popp havia reunido informações de vários presos que tinham estado trabalhando lá. Sabina fora aprisionada dois anos depois de mim. Nenhuma acusação houve contra ela. Dirigia as mulheres na igreja, na qualidade de diaconisa, e lhe disseram o que havia de pregar, mas seu temperamento não se submetia a essa imposição. Em Poarta Alba ela ficou com as mulheres que tinham de padejar terra para carrinhos de mão e levá-los a grandes distâncias. As que não dessem conta de sua parte do trabalho ficavam sem comer. Havia entre elas moças colegiais patriotas e prostitutas, senhoras da sociedade e outras que sofriam por sua fé. No Acampamento Km 4, o Comandante Kormos foi logo mais sentenciado a trabalho forçado por violar trinta jovens presas: a acusação foi de ter ele "prejudicado o prestígio do regime".

Minha mulher ficou sob as ordens de uma figura notável, o Coronel Albon, chefe da Poarta Alba. Ela comia capim à maneira dos animais: ratos, cobras, cachorros, tudo era comida. Algumas das que comiam cachorro diziam gostar. Perguntei-lhes: "Vocês gostariam de voltar a comer aquilo?" "Ah não!" disseram. Sabina era franzina e fraca, de modo que uma troça dos guardas consistia em atirá-la ao Danúbio frígido e pescá-la. Ela, no entanto, sobreviveu. Sua vida foi salva com o colapso do projeto. Foi enviada com outras prisioneiras a uma fazenda do estado, onde se criavam porcos, e aí também o trabalho era duro.

O professor disse que um preso de Vacaresti falara com a minha esposa no hospital.

"Ela tem estado muito mal", disse Popp, "mas não vai morrer. Sabe que o senhor está seguro e salvo. As mulheres com as quais estava, falavam de um pastor que se supunha estar à beira da morte e que pregava de trás das paredes. Disseram à sua esposa terem deixado de ouvir sua voz em 1950 - pelo que o davam como morto. Ela, porém, disse que não; cria que o senhor estava vivo, quaisquer que fossem as provas em contrário".

Esta notícia quase que me aniquilou. Procurei orar, mas uma depressão mental me abateu. Durante dias não falei com ninguém. Foi quando certa manhã vi no pátio da prisão um padre velho, de aspecto nobre, barbas brancas flutuando ao vento frio, junto ao Corpo da Guarda. Era um recém-chegado e tinham-no deixado ali. Vários oficiais vieram e rodearam-no.

"Que faz este padre velho aqui?" perguntou um deles. "Veio ouvir em confissão", disse outro chacoteando. Foi o que o Padre Suroianu passou a fazer logo mais. Havia ao redor dele uma aura de santidade tal que provocava um desejo enorme de lhe dizerem toda a verdade. Até eu, embora não cresse em confissão sacramental, revelei-lhe o desespero em que estava e pecados que nunca antes houvera contado. As raízes do mal nem sempre ficam à mostra no confessionário. Quanto mais, porém, eu me acusava, tanto mais o Padre Suroianu olhava para mim não com desprezo senão com amor.

Ele tinha mais razão de sentir pesar do que outro qualquer de nós. Uma tragédia abatera-se sobre toda a sua família. Uma de suas filhas aleijada, fora privada do marido, detento conosco em Tirgul-Ocna. Outra filha e seu marido tinham recebido sentença de vinte anos. Um dos filhos morrera na cadeia. O segundo filho, em quem ele depositara todas as suas esperanças, esse rebelou-se contra o pai. Seus netos tinham sido expulsos da escola ou perderam seus empregos por causa das atividades dos pais "contrários ao Partido". Nada obstante, o Padre Suroianu, um homem simples, autodidata, gastava o seu tempo a encorajar e confortar os outros.

Nunca o seu cumprimento era "bom dia", mas sempre saudava com a frase bíblica "Alegrai-vos!" Disse-me: "No dia em que o senhor não puder sorrir, não abra a sua loja. Sorrindo movemos dezessete músculos do rosto, mas para uma carranca empregamos quarenta e três!"

Perguntei-lhe: "O senhor tem passado por tantos infortúnios - como pode 'alegrar-se' sempre?"

"Ora, porque o contrário é pecado grave", disse. "Há sempre boas razões para que a gente se alegre. Há um Deus no Céu e no coração da gente. Hoje de manhã deram-me um pedaço de pão. Estava tão bom! Veja agora como o sol está brilhando! E tantos aqui me estimam! O dia em que o senhor não se alegra, esse é um dia perdido, meu filho! Nunca mais o terá de volta".

Também eu podia regozijar-me, pelo menos no sentido de estar realizando o desejo acariciado desde que fora ordenado ser um pastor em prisão. Lá fora todos os dias tangem sinos e espera-se que o povo vá à igreja; mas na prisão meus paroquianos estavam "na igreja" comigo, não só um dia na semana, senão o dia inteiro e todos os dias. Eles tinham de ouvir, embora nem sempre com disposição.

Lazar Stancu, um linguista inteligente, cujo crime fora trabalhar para uma agência estrangeira de notícias, interveio para dizer: "Basta de Cristianismo, por favor! Existem outras religiões interessantes".

"Bem", disse eu. "Conheço alguma coisa de Confúcio e do Budismo". E contei uma parábola do Novo Testamento, das menos conhecidas.

"Fascinante!" exclamou Stancu, e elogiou sua beleza e originalidade.

"Alegra-me o senhor pensar assim", disse e expliquei que de fato era aquilo um ensinamento de Cristo. "Por que vai o senhor atrás de outras religiões?" perguntei. Seria o caso de um velho provérbio romeno. "A galinha do vizinho sempre é peru?" Ou seria apenas a sôfrega procura intelectual de novidades?

Disse Stancu, "Bernard Shaw uma vez insinuou que as pessoas quando na infância são de certa maneira inoculados de pequenas doses de Cristianismo, raramente contraem a coisa como deve ser".

Certa noite um jovem preso levantou-se de um pulo e começou a gritar: "Parem com isto! Parem com isto! Parem com isto!" Houve um silêncio. Era um recém-chegado e os outros olhavam surpresos para ele. Voltou correndo para a cama e deitou-se. Fui até onde ele estava. Tinha o rosto delicado, mas o queixo e o pescoço estavam cobertos de ataduras improvisadas. Fitou-me com lágrimas e voltou as costas. Pensando que se procurasse falar-lhe naquele momento ainda mais perturbado ficaria, desisti. O Dr. Aldeã disse-me chamar-se o rapaz Josif. "É um moço atraente", revelou-me, "mas vai ficar para o resto da vida com uma cicatriz de úlcera no rosto. É ele outro caso de tuberculose nos ossos". Contou-me que quatro anos antes, quando tinha quatorze, Josif fora detido ao tentar alcançar a Alemanha, onde vivia uma irmã. A Polícia Secreta o colocou sob a guarda de cães amestrados, que o atacavam quando se mexia, abocanhando a garganta. Susto e medo encheram-lhe a mente: conversa repetidas vezes acerca das horas que passou na fronteira à mercê dos cães.

Depois, suspeito de ser um penhor em algum jogo político, foi levado a Bucareste onde sofreu torturas para informar o que não sabia. A seguir foi mandado com um bando para trabalho forçado no canal, onde passou fome e contraiu tuberculose.

Fiquei a vigiar Josif quando ele ficou afeito ao nosso ambiente. Era de uma honestidade e sinceridade espontâneas, que a vida não conseguira corromper. Às vezes, esquecendo suas provações, sacudia para trás a cabeleira escura em gargalhadas estrondosas, enquanto rememorava alguma brincadeira da prisão de outro tempo. Entretanto levava sempre a mão ao rosto deformado. Doía-lhe: pior, no entanto, era pensar que sua bela aparência se perdera para o resto da vida.Certo de poder ajudá-lo, aguardei oportunidade.

Por poucos meses, depois da morte de Stalin, permitiram que recebêssemos mensalmente pacotes de casa. Esperávamos ansiosos por eles. Nos cartões-postais que nos davam eu escrevia pedindo, além de comida, cigarros e "roupas usadas do Dr. Filon".

Eu não gostava de fumo, mas uma vez que aqueles homens viviam desesperados por cigarros, eu sempre pedia minha quota inteira deles para distribuí-los. O resultado era ficarem ressentidos aqueles a quem não dava nenhum, e aqueles a quem eu dava suspeitavam quase sempre que dava mais a outros.

O pedido de roupa do Dr. Filon deixava minha família aturdida. O médico era baixinho. Eu era alto. Esperava eu compreendessem que estreptomicina do médico era o que eu queria. Aldeã dissera-me que a medicina socialista estava agora admitindo que aquele medicamento, descoberto na América fazia dez anos, tinha valor. Se eu recebesse algum, podia tratar-me;mas não tínhamos permissão de pedir que o mandassem em nossos pacotes.

Além de tuberculose, eu sofria também de frequentes dores de dente, que eram uma praga entre nós. Os dentes cariavam rápido por falta de alimentação e tratamento, ou se quebravam nos espancamentos. Algumas vezes punham-me nos tornozelos grilhões pesando uns vinte e três quilos, o que não me permitia andar um pouco para aliviar as dores. Mas nunca foi pior do que o acesso sofrido em Tirgul-Ocna. Um dente do lado superior atormentava-me o dia todo; à noite a dor passava para o maxilar inferior. Não tínhamos dentistas e nem esperança de alívio. Dizem que Pascal combatia a dor de dente resolvendo problemas de matemática, e assim experimentei compor sermões, mas as dores deviam amenizar-se mais com aqueles do que com estes, visto os meus serem uns sermões miseráveis. Dei para fazer poesias, mas eram poesias de desesperação.

Tentei esquecer as dores conversando com Josif. Sentei-me ao seu lado e perguntei-lhe por que se zangara quando lhe falei.

Disse ele: "Tenho ódio de Deus! Se o senhor continuar vou chamar os guardas". Seus olhos começaram a encher-se de lágrimas. "Deixe-me sozinho!"

Mas a natureza boa do rapaz sempre cedia; um ou dois dias depois dizia-me ele de suas esperanças de encontrar a irmã na Alemanha e juntos partirem para ficar com parentes na América. "Você deve então começar a aprender inglês", disse-lhe. "Gostaria, sem, porém aqui quem vai me ensinar?" Disse-lhe que, se quisesse, eu poderia dar-lhe algumas lições. "O senhor pode? É mesmo?" Ficou fora de si contente e revelou-se um aluno inteligente, embora não tivéssemos livros nem papel nem lápis. Falei-lhe de livros em inglês que eu lera, e fi-lo repetir comigo passagens da Bíblia que eu sabia de cor.

Josif não foi o único preso que ameaçou denunciar-me, mas o verdadeiro perigo no nosso meio era o informante secreto. Muitas vezes tais homens se fingiam de patriotas para alcançar seus fins, especialmente com os moços.

Os guerrilheiros que resistiram durante anos nas montanhas da Romênia inspiravam com o seu exemplo muitos jovens a formar seus próprios grupos anticomunistas, de modo que rapazes e moças de dezessete e dezoito anos foram detidos e encarcerados: havia até um de quatorze anos conosco em Tirgul-Ocna. Gostavam de ouvir as histórias que um ex-coronel do serviço secreto de informações militares, chamado Armeanu, costumava contar de nosso Rei Estêvão, o Grande, e outros heróis patriotas que lutaram contra a dominação estrangeira.

O General Stavrat, que antes conhecera Armeanu, disse: "Não confio neste homem. Precisamos ficar de olho nele". Mais tarde naquele dia, passava eu vagarosamente quando Armeanu estava com um jovem guerrilheiro chamado Tiberiu. "Eles me pegaram", dizia Tiberiu, "mas outros vão prosseguindo na luta..." quando passei outra vez ouvi-o dizer que uma moça estava entre eles. Armeanu, vendo-me perto, bateu-lhe no ombro e se foi.

Pedi a Josif para escutar; Armeanu notá-lo-ia menos. De fato, poucas noites se passaram, e ele pegou de surpresa trechos da conversa.

"Um cara simpático como você não arranjou uma moça?" perguntava Armeanu a Tiberiu. "Sem dúvida arranjou - aposto que é também bonita. Como é o nome dela?... Maria - donde ela é?... Sim, conheço o lugar. É mesmo, tive relações de amizade com uma família de nome Celinescu, onde havia uma fluía moça deste mesmo nome... Ah, sua Maria é uma Srta. Cuza. E o pai dela? Um capitão do exército, não é? Não do 22° regimento por certo... Oh, do 15°. Sim, sim".Depois desse relatório cheguei à conclusão que provavelmente Armeanu era um agente e que a moça Maria seria presa em poucos dias. O General Stavrat quis acareá-lo imediatamente, mas eu sabia que nada podíamos provar contra ele. Quando logo após encontrei Armeanu só, entabulei com ele uma conversa. Ele perguntou por que eu estava preso e então me vi diante de uma oportunidade tremenda.

"Por espionagem", disse eu, e acrescentei saber que podia falar livremente a um nacionalista como ele. "Minha prisão não tem importância. Eu não passo de um dentinho na engrenagem da organização". Com outras indiretas animei-o a insinuar nomes e endereços dos meus "contactos". No seu rosto vi estampar-se um ar de vitória ardilosa: pensava ele estar de posse da informação que lhe valeria a liberdade.

Logo que as celas se abriram no dia seguinte, Stavrat viu Armeanu cochichando para o guarda. Imediatamente depois o coronel foi chamado para uma "inspeção médica" - era este um frequente pretexto para consultas a informantes. Depois o oficial político mandou chamar-me. Já se supunha com mais uma estrela no ombro, porque sem qualquer tentativa de defender Armeanu, imediatamente pediu toda a história da grande rede de espionagem internacional que eu lhe referira.

"Tenente", respondi, "se o senhor passar adiante a informação que dei a Armeanu ontem, isso vai provocar um delírio de entusiasmo em Bucareste. Por isso aconselho-o a não fazer isso. O senhor vai somente prejudicar-se".

"Que quer dizer com isto?" indagou. Respondi: "Inventei toda essa história. Quis verificar minhas suspeitas em torno de Armeanu, se procedentes ou não. Agora sei". O oficial fitou-me sem acreditar. Depois soltou uma gargalhada.

Saí e contei a Stavrat. Ele segurou Armeanu. "Homens valentes morreram sob o seu comando", disse-lhe, "e agora você vira traidor!"

Armeanu tentou esbravejar, mas daquele dia em diante se tornou um proscrito. Anos depois ouvi que morrera na prisão. Todas as traições só lhe trouxeram vergonha.

Meu pacote do mês seguinte inclui 100 gramas de estreptomicina. O sinal que eu dera fora compreendido! Pensando nos pacientes que eu deixara na Sala Quatro, pedi ao General Stavrat que desse o medicamento a quem estivesse lá em estado mais grave.

"É Sultaniuc", disse com repugnância. "Um guarda de ferro fascista consumado. Está às portas da morte, embora não queira admiti-lo. Muito melhor é o senhor mesmo toma-lo... Mas, se insiste..."

Stavrat em breve estava de volta. "Quis ele saber de onde procedia o remédio, e quando lhe disse que era seu, afirmou não querer tomar nada que partisse de um opositor da Guarda de Ferro. Nada se pode fazer com um fanático daquela marca".

Pensei que podíamos contornar a situação. Quando Stavrat saiu, pedi a Josif - de quem não se podia suspeitar de duplicidade - que agisse como mediador.

“Diga a Sultaniuc que o general se equivocou. É um presente da parte de Graniceru. Ele também é da Guarda de Ferro, e ouvi dizer que ainda há pouco recebeu alguns medicamentos".

Josif não teve êxito. "Sultaniuc não acredita que Graniceru lhe dê qualquer coisa. Não quer nem olhar para esse pó, a menos que o senhor declare sob juramento que não procede do senhor".

"Por que não?" disse eu. "Dei-lhe o remédio e posso também dar-lhe o juramento. A estreptomicina de fato não é minha, mas de Deus. Entreguei-a a Deus no momento em que me chegou às mãos".

O Dr. Aldeã, que estava ocupado noutra parte quando a estreptomicina chegou, não disse palavra ao ouvir o que acontecera com ela. Até Stavrat ficou perplexo com o meu ato de dar um "falso testemunho". Ele disse: "Pensei que os senhores, clérigos, insistissem sempre pela verdade integral, e por nada senão só a verdade".

Em breve Stavrat teve um exemplo do que podia custar "a verdade integral", quando dois novos presos, um dos quais testificara contra o outro, foram metidos em nossa cela. O primeiro era um bispo católico, que desejava que Roma soubesse quão amargamente sua igreja estava sendo perseguida. O outro era um advogado que entregara a carta de queixa do bispo ao Núncio Papal - quando havia um em Bucareste - para que a encaminhasse ao Vaticano. Quando o advogado deixou o palácio do Núncio foi preso e, tendo negado haver entregue a carta, foi acareado com o bispo. O bispo disse: "Não posso mentir. Sim, dei a ele uma carta".

Ambos foram torturados e acabaram em Tirgul-Ocna, onde discutiram sobre o que fora justo fazer. O bispo esperou que eu o apoiasse; não pude fazer isso. Eu disse: "Se uma pessoa recusa-se a dizer uma mentira, está muito bem, mas neste caso deve guardar consigo os assuntos de gravidade. Se decide pôr em risco a segurança de outro qualquer, deve defendê-la a todo custo".

O bispo protestou: "Todo esse caso fez-me sofrer muito, mas como podia eu dizer uma coisa que não era a verdade?"

Repliquei que se fazemos o bem aos nossos inimigos, com certeza temos a obrigação de ajudar nossos amigos. "Se minha hospedeira passou o dia inteiro no preparo de um jantar que me causou muito mal, ainda me sinto obrigado a cumprimentá-la: isto não é dizer-lhe uma mentira, é simples cortesia. Quando aqui os homens perguntam: 'Quando virão os americanos?' digo-lhes: 'Não podem demorar muito'. Não é verdade, infelizmente, mas também não é uma mentira. É uma palavra de esperança".

O bispo não se convencia. Continuei: "Se o senhor submeter todas as artes aos puristas, elas se tornam mentiras. Fausto não assinou mesmo um contrato com o diabo, o senhor sabe; isso não passa de invenção do mentiroso Goethe. Hamlet nunca existiu - é uma mentira de Shakespeare. As mais simples brincadeiras (espero que o senhor ache graças em brincadeiras) são invencionices".

"É possível que sim", replicou o bispo, "mas aqui está em jogo um caso pessoal. Quando o senhor é interrogado pêlos comunistas, Sr. Wurmbrand, não acha que deve dizer a verdade?"

"Naturalmente não. Não tenho tais escrúpulos que me impeçam de dizer a primeira coisa que me venha à cabeça, contanto que desoriente assim os que procuram pegar meus amigos em armadilha. Devo lá prestar informação que essa gente possa empregar para atacar a Igreja? Sou um ministro de Deus!"

"O mundo costuma dar nomes bonitos a coisas feitas. Fraude é chamada habilidade, talento. Somiticaria recebe o nome de economia. Sensualidade cinge a coroa do amor. Aqui se usa a palavra feia "mentira" para significar o que o instinto nos diz ser correto. Respeito a verdade, mas não vacilo em "mentir" se com isto salvo um amigo".

Quando estávamos a sós, Josif perguntou-me: "Que é pois uma mentira?" "Por que esperava você de mim uma definição? Sua própria consciência, se for guiada pelo Espírito Santo, lhe dirá em cada circunstância da vida o que quer dizer e o que deixar de dizer. Você não pensa que o juramento que levou a Sultaniuc, no caso da estreptomicina, foi uma mentira, pensa?" "Oh! não", disse Josif, com o seu cativante sorriso. "Foi um ato de amor".

A amargura de Josif serenou e um dia, depois de nossa lição de inglês, perguntei-lhe: "Por que diz você que tem ódio de Deus?"

"Por quê?" repetiu ele. "Diga-me primeiro qual a razão de Deus haver criado o bacilo da tuberculose". Ele pensava que com isso dava por finda a conversa.

"Posso explicar", - disse eu - "se você me escutar em silêncio".

Respondeu acabrunhado: "Escutarei a noite toda se o senhor puder explicar".

Adverti que ia pegá-lo em sua própria palavra. Era um problema, disse-lhe, esse que estava na raiz do sofrimento humano e do mal. Josif não era o único e indagar por que tais coisas acontecem sob as vistas de um Deus misericordioso; provavel­mente todos nós no cárcere fazíamos essa mesma pergunta, e não havia uma resposta só, senão várias.

"Primeiro, somos propensos a confundir o desagradável com o ruim. Por que o lobo seria mau? Porque devora ovelhas, e isto me constrange. Por minha vez quero comer carne de ovelha! E ao passo que o lobo precisa comer ovelhas para viver, eu não preciso fazer isso, porque posso comer outras coisas. Pior ainda, o lobo não tem deveres para com as ovelhas, enquanto nós as criamos, damos-lhes comida e água, e quando elas estão com toda a confiança em nós, um dia cortamos-lhe o pescoço. Ninguém acha que por isso somos maus".

Josif olhava para mim com a cabeça apoiada numa das mãos.

"Diga-me o mesmo dos bacilos. Um bacilo vive - e faz a massa do pão fermentar; outro bacilo vive - e danifica os pulmões de uma criança. Nem um nem outro sabe o que fazer, mas eu aprovo um e condeno o outro. Destarte as coisas em si mesmas não são boas nem más - classificamo-las de acordo com a sua conveniência ou inconveniência em relação a nós. Queremos que o universo inteiro se adapte a nós, nos convenha, embora sejamos dele uma parte infinitesimalmente pequena".

A cela escura e inesperadamente em silêncio. "Em segundo lugar", disse eu, "o que chamamos 'mau' é muitas vezes apenas um bem inacabado".

"Isto para mim vai precisar de prova", interveio Josif.

Eu disse: "Você teve um homônimo há 4.000 anos, que foi vendido como escravo por seus irmãos e sofreu muitas outras injustiças no Egito. Depois ascendeu ao posto de Primeiro Ministro, e assim capacitou-se a salvar o país tanto quanto os seus irmãos ingratos de morrer de fome. Assim pois enquanto você, como José, não alcançar o final da história, não pode saber se o que aconteceu até aí vai redundar em bem ou em mal. Ao iniciar o pintor um quadro, tudo o que vemos são uns borrões de tinta. Leva tempo para que o modelo do pintor apareça. Todos admiramos o retrato de Monalisa, mas Leonardo levou quarenta anos para terminá-lo. Escalar um monte é difícil antes de se poder gozar o panorama lá do pico.

"Mas os homens que morrem aqui na prisão", disse Josif, "nunca chegarão a ver o panorama".

- Mas, quanto a isso, um período na cadeia pode ajudá-lo a galgar o cume. Teria o camarada Gheorghiu-Dej chegado ao poder na Romênia se não tivesse estado na prisão como nós?

- E os que não vivem para tornar a ver a liberdade?

"Lázaro morreu em pobreza e doença", concluí, "mas Jesus diz-nos em uma parábola que os anjos o levaram para a bem-aventurança eterna. Depois da morte virá para todos nós uma compensação. Somente quando virmos o fim de tudo é que podemos esperar compreender". Josif prometeu pensar nisso.

Uma cura rápida de dor de dentes é notícia boa, e uma carta que recebi levantou-me da minha prostração erguendo-me até ao céu: dizia-me que minha esposa estava livre. Ainda permanecia confinada a Bucareste, mas o meu filho em breve teria licença para visitar-me! A carta terminava aí: era toda a informação permitida.

Deixei Mihai com nove anos, agora ele tinha quinze. Não podia imaginá-lo crescido. Sempre fôramos muito pegados um ao outro. Comecei a impacientar-me dia e noite por revê-lo. Por fim levaram-me a um salão, onde tive de me sentar numa guarita provida de uma janela vedada por três barras de ferro, tão pequena que o visitante só podia ver uma pequena parte do meu rosto.

O guarda anunciou: "Mihai Wurmbrand!". Ele veio e sentou-se diante de mim. Estava pálido e franzino, tinha as faces encavadas e uma promessa de bigode.

Disse às pressas, antes que o interrompessem: "Mamãe diz que mesmo que o senhor morra na prisão, não deve o senhor ficar triste porque todos nos encontraremos no paraíso".

Primeiras palavras de consolação! Eu não sabia se devia rir ou chorar. Recobrei a calma e perguntei: "Como vai ela? Vocês tem comida em casa?"

"Ela está bem", disse ele: "E temos comida. Nosso Pai é muito rico".

Os guardas encarregados de presenciar nossa conversa mostraram os dentes num sorriso forçado. Pensavam que minha esposa tinha-se casado de novo.

Para cada pergunta Mihai encontrava alguma resposta com um verso da Bíblia, de sorte que nos poucos minutos de que dispusemos recebi pequenas notícias da família; contou-me no entanto que deixara um pacote com os guardas no portão.

Recebi o pacote no dia seguinte, como excedente do que me era permitido, por que Mihai o endereçara a "Ricardo Wurmbrand". Os outros tinham sido encaminhados ao meu nome de cadeia, Vasile Georgescu. Logo depois voltaram todas as restrições anteriores: nada mais de visitas nem pacotes nem cartas.

Antes que terminasse aquele período de desafogo, um guarda levou um cesto à cela. Continha lençóis e toalhas, mais do que o suficiente desses inimagináveis artigos de luxo para todos.

"Houve um erro na contagem!" disse EmiJ, alfaiate. "Va­mos recortar o que sobrar e fazer roupa! Posso confeccionar umas camisas quentes com este material!"

lon Madgearu, advogado, disse nervosamente: "Isto é roubar o que é propriedade do Estado".- Quem vai saber? Não há inventário!

- Eu sou prisioneiro político, não um criminoso comum.

- Você é um toleirão, isto sim!

A discussão esquentou com palavras dirigidas de parte a parte. Josif apelou para mim.

Eu disse: "Toda esta 'propriedade do Estado' foi roubada de nós. Fomos reduzidos a farrapos; temos o direito de reaver o que for possível. É nosso dever para com nossas famílias fazer tudo que pudermos para sobreviver durante o inverno. Acontece o mesmo quando o guarda chega quase dormindo de manhã cedo e pergunta: ”Quantos estão nesta cela hoje?” Exageramos o número dos que estão conosco para recebermos um pouco mais de pão - o que absolutamente também está certo!"

Madgearu atalhou: "Prefiro conformar-me com a lei". "Mas toda lei é injusta para com alguém", repliquei. "A lei diz uma coisa a um milionário, que tem de tudo para não precisar furtar, e a mesma coisa diz a você e a mim, que nada possuímos. Jesus escusa a Davi por fazer uma coisa que não lhe era lícita quando esteve com fome".

Madgearu por fim concordou conosco, mas depois me disse ter uma razão especial para não fazer concessões daquela natureza.

"Já fui promotor oficial e no meu tempo mandei centenas para a cadeia. Pensava: 'Ora, o que digo não faz diferença; o Partido em qualquer caso os meterá no cárcere'. Quando depois me tornei bode expiatório de alguns erros, recebendo a pena de quinze anos de prisão, fiquei assombrado. Mandaram-me para as jazidas de chumbo de Valea Nistrului. Lá um preso cristão tornou-se meu amigo. Dividia comigo seu alimento e foi para mim um bom pastor. Sinto que já tinha tido contato com ele antes, e então perguntei a razão de ter sido preso. 'Oh', disse, 'ajudei um colega em dificuldade, como você. Ele foi à minha fazenda, em busca de comida e proteção. Depois foi preso como guerrilheiro e eu peguei vinte anos'. Eu disse: 'Que baixeza!', lançando-me ele um olhar esquivo... Aquela objurgatória, que proferi, recaiu sobre mim. Eu fora o promotor no seu caso. O homem nunca me censurou, mas o seu exemplo de pagar o mal com o bem levou-me a decidir ser cristão".

Josif exultou ao experimentar a camisa que Emil lhe fizera dos panos de toalhas excedentes. Era à maneira de túnica, com uma abertura onde enfiava a cabeça, mas ficou contente de ter alguma coisa nova em cima da pele. "Propriedade do Estado! Hoje em dia  todo mundo furta", dizia prazenteiro.

Stavrat interveio: "Ele tem isso como coisa aceita. Em dez anos tornamo-nos uma nação de ladrões, mentirosos e reles espiões. Fazendeiros roubam das terras que já foram suas; lavradores roubam da organização coletivista; até os barbeiros roubam as navalhas das lojas que eram suas e que a cooperativa confiscou. E depois precisam encobrir seus furtos. Pastor, o senhor fez restituições de taxas absolutamente certas?"

Admiti não ver qualquer razão para entregar o dinheiro dos meus paroquianos ao Partido ateu.

' 'Furtar vai ser em breve uma matéria ensinada nas escolas", disse Stavrat.

Josif observou: "Eu não lhes dava atenção na escola. Os professores diziam que a Bessarábia, a qual todo o mundo sabe que nos foi roubada, sempre fizera parte da Rússia". "Excelente rapaz!", disse o general. "Espero, Josif, que você também rejeite o que eles ensinavam contra a religião", acrescentei, e contei-lhe de um professor do meu conhecimento que era obrigado a prejecionar regularmente sobre o ateísmo. "Depois de benzer-se, sozinho no seu quarto, pedindo perdão de Deus, saía para dizer aos alunos que Deus não existia".

"Bem, era natural", disse Josif, "devia haver espiões a observá-lo". Não podia ele imaginar um mundo em que as pessoas não precisassem olhar à sua volta antes de abrir a boca para falar.

A conversa passou a girar em torno de um novo delator, chamado Jivoin, que desertara do exército iugoslavo e fora preso na fronteira como espião. Agora, para ganhar as boas graças das autoridades da prisão, passava por aníititoista e trazia os guardas em polvorosa delatando-os, se acontecia de relaxarem os regulamentos.

"Alguns de nós decidimos assustar a Jivoin", disse Josif. "Se todos juntos cairmos em cima dele, não poderão castigar-nos muito".

"Esperem mais um dia", disse eu. "Tenho uma ideia que dará melhor resultado".

Jivoin era mal visto na cela, por isso sentiu-se lisonjeado quando o procurei e indaguei a respeito de sua terra natal. Não demorou a dizer gracejos da Croácia e provérbios da Sérvia, rememorando a beleza de Montenegro, suas cantigas e danças. La ficando sempre mais excitado, eu a instigá-lo.

"E qual é o novo Hino Nacional de sua pátria?" perguntei. - Oh, é magnifico - ainda não o ouviu?

- Não, gostaria muito.

Todo regozijo, Jivoin saltou e começou a cantar. Os guardas do lado de fora não reconheceram o hino titoísta senão quando chegou a vez do estribilho. E logo Jivoin foi agarrado e levado a enfrentar um irado oficial político.

"Bem, é o fim dele", disse Josif. E começamos a rir.

Não muito depois de Jivoin ter sido afastado do nosso meio, um ex-guarda de ferro, Capitão Stelea, foi removido para a nossa cela, vindo de outra abaixo da galeria. Lá deixara, com tristeza, um velho companheiro dos tempos de guerra.

"Qual o nome dele?" perguntou o General Stavrat.

"lon Coliu", respondeu Stelea. "Foi posto comigo na noite que se seguiu à minha chegada em Tirgul-Ocna, quando conversamos a valer sobre os tempos de outrora.

Stavrat perguntou se ele havia contado a Coliu algum segredo que não revelara no interrogatório e sob tortura.

"Sim, tudo", disse Stelea. "Ele foi meu amigo íntimo durante anos. Eu arriscaria minha vida por ele".

Ao dizer Stavrat que lon Coliu se tornara o mais vituperado alcagüete de Tirgul-Ocna, Stelea não pode acreditar. Pediu-me confirmação do fato. Durante horas Stelea ficou sentado em sua tarimba qual soldado traumatizado que sofresse de uma neurose de guerra. A seguir deu um salto e começou a bradar e lutar conosco, histericamente, até que os guardas o levaram.

Reserva-se uma sala em todos os presídios para os que sucumbem. São deixados lá a esbravejar e gritar, a defecar no chão e a se engalfinharem, às vezes até morrerem. A comida lhes é empurrada por uma portinhola e aí deixada. Guarda nenhum arrisca a vida entre eles.

A sentença de Josif ia expirar dentro de poucas semanas. Fazia planos para o futuro, disse-me: "Minha irmã na Alemanha procurará conseguir licença para viajarmos à América. Aperfeiçoarei o meu inglês e aprenderei um ofício!"

 

Mas ainda abominava o seu rosto desfigurado. Certa noite contei-lhe como Helen Keller, apesar de cega, surda e muda, veio a ser uma das grandes personalidades da América. Ficou fascinado ao descrever-lhe eu como aprendera sozinho piano, tornando-se exímia pianista, auxiliada apenas por um pedaço de madeira ressonante preso nos dentes, a outra extremidade fixado ao piano, e como o seu trabalho trouxe o sistema Braille para milhares de cegos.

"Escreveu em um dos seus famosos livros que, não obstante nunca ter visto o Céu estrelado, levava-o no coração. Estava aí a razão de ter podido expor ao mundo, que possui estes sentidos, mas que muitas vezes deixa de usá-los, a beleza da criação de Deus".

Contei-lhe ainda que Helen Keller veio de uma família rica. Se tivesse sido "felizarda" como outras moças, possuindo todos os cinco sentidos, teria dissipado sua vida em trivialidades. Ao invés disso, usava o que o mundo chamava "mal" como estímulo para alcançar as altitudes de novas realizações.

Josif refletiu. "Helen Keller deve ter sido um caso entre mil", disse.

"Não. Há muitos iguais a ela. O escritor russo Ostrovsky era cego, paralítico e tão pobre que precisou escrever sua novela em papel de embrulho. Hoje tem fama universal. Grandes homens o mais das vezes têm sido doentes. Schiller, Chopin, Keats foram tuberculosos como nós. Baudelaire, Heine e nosso poeta Eminescu foram sifilíticos. Dizem os cientistas que os bacilos dessas enfermidades excitam nossas células nervosas e por esta forma aumentam nossa inteligência e força de percepção, embora possam ocasionar loucura ou morte no fim. A tuberculose pode tornar pior uma má, contudo as boas tornam-se melhores; vêem que suas vidas vão-se apagando e desejam fazer todo o bem que podem no tempo que lhes resta".

Josif ajudou muitas vezes na Sala Quatro. Eu disse: "Você não viu a excepcional serenidade, gentileza e lucidez que sobrevêm a alguns daqueles que sofrem de tuberculose?"

Seus olhos brilharam. "Isto é certo. Como é esquisito!" Continuei: "Durante milênios o homem considerou o fundo - esse mofo de paredes - como coisa ruim. Há vinte e cinco anos, porém, Sr. Àlexander Fleming achou naquilo um bem, descobrindo a penicilina que tantas doenças cura. Até que se conhecesse sua real utilidade esse fungo era um mal. Pode ser até que ainda precisemos conhecer o meio de fazer o vírus da tuberculose agir em benefício nosso. Quando acontecer que esta nossa moléstia incurável se vença, em nossos filhos talvez se inoculem pequenas doses do seu germe para lhes ativar a inteligência".

"Deus fez o Céu e a Terra,  também a sua vida e tanta beleza, Josif! Há sentido no seu sofrimento, como o houve no de Jesus, porque foi sua morte na cruz que salvou a humanidade".

Josif tiritava em sua camisa nova, que já estava ficando poída. Peguei a jaqueta de lã que meus parentes me haviam mandado, e dela tirei o forro para mim. Persuadi Josif a ficar com a jaqueta. Com os braços envolveu-a de encontro ao peito para mostrar como se sentia com ela aquecido. Sua conversão começou naquele dia. Apesar disso ainda faltava alguma coisa para levá-lo de todo à fé.

E isso aconteceu durante a distribuição das rações de pão. Estas eram postas em carreiras sobre uma mesa todas as manhãs. Cada porção devia pesar uns cem gramas, porém, algumas eram um pouquinho maiores, outras, menores. Muitas vezes havia discórdia sobre a quem tocava a vez de escolher antes de outros, e brigavam a respeito de quem seria o último. Uns indagavam o parecer de outros: qual será a maior porção das que ali estavam. E tirando a porção indicada por outros, suspeitavam que tinham sido logrados, e assim amigos se tornavam azedos uns com os outros por causa de um bocado a mais ou a menos de pão preto. Ao procurar lograr-me um preso intratável chamado Trailescu, Josif ficou observando.

Eu disse a Trailescu: "tome também a minha ração. Sei que você está com muita fome". Ele deu de ombros e meteu o pão na boca.

Sentamo-nos a traduzir versos do Novo Testamento naquela noite para o inglês e Josif adiantou: "Já lemos quase tudo o que Jesus disse, mas ainda gostaria de saber como era ele, com quem se parecia".

Respondi: "vou dizer-lhe. Quando eu estava na Sala Quatro, havia um pastor que dava tudo quanto tinha - seu último pedaço de pão, seu medicamento, o casaco que usava. Eu também dei coisas assim algumas vezes, quando delas precisava para mim. Mas outras vezes, quando os homens estavam famintos, doentes e necessitados eu podia estar muito tranquilo, não me incomodava. Aquele pastor parecia-se de fato com Cristo. Era de se pensar que o simples contato de sua mão podia curar e acalmar. Certo dia ele conversava com um pequeno grupo de prisioneiros e um deles fez a pergunta que você me fez: com quem Jesus se parece? Nunca encontrei ninguém como esse homem que o senhor descreve, tão bom, amável e digno de confiança'. E o pastor replicou, num momento de muita coragem, simples e humildemente: 'Jesus é como eu". E o homem que tantas vezes tinha sido atendido bondosamente por ele, respondeu sorrindo: 'Se Cristo era como o Senhor, então eu o amo'. São muito poucas, Josif, as vezes em que alguém pode falar assim. Mas para mim é isto o que significa ser cristão. Crer em Cristo não é tão grande coisa como se tornar a pessoa que Ele é “.

"Pastor, se Jesus é como o senhor, neste caso eu também o amo", disse Josif. Afirmou isto com um olhar fixo, pleno de inocência e paz.

Passou aquele momento e prosseguimos a nossa lição. Contei-lhe como Jesus respondeu aos judeus que pediam um sinal, para que nele pudessem crer. "Nossos pais", disseram, "receberam pão do Céu. Moisés o conseguiu para eles". Jesus replicou-lhes: "Eu sou o pão da vida. O que vem a mim nunca terá fome ou sede. Vossos pais comeram e morreram. Falo do pão que vem do Céu; quem dele comer nunca morrerá".

No dia seguinte Josif foi servir na Sala Quatro, como tantas vezes fazia. Quando à noite nos encontramos, ele disse: "Quero ser cristão mais do que outra coisa". Batizei-o com um pouco de água de um caneco de estanho, dizendo: "Em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo". A amargura dissipou-se do seu coração completamente antes de ser libertado.

No dia de sua partida abraçou-me. Dos seus olhos corriam lágrimas. Ele disse: "O senhor me ajudou como se fosse meu pai. Agora posso agüentar-me, com o auxílio divino".

Anos depois voltamos a encontrar-nos. Ele era cristão. Mas agora se orgulhava da cicatriz que antes detestava.

Os diretores do nosso presídio logo ficaram refeitos do susto causado pela morte de Stalin. Tinha havido sérias perturbações nos campos de escravos da Sibéria, e eles estavam determinados a não mostrar fraqueza. As velhas restrições voltaram a vigorar e foram criadas outras. As janelas foram fechadas e seus vidros pintados, apesar dos protestos do médico; só à noite, quando os guardas não estavam vigiando é que podíamos abrir uma brechinha nelas. No verão o calor e o fedor eram horríveis.

Fora, igualmente, aumentaram os sofrimentos da Igreja. Ouvimos de padres ortodoxos recém-detidos, que o Patriarca Justiniano se tornara cem por cento um instrumento do Partido. Um dos seus piores atos foi sua maneira de tratar Madre Verônica, uma freira reverenciada por toda a Romênia. Anos antes, quando era uma camponesa analfabeta, Verônica alegava ter tido uma visão da Virgem Maria, que lhe apareceu num campo e lhe disse que fosse construído um convento naquele local. Depois de várias aparições daquela natureza começaram a chegar donativos e 200 moças tomaram o hábito. Nos anos seguintes o santuário da Virgem tornou-se lugar de peregrinação como Lourdes, e depois que os comunistas assumiram o poder a lenda de que ela redimiria a Romênia adquiriu novo sentido. Um dia Justiniano chegou em um carro preto lustroso e começou o seu serviço excomungando o capelão da igreja do convento. Depois, como chefe da igreja, disse às freiras que elas estavam perdendo o seu tempo em preparar-se para uma vida além desta; muito melhor seria que saíssem dali e fossem gozar os prazeres do mundo - por que haveriam de renunciar os direitos que o sexo lhes dava em troca de uma ilusória bem-aventurança futura? As freiras não lhe deram ouvido. Recusaram-se a deixar seu refúgio. Assim, à vista de Justiniano seguiu-se uma batida pela Polícia de Segurança. As irmãs que não quiseram quebrar seus votos foram vergonhosamente maltratadas, e acabou fechando-se o convento. A notícia desse fato abalou a Romênia: o Partido ficou preocupado. Madre Verênica foi submetida a enorme pressão em uma prisão secreta e obrigada a confessar que a visão que tivera foi uma burla. Depois que foi solta, casou-se e teve filhos. E assim foi que acabou a Lourdes romena.

Outro golpe nos fiéis foi o que aconteceu a Petrache Lupu, conhecido como o "santo zagal" de Oltenia. Quando guardava seu rebanho muitos anos antes, vira a figura de um velho. Este se apresentou como Deus, declarando que mais igrejas deviam ser construídas e dinheiro dado aos pobres. Apesar de Lupu ter sífilis hereditária, mal podendo falar que se entendesse, acreditou-se em sua história. Milhares de pessoas foram vê-lo. Rebentando a guerra, e sendo ele encaminhado à frente de batalha para  animar as tropas, os soldados disputavam o privilégio de beijar-lhe a mão. Ia de um setor a outro dizendo-lhes que Deus queria que matassem mais russos. Sendo capturado pêlos comunistas, Petrache Lupu perguntava aos seus companheiros de prisão quando era que os americanos iriam resgatá-los. "Por que esperar pêlos ianques?" diziam-lhe. "O seu 'Velho' com certeza virá libertá-lo em breve. Lupu cacarejava. Ele gostaria de fazer isto, mas não arranjou ainda uma espingarda!"

Os padres ortodoxos narravam com tristeza outro caso: o de um frade milagreiro, Arsene Boca, cujos adeptos diziam não precisar confessar-lhe os pecados, porque ele sabia quais eram estes só em olhá-los de relance. Boca passou um tempo preso. Depois abandonou o hábito, casou-se, vivendo como os demais homens.

Muitos dos golpes desferidos pelo Partido na religião, apenas decepavam galhos de crendices supersticiosas, deixando a fé autêntica mais pura do que nunca. Mas a natureza humana é tal que se a superstição religiosa vem a ser tosada drasticamente é possível que a superstição ateística lhe tome o lugar. Em vez de veneração às imagens sagradas, temos a idolatria a Stalin, o assassino de multidões, passando o segundo demônio a ser pior do que o primeiro.

Nova leva de presos chegou e um deles, que tinha sido surrado gravemente, mandou chamar-me. Fui com o Professor Popp corredor afora.

Era Boris. O velho sindicalista dos trabalhadores tinha estado em várias penitenciárias desde que a reeducação tivera fim. Jazia no chão, onde os guardas o soltaram. Os outros da cela estavam fora, em exercícios, e ninguém lhe tinha prestado qualquer auxílio até que Popp passou. Pusemo-lo com cuidado num leito de tábuas. Sua camisa imunda estava grudada à pele com sangue coagulado. Devagar e doloridamente ensopamo-la e despregamos, pondo-se à mostra nas costas marcas entrecruzadas, novas e antigas, de chicotadas. Foi o pagamento que lhe deram por cooperar com os reeducadores, e o prêmio de todos os seus companheiros que pensavam granjear as boas graças do partido brandindo cassetetes.

Os presos, vindos do exercício, puseram-se em fila, e muitos lançavam a Boris um olhar de ódio e desprezo.

"Eu mesmo dei lugar a isto", disse o coitado, enquanto eu e Popp lavávamos os ferimentos.

 

"Está aí o que você arranjou", disse alguém. Boris segurou firme o meu braço, "encontrei uma pessoa que o senhor conhece. Patrascanu mandou-lhe um recado por mim".

Disse que Lucretiu Patrascanu, ex-Ministro da Justiça comunista, que estivera comigo na cela depois de nossa detenção em 1948, estava morto. Durante o ano de incertezas que se seguiu ao desaparecimento de Stalin, os mandões do Partido ficaram temerosos, tanto quanto nossos guardas, de que podiam ficar submersos numa contra-revolução. Viam no detento Patrascanu um homem de popularidade que podia liderar um movimento liberal e tomar vingança contra eles. Depois de seis anos de prisão, instauraram contra ele um processo rápido, sendo condenado à morte.

Boris esteve com ele por breve tempo. Disse que Patrascanu, que tanto fizera para levar o Comunismo ao poder, foi torturado antes de morrer. Queixara-se do frio; deram-lhe para vestir roupas pesadas e puseram-no em grilhões. "Ainda sente frio?" disseram, e aqueceram a cela até que, ofegante e ensopado de suor, pediu-lhes que desligassem o aquecedor. Assim fizeram, depois do que o deixaram só com a camisa e baixaram a temperatura até ao ponto de gelo. Patrascanu foi assim alternadamente cozido e congelado, e como não morresse, levaram-no para fora e o fuzilaram.

Boris concluiu: "Ele me disse: 'Se você voltar a ver Wurmbrand, diga-lhe que ele tinha razão"'. O Dr. Aldeã entrou e foi dizendo a Boris: "Temos de levá-lo para a Sala Quatro".

Passei o tempo todo que pude com Boris na "sala da morte", e alguns dias depois pareceu-me que ele se restabelecia. Embora seu orgulho não o deixasse admitir, estava contente por voltar àquela atmosfera de compreensão humana.

Acenou com a cabeça na direção de seu vizinho, testemunha de Jeová: "O velho Losonczi está orando por mim. Faz bastante orações por nós dois". Erguendo mais a voz, disse: "Losonczi, você diz tudo a Deus, não é?"

O velho companheiro respondeu: "Peço o bem para todos nós".

"Você ainda não teve uma resposta", observou Boris. "Ele está esticando sua canela, talvez; está refinando você, qual outro Jó!"

Agarrou o meu punho. "É algo que exige explicação, não é? Ano após ano os homens oram pedindo liberdade, notícias de seus familiares, uma refeição só que seja para saborearem. Que recebem? Nada!"

Boris prosseguiu. "Estive em Jilava, o pior cárcere da Roménia. Meus amigos oravam: 'Deus, se tu nos amas, dá-nos alguma coisa para comer, que não esteja bichado'".

"E a comida melhorou?" perguntou Losonczi.

"Nada, ficou pior!"

Eu intervim. "Quando o médico o submete a tratamento, não acontece quase sempre causar-lhe dores? Pense um momento nos animais que morrem submetidos às experiências dos cientistas. Se houvesse um cachorro ciente de que, pelo que sofresse, podia salvar a vida de milhões de seres superiores, não aceitaria o sofrimento de boa-vontade, até mesmo a morte? Creio

que o que sofremos pode ser útil a gerações futuras. Jesus supor­tou suas dores, ciente de que por elas salvaria o género huma­no".

Losonczi observou: "No mundo inteiro, todos os dias, pessoas dizem o 'Pai Nosso', e declaram que o Reino de Deus está para vir, e ele não vem. Penso porém saber a razão. É que as pessoas que oram não querem de fato o que pedem. Dizem: 'Venha o teu Reino', mas não é uma súplica do coração. O que realmente querem é o retorno da Guarda de Ferro, ou a vinda dos americanos, ou o regresso do Rei, ou quem mais possa vir para ajudá-las".

Boris escutava sério.

"Mas a última coisa na mente de tais pessoas, com certeza, é o Reino dos Céus, se bem que podiam tê-lo como certo se nele pensassem e por ele trabalhassem. Na minha aldeia tínhamos um culto de oração em favor dos pobres. Todos compareciam, menos um agricultor rico, cujo banco ficava vazio. Enquanto pensávamos que éramos muito melhores do que ele, seu filho apareceu um dia levando quatro sacos de trigo. Colocou-os à porta da igreja e disse: "Meu pai mandou a oração dele". Aquele homem fizera algo para criar o Reino de Deus".

Eu disse: "Aí tem você a resposta, Boris! A Bíblia prometia que os judeus viriam dos confins da terra e receberiam o seu reino na Palestina - mas a profecia não se teria cumprido por mais de 1.000 anos se homens como Herzl e Weizmann não trabalhassem e lutassem por cumpri-la".

Outros por ali perto, macilentos, sorumbáticos, naquela sala da morte, fizeram-me perguntas sobre o sentido da oração e em que consistia o auxílio que prestava. Expressei meus pensamentos em voz alta: "Muitos vêem Deus como um ricaço a quem recorrem pedindo favores. Muitos se apegam a superstições.

Mas os cristãos sabem que nos cumpre realizar uma forma mais pura de religião, ainda que isto não toque a todos. Nossas orações assumem a forma de meditações, aceitação, amor.

"Milhões invocam ao Pai diariamente. Mas visto como na terra somos filhos de Deus, e os filhos participam das responsabilidades paternas, tais orações são devolvidas anos por igual. O Pai a quem todos oram não está no meu coração?

"Assim pois, quando eu digo 'Santificado seja o teu nome', devo santificar o nome de Deus; 'Venha o teu Reino', devo batalhar para dar fim ao governo das bestas bravias em grande parte do mundo; 'Seja feita a tua vontade' e a vontade dos homens bons, não dos maus; 'Perdoa os nossos pecados', devo também perdoar; 'Não nos induzas a tentação', devo procurar que outros não sejam tentados; 'Livra-nos do mal', devo fazer tudo possível para livrar os homens do pecado".

Losonczi e eu tornamo-nos amigos. Ele era interessante; era um agricultor cujo bom-senso, simples, brilhava através das opiniões estranhas que mantinha como testemunha de Jeová que era. Achei que a seita o escolhera, não ele à seita. Desiludido da Igreja Ortodoxa e procurando uma religião em consequência de uma crise pessoal em sua vida, abraçou a primeira que encontrou. Havia muitos desses "refugiados", saídos das confissões maiores. Tivesse Losonczi sido atraído a uma seita aprovada por lei, tais como os batistas ou adventistas, não teria pegado vinte anos de cadeia como um dos testemunhas fora da lei.

Certo dia, quando conversava com ele, perguntou-me: "Sabe qual o verdadeiro motivo de eu estar aqui? Não foi só -disse ele - porque o Partido odiava os testemunhas em virtude da atitude rígida deles. "Anos antes eu cometera um grande pecado relacionado com o sexo. Arrependi-me e pedia a Deus que me fizesse sofrer para expiá-lo. Ainda o estou expiando".

Losonczi não estava em condições de ouvir, por ora, outra doutrina. Estava à beira da morte.

"Até os santos tiveram dificuldades em subjugar sua natureza carnal", disse-lhe eu. "Jesus sabia disto. Ele expiou nossos pecados, pelo que não há necessidade alguma de você expiá-los por si mesmo". Ele replicou: "Não posso esquecer o que fiz".

Poucos dias depois fui à sala e encontrei vazia a cama de Losonczi. Morrera naquela noite.

O velho morrera pensando no pecado sexual de sua mocidade, e ali não era ele o único a sofrer. O sexo era um angústia constante de todos na prisão. Prisioneiros sentavam-se fitando o vácuo, tendo a cabeça cheia de fantasias sexuais. Procuravam

alívio conversando horas a fio e muitas vezes me atazanavam com

perguntas provocadoras.

Homens casados, pensando no que estariam fazendo suas esposas, sofriam mais do que todos. Boa parte já se tinha divorciado na ausência dos maridos; era forte a pressão para que elas se divorciassem de "contra-revolucionários", e mulheres que já haviam deixado seus maridos presos por outros homens não tinham razão de resistir àquela pressão.

Um líder da conversa em torno de sexo, a qual já se tornara obsessão, comprara certa vez um andar do edifício de grande departamento comercial e - segundo sua própria narrativa -seduziu muitas funcionárias dali. Um homem mundano de meia-idade, NicolasFrimu, envaidecia-se do apelido que tinha na prisão, 'O Grande Conquistador'. Vangloriava-se muito da esposa, jovem atriz, que, dizia ele, o adorava.

Ao ser chamado um dia ao gabinete do comandante, espe­rava ouvir o resultado de sua apelação da sentença. "Estarei livre daqui a pouco", disse. "E então...!" estalava beijos nos dedos.

Logo estava de volta, vermelho de raiva. "Minha apelação foi impugnada - e ela divorciou-se de mim, casando com outro!" explodiu. Durante alguns minutos descreveu sem parar a vingança que ia tomar da mulher e do seu novo marido - que era o diretor do Teatro do Estado. Outros maridos abandonados instigavam-no, bradando e rindo com amargura, inventando outros castigos ainda mais atrozes.

Eu disse: "Mas quantos de nós ficariam fiéis às suas esposas se estivéssemos livres, e elas na cadeia?"

"Não nos venha com preleções!" exclamou Frimu.

Continuei: "Sinto serem más as notícias que você recebeu. Mas você sempre está se referindo às moças que tem desencaminhado; como pode esperar que sejam puras as mulheres que têm a rodeá-las homens como você!"

Novac, um deão que de ordinário era reservado e tímido, surpreendeu-nos, dizendo: "Nem sempre o marido merece censura. Procurei fazer feliz minha mulher. Pensei que tinha conseguido. Ao voltar para casa, depois de minha primeira detenção, quem me abriu a porta foi um estranho. Minha mulher saiu e disse: 'Casei com ele - por favor vá saindo!' Procurei falar com ela, mas não me quis ouvir. 'Já passei por bastantes provações, não quero mais contra-revolucionários em minha casa', bradou ela. Tive então de passar minha primeira noite de liberdade numa sala de espera de estação ferroviária".

"Tolo que você foi!" disse Frimu.

Petre, um aviador, perguntou: "E como se foi na segunda noite?"

O deão ruborizou-se e saiu.

Emil, que era agricultor, tremia de raiva ao contar como tinha voltado a casa depois de uma prévia sentença. "Minha cachorra sentiu-me o faro a meio caminho da rua. Arrancou a corrente que a prendia à cerca e correu ao meu encontro, e ao inclinar-me, ela pulava para me lamber o rosto. Dali saí para casa onde encontrei minha mulher deitada na cama com outro homem".

Seus olhos fuzilavam à volta de nós: "qual das duas era mais cachorra, pastor?"

O Partido comunista trabalhava deliberadamente para solapar a  moralidade. Mas, pondo de parte esse fator, respeitava-se a doutrina cristã relativamente a assuntos de sexo? Do que se ouvia no presídio parecia improvável, e uma porção de presos cristãos procurava descobrir algo sobre isso pedindo uma resposta exata a uma pergunta simples: "Você sempre obedeceu à regra básica da igreja cristã de guardar a castidade por palavras,   pensamentos e ações antes do casamento, e a fidelidade conjugal depois dele?"

De 300 presos, todos cristãos nominais, dois responderam sim. Um foi o virtuoso ancião Padre Suroianu, e o outro um rapazinho de quinze anos.

Sentamo-nos a comparar impressões. O General Stavrat disse: "À igreja tem de pensar de novo no assunto. Um exército não pode sair à guerra com ordens que ninguém obedece".

"Pregar o que ninguém pratica desvaloriza tudo quanto um padre tenha a dizer", observou Stancu, jornalista.

"Não podemos ir de encontro à Bíblia", objetou o Deão Novac.

"Certo que não", disse eu. "Mas conquanto não possamos chegar a um acordo a respeito do pecado, devemos ter maior compreensão do pecador. Nos tempos bíblicosLas mulheres usavam véu e vestidos que se pareciam com cobertas de tenda. O homem precisava ser um tarado para desencaminhar uma jovem. Hoje em dia as roupas que elas usam têm por objetivo atrair o sexo oposto, e as oportunidades para isso aparecem com abundância.

"Lembram-nos como Jesus tratou a mulher apanhada em adultério. Ninguém pôde atirar-lhe a primeira pedra. Os acusadores debandaram e Jesus perguntou: "Mulher, ninguém te condenou? Vai e não pesques mais".

O deão estava preocupado: "A mocidade hoje é tão licenciosa. Precisa de orientação".

Concordei, mas acrescentei: "Precisamos também ensinar que sexo é uma dádiva de Deus ao gênero humano. Temos de falar toda a verdade para excluir dele toda mancha de obscenidade. Há aí um que de divino. O mais antigo livro religioso do mundo, o "Maneva-Darma Sostra", diz: "A mulher é um altar em que o homem deposita, como sacrifício agradável a Deus, sua semente".

"A maioria de nós vê a mulher como parte de uma rotina", queixou-se Stancu. "Vemo-la assim como objeto de uso, de prazer, ou de uma boneca enfeitada que se tem para mostrar. Uma escrava para lavar e cozinhar, ou um ídolo em cujo o homem se perde. Ninguém parece considerá-la sua igual, mesmo nas relações sexuais".

"A coisa principal é o homem escolher uma companheira que o faça feliz", disse o deão.

"Ou vice-versa", sugeri. "Um dos homens mais felizes que conheci escolheu uma jovem desgraciosa da vila, porque julgava que ela não acharia nenhum outro que a quisesse em casamento".

"Que camarada romântico!" escarneceu Stancu. "O casamento não passa de um contrato. Quando meus pais encontraram uma moça fina com um dote razoável, a transação se fez. Temos vivido bem contentes, a nosso próprio modo".

"Então você absolutamente não está casado", disse eu - O sim foi trocado na igreja!

- Considero sem validez à vista de Deus o casamento feito por interesse material, mesmo que o Papa de Roma lhe dê sua bênção.

Stancu sorriu. "Então há por aí uma quantidade imensa de casamentos sem validade. Rapazes vendem-se a moças ricas, assim como moças pobres se vendem a homens ricos. Não é mais irracional a validez que se baseia em boa aparência, que não dura, do que a que se firma em sólido saldo bancário, que é durável?"

Respondi a Stancu narrando a história de uma moça cujos pais a fizeram casar com um cidadão rico. Depois de anos de infelicidade ela se enamorou de um costureiro, o que lhe fazia os vestidos, e foi morar com ele. Muitos membros da minha igreja não queriam nada com ela. Viver com um homem fora do matrimónio é pecado, mas eu procurei entender a situação dela. Seus pais, por meio de castigos e outras coisas forçaram-na àquele casamento. A melhor coisa a fazer era não desprezar aquela mulher, mas ajudá-la, encorajando-a a legalizar uma situação que era irreversível. Pedi ao meu pessoal que não a julgasse apressadamente.

"A moça veio agradecer-me, chorando. Eu disse que o fichário de membro da igreja não era igual ao fichário que Deus mantém no Céu. "Deus compreende, mesmo que não aprove, os sentimentos que levaram a senhora a lançar-se nos braços de outro homem. Deus continua amando-a". Ela abraçou-se ao meu pescoço e beijou-me, e nesse momento minha esposa foi entran­do".

Os outros rebentaram uma gargalhada. Stancu perguntou: "E como foi que o senhor explicou a ela a situação?"

"Não havia nada a explicar", disse eu. "A mulher viveu feliz com o costureiro e quando ele faleceu, anos depois, contei à minha esposa o que acontecera".

Julga-se que as penitenciárias estimulam o homossexualismo, mas não vimos nenhuma prova disso, talvez por causa das enfermidades, da exaustão e da aglomeração de detentos nas celas. O Professor Popp referia em tom de repulsa um ou dois casos suspeitos.

Eu dizia que devíamos condenar o pecado, mas procurar compreender esses homens não raro infelizes e perdoar-lhes as faltas, como fazíamos no caso de outras falhas humanas, e tentar saná-las. Muitos homens notáveis foram homossexuais -Alexandre, Adriano, Platão, Leonardo; e muitos manifestaram, no que realizaram, um profundo sentimento cristão, desde Sócrates - que foi chamado "cristão antes de Cristo"- até Miguel Angelo e, já em nossa própria época, Oscar Wilde e André Dunant, fundador da Cruz Vermelha Internacional.

"Sim, conheço a lista das coisas que lhes deram renome", disse Popp, "mas grande número deles, no teatro ou seja onde for, fazem gala desse problema seu e levam a público um caso que é um particular deles. Uma vez que a sociedade condena essa tendência, devem pelo menos usar um pouco de prudência".

Um rabino lembrou a palavra de conselho existente no livro de grande sabedoria prática, o Talmude: "Diz que se um rabino não pode dominar um impulso mau, deve ao menos evi­tar escândalo, cingir um véu e ir a outra cidade; e aí continue a pregar a lei".

Paul Cernei, um jovem que pertencera à Guarda de Ferro, estava deitado num leito próximo. Levantou-se e disse: "Vou expor aos senhores um problema enrascado, que me estragou a vida... Anos atrás encontrei uma moça - chamemo-la Jenny. Começamos a namorar. Ela nunca me deixou ir à sua casa. Afinal decidi pedi-la em casamento. Quando encontrei a casa e me apresentei, o pai saiu e foi dizendo: "Meu filho, Jenny já me disse tudo a seu respeito!" Olhei para ele horrorizado. Era um rabino, ostentando no peito a Estrela de Davi. Eu era anti-semita. Fiquei sem saber o que fazer. Disse, murmurando entre os dentes, que nunca fizera ideia de que Jenny fosse de família israelita, e fui embora".

Fez uma pausa. "Nunca mais vi a moça. E fiquei solteiro. Não podia esquecê-la. Ouvi dizer que ela também ainda está solteira".

Cernei contou essa história comovido. Stavrat ponderou:

"Quando você for libertado, pode não ser tarde demais..."

"Mas se nós tivéssemos casado", obtemperou Cernei, "quem ia mudar de religião? Eu sou ortodoxo e ela, judia".

Eu disse: "Ou a sua fé vale alguma coisa para você, e neste caso não pode trocá-la por nada no mundo, ou não vale coisa alguma, e então pode abandoná-la. Todavia, se vocês dois se amam, por que cada qual não fica com a religião que escolheu?" "Eu queria filhos", atalhou ele. "Tínhamos de criá-los numa ou noutra religião".

Fiz ver que os meninos, quando crescessem, Cernei e a esposa de per si podiam explicar-lhes suas crenças, e então deixar que eles escolhessem mais adiante a que desejassem. "Você podia fazer do amor que lhe votava um meio de trazê-la, com mansidão, à verdade".

"Os pais dela jamais aprovariam que ela mudasse de religião", observou Cernei.

"Ela devia ouvi-los, por certo, mas^íão submeter-se, sabendo que eles não tinham razão".

Stavrat meneou a cabeça: "Honrarás a teu pai e à tua mãe", disse citando o mandamento.

"Mas, general", replicou Cernei, "meu pai abandonou a casa quando eu ainda estava no berço. Minha mãe foi embora com outro. Fui criado num orfanato".

Ninguém podia achar resposta para o problema.

"Acho que devia ter refletido antes de me ir embora naquele dia", concluiu Cernei.

Quantas vezes não ouvi presos proferir palavras como essas! Assemelhamo-nos a automóveis com os faróis postos na parte traseira. Olhando retrospectivamente vemos o dano causado e as pessoas que prejudicamos. Descobrimos muito tarde que, se apenas tivéssemos parado para calcular o que custou às nossas famílias, à nossa saúde ou simplesmente ao nosso amor-próprio, não agiríamos como agimos.

Quando Cernei nos deixou, o general disse: "É um moço decente. O povo sempre censura a péssima criação quando os homens procedem mal hoje em dia, mas o rancor e a inimizade também influem neles. Dedicamos cuidado à criação de animais, no entanto criminosos degradados, imprestáveis não são dissuadidos de gerar filhos segundo a sua espécie".

Os cristãos não podem ignorar este problema fundamental da hereditariedade. Procuramos reformar pessoas adultas, ou castigar criminosos, porém nunca pedimos aos que aspiram a ser pais que considerem se algo na sua ascendência pode prejudicar os que lhes vão nascer no futuro. Não existe sexo apenas para trazer bebês ao mundo: tem seu valor próprio de tornar a vida mais nobre e mais feliz. E com isto nos desculpamos se acontece trazermos filhos ao mundo por descuido, como consequência de um momento de prazer, esquecidos de que a procriação é um ato sagrado.

A maioria dos presos, que sempre têm escassez de comida, colocam a necessidade sexual no mesmo pé de igualdade. No Juízo Final os homens serão repreendidos por deixarem de alimentar os famintos; e também o serão - dizem alguns - se deixarem de satisfazer a sede de amor dos seus companheiros, sempre que puderem fazê-lo, enobrecendo-os e tornando-os mais felizes.

Existe injustiça sexual, naturalmente, assim como há injustiça social e econômica. É ela uma das grandes causas do sofrimento humano. Mas neste caso toda lei contém inevitavelmente um elemento de injustiça, visto que dá os mesmos encargos a homens desiguais e que vivem em condições desiguais. A lei estabelece as mesmas normas tanto para os ricos como para os pobres, para os de fraca como os de forte sexualidade, para os ignorantes como para os letrados.

O casamento deve ser uma questão de honra. É um dever que as pessoas assumem - o de serem fiéis. Amor é um sentimento, e todo sentimento sofre alteração; ninguém ama a ninguém e se zanga na mesma intensidade por toda a vida. É uma lei da natureza que a paixão ou entusiasmo baixa de intensidade à medida que se vai ficando velho, por isso não pode também ser garantia de um casamento feliz. Deve então haver alguma outra coisa: é a decisão de ser leal, de fazer feliz o companheiro.

Desde que é obviamente impossível satisfazer a necessidade sexual de todos, discutimos a castidade como uma alternativa. Os católicos diziam que o pensavam a favor do celibato dos padres.

Eu disse: "Se o celibato é obrigatório e o casamento é proibido por voto, então o fracasso na abstenção pode prejudicar a fé do padre".

"Pode-se tornar-se grande força criadora", lembrou o professor. "É duvidoso qucTSpinoza, Kant, Descartes, Newton, Beethoven tenham chegado a conhecer uma mulher no sentido bíblico".

Fiz ver que o principal estímulo estava em se ensinar aos homens a sublimação desse impulso natural, encaminhando-o a obras úteis à sociedade e a Deus. Castidade, ao meu ver, era coisa para poucos. Contudo precisamos compreender mais e mais que nossos corpos não nos pertencem para que deles abusemos em prazeres egoísticos; são templos de Deus, para se consagrarem ao seu serviço.

Popp e eu nos revezávamos para tratar de Boris, que estava na Sala Quatro, combalido e tossindo. O Dr. Aldeã disse: "Se ele se alimentar pode durar uns dez dias. Minhas visitas não o ajudavam realmente. Está cheio de remorso por haver-me espancado. Minha presença até lhe faz mal".

Perguntei se ele podia ser removido para a minha cela. Aldeã conseguiu isto. Assim Boris foi levado para a cama junto da minha. Cuidei dele em sua última semana de vida.

Definhava sob as nossas vistas. Seus cabelos ficaram reduzidos a poucos fios, suas faces, fundas. Suava febrilmente, enquanto eu o enxugava, dia após dia.

"Tudo vai acabar logo", murmurou. "Um padre certa vez me disse: 'Você vai apodrecer no inferno'. Que seja!"

"Que foi que o levou a dizer isso?" perguntei.

Eu estava amaldiçoando Deus por causa dos meus sofrimentos. Ele disse que eu seria castigado eternamente.

Um pastor chamado Valentino interveio: "Os homens amal­diçoam o Partido Comunista, mas pode acontecer que ele os li­berte. Se o inferno fosse sem fim, Deus seria pior do que a nossa Polícia Secreta".

Boris abriu os olhos: "Quer dizer que o senhor não crê em Fogo Eterno?"

"A doutrina bíblica do inferno sem fim é verdadeira subjetivamente, sem dúvida, mas que é o inferno? Dostoievsky chama-o estado de consciência, e ele é um fiel ortodoxo. No livro "Irmãos Karamazov" escreveu sobre o inferno, "Creio que o seu sofrimento consiste na incapacidade de amar".

"Acho que essa espécie de inferno não me dá cuidado", disse Boris.

Respondi: "Talvez você nunca soube o que pode ser viver onde não existe nenhum amor. Quando os maus só têm por companhia gente má, imagine o que pode ser isso! Diz-se que ao entrar Hitler no inferno olhou à volta de si até que viu Mussolini: 'Que tal a coisa por aqui?' perguntou. Mussolini respondeu: 'Não é tão ruim, mas há muito trabalho forçado'. E começou a soluçar: 'Vamos, Duce', disse-lhe Hitler: 'diga-me, o que há de pior por aqui?'. 'Bem, é isto aqui - Stalin é o chefe da turma de trabalho!'

Boris sorriu: "Eu por certo acharia detestável encontrar por lá minha velha chefe política Ana Pauker". Ficou a refletir: "Aquele padre católico, que disse que eu iria para o inferno por blasfemar, era um bom homem. Nunca prejudicou ninguém, mas julgava que, só por vingança, Deus me torturaria eternamente. O Deus em que ele cria era pior do que ele".

O Pastor Valentino interveio: "Não tenho dúvida de que os que estão no inferno sentem-no como castigo eterno. (Obs.A opinião sobre o inferno aqui mencionada, não representa a posição do autor, o qual crê no castigo eterno). .  Neste sentido a Bíblia o chama interminável, como a prisão nos parece sem fim. Mas, até sob^s piores condições, vemos homens chegando-se para amar a Deus e descobrir que procederam mal. A parábola do rico e Lázaro, proferida por Jesus, mostra sinais de mudança de coração no inferno! O rico tinha sido egoísta, e agora estava interessado nos irmãos. Nada é fixo em parte alguma da natureza. Se no inferno há alguma evolução para o bem, então abre-se lá uma porta de esperança!"

Boris, debilitado, fez sinal para os presos nos leitos próximos.

"Boas notícias, rapazes! O Pastor Valentino diz ser possível que não vamos ser torrados para sempre, apesar de tudo!"

Houve risos. Frimu, Stavrat e outros aproximaram-se de nós.

"Bem", perguntou Frimu, "qual vai ser o meu castigo?" Frimu era um glutão. Eu disse: "Os primitivos cristãos costumavam contar de um homem que foi parar no inferno, onde teve a surpresa de encontrar a mesa posta de um banquete. Reconheceu muitos vultos históricos ao redor da mesa. 'Vocês têm sempre festas assim por aqui?' perguntou, "pois não, podemos pedir o que quisermos!' 'Então qual é o castigo de vocês?' 'É que não conseguimos nunca levar à boca a mão que sustenta a comida'. O recém-chegado viu uma solução. 'Mas vocês não podem levar a comida à boca uns dos outros?' 'O que?' exclamou um deles. 'Ajudar outra pessoa? Eu prefiro continuar morrendo de fome!"

O General Stavrat disse: "Ensinaram-me na escola e na igreja que Deus castiga eternamente aqueles que morrem impenitentes e sem fé. É dogma aceito".

"Aceito em sua mente, porém não talvez no seu coração, general. Vemos homens ao nosso redor amaldiçoando Deus e negando sua existência porque sofrem injustamente. Com certeza serão julgados segundo suas obras, palavras e pensamentos. E daí? Suponha que vê um desconhecido em perigo de morte – o senhor seria o primeiro a correr e ajudá-lo. E se um cristão de fato crê que seu vizinho será torturado eternamente no inferno, deve procurar dia e noite persuadi-lo a arrepender-se e crer. Como é triste não acontecer assim'

Os velhos preconceitos de Boris desfizeram-se um após outros, mas ao invés de ficar animado tornou-se deprimido. "Acho que desperdicei minha vida", disse, "eu me julgava sagaz, inteligente. Desencaminhei muitas pessoas nos últimos cinquenta anos. Se o seu Deus existe, não há de me querer no Céu! Assim, vou mesmo ficar com a porca velha Pauker - estou mesmo amedrontado!"

Muitas vezes, quando ele não podia dormir, pedia-me que conversasse.

"Se eu fosse o senhor, não perderia tempo em rezar por mim". E riu bastante provocando em si um acesso de tosse.

Disse Valentino: 'Estou certo que você praticou muita coisa boa. Há sem dúvida muita gente pior. Mas eu rezo pêlos piores de todos - Stalin, Hitler, Himmler, Beria".

"Que pede o senhor na oração?" perguntou-me Boris com voz débil.

Eu respondi: "Ó Deus, perdoa os grandes pecadores e criminosos e, dentre os piores deles, perdoa a mim também".

Sentei-me junto dele por longo tempo. Tudo estava tão silencioso que podíamos ouvir as bazófias de Frimu na cela vizinha. Gargalhavam e outras vezes riam baixinho, ouvindo as proezas dele em matéria de sexo.

Boris ficou calado algumas horas. Pensei que dormisse. De repente murmurou: "Como será isso?"

"Isso o quê?" perguntei.

O juízo de Deus. Senta-se Ele em elevado trono, a dizer: 'Inferno, Céu... Inferno, Céu', à medida que as almas vão chegando à sua presença? Eu mesmo não posso imaginar". Então falei-lhe o que eu imaginava que fosse. "Deus senta-se num trono tendo atrás de si grande cortina e, um a um, vamos chegando à frente dele. Então Deus faz um sinal com a mão direita e de trás da cortina saem criaturas cada qual mais bela do que a outra: tão esplêndidas que não podemos suportar fitá-las. Cada uma daquelas criaturas fica diante dos que vão ser julgados. Os que são acusados perguntam: 'Quem é esta bela criatura comigo aqui?' Deus responde: 'Essa é você, como você seria se me tivesse obedecido'. E então sobrevêm, para os desobedientes, o eterno inferno de remorsos". "Remorso", disse Boris num murmúrio. Durante a noite ele teve uma hemorragia. Vi-me atrapalhado com ele; depois caiu em coma. Ficou quieto, os olhos abertos e parados, fixos no teto, durante uma hora. Tomei-lhe o pulso, estava fraco, mas à pressão dos meus dedos podia ser sentido. De súbito, com os braços esticados, ergueu-se um pouco da cama e soltou um grito que parecia arrancar a alma do corpo: "Senhor Deus, perdoa-me!"

Alguns dos presos ao nosso redor acordaram e começaram a resmungar; depois voltaram a dormir.

Ao clarear do dia comecei a lavar o corpo e prepará-lo para o enterro, e enquanto fazia isso alguém informou ao bispo ortodoxo, numa cela adiante no corredor, que um homem morrera. Ele chegou e começou o ritual. Continuei com o que estava fazendo. De vez em quando o bispo parava para me imitar: "Levante-se! Tenha-me alguma consideração!" Mas eu não ligava. Terminado o ritual, o bispo ainda voltou a repreender-me.

Respondi-lhe: "Onde estava o senhor quando este homem toda a semana passada esteve moribundo? Levou-lhe à boca um copo de água, quando ele sentia sede? Por que somente agora apareceu para realizar uma cerimónia que a ele nada adianta?"

Zangamo-nos. O ritual dele afigurava-se uma coisa vã, ao lado daquele brado simples, partido das profundezas do coração: "Senhor Deus, perdoa-me!"

A primavera de 1955 trouxe sinais de abrandamento na política. Uma porção de comandantes de presídio foi presa por "sabotagem". A Tirgul-Ocna chegaram muitos dos obreiros escravos que tinham sido vítimas dos "sabotadores". Foi necessário arranjar camas para eles, e eu fiquei no grupo que no princípio de junho recebeu ordem de se aprontar para ser transferido a outra penitenciária.

O Dr. Aldeã disse: "O senhor não está em condições de se mudar, mas nada podemos fazer. Tenha cuidado consigo. Se lhe vier às mãos mais alguma estreptomicina - não dê a ninguém!"

Despedi-me de meus amigos com lágrimas.

"Ainda nos veremos, eu sei", disse o Professor Popp.

Ouvi chamar o meu nome e me pus em linha ao lado de outros no pátio. Éramos um grupo bizarro, todos de cabeça rapada, com roupas de muitos remendos, cada um de nós sobraçando uma trouxa de trapos - tudo quanto possuíamos. Alguns mal podiam andar; não obstante, aqueles que cumpriam penas maiores tiveram ordem de avançar e depois sentar-se no chão, enquanto recebíamos grilhões nos tornozelos.

O oficial político observava o ferreiro, ao passar de um homem para outro. Chegada a minha vez, o oficial sorriu displicentemente.

"Ah, Vasile Georgescu! Com certeza você já tem algo a contar desta coisa de ser metido em ferros, não é?"

Deitado de lado, olhei para ele e disse: "Sim, tenente, posso dar-lhe uma resposta cantando".

Pôs as mãos para trás e disse: "Oh, pois não! Estou certo que todos gostaremos de ouvi-lo".

Cantei as palavras do primeiro verso do Hino da República: "Os grilhões, quebrados, ficaram para trás de nós..." O martelo do ferreiro com alguns golpes mais dava por finda sua tarefa, e naquele silêncio constrangido acrescentei: "Cantamos que os grilhões ficaram despedaçados para trás de nós - mas este regime tem agrilhoado mas gente do que outro qualquer".

O tenente buscava uma resposta a dar, quando do Corpo da Guarita partiu o aviso da chegada do transporte. Fomos levados à estação e aí metidos em vagões. Demoramos horas inteiras até que o trem começou a ranger e avançar ruidosamente pela estrada afora. Através de buracos nas janelinhas entrevíamos regiões florestais e montanhas. Era um dia de verão, cálido e bonito.

PARTE QUINTA

A VIAGEM através de planícies de Bucareste rumo ao oeste era de umas 200 milhas, mas houve tantas aradas, que tomou quase dois dias e duas noites. Circulou entre nós a notícia de nosso destino antes que avistássemos as muralhas centenárias do Presídio de Craiova.

Nossos grilhões foram retirados no pátio calçado de lajes e fomos tocados a socos ao longo de passagens escuras atopetadas de lixo. Jogaram-nos, em pequenos grupos, em celas ao longo de uma galeria. Altos protestos vieram de dentro delas: "Não há espaço aqui! Estamos já ficando sufocados!" Os guardas empurraram à força os recém-chegados. Parecia trem subterrâneo na hora de maior movimento de passageiros, os porteiros empunhando cassetetes.

Um empurrão que recebi pelas costas fez com que me arrojasse à frente, batendo a porta com estrondo atrás de mim. O fedor na cela me causava náuseas. A princípio nada enxergava. Tateei ao redor e recuei a mão ao tocar num corpo quase despido e suado. Pouco a pouco, quando me adaptei à luz fraca de uma lâmpada no teto, vi fileiras de tarimbas umas sobrepostas às outras, apinhadas de homens ofegantes, sem ar para respirar. Outros, também seminus, estavam sentados no chão, ou encostados as paredes. Ninguém podia mover-se sem tropeçar num outro ali junto, que acordava esconjurando e despertando todos os demais.

Minha permanência nesta cela durante os dois meses seguintes foi interrompida somente por idas à fétida latrina que ficava fora, para onde levava caçambas de detritos das privadas.

Eu disse aos presos que era pastor, e fiz uma oração breve. Uns me rogaram praga, porém muitos ouviram calados. Depois alguém me chamou pelo nome, de uma tarimba lá em cima, oculta no escuro.

"Reconheço sua voz", disse ele. "Ouvi seu discurso naquele Congresso de Cultos faz muitos anos".

Indaguei quem era, ao que me replicou: "Falaremos amanhã".

A longa noite terminou às 5 da manhã, quando foi dado o sinal de despertar por um guarda a bater com um barra de ferro num pedaço de trilho dependurado. O homem da tarimba de cima, de baixa estatura, com um pano enrolado à cabeça, desceu e me apertou a mão.

"Foi bom conhecer sua voz no escuro", disse ele, fitando-me com os olhos injetados. "Não o reconheceria de vista. O Partido vingou-se do seu protesto, estou vendo. Como está magro!"

Era um Hodja chamado Nassim, que representara a pe­quena comunidade muçulmana em 1945, no Congresso de Cultos.

Nossa amizade começou quando experimentei tomar minha primeira refeição em Craiova.

O cheiro repulsivo de gordura da sopa era sentido antes que ela chegasse à cela. Fragmentos de repolho podre e miúdo de boi, mal lavado, nadavam numa espuma. Comer era obrigatório, por isso esvaziei o prato.

"Como consegue comer isto?" perguntou o Hodja, cujo estômago ficou dando voltas.

Era um segredo cristão, respondi. "Penso nas palavras de S. Paulo: 'Alegrai-vos com os que se alegram'. Depois lembro-me de amigos na América que neste momento comem frango assado, e eu agradeço a Deus, juntamente com eles, ao tomar minha primeira colher de sopa. A seguir regozijo-me com amigos na Inglaterra, que podem estar comendo rosbife. E então tomo outra colherada. Deste modo, percorrendo pela imaginação muitos países amigos, vou-me alegrando com os que se alegram - e estou vivo".

O Hodja e eu tivemos de dividir uma tarimba entre nós dois durante aquelas noites quentes e abafadas. Fui feliz em não dormir no chão.

"O senhor fica muito silencioso", disse ele, enquanto outros tossiam e se remexiam ao redor de nós. "Em que está pensando? São Paulo o ajuda também nisto?"

Repliquei: "Sim, por enquanto alegro-me com os do Ocidente, pensando nos seus lares confortáveis, nos livros que têm, nas férias que planejam, na música que ouvem, no amor que cultivam pelas pessoas e filhos. E lembro-me da segunda parte do verso, como vem na Epístola aos romanos: "Chorai com os que choram". Estou certo que no Ocidente muitos milhares pensam em nós e procuram ajudar-nos com suas orações.

Todos na penitenciária sentem necessidades de fazer-se valer, de impor-se. Gostam de argumentar, de persuadir com argumentos. Encolerizam-se com simples palavras. E quando encontram alguém que não responde um insulto com outro, atormentam-no ainda mais. Nas condições de Craiova as dificuldades que defrontei eram quase insuperáveis. Quando pregava, tinha de sobrepor minha voz a gemidos e roncos de quem simulava dormir. Os presos ficavam desesperadamente enfadados. Eram faltos de recursos íntimos e ansiavam por seus divertimentos conhecidos. Verifiquei que os sermões davam lugar a discussões, que degeneravam em brigas. Todavia quem tivesse a contar uma história, particularmente história de crime, podia ter certeza de audiência. Assim, contava-lhes novelas sensacionais de minha própria invenção, nas quais a mensagem cristã tinha seu lugar central, ainda que velada.

Meu herói mais popular era um bandido chamado Pipa, nome que na Roménia todo o mundo conhecia. Descrevi como a minha mãe, ainda menina, o vira certa vez no tribunal sendo julgado, de cuja fisionomia selvagem e hostil nunca se esquecera.

Os pais de Pipa eram ricos. Morreram quando era menino, ficando ele aos cuidados de um tutor que o esbulhou de suas propriedades. Pipa arranjou trabalho numa hospedaria, cujo dono prometeu guardar-lhe o salário até que voltasse do serviço militar, de modo a poder montar seu próprio negócio. Ao voltar do exército, o dono da hospedaria negou aquele acordo, pelo que o rapaz, cego de furor, matou-o com uma punhalada.

Pipa tornou-se um fora-da-lei. Lá de sua toca nas montanhas saiu várias vezes tendo feito uma série de assaltos - todos em hospedarias. Com o correr do tempo chegou a matar trinta e seis donos de estalagem. (Neste ponto meus ouvintes soltaram silvos de espanto). Não lhe faltou companhia. Com dois outros bandidos, todos envergando as melhores roupas furtadas, encaminhou-se a uma vila, onde persuadiram três moças a jantar com eles. Narcotizaram o vinho e levaram as jovens para a caverna deles.

Até aí tudo fora verdade; mas nesse ponto, na minha versão dessa história, as jovens ao despertar mantiveram seus capturadores à distância de uma braçada por contar-lhes histórias, no estilo de "Mil e Uma Noites". Esses romances terminaram com a história do Evangelho, narrada pela jovem mais linda das três, e ainda mais com a conquista dos bandidos.

"Pastor", disse um guarda florestal de nome Radion, "tenho ouvido muitas histórias de crimes, porém nenhuma como as suas, em que sempre acabam indo o criminoso, a vítima e o policial, todos juntos, à igreja".

Teve também boa aceitação uma narrativa épica de Dillinger, cuja evolução de indivíduo faminto e derrotado ao ponto de ser o pior "gangster" da América era a reprodução fiel de muitos na cela. Uma infância arrumada, ou injustiça social são os costumeiros prelúdios de uma carreira de crimes, e Dillinger começou a sua roubando de um bilheteiro de cinema uns poucos dólares.

Quando compreendíamos como foi que Pipa e Dillinger vieram a ser o que foram, podíamos ter pena deles, dizia eu; e da pena vinha o amor, e o amor entre uns e outros do género humano era o principal alvo do Cristianismo. Condenamos o homem, mas como é raro oferecermos o amor que pode salvá-lo do crime!

Eu podia falar vinte e quatro horas por dia, e mesmo assim não deixavam de pedir mais histórias. Comecei a recorrer aos clássicos que me apresentavam pontos de vista cristãos: "Crime e Castigo", de Dostoievsky, "Ressurreição", de Tolstoy, contados em episódios.

Muitas vezes outros presos narravam suas próprias histórias, burlescas, trágicas, ou ambas as coisas juntas. Radion, alto e magro como as árvores que costumava zelar, levara uma vida sossegada até o dia em que passou por um bosque com dois amigos e, olhando para trás, viu o arvoredo em chamas.

"Ao chegarmos à vila próxima fomos presos, acusados de termos provocado o incêndio", disse ele. "Fomos espancados até confessar que tínhamos feito aquilo para sabotar a 'organização coletivista' local. Mas no nosso julgamento apresentou-se o verdadeiro culpado, e assim fomos despronunciados.

"Não ficamos livre. Levaram-nos de volta à delegacia de polícia e disseram: 'Agora confessem que outra coisa fizeram!' Sob tortura confessamos um plano de sabotagem que foi completamente invenção. Eu tinha de dizer qualquer coisa para que o sofrimento parasse!" Foram sentenciados cada um a quinze anos.

Havia muitas histórias como essa, em Craiova. Não se passou muito para que nos conhecêssemos por dentro e por fora. Era aquilo uma atmosfera de nervosismo, carregada. Ninguém suportava ser contraditado, perdendo-se todo senso de proporção ou de lógica.

Quando repeti a novela "Fome" de Knut Hamsun, muitos ficaram de olhos arregalados, e um preso, de nome Herghelegiu, disse-me, quando o grupo se dispersou para a ceia, que tinha sido muito tocante. Sugeri-lhe que oferecesse um pouco do seu pão ao Hodja, que temia o alimento contivesse gordura de porco, proibida pelo Alcorão. Mas se Herghelegiu ficara tocado no coração, não o ficara no estômago. Não atendeu à minha proposta.

Os intelectuais eram prisioneiros de palavras. Se alguém mencionava uma descoberta científica americana, esta era ridicularizada como propaganda dos EUA. Se falasse de um escritor russo moderno, mandavam-no embora como mercenário assalariado pelo Estado. Católicos nada queriam ouvir de filósofos judeus. Os judeus pouco conheciam do pensamento da igreja.

Certa vez descrevi um livro religioso em que estivera refletindo à noite. De repente se emitiu juízo sobre ele. "Eivado de Luteranismo!" exclamou um ouvinte ortodoxo. "É fácil ver que você é protestante", disse outro. Alguns dias depois, durante uma conversa com os dois citei muita coisa de "O Problema da Verdade", de autoria do "eminente escritor romeno" Naie lonescu. O acolhimento foi entusiástico. Descobri que se desejasse que minhas opiniões fossem bem acolhidas, seria melhor publicá-las sob anonimato, visto como as duas referências eram a uma obra só.

Alexandra, estudante, sorria condescendentemente ao recitar poemas de sua lavra. Calmamente sugeri que ele lesse outro, que foi anunciando como soneto shakesperiano. "Soberbo!" disseram os críticos em coro. Sem revelar o segredo de Alexandra, disse-lhes que ninguém devia ficar amedrontado com nomes famosos. Shakespeare, Byron - só para referir poetas ingleses - não raro exaltaram ideias indignas.

Um velho oficial de cavalaria discordou. "Não tenho nada de literato", disse, "mas sempre admirei GungaDin. Kipling criou lá um herói de soldado!"

Eu disse: "GungaDin pode ter sido melhor do que eu, mas deu a vida combatendo a favor dos ingleses contra o seu próprio povo. Que diria o senhor de um romeno que morresse combatendo com os russos contra seus patrícios?"

Um erudito inglês defendeu a nobreza de pensamento de hakespeare.

Respondi que ao tempo em que Shakespeare escrevia, os problemas da Reforma e do Puritanismo levaram até os varredores de rua a discussões acaloradas - e, não obstante, quem só tivesse as peças teatrais de Shakespeare para ler, dificilmente saberia que o Cristianismo tinha aportado à Inglaterra.

"Em todos os seus dramas não há um só personagem cristão", disse eu, "exceto talvez a pobre Cordéüa. Cláudio mata seu rival. A rainha desposa o assassino do seu marido. Hamlet sonha com vingança, não age e não pode perdoar. Polónio é um intrigante. O único meio de fuga de Ofélia é a loucura. Otelo é um assassino profissional. Desdêmona faz o papel de vaca com o seu touro. lago é um monstro de cinismo e falsidade... Shakespeare foi um magnífico poeta e um psicólogo nato, mas não tinha ideia nenhuma do caráter cristão".

O erudito atalhou: "Talvez não existe mesmo essa coisa 'caráter cristão' para ser descrita".

Respondi-lhe saber que ele estava na prisão havia poucas semanas apenas; quando passasse mais tempo conheceria melhor. Veria alguns atos de bondade que eu presenciara: os pecadores que se confessavam tais já no último alento, os santos que perdoavam aos seus verdugos, assim como por nossa vez esperávamos ser perdoados no fim. E citei-lhe uns versos que mostravam o notável poeta cristão que Shakespeare podia ter sido:

Dizem que os lábios de quem morre prendem a atenção como se emitissem grave harmonia, Suas palavras sai escassas, raramente se perdem, Porque sussurram verdade os que sofrendo sussurram suas palavras.

Como teria ele aplicado tão bem esta passagem às últimas palavras de Jesus na Cruz.

O minúsculo Hodja tinha muito a ensinar sobre submissão à vontade de Deus. Muitas vezes nos fez lembrar que todo capítulo do Alcorão, o livro mais divulgado no mundo depois da Bíblia, começa com a invocação: "Em nome de Alá, o Misericordioso e Compassivo" e procurava ele fazer desse preceito uma parte da vida cotidiana. Cinco vezes no dia Nassim ajoelhava-se no chão duro e fazia uma mesura na direção de Meca.

Nassim e eu conversávamos muito, sentados lado a lado num leito baixo no meio da sordidez e confusão da cela. Ele discorria sobre sua fé - a qual os muçulmanos acreditam ter sido revelado ao Profeta pelo anjo Gabriel - com um fervor tal que por momentos transfigurava aquele lúgrube lugar. Para surpresa minha, falava em Jesus com muito amor.

"Para mini Jesus é um profeta santíssimo e sapientíssimo, que fala a linguagem do próprio Deus. Mas não pode, ao nosso modo de ver, ser o filho de Deus. Espero não ofendê-lo falando assim".

"De maneira alguma", repliquei. "De fato concordo com o senhor".

- Como pode um cristão dizer isto?

- Digo porque um filho é resultado das relações entre um homem e uma mulher. Nenhum cristão crê neste sentido que Jesus é o Filho de Deus. Chamo-lo "Filho de Deus" em sentido diferente e exclusivo, como emanação do Criador. Ele é o Filho por trazer em si a própria estampa de Deus, como uma pessoa traz a do seu pai. Ele é o Filho por serem seus atos repletos de amor e verdade. À vista desses atos não podemos duvidar de ser Ele o Filho de Deus.

"Desta forma também posso aceitar", disse Nassim, mostrando o seu grave sorriso muçulmano.

Jesus não repele a ninguém que o ame, ainda que a pessoa não conheça o verdadeiro título daquele a quem ama. O ladrão penitente referiu-se a Ele somente como homem, mas Jesus prometeu que ele estaria no paraíso.

Presos iam e vinham; só o ar é que nunca mudava. À medida que uns iam embora, outros tomavam os seus lugares, e eu reencetava meu "trabalho paroquial".

Entre os recém-vindos estava o General Calescu, antigo presidente da Justiça Militar, que adorava rememorar suas batalhas. A maioria delas, admitia ele, foram no "boudoir" (toucador), e seus melhores dias passara-os na guerra. "Tantas espias bonitas - sempre procurei mandá-las em paz se fossem boazinhas comigo!"

Quando Calescu não discorria sobre mulheres falava em comida. Certa noite ele anunciou: "Hoje é dia de meu aniversário: convido todos vocês para o jantar!" E como, quando jovem, passara muitos aniversários felizes em Paris, disse -"Encaminhemo-nos ao Maxims. São vocês meus convidados!" Durante uma ou duas horas, sem olhar a despesas, regalou-nos com o melhor que a casa pôde oferecer. "Maitre d'hôtel!" bradou. "Que tem você a oferecer? Talvez seja muito para o começo não? Que diz de foie gras com trufas de Périgord, e mais torradas com manteiga fresca da Normandia? Tudo tão simples! Depois canard à 1'orange - o senhor aprecia pato, não é, pastor? Ou um coq au vin? E, para o Hodja, xaslik numa espada flamejante!"

Cada prato acompanhava-se de uma relação de vinhos a escolher: Borgonha e Hock, uma garrafa de champanha, um dourado Château Yquem, licores e conhaque. Charutos escolhidos: Henry Clay, Romeu e Julieta. Não havia fim para aquele desfile de delícias. Foi quando a porta se abriu para entrar a costumada barrica de dobradinhas podre e repolho.

Nesse discorrer sobre aumentos, como nos devaneios à luz do dia em torno de sexo, a imaginação dirigia à solta. Almas mais simples do que Calescu inventavam fantasias de frangos recheados de bananas, batatas sobrepostas em geléia de morangos e muitos outros acepipes que felizmente não guardei na memória. De fato, a comida de Craiova foi a pior que encontrei - salvo um dia em que, para nossa surpresa absoluta e inacreditável, os guardas levaram uma lata de sopa de cebolas, outra de ensopado de carne, com puré de batatas, cenouras novas, depois pães de forma para cada um, e um cesto grande de maçãs.

Qual era a razão daquilo? Os presos viam muita significação na mais leve mudança que ocorresse na rotina, e aguardávamos novos prodígios. À tarde o General Calescu bradou animadamente da janela: "Mulheres - que danadas! Já vão embora". Um grupo rodeou as grades e olhou com curiosidade para baixo. Meia dúzia de senhoras bem vestidas estavam sendo conduzidas em direção ao portão pelo comandante. Eram, segundo informação do guarda, uma delegação de "mulheres democratas" do Ocidente, que iam retirar-se dentro de uma horas, as quais teciam comentários em torno da excelência da comida.

Na semana seguinte as refeições ainda foram piores. Mais adiante ouvi dizer que o testemunho de vista daquelas visitantes sobre as prisões modelares da Roménia estava circulando na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos.

Houve várias dessas viagens ao recreio, dirigidas naquela época. Quando a liderança russa muda de mãos há de ordinário um breve degelo e agora, depois de uma luta abafada entre os sucessores de Stalin, o Marechal Bulganin surgiu como Presidente do Conselho de Ministros.

Disse Calescu que a ascensão ao poder desse antigo Ministro da Guerra queria dizer que "os americanos teriam que vir à luta afinal". Rumores na prisão sustentavam essa opinião. As "próprias palavras" do Presidente Eisenhower sobre a questão eram citadas: "Tenho só que abotoar o último botão do meu uniforme para que os cativos da Europa Oriental sejam libertos!"

O sonho de Calescu era que, uma vez destroçados os exércitos vermelhos, o rei voltasse ao trono. Essa fé na monarquia era partilhada pela maioria dos fazendeiros e lavradores. O raciocínio deles era simples: "Quando o rei estava aqui, eu tinha meu campo e meu gado. Agora que está fora, não tenho nada".

Quando chegava o antigo Dia da Pátria da Roménia, muitos nas celas se reuniam numa cerimónia religiosa que incluía orações pelo Rei Miguel e a Família Real. Os informantes delatores decidiram ser mais seguros e tomar outra iniciativa. Mas o republicano de nossa cela, e mestre-escola Constantinescu, argumentava contra a monarquia e seu "fútil cerimonialismo".

Radion, o guarda florestal, disse: "Pompa e glória podem nada significar para você, mas a um rei essas coisas vêm com naturalidade. Não precisava lutar para alcançá-las. Não é como o político, que precisa ganhar renome com guerras e revoluções, e sempre às nossas custas. O rei deixa-nos pacificamente. É por isso que sou a favor do rei!"

Radion também levava com melhor o General Calescu, que apreciava gracejar com a religião.

"Se Jesus podia de fato transformar vinho em água", disse Calescu, "por que não abriu uma casa de negócio e não fez fortuna?"

Radion replicou: "Não há por certo quem prove que o Salvador realizou tal milagre. Mas posso dar-lhe uma prova pessoal de que Ele pode transformar vinho em mobília".

"Assombroso!" disse Calescu reprimindo o riso.

"Sim", continuou Radion, antes de me converter, gastava todo o dinheiro que possuía em bebidas, e minha mulher não tinha nem uma cadeira em que se sentar. Quando abandonei as bebidas, economizamos dinheiro e obiliámos nossa casa".

Com a primavera chegaram notícias, agora oficiais, que deram fim aos exércitos táticos do General Calescu. Os russos tinham prometido retirar suas tropas da Áustria, e a primeira "reunião de cúpula" do Oriente com o Ocidente, depois de dez anos de guerra fria, estava para se realizar em Genebra.

Logo começou a fazer furor a "coexistência pacífica". Constantinescu encheu-se do entusiasmo com ela. "Por que não deve o Ocidente viver em harmonia com o Oriente comunista?" perguntava.

Eu disse: "Não sou político, mas sei que a Igreja, pelo menos, não pode nunca fazer paz com o ateísmo, assim como a polícia não pode reconciliar-se com os "gangsters", nem a doença com a saúde".

"Você então odeia os ateus?" inquiriu Constantinescu.

Respondi: "Odeio o ateísmo como credo, mas amo os ateus, assim como odeio a cegueira, mas simpatizo com os cegos. Uma vez que o ateísmo é uma forma de cegueira espiritual, deve ser combatido".

O rosto alongado de Constantinescu esboçou uma surpresa de mofa. "Você fala em combate, pastor? Eu pensava que os cristãos oferecessem a outra face. S. Francisco não salvou um lobo dos que queriam matá-lo, dizendo: "Não matem o irmão lobo, ele também é criatura de Deus?"

Retruquei-lhe: "Admiro muito S. Francisco, mas se não atiro no irmão lobo, ele vai devorar a irmã ovelha. Minha obrigação é de matar o lobo, se for impossível contê-lo, inspira-se no amor. Jesus nos mandou amar nossos inimigos, mas Ele próprio lançou mão da força quando não houve outro recurso. Deus tira milhares de vidas todos os dias: é de sua natureza dar morte tanto quanto vida".

Um recém-chegado a Craiova, o engenheiro Glodeanu, disse ter ouvido irradiações da BBC que defendiam o ponto de vista de não deverem as potências ocidentais continuar interferindo nos negócios internos do bloco comunista.

Objetei: "Mas se eu começo a abrir uma fenda em um barco que pertence a nós dois, e digo: 'Não interfira - este lado do barco é meu', o senhor concorda? Não! A fenda no meu lado acaba por levar o barco inteiro a pique". "Os comunistas", continuei, "apoderaram-se de países inteiros e trataram de envenenar a juventude com ódio. O plano deles, de subverterem a ordem estabelecida no mundo inteiro, não é um negócio interno".  

"É banditismo internacional!" interveio Calescu.

Constantinescu voltou à carga. "O ocidente não pode sempre estar com a razão, general, e Stalin não era de todo mau. Ele chegou a dizer: 'O homem é o nosso mais precioso capital.”

"Ah, então esta é a razão de estarmos todos debaixo de chave", disse Calescu, rindo com desdém. Mas Constantinescu insistia que tinha havido progresso industrial e até cultural sob o Comunismo. "Não se pode negar isto", disse ele.

Retruquei-lhe: "quem visitasse o Egito nos tempos antigos poderia espantar-se com os monumentos de Faraó, porém Deus não os admirava. Foram eles trabalho de escravos, para libertar os quais Deus enviou Moisés. Na Rússia e seus satélites de hoje o trabalho escravo está edificando casas, fábricas e escolas de que você fala. E que se está ensinando nessas escolas? Ódio a tudo quanto é ocidental".

"Os comunistas dizem que estão planejando para o futuro", disse Constantinescu. "Uma ou duas gerações terão que ser sacrificadas, mas o alicerce está sendo posto para o bem futuro da humanidade".

Eu disse: "Para que se façam comunistas estão de contí­nuo se denunciando uns aos outros como sendo os piores crimi­nosos. Os mais poderosos da União soviética têm sido assassina­dos por seus próprios camaradas. Qual o comunista que pode ser feliz, sabendo que pode cair no próximo expurgo do Parti­do?"

"Há algo de bem neles", objetou Constantinescu. "Não há homem inteiramente mau, e os comunistas são homens que conservam alguma coisa da imagem de Deus".

Minha resposta foi: "Concordo. Até em Hitler havia algum bem. Ele melhorou a sorte da maioria dos alemães. Tornou o seu país o mais forte da Europa. Sua morte com Eva Braun no paiol, seu casamento com ela no último momento, podem ser considerados comovedores. Quem no entanto liga para isto, se ele massacrou tantos milhões? Hitler ganhou o mundo para a Alemanha destruindo-lhe a alma, antes mesmo de sua derrota. Os sucessos comunistas têm também sido alcançados às custas da alma, esmagando o elemento mais vital do homem, sua personalidade".

-Você não pode dizer que todos os comunistas são farinha do mesmo saco, disse Constantinescu, Tito, por exemplo, é considerado um ditador brando.

- Todos no entanto têm um alvo só: levar a revolução comunista ao mundo inteiro, e erradicar a religião. O "brando" Tito matou milhares de inimigos e encarcerou seus amigos.

- Continuo afirmando que tem havido progresso, disse Constantinescu.

- De minha parte não admiro o progresso que se compra com lágrimas e sangue, ainda que de fora possa impressionar. Nunca povo algum escolheu o Comunismo em eleição livre, nem se viu livre dele por sufrágio público.

- O mundo quer paz; que outra coisa você quer - guerra atómica?

Eu disse: "Uma guerra nuclear não é a outra alternativa; ninguém a deseja. O mundo enfrenta o grave problema do vício de entorpecentes, porém não pensamos em adotar para ela a solução de Hitler, de meter os viciados em câmaras de gás. Por outro lado, não podemos adotar a "coexistência pacífica" em relação com o tráfico de narcóticos; uma solução precisa ser encontrada, ainda que tenhamos de lutar por ela cinquenta anos. Como podemos viver pacificamente com um povo que não tem paz dentro de si, porque o que todos os seus líderes querem é poder e sempre mais poder? Os comunistas vão acalmando nossas desconfianças enquanto planejam a próxima investida".

Constantinescu estava resolvido a tomar as gestões comunistas em seu valor nominal, por isso era inútil levá-lo a encarar a coisa de outro ângulo. Inclinei-me para fora de minha tarimba e arrebatei-lhe o travesseiro - a pequena trouxa encaroçada de objetos de uso pessoal em que ele costumava apoiar a cabeça. O crânio bateu na parede. Ficou furioso.

"Mas por que não pode você coexistir pacificamente comigo?" perguntei. "Estou pronto a proceder amigavelmente, agora que lhe arrebatei tudo quanto você tem".

Tive porém de lhe devolver seus pertences antes que a conversa degenerasse em outra coisa.

Constantinescu era vítima do hábito de pensar boas coisas sobre o Comunismo. Os homens treinados na escola de Lenin e Stalin vêem boa vontade como fraqueza a ser explorada. Para o próprio bem deles cumpre-nos trabalhar por vê-los derrotados. O amor não é panaceia, remédio para todos os males; não toma o lugar de um emplasto de trigo. Os governantes comunistas são cri­minosos de estatura internacional, e somente quando o criminoso é subjugado é que se arrepende; só então pode ser trazido a Cristo.

No Senado Romano, sempre que surgia um problema, Cato respondia: "Destruamos primeiro nossa inimiga Cartago, e tudo o mais se arranjará! Delenda est Carthago!" Eu tinha certeza de que o destino do Ocidente estava ou em destruir o Comunismo, ou em ser por ele destruído.

O desejo de dar ao Comunismo um melhor aspecto antes da reunião de cúpula fez que diminuíssem alguns dos piores excessos do sistema penitenciário. Em Salcia, onde os castigos incluíam a suspensão de presos pêlos calcanhares e a submersão de mulheres em água gelada durante horas, todo o quadro de auxiliares foi encarcerado. Testemunhos oficiais diziam que cinquenta e oito pessoas morreram nas competições entre "líderes de brigadas" para verem quem podia, por meio de trabalho forçado, ocasionar mais mortes de prisioneiros - e de fato, os sobreviventes de Salcia, chegados a Craiova, diziam que tinham havido no mínimo 800 mortes.

Numa demonstração de indignação judicial, os funcionários de Salcia receberam longas sentenças, e o expurgo produziu um efeito corretivo em outras penitenciárias. Cessaram os espancamentos. Os guardas cuidaram mais de ser corteses. Quando o comandantes de Jilava, Coronel Gheorghiu, pediu que apresentassem queixas, e teve um prato de cevada lançado no seu rosto, o réu sofreu apenas um dia de confinamento solitário.

As reformas duraram pouco. Em breve os espancamentos e injúrias voltaram à rotina outra vez. Um ano mais ou menos de­pois, quando os julgamentos caíram em esquecimento, os assassi­nos de massas em Salcia foram reinstalados nos seus postos e até promovidos. Somente os presos de crimes comuns, que agiram como instrumentos deles na tortura dos outros, ficaram presos.

Nessa movimentação dos cárceres, fui removido várias ve­zes. Essas viagens de pesadelo fundiram-se numa só em minha mente. Fecho os olhos e vejo uma frisa de presidiários barbados, cabeças raspadas, em leves solavancos com o movimento do trem. Sempre levávamos grilhões de vinte e tantos quilos nos tornozelos, os quais através da roupa nos esfolavam, produzindo feridas que passavam meses para cicatrizar, devido ao nosso estado de subnutrição.

Em uma viagem fizemos parada durante a noite. O silêncio foi quebrado por um lamento de aflição: "Fui roubado!"

Sentei-me, deparando-se-me o minúsculo Dan, um escroque de Bucareste, movendo-se de uma pessoa à outra, agitando a todos para acordá-los. Dan ia ouvindo pragas e recebendo sopapos, mas prosseguia lamentando-se: "eu tinha escondidos 500 léus e desa­pareceram! Era tudo o que eu possuía no mundo!"

Na esperança de acalmá-lo, eu disse: "Meu amigo, espero que você não suspeite de furto um pastor, mas se desconfia pode revistar-me até na pele".

Os outros também permitiram que Dan os revistasse, por amor ao sossego, porém nada se encontrou. O trem afinal se pôs em movimento e um a um caímos no sono. Despertei ao romper da aurora por um novo rebuliço e ainda pior. Todos os outros dezoito presos tinham sido roubados também.

"Eu sabia que tínhamos um ladrão aqui entre nós!" exclamou Dan.

Dias depois, em Poarta-Alba, nossa próxima parada, contei a história a um homem sentenciado por roubo. Soltou uma gargalhada e disse: "Conheço Dan há anos. Ele apenas quis descobrir onde cada um de vocês guardava qualquer coisa que valesse a pena surripiar!"

Havia muitos "Dans" em Poarta-Alba, onde criminosos "políticos" e réus de crimes comuns viviam misturados. Uma vez eu cochilava enquanto um grupo jogava dados de fabricação ca­seira. Um toque de leve em meu pé despertou-me. Aprumei-me, esfregando os olhos, e vi um preso desatando um dos meus sapa­tos. O outro já tinha desaparecido.

- Que está fazendo com os meus sapatos? interpelei-o.

- Acabei de ganhá-los com os dados, disse, sorrindo maliciosamente, e ficou ofendido porque eu não quis entregá-los.

O mundo dos ladrões é muito separado. Descobri que eles gostam de conversar em torno das suas proezas, quanto mais arriscadas melhor. Adoram excitação, enquanto os outros homens são loucos por bebidas, jogo ou mulheres. Admirava-se ver a dedicação deles a essa atividade.

Uma noite, quando a maior parte dos presos estava fora, a porta abriu-se violentamente e os guardas empurraram um bate-carteiras conhecido de todos pelo nome "Dedo". Rolou ao chão, ofegante e gemendo, ajudando-o eu a subir para a sua tarimba. Ensopando um trapo em água, comecei a limpar o sangue de sua boca inchada. Parecia que ele estivera surripiando na cozinha.

"O senhor não é má pessoa, pastor", disse Dedo. "Quando eu sair e fizer meu primeiro lanço de rede, não vou esquecer o seu quinhão".

Retruquei-lhe dizendo esperar que ele encontrasse um meio melhor de vida. Ele riu. "Estão perdendo o tempo em surrar-me", disse, "gosto do meu serviço. Nunca desistirei dele".

Pus meu braço à volta dos seus ombros e disse-lhe: "Obrigado. Você me ensina uma notável lição".

- Que quer dizer com isto? Perguntou.

- Se as surras não o persuadem a abandonar sua atividade, por que hei de ouvir os que desejam que eu mude a minha? Devo pelo menos concentrar tanta atenção à conquista de uma alma, quanto você procura ser bem sucedido no seu próximo golpe.

Quanto mais ouço as histórias que você e seus amigos contam, tanto mais aprendo.

Sorriu a custo. "O senhor está gracejando, pastor".

"Não", disse eu. "Por exemplo, você age à noite; se fracassa na primeira, experimenta na segunda. Assim eu, como pastor, devo gastar minhas noites em oração, e se não consigo o que quero, não devo desistir. Você furta dos demais, contudo os ladrões são honestos uns com os outros: nós cristãos devemos ser unidos. E embora vocês arrisquem sua liberdade e suas vidas por dinheiro, logo que o conseguem esbanjam-no; não devemos também superestimar o dinheiro. Vocês gatunos não se deixam intimidar com castigos; nem nós devemos recuar diante do sofrimento. Assim vocês se arriscam a tudo, assim deve ser conosco, cientes de que há um paraíso a conquistar".

A prisão de Poarta-Alba continha os remanescentes do campo de trabalho ao lado do projeto do canal, em que minha esposa fora forçada a trabalhar. Eu sabia que agora ela vivia em alguma parte de Bucareste. Não se passava uma hora que não pensasse nela. Vivíamos em cabanas compridas, mal providas, em que cabiam cinquenta homens. À volta havia barracas abandonadas e canteiros de hortaliças que Sabina devia ter conhecido. Esse pobre consolo me foi arrebatado quando, poucas semanas depois, recebi aviso de me preparar para outra mudança.

Dedo veio despedir-se. Com ele estava um comparsa de nome Calapod, um vil bandido, temido em todo o interior. Deu uma palmadinha em minhas costas, exclamando: "Olá, Santo Reverendo, que gosta de ladrões e salteadores!"

"Sr. Calapod", respondi, "Jesus não se importou de se comparar com um ladrão. Ele prometeu: 'Virei como ladrão de noite'. Assim como aqueles a quem o senhor roubava nunca sabiam que o senhor estava vindo, assim uma noite Jesus virá para a sua alma, e o senhor não estará apercebido".

As semanas passadas na frieza úmida de Craiova e Poarta-Alba e nas viagens de turmas metidas em ferros fizeram que minha tuberculose se agravasse. Cheguei à minha próxima prisão em Gherla, nas montanhas da Transilvânia, em tal estado que fui posto em uma cela do grupo conhecido por "hospital". Nossa médica, uma jovem chamada Marina, disse ser aquele o seu primeiro posto. Outros pacientes disseram-me que no seu primeiro dia ela empalidecera ao passar de cela em cela. No seu adestramento como médica nada houve que a preparasse para enfrentar a sujeira, a fome, a falta de simples remédios e equipamento, a crueldade do descaso. Eles julgavam que ela ia desfalecer, mas ia levando adiante.

Marina era uma moça alta, frágil, cabelos claros a emoldurar um rosto extenuado. Depois de um exame, disse-me: "O senhor precisa de boa alimentação e bastante ar puro".

Não pude conter o riso: "Mas a senhora não sabe onde estamos, Dra. Marina?"

As lágrimas marejaram-lhe nos olhos. "Foi o que aprendi na escola de medicina".

Dias depois oficiais superiores vieram fazer uma visita. A Dra. Marina deteve-os na galeria fora de nossas celas. "Camaradas, estes homens não tiveram sentença de morte. O Estado paga-me para mantê-los vivos, assim como para aos senhores para mantê-los seguros. Peço apenas condições que me permitam realizar o meu trabalho".

Uma voz de homem fez-se ouvir: "Você assim toma o parti­do de réus proscritos!"

"Eles podem ser proscritos no caso do senhor, camarada Inspetor", replicou ela, "mas no meu caso são pacientes".

As condições não melhoraram, mas em lugar disso recebemos notícias que valeram para mim por todos os remédios de farmacopeia. Antes da reunião de cúpula em Genebra iam ser permitidas visitas de parentes.

A excitação foi extraordinária. Ficamos todos nervosos. Em dado momento as pessoas ficavam alegres; em outro ficavam quase a chorar. Alguns já fazia de dez a doze anos que não tinham notícias de seus familiares. Havia oito anos eu não via Sabina.

Chegou o dia e, quando fui chamado, fizeram-me marchar para um "hall" de forte acústica e ficar de pé atrás de uma mesa. A uns vinte metros adiante vi minha esposa atrás de uma mesa. O comandante, ladeado de oficiais e guardas, postava-se perto da parede que ficava entre nós dois, como se estivesse preparado para arbitrar um jogo de ténis.

Olhei para Sabina e ela me parecia que nos anos de sofrimento por que passara tinha conquistado uma paz e beleza tais como não vira nunca antes. Ela ali estava, de pé, mão entrelaçadas, sorrindo.

Segurando firme a mesa, falei: "Vocês em casa vão passando bem?"

Minha voz reboava de modo estranho no salão. Ela respondeu: "Sim, todos vamos bem, graças a Deus".

O comandante interrompeu: "Não tem permissão de mencionar aqui o nome de Deus".

- Minha mãe ainda vive? Indaguei.

- Louvado seja Deus, ainda vive.

-JÁ DISSE QUE AQUI NÃO TEM PERMISSÃO DE FALAR EM DEUS.

Então Sabina perguntou: "Como vai de saúde?"

- Estou no hospital-prisão...

- Você não tem permissão de dizer o lugar da prisão onde está, interveio o comandante.

Tentei uma vez mais. "quanto ao meu julgamento, há esperança de apelação?"

O comandante: "Não tem licença de discutir seu julgamento".

E continuou assim até eu dizer: "Vá para casa, querida. Eles não nos deixam conversar".

Minha esposa tinham-me levado um cesto com comida e roupa, mas não teve permissão de me dar nem uma maçã. Ao me conduzirem, olhei por cima do ombro e vi Sabina escoltada por guardas armados atravessando a porta do outro lado do "hall". O comandante acendeu novo cigarro, tendo pensamento distante.

Naquela noite a Dra. Marina parou ao pé do meu leito. "Oh, meu caro!" disse ela, "eu pensei que a visita de sua esposa ia fazer-lhe muito bem".

Ficamos amigos: disse-me que nada aprendera de religião, mas supunha-se ateia. "Hoje em dia todo mundo não é isso?"

Um dia, estando sozinho com Marina e outro preso, cristão, no cubículo que a ela servia de sala de operações cirúrgicas, disse que aquele era o dia de Pentecostes.

"Que é isso?" indagou ela. Um guarda servente procurava algo no fichário; esperei até que ele levasse a ficha desejada. Então respondi: "É o dia em que Deus nos deu os Dez Mandamentos, há milhares de anos".

Ouvi as pisadas do guarda que voltava, e acrescentei alto: "Dói aqui, doutora, quando tusso".

O guarda devolveu a ficha ao seu lugar e retirou-se outra vez, e então continuei: "Pentecostes é também o dia em que o Espírito Santo veio para os Apóstolos".

Outra vez as pisadas do guarda, e eu continuei mais de­pressa: "E à noite a dor em minhas costas é terrível".

A Dra. Marina mordeu os lábios para conter o riso. Continuei com o meu sermão interrompido, enquanto ela me batia de leve no peito dizendo-me que tossisse, e examinava minha garganta, até que por fim rebentou numa risada. "Pare!", sussurrou-me, levando um lenço à boca, enquanto o rosto imperturbável do guarda surgia de novo à porta. "Conte-me depois".

Nas semanas seguintes contei-lhe a história do Evangelho, e quando eu, com outros em Gherla, levamos a Dra. Marina a Cristo, mais arriscado se tornou para ela prestar-nos auxílio.

Anos depois, em outra prisão, soube que ela morrera de febre reumática, que lhe afetara o coração. Sempre esteve sobrecarregada de trabalho.

Fui mandado de volta para Vacaresti, o hospital-prisão onde passara um mês depois de meu confinamento solitário nas celas do subsolo do Ministério do Interior. Estava superlotado como nunca. Os pacientes tuberculosos tinham de estar em salas com outros de moléstias diferentes a permutarem entre si suas infeções.

Dois oficiais da Polícia Secreta que foram fazer interrogatório perguntaram-me em tom de troça o que eu pensava agora do Comunismo. "Que devo dizer?" repliquei. "Só posso julgá-lo pelo que vejo dentro das prisões".

Mostraram os dentes num sorriso e um disse: "Agora você pode aprender o que ele é à vista de um VIP: Vasile Luca - o antigo Ministro das Finanças - está na sua cela".

A demissão de Luca sob acusação de peculato, em março de 1953, deu lugar à derrubada dos comparsas de Ana Pauker. Sendo Theohari Georgescu Ministro do Interior, Luca fora expulso do Partido, estando agora todos os três em prisões diferentes com as vítimas do império deles que durara cinco anos. Nos dias do seu apogeu, Luca era muito adulado, porém pouco estimado. Agora guardas e presos aproveitavam o ensejo de demonstrar-lhe desprezo. Sentado sozinho a um canto de nossa cela, mordiscava as juntas dos dedos resmungando de si para si; estava velho, doente e irreconhecível como aquele cujo retrato aparecia tão regularmente nos jornais.

Luca não achava alívio para os seus padecimentos. O cristão, quaisquer que fossem suas tribulações, sabia que por sua fé palmilhava o caminho que Cristo percorrera, porém a Luca, que dera toda a sua vida ao comunismo, não restava esperança nem crença. Se os nacionalistas galgassem ao poder, ou se os americanos, ele e seus camaradas seriam os primeiros a ir à forca. Nesse ínterim, eram castigados por seus ex-amigos do Partido. Luca estava prestes a sucumbir quando nos defrontamos.

Depois de seu infortúnio político, disse-me, foi forçado a confessar sob tortura fatos absurdos de que o acusavam. Uma corte militar condenou-o à morte, mas a sentença foi comutada em prisão perpétua.

"Sabiam que eu não ia durar muito", disse tossindo.

Era acometido de explosões de cólera contra seus inimigos no Partido. Certo dia, não podendo comer o que lhe meteram na cela, ofereci-lhe o pão que tinha. Tomou-o com voracidade.

- Por que fez isto? Rezingou.

- Tenho aprendido o valor do jejum na prisão.

- Qual pode ser ele?

Eu disse: "Primeiro, mostra que o espírito se sobrepõe ao corpo. Segundo, poupa-me de deblaterar e me amargurar por causa de comida, o que é tão comum aqui. Terceiro - ora, se um cristão não jejua na prisão, que meios ele tem de ajudar os outros?"

Luca admitiu que todo auxílio que recebeu desde que fora preso, partira de cristãos. Sua cólera acendeu-se de novo.

"Conheço porém muitos clérigos que são uns verdadeiros canalhas. Fazendo eu parte do Comité Central do Partido, mantive um controle severo das seitas e religiões. Meu departamento tinha um fichário de cada clérigo do país - inclusive você. Comecei a perguntar a mim mesmo se havia um na Roménia que em breve não chegasse batendo à minha porta de trás altas horas da noite. Que quadrilha de irmãos!"

Eu disse que o homem podia degradar a religião, mas a religião enobrecia o homem muito mais. Isso ficou demonstrado pelo exército de santos: não só os da antiguidade, senão muitos cristãos notáveis que se podem encontrar hoje.

Luca zangou-se. Seu rancor ao mundo não lhe permitia admitir bondade em pessoa alguma. Declamava conhecidos argumentos ateísticos acerca da perseguição da Igreja à ciência. Lembrei-lhe os grandes cientistas que têm sido cristãos - de Newton e Kepler a Pavlov, e o descobridor de anestésicos, Sir. James Simpson.

Retrucou ele: "Conformaram-se às convenções de seu tempo".

Continuei: "Conhece a declaração de Louis Pasteur, que descobriu micróbios e a vacina?" "Je crois comme una charbonnière lê plus que je progresse en science". Ele cria como um trabalhador em jazidas de carvão do último século. Esse homem que passou a maior parte de sua vida a empreender investigações científicas tinha a fé da mais humilde criatura hu­mana".

Luca retorquiu indignado: "Que diz de todos os cientistas perseguidos pela Igreja?"

Pedi que os referisse.

"Galileu, naturalmente, que foi preso. Giordano Bruno, que eles queimaram..." E parou.

Respondi: "O senhor então só pode encontrar dois casos no decurso de dois milénios! Julgava a coisa à luz de qualquer critério humano, foi um triunfo, essa da Igreja. Compare os registros do Partido nos últimos dez anos, somente aqui na Roménia. Muitos milhares de pessoas inocentes metralhadas, torturadas e presas; o senhor mesmo, sentenciado à força de evidência de testemunho falso, obtido com ameaça e subornos! Quantos maus sucessos judiciais pensa o senhor não tem havido em todos os países sob governo comunista?"

Certa noite falei acerca da Última Ceia e referi as palavras de Jesus a judas: "O que fazes, faze-o depressa!"

Luca disse: "Nada me fará crer em Deus, mas se viesse a crer, a única oração que lhe faria era esta: 'O que tens a fazer, faze-o logo'".

Seu estado ia de mal a pior. Escarrava sangue, e, com febre, um suor frio irrompia em sua testa.

Por esse tempo fui removido para outra prisão. Antes de sair, ele prometeu pensar em sua alma. Não tenho meios de saber o que aconteceu; quando porém um homem começa a argumentar consigo mesmo, as oportunidades de encontrar a verdade são diminutas. As convenções de ordinário são instantâneas. A mensagem fere o coração. E das suas profundezas algo novo e salutar surge de repente.

Muitos se me depararam como Luca naquele tempo, e muitas vezes discuti com amigos sobre como tratar os líderes comunistas e seus colaboradores quando o Comunismo caísse.

Cristãos opunham-se à vingança, mas discordavam entre si: al­guns a pensar que o perdão devia ser completo, e outros a dizer que Jesus - em recomendar a Pedro que perdoasse a quem lhe causasse dano "não sete, mas setenta vezes sete" - fixava um limite que os comunistas tinham ultrapassado de muito.

Meu parecer é que, julgando cada homem separadamente, com discernimento das forças malignas que o moldaram, assiste-nos somente o direito de, sem exercer vingança, colocar o malfeitor em situação tal que não possa continuar a causar dano. Os comunistas já gastam muito tempo e esforço em se castigarem reciprocamente. Stalin envenenou Lenin, dizem. Fez que Trotsky fosse assassinado com um furador de gelo. Khruschev odiava tanto o seu "camarada" que lhe destruiu a reputação e despojou o túmulo. Luca, Theohari Georgescu, Ana Pauker e tantos outros foram vítimas do seu próprio sistema cruel.

Minha viagem seguinte foi em rodovia, num caminhão em que se lia "Truste Oficial de Alimentos". Carros de proteção não raro levavam legendas assim para que o povo não soubesse quantas pessoas estavam sendo transportadas, e talvez também por medo de tentativas de socorro a elas. Dois homens estavam comigo. Um era ex-líder da Guarda de Ferro, sentenciado a vinte anos. O outro, um reles ladrão, estava para ser solto logo, cumprida que estava sua sentença de seis meses.

"Não verei mais isto", disse o guarda de ferro animadamente, sacudindo as algemas. Depois, voltando-me as costas, disse ao gatuno que se tinha chegado ao acordo de liber­tar todos os "políticos" antes da reunião de cúpula a que ele estaria entre os primeiros a serem soltos. O ladrão explicou por sua vez que tudo quanto queria era um emprego decente, mas ninguém lho daria.

O guarda de ferro assumiu uns ares de simpatia. Depois, tomando seu vizinho pela manga, disse: "Tenho uma ideia! Por que não nos ajudarmos mutuamente? Os russos abriram o caminho, os americanos estarão por aqui dentro de um mês. Tenho entre eles amigos influentes. Supunha trocarmos as identidades - na próxima parada você responde à chamada do meu nome, e eu respondo à sua. Assim que me deixarem ir no seu lugar, começarei a preparar o caminho para o golpe dos americanos. Você, usando o meu nome, será solto como preso político no dia da chegada deles. Deixe o resto comigo - seu futuro estará garantido!"

O ladrão ficou encantado. Quando o carro-transporte estancou no pátio da prisão, os dois homens responderam um pelo outro à chamada e foram encaminhados a conjuntos diferentes. Dez dias depois o guarda de ferro, que tinha ido à seção de curta sentença, foi solto. O ladrão viu passar semanas e meses sem notícias dos americanos. Defrontando a possibilidade de cumprir a sentença do outro até o fim, contou a verdade ao comandante. O guarda de ferro foi caçado, esperando o ladrão ser libertado afinal. Ao invés disso, foi julgado por ajudar um criminoso fascista a escapar, recebendo por seu turno a sentença de vinte anos. Assim pois os dois tiveram de continuar vivendo juntos - como tantos outros que se prejudicaram mutuamente.

A nova prisão chamava-se Jilava, que significa em romeno "lugar encharcado". O nome era bem empregado. Para entrar nela, o caminhão desceu uma rampa íngreme e afundamos pela terra abaixo para dentro de uma escuridão.

As maiores profundidades em Jilava ficavam a mais de 1Om abaixo do nível do solo. Tinha sido projetada para ser um forte, com valas ao redor. Pessoas estranhas podiam passar perto sem notar sua existência. Ovelhas pastavam em cima dela, sentíamo-nos como sepultados vivos, debaixo de milhares de toneladas de terra. A finalidade de Jilava fora conter 500 soldados, mas agora tinha que abrigar 2.000 detentos numa série de celas e túneis mal iluminados, que aqui e ali se alargavam em pequenos pátios onde os homens faziam exercício. Em alguns pontos olhos de água surgiam ao pé das paredes que apresentavam grandes manchas de mofo esverdeado.

O homem na tarimba junto a mim, antigo chefe de polícia de Odessa, Coronel Popescu, disse que as condições eram muito piores quando ele chegou. Cem homens se comprimiam em nossa pequenina cela, as janelas vedadas com tábuas, morrendo alguns por sufocação.

Disse-me Popescu que se escondera dos russos durante doze anos depois da guerra numa cova que tinha as entradas vedadas com blocos. Dormia em esteira e comia o que amigos lhe davam por um buraco. Mas por fim a Polícia Secreta encontrou-o. Agachado em espaço apertado por tanto tempo, suas pernas se paralisaram. Só depois de meses pode andar.

Da conversa irreverente de Popescu deduzia-se que religião fazia anos estava fora de suas cogitações. Perguntei como ele passava o tempo na solidão de sua caverna.

"Arranjei uma novela", disse. "Se a escrevesse, tomaria umas 5.000 páginas. Ninguém entretanto se atreveria a publicá-la".

Vi a razão, quando ele recitou trechos dela. Nunca ouvi tanta coisa obscena.

Anunciou-se nossa refeição com um brado no corredor. Levei minha sopa de cenoura podre à tarimba de um vizinho e sentamo-nos a conversar um pouco. Era um jovem técnico de rádio que enviara informação ao Ocidente a pedido de um grupo patriótico, e revelou ter sido levado a Cristo pelo conhecimento que tinha do sistema Morse.

"Aconteceu há cinco ou seis anos. Fui submetido a interrogatório nas celas do Ministério do Interior e, enquanto estive lá, um pastor desconhecido da cela contígua transmitia-me por pancadas na parede versos da Bíblia".

Quando me contou onde sua cela ficava, eu disse que era o pastor.

Por esse meio arranjei um núcleo de cristãos que espalhavam sua influência por toda a prisão. Havia porém um homem a quem todos puseram de lado.

Gheorge Bajenaru era filho de um bispo ortodoxo. Era conhecido como "o clérigo mais ímpio da Roménia". Falsificava a assinatura do pai na concessão de honrarias e títulos universitários. Desviou fundos de um colégio, do qual sua esposa era diretora. Suicidando-se ela para esconder o crime do marido, Bajenaru não manifestou remorso algum. Até por dinheiro deu informações contra seu pai. Depois retirou-se para o Ocidente, fazendo-se passar como refugiado. Foi feito bispo, com jurisdição sobre todos os exilados romenos ortodoxos. Destes conseguiu dinheiro, bem como do Concílio Mundial de Igrejas. Enquanto isso, os comunistas o esperavam.

Bajenaru fora mundano, arrogante, forte, como um touro, mas agora estava magro e abatido. Contou-me o que tinha acontecido. Fora à Áustria para o casamento de um romeno rico, e lá permaneceu uns dias. Ao sair certa noite de um restaurante na zona francesa ouviu passos atrás de si. Descarregaram-lhe um cacetada na cabeça. Recobrou os sentidos num instante e virou-se para brigar. Engalfinhou-se com quatro homens. Sentiu espe­tarem-lhe uma agulha na perna.

"Quando despertei estava na zona soviética. Havia um es­pelho na parede, olhei e não pude reconhecer-me. Minha barba negra havia desaparecido. Cortaram meu cabelo à escovinha e tingiram-no de vermelho. Fui mandado de avião a Moscou. Inquiridores na prisão de Lubianka julgaram que eu fosse a figura principal do mundo da espionagem anglo-americana. Quiseram saber o que o Concílio Mundial de Igrejas planejava fazer atrás da Cortina de Ferro e quais eram as maquinações dos exilados romenos no Ocidente. Nada lhes pude dizer. Eu estivera apenas gozando a vida. Os russos não acreditavam. "Muito bem, Excelência", disseram, "vamos estimular sua memória numa operação cirúrgica".

Bajenaru abriu as mãos para mostrar que quase todas as unhas lhe haviam sido arrancadas.

"Quebraram-nas uma após outra", disse. "O médico estava vestido de branco. Duas enfermeiras de igual modo. Houve toda a assistência científica imaginável; só não houve anestesia".

Bajenaru foi torturado durante semanas. Esteve perto de enlouquecer quando os russos, vendo que nada conseguiram, passaram-no para a Polícia Secreta de Bucareste. Aí foi novamente torturado.

Em Jilava seu interrogatório ainda prosseguia, e quando voltou para a nossa cela, após a inquirição, presos acusaram-no de ser informante. De fato, queria apenas expiar o que fizera. O sofrimento depurou-o, mas os outros não podiam acreditar, embora ele mostrasse sua mudança de coração de muitas maneiras. Certa vez, quando presidia uma ato litúrgico, orando em voz alta pelo rei e a família real, alguém contou aos guardas. Foi mandado para a "Sala Negra" comigo e outros clérigos dentre as vítimas dos informantes.

Fomos conduzidos por um lance de escada abaixo, a uma câmara sem janelas, no subsolo profundo do forte, a qual provavelmente fora um antigo depósito de munição, à prova de bombardeio. A água, gotejando do teto, mantinha inundado o piso da "Sala Negra"; mesmo no verão o frio era intenso. "Precisamos ficar andando", disse alguém lá de um canto escuro como breu. E assim nos pusemos a andar à roda, escorregando no chão lodoso, e continuamos por muitas horas até que, exaustos e contundidos com as quedas, fizeram-nos sair.

Outros disseram que tínhamos tido sorte. Aconteceu muitas vezes que homens eram despidos por completo antes de serem trancados na "Sala Negra". Ainda contavam a história de como um grupo de dezoito conseguiu ficar vivo depois de dois dias lá. Eram todos de meia-idade ou membros idosos do Partido Camponês Nacional. Para evitar a morte por congelamento, uniram-se para formar uma cobra humana no escuro. Cada um se colava ao outro da frente para ser aquecido, e tratavam de andar vigorosamente, dando voltas sem parar, enlameados dos pés à cabeça. Houve muitos casos de desmaio, mas os outros sempre puxavam a pessoa desmaiada da água e forçavam-na a prosseguir.

Bajenaru continuou orando pelo rei. Quando por fim foi levado a julgamento, voltou dizendo calmamente ter recebido pena capital. Conseguiu ser humilde. Tenho observado que homens humildes, que pecaram brutalmente, podem quase sempre resistir a perseguições melhor do que cristãos de alta espiritualidade. S. João Crisóstomo, que viveu nos dias das corridas de carro em Roma, disse uma vez: "Se um carro puxado pêlos cavalos da Retidão e do Orgulho entrar em competição com outro puxado pelo Pecado e Humildade, acredito que este segundo, chega ao Céu em primeiro lugar".

O Coronel Popescu sugeriu a Bajenaru uma apelação à clemência. Retorquiu: "Não reconheço esses juizes. Obedeço a Deus e ao rei".

Ao ser ele removido para a cela dos condenados, disse Popescu: "Talvez fizemos mal em procurar ser juizes dele também".

Nada ouvimos a respeito dele durante quatro meses; depois voltou à nossa cela, tendo comutada sua sentença em prisão perpétua. Apesar de todo o seu caráter achar-se mudado, a maioria dos presos não o aceitava. "Mais um de seus truques, seu diabo!", disseram. Havia injustiça no caso. Bajenaru tivera a oferta de liberdade se aceitasse trabalhar para a Polícia Secreta. Retorquiu: "Deixarei a prisão quando o último clérigo tiver sido solto".

A suspensão de sua execução foi considerada suspeita, porque era mais comum a sentença ser aumentada, e não diminuída. Em qualquer tempo, sob o Comunismo, o Estado pode obter uma pena mais severa para um sentenciado. De fato, um preso, condenado a prisão perpétua, e que já passara doze anos no cárcere, foi informado, sem explicação alguma, que sua sentença fora revista. No dia seguinte foi metralhado.

Bajenaru foi transferido para outra cela, onde recebeu pontapés e foi surrado pêlos presos. Duas vezes tentou o suicídio. Depois foi deslocado para outro cárcere, onde faleceu.

A primeira execução, enquanto estive em Tilava, foi a dos irmãos Arnautoiu. Tinham vivido na floresta durante anos como guerrilheiros, até que uma mulher, que visitou o esconderijo deles, foi rastreada por soldados e eles foram capturados.

As execuções se processaram com um cerimonial de meter medo. Antes da meia-noite, guardas enfileram-se nos corredo­res; das celas centenas de olhos espreitavam por rachaduras e frestas de espia. Em dado momento, o comandante marchou à frente de pequena procissão rumo ao pátio do lado de fora. Dois oficiais superiores chegaram primeiro; a seguir os irmãos con­denados, arrastando grilhões, cada qual seguro por um guarda de um lado e de outro, e seguidos de um médico e guardas com metralhadoras. Ouvimos os golpes do martelo em plena madru­gada fria, retirando os grilhões. Sacos foram postos em suas ca­beças, depois do que foram empurrados para dentro do carro que os levou a um campo perto, onde foram metralhados atrás da cabeça, à queima-roupa. Ouvimos as detonações.

O executor era um homem descendente de ciganos, chamado Nita, que recebia um bônus de 500 léus em cada ocasião. Era o guarda mais bem-amaneirado que tínhamos: chamavam-no o Anjo Negro de Jilava.

"Sempre dou a eles um último cigarro na cela, antes que chegue o momento", disse-nos. "Procuro conservá-los bem dispostos, e não é tão difícil como vocês possam imaginar, porque cada um deles pensa até ao último instante que será salvo".

Aconteceu isso no caso de um jovem de dezenove anos, de nome Lugojanu. Seu pai, antigo ministro do governo, tinha sido torturado na prisão até morrer. O rapaz, ajudado por alguns amigos, fez uma série de assaltos a milicianos, em represália. Um dos assaltantes deu com a língua nos dentes, ao ser capturado, e assim Lugojanu e oito cúmplices foram sentenciados à morte.

Os primeiros dois marchavam para o pátio, depois um segundo par. Os outros ouviram a retirada dos grilhões. Ouviram os tiros. Ouviram os passos dos guardas indo buscar os restante. Um deles me disse depois: Fiquei perfeitamente calmo. Abriu-se a porta da cela. Era o comandante. Chegara aviso de Bucareste que as sentenças dos restantes tinham sido comutadas. Muitas vezes no cárcere eu vi em ação força misteriosa que sustém os homens nos seus último momentos.

A polidez do Anjo Negro era como uma espécie de apre­sentação de desculpas pela sua odiosa função. "Não sou nenhum monstro", dizia ele, e de fato. Os outros guardas, e os de sua confiança dentre os presos, não sentiam a necessidade de tal excusa.

A índole de Jilava era particularmente má. Era uma prisão de trânsito, onde os homens quase sempre encontravam velhos inimigos. Muitos presos eram ex-policiais. Os de muita prática da antiga polícia, até os que trabalharam contra o Comunismo, foram mantidos por mais dois anos a fim de treinarem os candidatos do Partido. Esses homens de experiência então receberam ordem de prender alguns dos seus próprios camaradas. Depois eles, por sua vez, foram presos pêlos homens por eles treinados. Uma vez sentenciados, grupos desses políticos tiveram de partilhar da mesma cela, porque no fim nenhum oficial do velho regime escapou ao expurgo.

Um dia concentraram-se as explosões de ódio em um homem recém-chegado à prisão.

Foi jogado em nossa cela vindo de outra - machucado, desgrenhado, sujo, com o maxilar solto. Olhou à volta com terror. A seguir ouviu-se um bramido: "Albon!"

O comandante de Poarta-Alba, responsável pela morte de milhares, fora feito bode expiatório do fiasco do canal. Lembrávamo-nos como o Coronel Albon saudava os que iam chegando ao seu acampamento. "Professores, médicos, advogados, padres - todos meus talentosos amigos! Aqui não há necessidade de usar o crânio; só as mãos, suas mãos fidalgas! Pelo trabalho vocês são pagos com o ar que respiram. Não pensem que serão libertos, a não ser pela morte - ou quando suspende­rem o trabalho no canal e me meterem debaixo de chave!"

Agora Albon nos fitava como um coelho hipnotizado. Um preso agarrou-o pela gola e arrastou-o, pondo-o de pé. Outro pegou-o e fê-lo girar em redor. Um terceiro deu-lhe um pontapé na virilha. Caiu debaixo de uma cascata de murros, guinchando histericamente.

Procurei salvá-lo. Os homens viraram-se para mim: "Assim você está tomando o partido deste assassino!"

Albon debatia-se, sujo de sangue e poeira, no meio de risos, escárnios e apupos. Caiu outra vez a caminho da porta, cortando-se no canto aguçado de uma tarimba. Em outra escaramuça as costas da camisa foram-lhe arrancadas. Levou as mãos à frente do rosto para defendê-lo. Por fim desmaiou e ficou deitado no chão.

Albon recebia esse tratamento de cela em cela, até que foi transferido para o cárcere de Ocnele-Mari, reservado pelas autoridades aos oficiais e funcionários caídos em desonra e desgraça.

Dias depois, reconheci outro rosto. O Coronel Dulgheru, que durante uma semana me submetera a interrogatório em confinamento solitário, acabou preso. Contei-lhe o que acontecera a Albon. Ele procurou não se preocupar, mas era inevitável que alguém não tardasse a notá-lo.

Contou-me ter sido acusado de ser espião da polícia nos dias que prenderam o advento do Comunismo - acusação que se costumava fazer quando o Partido queria incriminar um dos seus próprios homens - e descreveu como fora detido. Dirigia-se às celas para interrogar alguém, com a sua comitiva de três subalternos. Abriram a porta da cela cortesmente, fizeram o coronel entrar e fecharam-na. Dulgheru viu-se fechado numa cela vazia. Bateu na porta pedindo para sair. Seus homens riam. Ou­viu um deles dizer: "Chegou agora a sua vez de ficar aí!"

Quando identificaram Dulgheru em Jilava, puseram a mira nele, pelo que teve de ser transferido para Ocnele-Mari. O cárce­re do Partido em breve ficou superlotado como os demais.

Logo depois de sua partida, fui enviado a Bucareste para ser interrogado. Óculos de proteção, como de piloto, foram colocados em mim antes de ser levado em carro à capital. No"-Q.G. da Polícia Secreta as inquirições de um coronel uniformizado pareceram ter antes o objetivo de sondar minha atitude para com o regime do que obter informação. Não me deu pista nenhuma do verdadeiro propósito que tinha em ver-me.

O local estava apinhado de presos "secretos" tinham também sua vez nas celas. Fui posto com um indivíduo atarracado e taciturno. Era Vasile Turcanu, o principal "reeducador", sentenciado à morte pelo regime que antes lhe dera licença de matar. O Partido mantivera-o vivo por três anos, tencionando, como de costume, anunciar sua execução quando alguma violenta perturbação política tornasse necessário levá-lo a cabo.

Turcanu descreveu como prenderam Theohari Georgescu, Ministro do Interior, durante o expurgo de 1953. Estava sentado em seu gabinete, diante de uma fila de telefones, quando três dos seus próprios oficiais da defesa entraram altivos, empunhando revólveres. Fizeram Georgescu olhar para o seu próprio retrato, dependurado na parede em sua moldura dourada, enquanto eles lhe baixavam as calças para serem revistadas.

Procurei levar algo do Cristianismo para a vida de Turcanu, nas poucas horas que passei com ele, mas pouco se podia fazer por um homem tão a fundo emaranhado em doutrinas de violência.

A notícia mais sensacional que colhi nas celas do Q.G. da Polícia Secreta foi que Stalin tinha sido denunciado como assas­sino e tirano pelo seu sucessor Khrushchev. Os primeiros relatos de como Beria e seis dos seus homens de cúpula foram executa­dos na véspera do Natal de 1953 - ao lado de mimares de agentes soviéticos de menor categoria - acabavam de ser publicados, e o processo do descrédito de Stalin começara na Roménia. Gheorghiu Dej, o novo ditador romeno, estava introduzindo uma política mais popular. Dej gostava de viver bem consigo mesmo; seu temperamento, pelo menos, era melljor que o da camarilha de Pauker.

As notícias que levei de volta a Jilava puseram a cela em rebuliço. Todo o mundo gozava Stalin por ter sido derrubado do seu pedestal. Esperavam que isso apressasse a soltura deles.

Mas Popescu observou: "Conheço o Partido. Eles denunciam o ladrão - mas não devolvem o roubado".

"De qualquer modo, Stalin acabou-se", disse outro preso.

"Que vá para o inferno!" exclamou um segundo.

Em meio a risadas, gritos e aplausos e motejos dois prisioneiros valsaram ao redor da cela, guinchando comentários obscenos ao "Tio Zé". Só os guardas estavam silenciosos. A denúncia de Stalin deixava incerto o futuro deles.

Popescu veio a mim: "O senhor não parece estar contente, pastor!"

Respondi: "Não posso sentir prazer em explosões de ódio contra ninguém. Não conhecemos o destino de Stalin. Ele pode ter sido salvo à última hora, como o ladrão da cruz".

"O que! Depois de todos os crimes que Stalin cometeu?" indagou alguém.

"Talvez assemelhe-se ao rico, que em sua vida só teve um momento para o arrependimento, em entanto findou no Céu", retorqui.

Narrei para eles o caso de um homem que por viver a explorar os pobres, criou um ódio profundo ao ministro da vila, simplesmente porque ele era bom. Quando se encontravam na rua, o homem cuspia no rosto do ministro, que não se incomodava com isso, pensando: "É um prazer para essa pobre criatura". Uma vez por ano, todavia, o rico, que se chamava Bodnaras, ia à igreja e sempre na sexta-feira Santa. Ao ouvir a história da Crucificação, duas lágrimas rolaram por suas gordas bochechas. Enxugava-as depressa e saía antes de ser levantada a coleta.

Em certa Sexta-Feira Santa grande congregação aguardava o início do culto. O ministro não apareceu nem Bodnaras também. Passou-se uma hora. Por fim alguém olhou para trás do altar. Lá estava o pastor, estirado no chão, respirando calmo, olhos fechados, com o rosto a expressar tão grande felicidade que o povo achou estar ele transfigurado por um êxtase santo.

Na manhã daquele dia Bodnaras morrera, comparecendo ao juízo e quando os demônios puseram todas as más ações dele num lado da balança, um anjo apareceu, nada tendo a colocar no outro lado, exceto as duas lágrimas que vertera todos os anos. Nada obstante, aquelas lágrimas pesaram exatamente tanto quanto todas as más ações juntas.

Que havia a fazer? Bodnaras começou a suar e tremer. Mas naquele momento exato Deus olhou para um lado e o rico tirou rápido um punhado de obras más da balança. Esta inclinou-se para o lado do Bem.

Deus porém percebe as coisas, mesmo quando desvia o olhar para outra parte. Disse tristemente ao rico: "Nunca em toda a criação alguém tentou lograr-me no Dia do Juízo". E olhando ao redor do Céu, indagou: "Quem quer defender este homem?"

Os anjos ficaram calados. "Venha", continuou Deus, "isto aqui não é a República Popular da Roménia. Não podemos condenar alguém sem que ele se defenda".

Até o anjo guardião recuou ante a tarefa. "Mas", observou "há um ministro na cidade dele, de tantas virtudes que bem pode dispor-se a falar em seu favor".

O ministro foi levado ao Céu, enquanto seu corpo permaneceu lá em baixo. Quando viu o homem a quem humilhara tantas vezes, Bodnaras pensou que fugia sua última oportunidade, mas o pastor aceitou sem hesitar o caso judicial.

"Pai Celestial", começou ele, "qual de nós é melhor, Tu ou eu? Se sou melhor do que Tu, desce do trono e deixa-me tomar o teu lugar, porque todos os dias eu permitia a Bodnaras o gozo de cuspir em mim, e não ficava com amargura. Certamente, se eu posso perdoá-lo, o mesmo podes fazer.

"Minha segunda contestação é que Jesus morreu na cruz pêlos pecados do homem, embora em nosso desgraçado país hoje sejamos castigados muitas vezes pelo mesmo crime, não é justo que Bodnaras sofra outra vez pêlos seus pecados, quando já foram punidos no corpo de Jesus.

"E em terceiro lugar, ó Deus, uma pergunta prática - que perdes tu se ele for para o Céu? Se o paraíso é muito apertado, tu podes ampliá-lo. Se não queres colocar gente má no meio dos bons, então faze outro Céu para as almas perdidas - dá-lhes também um pouco de felicidade".

Essas palavras agradaram tanto a Deus que ele imediatamente chamou Bodnaras: "Vá agora mesmo para o Céu!" Mas o rico escapuliu-se. Deus então virando-se muito comovido para o ministro, disse: "Fique aqui um pouco e conversemos".

"Obrigado", disse o pastor, "mas ainda não comecei o culto e todos na igreja esperam ainda sair em tempo para o jantar em casa. Preciso voltar e cumprir a minha obrigação e dizer ao povo que se precavenha do pecado. Contudo, também ensinarei a ele que tu cumpres o teu dever perdoando-nos, porque o teu amor atinge até os piores pecadores. Se começas a julgar o homem de acordo com o que ele merece, nenhum de nós escapará".

A cela ouviu esta história em silêncio.

"E o senhor defenderia Stalin na presença de Deus?" interpelou Popescu.

"Quem sabe se Stalin não chorou os seus pecados?" respondi. "Os psicólogos dizem que quanto piores forem os crimes de alguém, tanto menos responsável é por eles. Um maníaco da marca de Hitler, que incinera em fornos milhões de pessoas inofensivas, que ele nunca viu; um assassino de gente em massa da igualha de Stalin, que trucida milhares de seus próprios camaradas - tais homens não são normais, e neste caso não podemos julgá-los usando o critério que adotamos em relação com outros".

O Coronel Popescu observou: "Tenho ouvido muita doutrina cristã nesta cela, porém esta é a melhor - e a mais difícil de por em prática".

Na primavera de 1956 algumas andorinhas fizeram ninho no alto da cela, perto da janela. Certo dia um pipilar anunciava que as avezinhas tinham saído dos ovos. Um preso, trepado nos ombros de outro, espiou para dentro do ninho. "São quatro!", exclamou. Os pais dos filhotes estavam agitados. Aquilo nos fez mudar de assunto: em vez de conversar sobre nossa soltura, agora contávamos as vezes que disparavam no voo, entrando e saindo para aumentar a prole - 250 viagens por dia. Um velho do interi­or disse: "Dentro de vinte dias eles começarão a voar". Os outros riram. "Vocês vão ver", acrescentou. No vigésimo dia nada aconteceu, mas no vigésimo primeiro, pipilando e adejando agitados, os novos pássaros voaram. Gostamos de ver. "Deus ar­ranja o programa certo deles", disse eu. "O mesmo poderá fazer para nós".

Passavam-se as semanas e parecia que a denúncia de Stalin preanunciava de fato outro "degelo". Não podia demorar; aliás muitos presos estavam soltos por efeito de uma anistia. Estaria eu no número deles? Este pensamento só me fazia ficar triste: se me soltarem agora, para que vou servir? Mqu filho crescera e dificilmente se lembrava do pai. Sabina acostumara-se a cuidar de si. A Igreja tinha outros pastores, que lhe causavam menos dissabores.

Certo dia bem cedo uma voz interrompeu esses pensamentos: "Interrogatório, logo! Vamos!" Estaria de volta à arrogância, ao medo e às perguntas para as quais teria de achar respostas falsas? Comecei a juntar meus pertences. O guarda berrou: "Venha, venha! O carro está à espera". Saí às pressas com ele corredor a fora e atravessei o pátio. Um após outro os portões de aço iam-se abrindo, à medida que subíamos degraus. Afinal estava do lado de fora!

Não havia carro à vista, apenas um escrevente, que me entregou um papelzinho. Recebi-o, era um despacho do tribunal, no qual se declarava que eu estava livre, por força de uma anistia.

Fitei o papel, imbecilizado. Tudo o que pude dizer foi: "Minha sentença é de vinte anos, mas só cumpri oito e meio".

- Você tem de ir embora. É ordem do tribunal superior.

- Tenho ainda quase doze anos a cumprir.

- Não discuta! Suma-se!

- Mas olhe para mim!

Minha camisa estava rasgada e suja. Minhas calças ostentavam uma coleção de remendos de vários tamanhos e cores. Minhas botas pareciam ter sido emprestadas por Charlie Chaplin.

- Vou ser preso pelo primeiro policial que encontrar.

- Não temos roupa aqui para você. Ponha-se na rua!

O escrevente voltou-me as costas e entrou na prisão. O portão fechou-se e o ferrolho rangeu. Fora da prisão não se via ninguém; achei-me só em um mundo vazio. Naquele dia quente de junho tudo estava tão calmo que eu podia ouvir insetos zumbindo a cuidar de si. Uma estrada longa, auspiciosa, estendia-se além, sob árvores de um verde escuro maravilhoso. Vacas pas­tavam à sombra de um vasto castanhal. Como tudo era tranquilo!

Falei alto, de modo a poderem os guardas ouvir do outro lado dos muros: "Ó Deus, ajuda-me a não ter maior alegria por estar livre do que a de ter tido a ti comigo na prisão!"

Jilava distava de Bucareste pouco menos de uma légua. Pus minha trouxa no ombro e parti atravessando campinas. Continha ela apenas uma porção de trapos catinguentos, mas a mim tinham valido tanto na prisão que nunca pensei em deixá-los. Em breve chegava eu ao fim da estrada para enveredar pelo meio do capim denso e tocar aqui e ali na casca áspera das árvores, enquanto avançava. Algumas vezes parei para fitar uma flor ou um rebento de folhas.

Encontrei dois vultos - um casal de velhos matutos. Pararam diante de mim e disseram com abelhudice: "Você vem de lá?" O homem tirou um léu, moeda valendo cerca de cinco centavos, e me deu. Olhei para ele em minha mão e quase tive vontade de rir. Ninguém nunca antes me dera um leu.

- Dê-me seu endereço, para que eu possa reembolsá-lo.

- Não, não, fica com ele, insistiu o velho, usando o prono­me "tu", como se faz na Roménia falando a crianças e mendigos.

Prossegui com a minha trouxa. Outro pessoa, uma mu­lher, fez-me parar. "Você vem de lá?" Esperava ela de mim notíci­as do padre da vila de Jilava detido meses antes. Eu não o vira, mas expliquei que eu mesmo era pastor. Sentamo-nos num murinho à beira do caminho. Fiquei tão contente por encontrar alguém que se dispunha a conversar sobre Cristo que não me impacientei por chegar logo a casa. Quando por fim me ia reti­rando, ela também me deu um léu: "É para a passagem do bon­de":

- Mas eu tenho um leu.

- Leve então este por amor de nosso Senhor.

Fui andando até que cheguei a uma parada de bonde no perímetro da capital. Pessoas me rodeavam, sabendo logo de onde eu vinha. Perguntavam sobre irmãos, pais, primos - todos tinham alguém na prisão. Ao tomar o bonde não me deixaram pagar. Várias pessoas se levantaram oferecendo-me seus lugares. Presos que saem da cadeia na Roménia, longe de serem proscritos, são altamente respeitados. Sentei-me com a trouxa nas pernas, mas logo que o bonde começou a movimentar-se ouvi brados de fora: "Pare! Pare!" Quase pensei que era o meu coração que ia parar. Com a freada brusca todos nos inclinamos à frente, enquanto a motocicleta de um miliciano dava guinadas à dianteira do bonde. Tinha havido um engano - ele vinha levar-me de volta? Mas o condutor virou-se e gritou: "Ele diz que há alguém de pé no estribo".

Junto a mim estava uma mulher com um cesto de morangos frescos. Olhei para eles sem acreditar.

- Não comeu nenhum ainda este ano? Perguntou ela.

- Há oito anos que não os vejo, respondi.

- Vá, tome alguns!

E encheu minhas mãos de uns bem madurinhos. Faminto que estava, comi-os de boca cheia, qual uma criança.

Por fim cheguei à frente de minha casa e hesitei por um momento. Não era esperado, e andrajoso e sujo como estava metia medo. Por fim, abri a porta. Na sala estavam dispersos jo­vens, entre os quais um de aparência desajeitada, que me fitou e explodiu: "Papai!"

Era meu filho Mihai. Deixei-o com nove anos; agora tinha dezoito.

Depois saiu minha esposa. Seu rosto delicado estava mais magro, contudo seus cabelos ainda eram negros; julguei-a mais bela do que nunca. Minha vista ficou toldada. Ela abraçou-me e com muito esforço fui dizendo: "Antes de nos beijarmos, preciso dizer uma coisa. Não pense que apenas saí da miséria para a felicidade! Vim da alegria de estar com Cristo na prisão para a alegria de estar com ele ao lado de minha família. Não venho do meio de estranhos para os meus, mas venho dos meus em prisão para os meus em casa". Ela soluçava; eu disse: "Agora, se quer, pode beijar-me". Mais adiante cantei baixo uma cançãozinha que fizera para ela anos antes na prisão, a fim de cantá-la se um dia nos encontrássemos de novo.

Mihai veio dizer-me que a casa estava cheia de visitantes que não queriam sair sem antes ver-me. Membros de nossa igreja tinham estado a telefonar para Bucareste inteira; a campainha da porta tocava a todo instante. Velhos amigos levaram outros novos. Pessoas precisavam ir saindo para que outras pudessem entrar na sala. Toda vez que era apresentado a uma mulher tinha de me inclinar respeitosamente nas minha calças absurdas, sustentadas por um cordão. Quando todos se retiraram já era quase meia-noite e Sabina insistiu que eu comesse alguma coisa. Mas eu não sentia fome. Disse: "Hoje tivemos felicidade bastante. Façamos do dia de amanhã um dia de jejum em ação de graças, com a Santa Comunhão antes da ceia".

Voltei-me para Mihai. Três de nossos visitantes - um deles professor de filosofia da universidade, a quem não conhecia antes - disseram-me naquela noite que meu filho os levara à fé em Cristo. E eu temera que, deixado sem pai nem mãe, ele viesse a perder-se. Não podia achar palavras com que exprimisse a minha felicidade.

Mihai interpelou-me: "Papai, o senhor passou por tanta coisa, quero saber o que aprendeu de todos os seus sofrimentos".

Pus meu braço à volta dele e respondi: "Mihai, quase que esqueci minha Bíblia todo este tempo. Quatro coisas, porém, estiveram sempre em meu pensamento. Primeiro, há um Deus. Segundo, Cristo é o nosso Salvador. Terceiro há uma vida eterna. Quarto, o amor é o melhor expediente".

Meu filho retorquiu: "Era tudo o que eu queria". Mas adiante me disse que decidira ser pastor.

Na minha cama limpa e macia daquela noite não pude dormir. Sentei-me e abri a Bíblia. Queria o Livro de Daniel, que tinha sido o meu favorito, mas não conseguia achar onde ficava. Meus olhos deixaram-se então prender por uma passagem da segunda Epístola de S. João: "Fiquei sobremodo alegre em ter encontrado dentre os teus filhos os que andam na verdade". Esta alegria era minha também. Entrei no quarto do meu filho, porque queria ter a certeza de que ele lá estava. Na prisão muitas vezes sonhei com isso, mas somente para acordar e me achar na cela.

Passaram-se duas semanas e só então vim a dormir regularmente. Já então estava sendo tratado na cama mais bem situada da enfermaria mais banhada de sol e do melhor hospital possível. Sendo eu um egresso do cárcere, todo o mundo queria ajudar-me - nas ruas, nas lojas, em toda parte - e a torrente de visitantes recomeçou.

PARTE SEXTA

Agora que estava livre, ansiava no profundo de meu coração por tranquilidade e descanso. Mas o comunismo agia em toda parte para levar a termo a destruição da Igreja. A paz que eu desejava seria uma evasão da realidade e um perigo para a minha alma.

Estava de volta a um lar pobre, todavia eu era mais afortunado do que muitos. Tínhamos um pequeno sótão de dois quartos, quase com mobília nenhuma. Dormia em uma cama velha de tábuas, com um colchão macio emprestado por um vizinho; a cama era provida de uma almofada à cabeceira para adaptá-la ao meu comprimento. Água vinha do porão, três andares abaixo, e o banheiro mais próximo ficava em outro edifício. Não podia esperar nada melhor. Na prisão todos estávamos cientes das moradias de que dispúnhamos e da escassês de mantimentos, bem como dos edifícios das igrejas fechadas ou expropriados, como era o caso da nossa.

Nosso confortável apartamento fora confiscado quando da prisão de minha esposa. Visto ter ela se recusado a divorciar-se de mim.

depois que foi solta, não podia arranjar trabalho, vivendo em pobreza extrema, serzindo meias de mulheres e dependendo da bondade de amigos. Disse que fora um transe duro para eles e mais para Mihai.

Aos treze anos ele teve permissão de visitar a mãe durante os três anos que ela passou de trabalho forçado no canal. Privado de ambos os pais, vivendo da caridade pública, tornou-se ríspido.

"Tomei emprestado o dinheiro para ir ao acampamento", disse ele. "Encontramo-nos num local onde duas séries de barras de ferro nos separavam. Mamãe vestia a farda da prisão, estava suja e magra, meio chorosa; precisou gritar para que eu ouvisse. Exclamou: "Mihai, creia em Jesus e seja fiel!" Respondi: "Mamãe, se num lugar como este a senhora ainda é crente, então eu devo sê-lo também".

Voltando a Bucareste, Sabina encontrou Mihai trabalhando como afinador de piano, depois de uma aprendizagem com o afinador do Teatro Lírico; seu ouvido musical era apurado de tal forma que já trabalhava por conta própria. Em breve já ganhava o bastante para ajudar a mãe e estudar. Levavam uma vida de pobreza, mas tinham o que comer.

Os contratempos de Mihai com o Partido começaram cedo ao conquistar ele o direito, concedido aos alunos modelares, de usar uma gravata vermelha - recusando-a por ser "O distintivo dos opressores". Expulso de público, foi sigilosamente readmitido na escola quando o rebuliço serenou, porque seus professores serviam o regime com adulação apenas de lábios. Aos quatorze anos foi de novo expulso por declarar que a Bíblia e que os ataques à religião, feitos nos livros didáticos, baseavam-se em falsidades. Dessa vez tratou de continuar os estudos em aulas noturnas.

Mihai era cristão, sem nenhum amor ao comunismo. Mas um pássaro que vive em um ninho perto de uma família de gralhas emite notas dissonantes, e Mihai sabia pouca coisa além do que lhe chegava aos ouvidos. No dia seguinte ao de meu regresso precisei dizer-lhe estar ele enganado em crer que os operários nos países capitalistas morriam de fome. Seus colegas estudantes tinham issa como certo, e uma jovem me contou haver chorado na aula pelas crianças famintas da América.

Até os menores moços pareciam confusos e desnorteados. Não somente se viam privados da oportunidade de ler notáveis autores cristãos, como nem podiam adquirir as obras de pensadores como Platão, Kant, Schopenhauer e Eistein. Os amigos de Mihai afirmavam que seus pais lhe diziam uma coisa, os professores diziam outra, pedindo eles muitas vezes o meu parecer.

Um jovem estudante de teologia, da universidade de Cluj, precisava de uma ajuda para escrever sua tese.

— Qual é o assunto? Perguntei.

— A história do canto litúrgico na Igreja Luterana.

Eu disse: "Você deve começar escrevendo que não devemos encher a cabeça dos moços com trivialidades históricas, quando amanhã poderão ter de enfrentar a morte por sua fé".

"Que devo estudar neste caso?" perguntou.

Respondi: "Estude como devemos nos aprontar para o sacrifício e o martírio".

Contei-lhe alguma coisa do que vi no cárcere, e não tardou que ele trouxesse os amigos. Todos tinham a mesma dificuldade em traçar um programa de curso. Inquiri deles acerca dos seus estudos.

Um deles disse: "Nosso professor de teologia afirma que Deus deu três revelações. A primeira a Moisés. A segunda a Cristo. E a terceira a Karl Marx".

— Que pensa seu pastor sobre isso?

— Quanto mais ele fala menos parece dizer.

O desfecho dessas conversações foi eu concordar em ir a Cluj e pregar na catedral. Os estudantes quiseram ver livros meus, porém todos os meus escritos tinham sido interditados.

Antes de ir precisava fazer uma breve visita em cumprimento de uma promessa feita na prisão a membros do Exército do Senhor, organização parecida com o Exército da Salvação, e que estava sendo hostilizado implacavelmente pela Polícia Secreta. Já fazia vários anos que eu me avistara com o Patriarca Justiniano Marina, pensando eu que ele pudesse ajudar. O dano por ele causado à Igreja fora enorme; estava também em suas mãos fazer algum bem.

Encontrei-o a passear no terreno atrás do seu palácio. Desconfio que ele preferiu ver-me no jardim para ficar livre de microfones e afastado dos seus empregados, que podiam ficar escutando a conversa às escondidas. Eu disse: "O senhor é Patriarca e à sua presença chegam pessoas à procura de emprego e pensão. Em todo lugar cabe-lhe pregar e cantar - de modo que pensei deve vir e cantar para o senhor. É um hino do Exército do Senhor, que aprendi na prisão". Cantei o hino para ele e pedi que fizesse algo em favor daquela gente simples e boa: "Eles não devem ficar sentados para sempre no cárcere, somente por pertencerem a determinada organização religiosa". Respondeu-me que ia tentar fazer algo, e então conversamos bastante.

Procurei chamá-lo de volta para Deus. Afirmei: "No Jardim do Getsêmani, Jesus até ajudas tratou de 'amigo', abrindo-lhe o caminho da salvação". Queria eu plantar uma semente da qual germinasse uma mudança de coração. Ele ouviu em silêncio, e mais ainda com humildade, porém disse poder fazer pouco em vista de ter sido colocado ao seu lado o Metropolita de lasi, Justino Moisescu; se ele se aventurasse a muita coisa ou resignasse, Moisescu o substituiria como Patriarca, e então as coisas iriam a pior. Justiniano tinha-me certo respeito, mas embora tivesse o coração dividido, suas vacilações sempre acabavam em submissão as exigências do Partido.

Mais adiante soube que o assunto do "Exército" tinha sido levado à consideração do Santo Sínodo, onde o Patriarca enfrentou a oposição do Metropolita - que (logo quem!) fora aceito como representante ortodoxo junto ao Concílio Mundial de Igrejas. A seguir foi censurado pelo Ministro dos Cultos por haver-me recebido - seu secretário, naturalmente, relatou minha visita, assim como o Patriarca sempre dava relatório do que o secretário fazia. Justiniano tinha concordado em receber delegados da parte do "Exército", mas ao chegarem, mandou-os embora sem cerimónia, dizendo: "Wurmbrand disse a vocês que viessem, não foi? Já é tempo de ele voltar para a cadeia!"

A notícia de haver eu prometido fazer uma série de preleções na antiga cidade universitária da Roménia chegou logo ao conhecimento das autoridades, com o aviso de que meu verdadeiro propósito era atacar o Marxismo e causar perturbação entre os estudantes sob o disfarce de prelecionar sobre filosofia cristã. O zeloso denunciante no caso foi um ministro protestante, que me disse na cara o que fizera.

Seu ato não me surpreendeu. Desde que fora solto, encontrei muitos dos meus colegas - padres, pastores e até bispos - que levaram aquela denúncia ao Ministro dos Cultos. De ordinário as denúncias visavam seus próprios rebanhos, e comumente os clérigos sentiam vergonha e tristeza pelo que faziam. Diziam que não era tanto visando a segurança deles mesmos, senão para livrar suas igrejas de serem fechadas. Cada cidade tinha seus delegados do Ministério dos Cultos junto à Polícia Secreta, os quais inquiriam regularmente os ministros sobre a conduta de suas congregações; aparte questões políticas, queriam saber quais era os paroquianos que comungavam frequentemente, quais procuravam obter conversões, que pecados as pessoas confessavam. Os que recusassem responder a tais perguntas eram depostos, e igrejas eram fechadas. De sorte que na época a Roménia tinha quatro categorias de ministros: os que estavam presos; os que delatavam coagidos e depois procuravam tornar atrás; os que davam de ombros e faziam o que se lhes mandava; e os que pelo hábito adquiriram o gosto de delatar. Estes últimos eram poucos. Os pastores oficiais, por mais respeitáveis que fossem, não tardavam em ter caçada sua licença de pregar se não colaborassem. Mas os traidores, tipo maria-vai-com-as-outras, saíam-se bem com o seu descaramento, e meu colega delator era um deles.

Seu aviso foi recebido por um funcionário espião de nome Rugojanu. O Ministério dos Cultos tinha também suas categorias de serventuários. Uns eram moles, outros se aproveitavam do poder que tinham para extorquir do clero "dinheiro de proteção", mas Rugojanu era um fanático que ia de uma igreja a outra fariscando incansavelmente "contra-revolucionários". Ele em pessoa assistiu às minhas preleções.

Em Cluj, na primeira noite, houve um grupo de cinquenta estudantes, e uns poucos professores de teologia. Como Danvin com suas teorias evolucionistas, sempre tinha as honras de primeiro lugar lecionar nas aulas de teologia; procurei abordá-lo. Declarei que a nova Roménia, avançada e socialista, rejeitava todas as ideias capitalistas; não era de estranhar que se abrisse uma exceção para o burguês britânico Sir Charles Danvin?

Rugojanu, encurvado à frente do banco, fitava-me de frente. Olhei para ele e continuei: "O filho de um médico quer ser médico também, o de um compositor de música quer ser musicista, o de um pintor quer ser artista, e assim por diante. Se credes que fostes criados por Deus, então haveis de procurar ser semelhantes a ele; mas se preferes crer que sois progénie de macacos, correis o perigo de virar animais".

Comecei minhas preleções numa segunda-feira. Na terça o auditório tinha duplicado. No fim da semana eram mais de mil os rostos que tive pela frente - a universidade em peso parecia lotar a catedral. Sabia que muitos ansiavam ouvir a verdade, mas temiam as consequências de abraçá-la. Por isso contei-lhes o conselho que me dera um pastor que morreu por sua fé as mãos dos fascistas. Ele me disse: "Você entrega seu corpo como um sacrifício a Deus quando o entrega a todos quantos desejam espancá-los e ridicularizá-lo. Jesus, sabendo que sua crucifixão se aproximava disse: "Meu tempo é chegado". Seu tempo foi o do sofrimento, e sua foi a alegria de padecer para a salvação do gênero humano. Nós, por igual, devemos encarar o sofrimento como uma responsabilidade e encargo que Deus nos impõe. S. Paulo escreveu na Epístola aos Romanos (12.1): "Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis os vossos corpos por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus".

Passei a vista pela congregação inteira em silêncio. Por um momento era como se tivesse retrocedido à minha igreja durante a guerra, no dia em que os da Guarda de Ferro, arrogantes e cruéis, encheram o banco de trás, portando revólveres. Ameaças nos rodeavam; não apenas o lugar onde Rugojanu estava a tomar notas.

Continuei: "Não permitais que o sofrimento vos alcance de surpresa! Meditai nele muitas vezes. Tomai pelo pensamento as virtudes de Cristo e"dos seus santos para vós outros. O pastor de que vos falei, meu professor que morreu por sua fé, deu-me a receita de um chá contra o sofrimento, receita que vou passar a vós outros também".

 

Contei-lhes então a história de um médico dos primitivos tempos do Cristianismo, que foi preso injustamente pelo imperador. Depois de algumas semanas, seus familiares tiveram permissão de visitá-lo, e a princípio choraram. A roupa dele eram farrapos, seu alimento uma fatia de pão com um copo de água diariamente. Sua esposa espantou-se e perguntou: "Como é que sua aparência é tão boa? Você tem os ares de quem acaba de sair de uma festa de casamento!" O médico, sorrindo, respondeu ter encontrado um remédio para todas as tribulações. Sua família indagou qual era. O médico disse: "Descobri um chá que é eficaz no combate a todos os sofrimentos e tristezas. É feito de sete ervas, e vou enumerá-las para vocês:

"A primeira erva chama-se contentamento: fiquem satisfeitos com o que têm. Posso tremer de frio na minha roupa esfarrapada enquanto vou roendo minha crosta de pão, mas como seria muito pior se o imperador me tivesse lançado nu em calabouço sem nadinha para comer!

"A segunda erva é senso comum. Quer me alegre, que me exaspere estarei de qualquer modo na prisão. Então para que me impacientar?

"A terceira é a lembrança dos pecados passados: contem quantos são e na suposição de que cada um deles merece um dia no cárcere, calculem quantas vidas vocês teriam de passar atrás das grades - a sentença é até muito leve!

"A quarta é a reflexão em torno das tristezas que Cristo arrastou alegremente por nós. Se o único homem que podia escolher sua sorte sobre a terra escolheu sofrimento, que valor enorme ele devia ver nas dores! Observamos assim que, levado com serenidade e gozo, o sofrimento redime.

"A quinta era é saber que o sofrimento nos tem sido dado por Deus na qualidade de Pai, não para nos prejudicar, mas para nos purificar e santificar. O sofrimento pelo qual passamos tem o propósito de depurar-nos e preparar-nos para o Céu.

"A sexta é saber que sofrimento algum pode fazer mal a nossa vida cristã. Se os prazeres da carne são tudo na vida, então o sofrimento e a prisão acabam extinguindo o alvo que o homem tem na sua existência; mas se a essência da vida é a verdade, eis o que prisão alguma pode mudar. Na prisão ou fora dela dois mais dois são quatro. O cárcere não me faz deixar de amar; barras de ferro não podem desbancar a fé. Se estes ideais constituem minha vida, posso ficar sereno seja onde for.

"A última erva da receita é a esperança. A roda da vida pode meter o médico do imperador no cárcere, mas prossegue girando. Pode fazer que eu volte ao palácio amanhã e até pode colocar-me no trono".

Pausei por um momento. A igreja repleta era toda silêncio.

Continuei: "Tenho bebido tonéis desse chá desde então, e posso recomendá-lo a vós outros. Tem produzido bom efeito".

Quando acabei de falar, Rugojanu levantou-se e foi saindo sem olhar para trás. Desci do púlpito; no auditório o zum-zum era enorme, todos a conversar. Fora, estudantes aplaudiam e vibravam, procurando apertar-me a mão. Telefonei para Sabina que ficou alegre pelo que eu fizera, se bem que soubesse que represálias haviam de vir.

No dia seguinte fui chamado pelo meu bispo, que me disse estar Rugojanu fazendo confusão. Enquanto ele me referia os protestos partidos do Ministério dos Cultos, Rugojanu adentrou a sala. "Ah, o senhor!" exclamou. "Que desculpas está procurando apresentar? Uma cachoeira de sedição - eu ouvi!"

Perguntei-lhe o que foi que em particular o desgostou. Foi tudo mas particularmente a minha cura do sofrimento.

"Mas o que havia de mal no meu pobre chá?" indaguei. "Qual a erva de que não gostou?"

Respondeu com violência: "O senhor disse que a roda dá voltas. Mas nessa explosão contra-revolucionária o senhor se engana. A roda não tornará atrás, meu amigo; o comunismo está aqui para nunca mais sair!" Seu rosto estava desfigurado de rancor.

"Não mencionei sequer o Comunismo", retorqui. "Disse apenas que a roda da vida conserva-se girando. Por exemplo, eu estive na prisão, agora estou livre. Estive mal de saúde, agora estou melhor. Perdi minha paróquia, agora posso trabalhar..."

"Não, não, não! O senhor quis dizer que o Comunismo havia de sair e todos viram que era este o sentido. Não pense que a coisa vai ficar assim!"

Rugojanu convocou os líderes da igreja ao palácio episcopal de Cluj, onde fui denunciado por tentar envenenar a mocidade com ataques velados ao Governo. "Fiquem certos os senhores que ele não pregará mais", bradou Rugojanu num acesso feio de ira. Por fim exclamou: "Wurmbrand está liquidado!" Agarrou a capa e o chapéu e foi saindo do edifício.

A uns cem metros da porta, ao procurar desviar-se de um cachorro, o seu carro subiu a calçada e foi de cheio contra uma parede, esmagando-o Rugojanu morreu ali mesmo.

A história de suas últimas palavras e do que aconteceu a seguir espalhou-se por todo o país. Muitas vezes naqueles anos Deus mostrou sinais de sua intervenção.

A cassação de minha licença de pastor não me fez deixar de pregar, mas agora precisava agir tão ocultamente quanto fizera entre soldados soviéticos antes da guerra. Um novo perigo surgia agora com visitas de velhos amigos da prisão, que vinham pedir-me conselho e auxílio. Alguns deles, transformados em delatores, procuravam provocar-me. Aqueles infelizes esperavam muito de sua liberdade. Encontrando transtornado o mundo que conheceram antes, achavam dever entregar-se à caça de prazeres sexuais para recuperar sua juventude perdida. Isso comumente custa mais do que eles tinham a oferecer; e a maneira mais simples de encetar atividades com o regime e obter lucros imediatos estava em fornecer informações ao Partido. A liberdade deles foi mais trágica do que a prisão.

Nossa melhor defesa contra informantes estava nas advertências que amigos na Polícia Secreta nos faziam. Muitos dos nossos seguidores tinham empregos no Partido de uma ou outra espécie. Um jovem casal que empregava o seu tempo no departamento de propaganda passava suas tardes orando conosco, e mais de uma vez nos reunimos na casa de um oficial proeminente da Polícia Secreta enquanto ele estava fora, sua empregada sendo do nosso grupo. Outras vezes nos reuníamos em porões, sótãos, apartamentos, casas no campo. Nossos cultos eram tão simples e tão belos como os dos primitivos cristãos há 1.900 anos. Cantávamos em voz alta; se perguntassem o motivo, dizíamos que era festa de aniversário; famílias cristãs de três ou quatro membros tinham trinta e cinco aniversários no ano! Às vezes tínhamos reuniões em campo aberto. O céu era a nossa catedral; os pássaros davam-nos sua música, as flores eram o nosso incenso, as estrelas nossas velas, os anjos eram acólitos que se acendiam, e as vestes puídas de um mártir, recém-saído da prisão, significavam para nós muito mais do que os ricos paramentos dos clérigos.

Eu sabia, naturalmente, que cedo ou tarde seria novamente preso. Depois da revolução na Hungria, a situação se tornava cada vez mais difícil. Khruschev anunciou novo plano setenal,  "para erradicar os vestígios da superstição". Igrejas fechadas ou adaptadas ao funcionamento de clubes comunistas, museus, depósitos de cereais. Aqueles que os jornais do Partido injuriavam chamando de "trapaceiros de sotaina preta" eram apanhados aos milhares.

Eu orava: "Ó Deus, se há gente no cárcere a quem posso ajudar, almas que posso salvar, manda-me de volta para lá e de boa-vontade aceitarei esse encargo". Sabina às vezes hesitava, mas acabava dizendo "Amém". Havia por esse tempo um gozo íntimo por ela experimentado, o qual provinha de sabermos que cedo serviríamos a Cristo mais consagradamente. Uma vez mais pensei se a figura que imaginávamos não estaria também ela plena de gozo porque seu filho ia ser o salvador do mundo?

Fui procurado à 1 hora da madrugada de 15 de janeiro de 1959. Nosso sotãozinho foi virado pelo avesso numa busca que durou quatro horas. Meu filho descobriu um cinturão seu atrás de um armário deslocado do lugar. "E ainda haver gente que diz não prestar pra nada a Policia Secreta!" disse ele. "Procurei este cinturão por toda parte". No dia seguinte foi posto fora da escola noturna por sua insolência.

Quando me levaram, Sabina apanhou minha Bíblia. Encontrou nela um pedaço de papel, em que estava uma sentença que eu copiara da Epístola aos Hebreus (11.35), a qual dizia "pela fé... mulheres receberam, pela ressurreição, os seus mortos". Eu escrevera embaixo: "Tenho uma mulher assim por esposa".

Ainda era escuro e as ruas estavam cobertas de neve semiderretida quando chegamos à Delegacia de Polícia de Bucareste. Passei pelas formalidades iniciais conhecidas, antes que os guardas me levassem a uma cela. Ali encontrei um homem de cerca de trinta anos, chamado Draghici, um dos odiados iïderes da reeducação, em Piteshi. Cada vez que a porta da cela se abria ele se virava bruscamente. Disse: "Sinto estar tão nervoso; não sei se vêm me buscar para um banho ou se é para fuzilar-me. Já faz quatro anos que estou sentenciado à morte".

Draghici contou-me a história de sua vida. Quando menino tinha veneração por um padre local, que disse um dia: "Seu pai é relojoeiro - peça a ele para vir consertar o relógio da igreja e cobrar barato". Draghici persuadiu o pai a fazer o trabalho de graça. O padre então pediu em recibo de 500 léus, para que ele embolsasse o dinheiro debitando a igreja. Draghici sorriu com ar de escárnio: "Eu podia criar-me cristão e dar à Igreja uma quantidade de dinheiro pêlos anos a fora, mas não para uma coisa daquela".

Seu pai, um ébrio, desapareceu com as economias da família. Aos quatorze anos o menino alistou-se na Guarda de Ferro porque apreciava a camisa verde, os cânticos marciais e a admiração das moças. Poucos meses depois a Guarda foi extinta. Draghici foi preso, e quando os comunistas galgaram ao poder foi automaticamente sentenciado a onze anos como fascista ativo. Depois de cumprir sete anos, prometeram-lhe em Piteshi: "Surre os outros presos e você será liberto".                                                                                                                                                

Contou-me: "Tinha então vinte e um anos. Não queria ficar preso, e assim fiz o que me disseram. Acreditei neles, e agora tenho de morrer pelo que fiz".

Parecia-me que ele já estava à beira da morte, tuberculoso. "Eu só mereço isto menino", dizia.

Fiquei deitado a ouvir Draghici tossindo e pensei: se Deus me chamasse e perguntasse: "Depois destes seus cinquenta e seis anos na terra, que pensa você do homem?" Eu teria de responder: "O homem é pecador, mas a culpa não é dele. Satanás e seus anjos caídos estão agindo para nos tornar tão desgraçados quanto eles".

Durante dez dias e noites argumentei com Draghici: "Não foi por sua livre escolha que você tornou-se criminoso", disse-lhe, "mas o seu senso de culpa pede uma expiação. Jesus tomou sobre si este castigo que você sente merecer".

Na décima noite ele caiu em pranto. Oramos juntos, desaparecendo seu remorso e temor. Assim pois a minha súplica, de me ser permitido ajudar outros presos, foi respondida logo nos primeiros dias de meu retorno à prisão. A seguir fui levado à prisão Urano de Bucareste para ser interrogado. Um major da Polícia Secreta tentou fazer que eu desse os nomes dos "contra-revolucionários" com os quais entrara em contato.

 Eu disse que teria satisfação em mencionar contra-revolucionários: da Rússia como os de nosso país. Vários milhares deles tinham sido mortos na União Soviética durante a década de trinta por Yagoda, então Ministro do Interior, mas no final o verdadeiro contra-revolucionário revelou-se na pessoa do próprio Yagoda. Depois, sob o seu sucessor Beria, a polícia secreta soviética levou centenas de milhares à morte, até que Beria por igual foi fuzilado. Acrescentei que o supremo inimigo da revolução, o assassino de milhões, foi Josef Stalin, que mais adiante foi exumado do seu túmulo na Praça Vermelha. De modo que melhor seria - sugeri - procurar contra-revolucionários em outra parte do que em minha pobre igreja.

O oficial ordenou que me surrassem e guardassem em confinamento solitário. Aí fiquei até meu julgamento. Consistiu este em uma revisão de dez minutos, em sessão secreta, do primeiro julgamento ocorrido dez anos antes. Minha esposa e meu filho estiveram presentes desta vez para ouvir a pronúncia contra mim.

Esperei mais adiante numa cela pelo transporte que me levasse à nova prisão. Enquanto conversava com os outros a respeito de Cristo, um oficial entrou para anunciar a nova decisão do tribunal. Agradeci-lhe e continuei o que vinha dizendo. A sentença fora aumentada de vinte para vinte e cinco anos.

 

 

PARTE SÉTIMA

HAVIA outros clérigos recém-sentenciados comigo no 0B "• caminhão da Polícia Secreta. Depois de curto percurso descemos uma rampa íngreme e paramos. Meu coração quase desmaiou, porque supus que estava voltando para a prisão do subsolo de Jilava. Vozes bradavam: "Fora com eles!" e as portas do veículo se abriram.

Um grupo de guardas brandindo bastões fez-nos passar debaixo de pancadas ao longo de um corredor. Tinham estado bebendo e à vista dos clérigos soltaram berros de alegria - oba! Atiraram para nós fardas de prisão, cinzentas e encardidas. Os vagarosos em trocar de roupa tiveram as costas de suas vestes rasgadas. As barbas foram cortadas no meio de gargalhadas estrondosas. As cabeças foram rapadas. Sangrando e seminus fomos conduzidos a uma cela grande.

Sentamo-nos no piso de lajes, comprimindo-nos uns aos outros no frio de fevereiro. Daí a pouco um guarda entrou cambaleando e gritando: "Saiam todos os padres". Ouviram-se risadinhas abafadas e resfôlegos fora da porta. Enfileiramo-nos e fomos saindo debaixo de pauladas, às carreiras, protegendo nossas cabeças e mais que pudemos com os braços. Os que caíram, receberam pontapés de botas pesadas e foram cuspidos.

Meia hora depois todos os clérigos foram chamados de novo para fora. Nenhum se arredou do lugar. Os guardas investiram cela a dentro, vergastando sem discriminação.

Procurei confortar os de perto de mim. Um deles teve alguns dentes quebrados e um lábio partido. Quando limpava o sangue de sua face ele me disse: "Sou o Arquimandrita Cristescu".

Tínhamos entrado em contato, fazia anos, quando estive de visita ao patriarca ortodoxo. Miron Cristescu trabalhava no gabinete dele, e contei-lhe as nossas tribulações. Ele colocou as mãos nos meus ombros e disse: "Irmão, Cristo virá outra vez: é o que esperamos" - algo que um homem de Deus deve dizer sempre, mas que raramente diz. Não o esqueci. Mas, sem barba, como estava, com o rosto raiado de sangue e sujo, estava irreconhecível.

As horas iam-se passando e nós sentados e tremendo de frio. Miron Cristescu contou como ele e outros à roda do Patriarca tentaram salvar a Igreja de se tornar um instrumento do Estado. Pensavam que podiam influir no lado bom da natureza dele. Mas Gheorghiu-Dej fora sabido na escolha. Justiniano foi enviado a Moscou para uma visita, onde sua cabeça ficou ainda mais transtornada. Desferiu golpe sobre golpe nos católicos, nos uniatas e em todos os intransigentes do seu rebanho.

"Aqui estou como todos os outros", disse o arquimandrita. "Enganei-me em fazer uma tentativa - devia ter resistido desde o início".

"Não deixe que estes pensamentos o entristeçam demais", disse eu.

Levantou para mim seus olhos claros e respondeu: "Irmão Wurmbrand, só conheço uma tristeza, a de não ser um santo".

Dita de cima de um púlpito teria sido uma bela frase; naquela hórrida cela, depois de um espancamento feroz como aquele, tais palavras demonstravam a nobreza de quem as proferia.

Miron estava comigo quando, poucos dias depois, fiz parte de um comboio com destino as montanhas. Depois de muitas horas, a cidade Transilvana de Gherla, com o seu maior edifício que era o presídio, foi avistada. Aí foi que recebi a visita de minha esposa, durante minha permanência de dois meses, em 1956. Aquele lugar fazia-me lembrar outras coisas também. Das janelas do andar superior do cárcere, que foi construído no reinado da Imperatriz Maria Tereza no século dezoito, podiam-se ver as velhas forcas, que não se usavam mais, porque o método comunista de execução é o fuzilamento à altura da nuca. Além das muralhas víamos a cidade em sua movimentação. Os prisioneiros contemplavam de lá o panorama e sonhavam. Mas ao meio-dia ninguém podia suportar: era a hora de os meninos saírem da escola, fazendo algazarra e rindo, todos a caminho de casa, e cada preso tinha o pensamento na família.

Uns 10.000 presos se amontoavam nas primitivas acomodações feitas para 2.000, e o regime no presídio era tão severo quanto nos piores dias de campanha de reeducação. No verão anterior tinha havido um tumulto sério em Gherla. Prisioneiros defenderam-se com barricada em uma parte lateral em protesto contra o fechamento de postigos por onde entrava luz e ar. As portas foram despedaçadas por guardas da prisão. Começou um combate em retirada. A força militar foi chamada e abriu fogo, matando e ferindo muitos presos. Como castigo o alimento foi reduzido ao nível de inanição e centenas de condenados foram distribuídos por outros cárceres.

Nós, pastores e padres, logo tomamos o lugar deles, ao lado de milhares de outros presos políticos colhidos na nova onda de detenções - donos de terras, oficiais do exército, médicos, proprietários de lojas, artesãos que não quiseram entrar nas cooperativas, fazendeiros que se opunham às últimas apreensões de terras que o Partido estava planejando. Depois de dois desastrosos Planos Quinquenais, Dej anunciou um Plano de Dezesseis Anos, que iria até 1975 - "Se houver alguém em liberdade para fazê-lo funcionar", disse-me um preso.

As celas eram uns alojamentos compridos, escuros, repercussivos, cada um contendo de oitenta a cem homens, mas dispondo só de 50 a 60 camas. Num leito deitavam-se diversos. Dormir era coisa difícil. Além das costumeiras saídas pela noite inteira de grupos que iam aos baldes sanitários, os quais ficavam logo a transbordar, tínhamos uma dúzia de habituais ressonadores: cada qual na sua própria tonalidade; se um parava, outro entrava na roncadeira. Nem de dia era possível descansar, quando a disciplina era reforçada a chicotadas e com o pisar de botas de tachões. Os guardas faziam inopinadas "visitas de segurança" às celas, batendo com força nas barras de ferro das janelas com os seus bastões para se certificarem de que elas não tinham sido partidas a limadas. Ao mesmo tempo os presos se deitavam de bruços no chão, em fila, para serem contados. Os guardas pisavam em cima de um à medida que o nome era chamado.

A mais leve transgressão das regras dava lugar a um mínimo de vinte e cinco chicotadas, na presença de um médico - porque alguns tinham falecido debaixo desse castigo. Raramente havia na prisão quem não tivesse sido flagelado, e alguns tinham recebido já várias vezes as "vinte e cinco". Não havia dúvida que as chicotadas doíam mais do que as bastonadas. Os lanhos delas queimavam como fogo. Era como se as costas estivessem assando em grelha, além do grande trauma nervoso. Era também de se notar nos guardas, nossos patrões, o efeito brutalizante daquelas flagelações. Sangue e poder pareciam afetar até os melhores dentre eles como bebida; e do cárcere levavam para a sociedade, cada dia, o veneno da crueldade.

Havia um banheiro com descarga em cada patamar, e para lá Miron e eu levávamos todos os dias os baldes com dejetos. Tínhamos de entrar na fila de outros presos que aguardavam sua vez de despejar os baldes. O arquimandrita era um homem refinado e culto, mas obrigava-se a fazer aquele trabalho. Certa manhã resvalou no piso escorregadio e um pouco daquele líquido atingiu a bota de um guarda.

"Cretino!" berrou o homem, dando-lhe com rancor um soco no ombro. "Você vai acabar no Rozsa Sandor!"

Mais tarde, quando tomávamos nossa papa, ele me perguntou o que significava aquilo.

"O cemitério", respondi. "Sempre estão a dizer isso - não ligue para eles".

Rozsa Sandor era o cemitério da prisão, suas pedras tumulares cinzentas, cobertas de capim, podiam ser vistas das janelas. Esse nome era de um homicida que, no século passado, fora sentenciado a vinte anos, quando ele tinha dezenove. Olhando pelas grades de Gherla via num jardim uma mulher com uma criança nos braços. Dia após dia vigiava-os. O padre foi  batízar a garotinha; houve mais adiante a festa de sua primeira comunhão; depois ela foi para a escola, cresceu e se fez moça. Rozsa Sandor foi vendo tudo isso à medida que o tempo passava. Ela se tornou a vida dele: resolveu casar-se com ela quando fosse liberto. Por fim chegou esse dia, saindo ele do cárcere. Foi as pressas pela estrada e aí encontrou um préstito – Era um casamento. Ela ia recebê-lo naquele aparato todo - imaginou. Correu para ela e disse: "Não tenho palavras que expressem minha  felicidade por recebê-la hoje como esposa". A moça olhou para Rozsa Sandor, repulsivo e desdentado, e desatou a rir. "Que quer esse pobre coitado dizer?" Perguntou ela. Depois, tomando pela mão o rapaz que tinha ao lado, disse: "Este é o meu noivo". Rozsa Sandor, embasbacado, fitou o casal. Num acesso de furor e loucura arrancou de um trinchante e cravou-o nos dois, matando-os. Foi enforcado pêlos dois homicídios e sepultado no cemitério da prisão que lhe tomou o nome.

"Você vai acabar no Rozsa Sandor!"

Essa ameaça, que eles bradavam, era um lembrete diário de que estávamos envelhecendo. Os presos nunca se apercebem da passagem do tempo. Para eles ficam na mesma idade que tinham quando ingressaram no cárcere; sonham com as jovens esposas e namoradas que deixara lá fora, e nunca esperam encontrar mulheres atormentadas de cuidados, gastas, quando forem libertos.

Até o relógio do portão principal de Gherla tinha parado. Nunca andou nos seis anos que lá passei.

O comandante do presídio era um grosseiro. Nerozinho, de faces avermelhadas, que não parava de comer. Os presos levados à presença dele, Major Dorabantu, ficavam admirados quando, no meio de alguma investiva, metia a mão numa gaveta e de lá tirava um pedaço de salsicha, temperada a alho, ou uma maçã.

Meu primeiro encontro com ele foi típico. Estava eu de pé ouvindo com atenção sua arenga de ódio, desconexa e embrulhada. Parecia haver só duas coisas que Dorabantu não odiava: comida e o som de sua voz.

"Então, Wurmbrand!" exclamou, expelindo da boca cheia sobre a mesa uma chuva de farelo de bolo. "Monge, hein!"

Eu disse que era pastor. "Pastores, padres, monges! Tudo para mim é a mesma coisa. Moendo a cara dos pobres para afogar os seus ninhos, eu sei!" Agitava os braços comicamente a contar histórias de sua infância desgraçada. Guardava as ovelhas do pai perto de um dos mais ricos mosteiros da Roménia, quando elas invadiam o terreno da Igreja, os monges surravam-no brutalmente.

"Já viu um padre detonar uma espingarda de dois canos numa criança faminta, Wurmbrand? Que beleza de santidade!"

Dorabantu também se queixava de ter sido explorado como operário de uma fábrica, mais adiante em sua vida. Agora estava aproveitando bem a oportunidade de retribuir a padres e capitalistas.

Havia em minha cela alguns indivíduos indomáveis, homicidas e ladrões, que de presos políticos só tinham o nome por haverem matado um comunista, ou porque o roubo era algo havido por sabotagem econômica. Outros eram criminosos de guerra, em prisão perpétua por haverem massacrado russos e judeus. Eram homens revoltados, e todas as minhas tentativas de lhes oferecer conforto religioso eram repelidas aos berros. Os que haviam matado judeus eram de modo particular implacáveis contra mim, porque eu sou de descendência judaica. Nunca ocultei este fato e muitas vezes quando fui inquirido sobre isto, expressei o amor natural que dedico à minha raça, embora exercendo o direito de cada pessoa escolher sua fé. Escolhi outra fé, diferente daquela da maioria do meu povo. Quando comecei um dia a falar calmamente a um homem num canto, outros formaram um círculo ameaçador ao nosso redor.

"Já lhe dissemos que parasse de falar!" Rosnou o censor. Levantei-me e alguém me puxou. Outro estendeu a perna à minha frente e bati com o rosto no chão. Recebi um violento pontapé nas costelas. Mas, caindo a matilha em cima de mim, ouviu-se um brado de advertência.

Um guarda, olhando pela fresta de espia, vira a luta e vinha em socorro. O grupo dispersou-se. Quando a porta da cela se abriu, todos estavam em seus leitos.

"Wurmbrand!" O comandante, de ronda nos corredores, ouviu a história. O guarda tinha-me reconhecido como o mais alto da cela, mas na penumbra não pode identificar os agressores.

- Wurmbrand, quem foram eles?

Cuidando de um lábio ferido, disse não poder responder.

- Por que não?

- Como cristão que sou, amo e perdoo meus inimigos. Não os denuncio.

- Então você é um idiota! falou brusco Dorabantu.

- O senhor tem lá suas razões, disse eu. Todo aquele que não é cristão de todo o seu coração é um idiota.

- Você está me chamando de idiota? Trovejou o comandante.

- Não disse isto - quis dizer que eu não sou tão bom cristão quanto devia ser.

Dorabantu deu uma palmada na testa com a mão. "Leve-o daí. Trinta chicotadas!" disse.

Saiu bamboleando a rezingar. "Que monges malucos!"

Quando voltei, os guardas ainda estavam interrogando os presos. Uma vez que nenhuma informação foi colhida, ninguém foi castigado. Mas depois disso houve poucas intervenções quando eu procurava pregar.

As vezes as brigas no cárcere eram cômicas, se bem que os envolvidos nelas raramente pensassem assim. Em várias e diferentes celas, nunca com menos de sessenta homens, tendo sempre por janelas duas estreitas fendas barradas. Deviam elas ficar abertas, a deixar-nos tiritantes em nossas camas, ou deviam ser fechadas, ficando nós abafados e sentido maus cheiros, resultando levantar-nos de manhã com dor de cabeça. O tópico foi debatido durante horas, dia após dia, como se estivéssemos no Parlamento. Havia dois partidos. Os afastados das janelas diziam: "Ar fresco nunca fez mal a ninguém". Os de perto replicavam: "Milhares cada ano morrem de pneumonia".

"Se poderosos interesses materiais ditarem que duas vezes dois devem ser outra coisa e não quatro, então que seja", é um axioma de Lenin. Vimos isso provado no cárcere. Os guardas entediavam-se com os nossos exercícios. "Está na hora - todo o mundo para dentro!" exclamavam. Nós protestávamos: "Ainda não faz quinze minutos". Ambas as partes acreditavam-se com razão; o interesse próprio era que ditava o nosso senso de tempo.

Os criminosos comuns depressa se adaptavam, sentindo-se quase tão à vontade na cadeia quanto fora. Tinham a sua rotina, sua ordem de precedência, sua gíria própria. Era de admirar a astúcia deles em contrabandear sobejos de pão. Chamavam os guardas por apelidos e procuravam filar cigarros pelas frestas de espia na porta. Obtinham as posições de confiança, deixando o trabalho de sujeira aos políticos - e os mais sujos aos padres e cristãos praticantes.

Devido à superlotação, ficava eu imprensado num leito entre outros dois que certo dia altercavam como aves de rapina, na época de muda, fechadas num mesmo viveiro. Alto, o macileno ex-Sargento Grigore tinha metralhado judeus às centenas, em obediência a ordens recebidas. Seu inimigo Vasile, "sabotador econômico", fez Grigore bode expiatório de todos os seus erros. Vasile, de baixa estatura e magricela, não tardou a descobrir o ponto fraco do seu adversário. O rosto contorceu-se com o ar de triunfo ao expectorar a palavra "Assassino!" Grigore encolheu-se, nada podendo responder  Eu disse a Vasile: "Por que diz isto? Ele está velho e doente, e não sabemos onde vai passar a eternidade: se é com Cristo, você está abusando de um futuro cidadão do Céu; e se é no inferno, por que acrescentar maldições ao seu sofrimento?"

O ladrão olhou surpreso. "Não sabe quantos russos e judeus aquele renegado matou?"

"Isso aconteceu durante uma guerra horrível há vinte anos", repliquei-lhe, "e ele pagou com quinze anos de fome, surras e cárcere. Você me chamaria hoje de palhaço por haver brincado com rodas de carro no meio da sala, quando eu tinha três anos? Ou analfabeto, porque aos quatro anos não sabia ler? Aquele tempo passou".

Vasile aborreceu-se. No dia seguinte um grupo começou perto de mim a conversar sobre o tratamento que dariam aos russos, se lhes chegasse uma oportunidade.

"Forca ainda era bom demais para eles", guinchou Vasile. "Deviam ser esfolados vivos..." Por fim, não suportando mais, objetei que os russos nem qualquer outra gente deviam ser tratados dessa maneira.

"Mas ontem", protestou Vasile, "você defendeu um homem que matou centenas de russos, e agora diz que matar russo é um mal!"

Grigore sentia-se profundamente miserável ao rememorar seus crimes, e perguntou-me: "Faço expiação se sofro assim... sendo-me imposto o sofrimento à força?"

"Sim - a Bíblia diz que aquele que sofreu na carne extinguiu o pecado". Contei-lhe o caso do pobre Lázaro que, sofrendo, foi para o céu. "Se você crer em Cristo, será salvo", disse eu.

"O povo pensa de maneira diferente", continuou ele. "Veja Eichmann, o homem que em Israel querem enforcar".

"Não há prova de que ele consentiu nisso - mas em todo caso não julgo que alguém deva ser acusado de crimes cometidos há tanto tempo. Ele pode não ser o mesmo homem. Sei que não sou", eu disse. "E estou certo de que muitos judeus concordariam" (Só depois de anos ouvi que Martin Buber, o grande pensador judeu, opôs-se à sentença de Eichmann).

Grigore disse: "Eu não sou o mesmo, porque estou arrependido do que fiz; mas outros podem estar dispostos a continuar fazendo".

"Ninguém pode ser castigado pelo que venha a fazer de mal no futuro. Todos temos qualquer coisa de perverso. Alguns dos piores homens têm também suas grandes virtudes. E você está neste caso, Grigore".

Ouvindo isso, animou-se um pouco.

Na cela não faltavam gargalhadas. Alegria, diz-se nos Atos dos Apóstolos, é um testemunho da existência de Deus; e sem tal crença não se explica por que havia gozo no cárcere.

Alguns riam dos seus sofrimentos. O Major Braileanu era um deles: baixo, vivo, ex-oficial, com uma guedelha de criança, levou uma notícia nova à cela. Ia haver outra conferência de cúpula naquela primavera de 1959, do Ministro Soviético do Exterior Gromyko com delegados ocidentais. Dizia-se que a reunião seria no dia 10 de maio. Os presos adotaram então nova forma de saudação - erguiam todos os dez dedos, como indicação do dia esperado da liberdade.

No dia conferência os guardas abriram, de fato, a cela e chamaram quatro homens. O Major Braileanu estava entre eles. Seriam os primeiros a ser soltos? Olhamos para eles com inveja. Mas logo ouvimos gritos agudos de agonia que vinham do pequeno recesso na extremidade do corredor, onde infligiam açoites. Era impossível abafar o ruído. Três homens fora açoitados; mas ao chegar a vez do quarto, não soltou um gemido sequer debaixo das costumeiras vinte e cinco chicotadas. Braileanu acompanhou os demais de volta à cela, pálido e sem poder falar. Ergueu-se de súbito. "Senhores", disse, "apresento-lhes nossa nova saudação". Levantou dois dedos da mão direita e cinco da esquerda, como sinal de vinte e cinco.

Histórias e adivinhações apareciam com frequência. Todos davam sua contribuição. Houve uma espécie de disparate que nos fez rir mais do que outra qualquer.

"Que é que têm três cores, trepa em árvore e canta tará-bum-chá-chá?" perguntou Florescu, ladrão meio aciganado. Ninguém soube responder - "Arenque" - "Arenque não tem três cores?" - "Posso pintar um assim". - "Nem trepa em árvores". -"Trepa, sim, se eu o prender num galho". - "Não canta tará-bum-chá-chá!" - "Eu só disse isto porque sabia que vocês não iam adivinhar".

Gastão, pastor unitário de rosto delgado, óculos espessos, apresentou outra adivinhação: "Um cavalheiro viaja de trem, sua mulher chama-se Eva e moram numa casa vermelha: qual é o seu nome?" Todos ficaram embaraçados - se um homem viaja de trem e vive com a esposa Eva numa casa vermelha, como é que isso pode ajudar a lhe descobrir o nome?" "É fácil", disse Gastão, "chama-se Carlos". "Mas como você sabe?" "Há anos eu o conheço, é o meu melhor amigo".

O Arquimandrita Miron contou o que jurava ser uma história verídica, acerca do comandante: deambulando ao lado de uma fileira de condenados numa parada, fazia a cada um a mesma pergunta: "Qual foi o seu crime?"

- Não fiz nada, senhor, e peguei dez anos. Dorabantu passou adiante: "E qual foi o seu crime?"

- Nada, senhor, e peguei vinte anos.

- Canalha mentiroso, explodiu Dorabantu indignado. Por nada ninguém na República Popular pega mais de dez anos!

Os pequenos ladrões e batedores de carteira eram os que contavam as melhores histórias. Viviam escandalosamente de seu engenho e sagacidade. Florescu afirmou haver roubado um joalheiro na Rua Carol, em Bucareste, rua em que havia diversas joalherias. Contou-nos a história do seguinte modo:

O Sr. Hershcovici, o mais cortês dos joalheiros, recebeu em sua loja um elegante casal de jovens. "Bom dia", disse o cavalheiro, que naturalmente era ele, Florescu. "Esta é a minha noiva, a moça mais encantadora de Bucareste!" E uma também das mais ricas, segundo foram tagarelando. "Vimos escolher os anéis - de diamantes, é claro... Oh, não, estes são muito pequenos". Dos anéis passaram a um relógio com mostrador adornado de jóias, para a mãe da moça, um estojo de toucador, feito de couro de crocodilo, para o pai, e então a jovem interveio, "Oh, querido, não nos devemos esquecer do bispo. Ele é meu tio, e por isso não vai aceitar pagamento pela cerimónia, e você conhece a nossa tradição: cerimónia que não é paga não é aceita no Céu". "É mesmo, é mesmo, mas o que é que se dá a um bispo?" Nesse ponto deram com os olhos numa vitrina onde estava um jogo completo de paramentos episcopais dourados. "Eis ali o que é!" exclamou Florescu. "Mas, querido", disse a moça, "não sabemos se fica bem ajustado nele". Florescu olhou para o joalheiro de alto a baixo. "Eles dois têm a mesma compleição física!" E Hershcovici, na esperança de vender os paramentos custosos, deixou-se vestir de uma batina dourada. Passaram-lhe um cinto à cintura e na cabeça arrumaram uma mitra cintilante. "Fica perfeitamente bem!" disse Florescu. "Agora segure este cetro!"

Feito isso, o casal apanhou as jóias, meteu-as no estojo de crocodilo, e saiu correndo da loja. Hershcovici ficou imóvel com o choque; depois foi saindo e gritando: "Ladrões! Peguem os ladrões! Acudam! "Os negociantes judeus correram à porta de suas lojas viram Hershcovici em disparada por uma rua deserta, revestido das insígnias de um metropolita ortodoxo. "Hershcovici enlouqueceu!" bradaram. Três deles agarraram-no, enquanto ele se debatia e protestava: "Não, não! Por que fazem isto? Os ladrões escapuliram-se!" E foi mesmo o que aconteceu, tomando eles um lado da rua, para nunca serem pegos.

Quando as gargalhadas pararam, o Pastor Castão disse: "Mas no fim você acabou sendo preso, Florescu". O ladrão não quis discutir o que fora este episódio.

"Bem, que tal o senhor contar-nos a razão de estar aqui, pastor?" disse ele.

"Pois não!" retorquiu Gastão. É também uma história engraçada. Recebi a sentença de sete anos por um sermão de Natal sobre a fuga da Sagrada Família para o Egito".

Gastão foi denunciado por um membro de sua congregação. No seu julgamento foi-lhe dito que, em deplorar a tentativa de Herodes para matar o menino Jesus no massacre dos inocentes, Gastão estava de fato atacando a campanha comunista contra a religião; enquanto que as referências feitas ao Egito revelaram sua esperança de que Nasser ingressasse no campo capitalista.

O Pastor Gastão perguntou depois a um inquiridor o que ele de fato havia feito para transtornar o Partido "Sempre tomei o lado dos trabalhadores", protestou. "Inaugurei uma escola e uma cooperativa. Fiz minha congregação chegar ao dobro".

O oficial riu. "A espécie de clérigo que nós queremos é o homem da paróquia próxima à sua - ébrio devasso, cuja igreja sempre está vazia".

Gastão falou-me algumas vezes de sua miserável infância. Sempre estava com fome e, quando nada tinha para comer, furtava. "Certa vez assaltei um galinheiro", disse. "Fizeram-me andar pelo meio da vila com uma legenda ao pescoço - "Ladrão". Cresceu com "vontade de virar o mundo de pernas para o ar".

Estudou vários sistemas de política e filosofia, e juntou-se à Igreja Unitária. Indo a polícia no seu encalço, encontraram entre as suas centenas de livros um exemplar da obra "Psicologia Individual", deAdler.

"Há!" exclamou o detetive. "É um individualista!" e levou o livro como prova.

Numa leva de novos presos fui surpreendido ao ver o Professor Popp. Parecia doente, movendo-se como um velho. Não nos tínhamos visto desde a anistia de 1956, não tendo tido resposta as cartas que lhe escrevi. Naquela noite explicou o motivo.

Como tantos outros presos que foram soltos, ele se entregara à caça de prazeres. "Sentia-me definhar", disse. "Temia que a vida se tivesse evaporado. Precisava mostrar que ainda podia gozar. Esbanjei dinheiro, bebi demais, deixei minha esposa por uma mulher mais jovem.

"Depois me sobreveio tristeza. Não estava esquecido dos meus votos de cristão. Queria ver o senhor, mas estava muito longe. Contei tudo a outro pastor, censurando o Comunismo por estar destruindo o país. Ele ouviu - e depois me denunciou".

Popp teve nova sentença de doze anos. Seu primeiro período de reclusão pusera em relevo toda a sua força e generosidade. Fora como uma ave marinha que levanta voo alto, impelida pelo vento, e cai quando o vento cessa. Sua vontade estava agora enfraquecida. Procurei trazê-lo de volta a Deus, mas a vida lhe parecia vazia e sem sentido.

Disse que logo depois da sentença, fora informado acerca do seu "sepultamento cívico". Era isto uma novidade na República Popular. Quando um contra-revolucionário entrava no cárcere, seus colegas, amigos e a família eram reunidos por um funcionário do Partido que lhes dizia: "Camaradas, este homem morreu para sempre e para todos. Estamos aqui para sepultar sua memória". Uma a uma as ofensas dele ao Estado tinham de ser denunciadas pêlos "pranteadores". A filha viúva de Popp falou pêlos demais. Tivesse ele recuado, podia ter perdido seu emprego, sendo ela mãe de duas crianças.

Popp foi posto a trabalhar comigo no segundo dia. Cumpria-nos limpar o piso da sela, que era grande, esfregando-o de um canto ao outro. Um preso, escolhido pêlos guardas como censor da cela, veio caminhando quando já tínhamos quase acabado o serviço e tropeçou no balde de água suja, dizendo: "Agora limpem de novo!" Por fim, um guarda veio inspecionar. Agarrou o censor, baixou-lhe a cabeça para o chão mostrando um bocado de lama que ele próprio trouxera nas botas. "Imundo!" berrou. Esfregamos durante outra hora, acompanhados de chutes e insultos do censor. Não há pior opressor do que um oprimido.

Esta experiência deixou Popp tremendo de exaustão. Para distraí-lo, apresentei-o depois da refeição ao Pastor Castão. O rosto deste ficou com um expressão de choque. Popp simplesmente voltou as costas e fechou os olhos.

Passaram-se os dias e o professor fechava-se mais dentro de si mesmo. Precisávamos insistir para ele comer e ajudá-lo a aprontar-se cada manhã. Não mais sorria, nem chorava, nem participava da vida na cela. Mas certa manhã, espicaçado por uma observação escarninha do censor, agarrou-o pela garganta, apertando-o como um louco, até que dois guardas, com bordoadas, os apartaram. Foi levado consciente para o hospital ao lado. No dia seguinte soubemos de sua morte.

A tragédia encheu a cela de tristeza. Enquanto os outros rezavam pela alma de Popp, segundo o costume dos ortodoxos, Castão jazia silencioso em seu leito, e quando lhe falei da vida eterna levantou-se e se foi.

Naquela noite, na cela, a conversa versou sobre a vida após a morte. Perguntaram a Castão o que pensava do assunto. "Os unitários progressistas não crêem em sobrevivência sobrenatural", disse.

- Mas não estamos falando a unitários progressistas, repliquei. Estamos falando com você. Tenhamos a coragem de ser autênticos, de ser o que somos. Acabemos com essa coisa de "nós católicos, nós protestantes, nós romenos..."

- Falando por mim, não creio nisso.

- Se fala por si mesmo, intervim, é este o primeiro passo que leva à fé, visto como a personalidade é o maior dom de Deus ao homem, a única coisa que permanece ao passo que o corpo vai mudando. Os átomos de oxigénio e hidrogénio no meu corpo são os mesmos do seu. A temperatura do meu corpo pode ser medida pelo mesmo instrumento que mede a sua. Todas as energias do corpo - químicas, elétricas - são iguais em todas as pessoas. Porém os meus pensamentos, meus sentimentos e minha vontade, estes são meus e de mais ninguém. A energia física é como um fragmento de atiçador de fogo, que não tem marca em si. A energia espiritual é qual uma moeda que leva gravada a efígie de um rei. Por que então deve tomar parte na sorte do corpo?

Florescu, que tinha puxado um tamborete, disse, num gesto obsceno: "Creio eu que vejo, saboreio e apalpo. Não passamos de matéria, como esta coisa de madeira em que estou sentado, e, morrendo, a gente fica nisso".

Avancei e dei um pontapé no tamborete, fazendo Florescu resvalar de debaixo dele, estendendo-se de cheio no chão. Levantou-se furioso e avançou para mim, mas os outros o detiveram: "Que está pensando você?" Rosnou.

Repliquei-lhe manso: "Ora, você disse ser matéria igual ao tamborete. Não ouvi o tamborete queixar-se!"

Alguns riram, inclusive Gastão.

"Sinto muito, Florescu", continuei. "Eu quis apenas provar que, visto como a matéria não reage com amor ou ódio, é no fim de tudo diferente de nós".

Florescu ficou zangado por algum tempo, depois voltou a intervir:

- Eu podia crer se os mortos voltassem para conversar conosco.

A discussão do tamborete atraiu outros ouvintes, e comecei a pregar ardorosamente sobre a vida após a morte. Não constituía assunto acadêmico, mas um tópico de interesse ardente e imediato. Pessoas morriam todos os dias em Gherla.

"Se Deus nos tivesse feito apenas para esta vida", disse eu, "ter-nos-ia dado primeiro com a idade a respectiva sabedoria, depois com a juventude o seu vigor. Parece absurdo reunir conhecimento e compreensão somente para levá-los à sepultura. Lutero compara nossa vida na terra à vida de uma criança por nascer: ele diz que se o embrião pudesse raciocinar no ventre materno ficaria sem saber a razão de lhe crescerem mãos e pés, e por certo chegaria à conclusão de que deve haver um outro mundo por vir em que terá de brincar, correr e trabalhar. Assim como o embrião se prepara com vistas a um estado futuro, assim somos nós".

Eu me esqueci dos guardas e ergui a voz a pregar aos pre­sos nos leitos que se sobrepunham até ao teto. Olhos me fitavam na luz ténue da lâmpada que acima de nós parecia tornar o silên­cio ainda mais lúgubre.

Eu disse: "Suponham vocês que eu procuro convencê-los de que uma garrafa de litro pode conter dez litros de leite. Vocês dirão que estou maluco. No entanto, na minha cabeça cabem pensamentos de uma ocorrência como o Dilúvio, que sucedeu há milénios, de minha esposa e meu filho na sala onde os deixei, de Deus e do demônio. Como é que os estreitos limites de minha cabeça abarcam os fatos cotidianos da vida, o infinito e o eterno? O ilimitável deve ser contido em algo ilimitável: este é o espírito. Se o espírito de vocês, sem grilhões e sem impedimento algum, pode ir a toda parte, no tempo e no espaço, crêem vocês que ele participa da sorte desta concha que é nosso corpo?"

Enquanto eu falava sobre estas coisas o silêncio era maior do que em qualquer igreja. Ninguém bocejava, nem se mexia, nem os pensamentos vagueavam distantes. Os presos, em roupas sujas, faces encavadas e olhos esbugalhados de fome, receberam o pensamento da sobrevivência após a morte como a terra seca acolhe a chuva.

No dia seguinte, antes da alvorada, acordei e vi desocupado o leito de Gastão. Depois vi o perfil de seu frágil corpo à janela. Envolvi meus ombros num lençol e fui para junto dele. Olhávamos para baixo através das grades. A luz era baça. A garoa caía no pátio, mas podíamos divisar uma fileira de esquifes pretos ao lado do portão principal. Continham cadáveres de homens que morreram nas últimas vinte e quatro horas: um seria Popp. Aquilo era uma cena de todos os dias em Gherla, e eu fiquei a imaginar por que Gastão escolhera aquele para se levantar e olhar. Procurei fazê-lo voltar à cama, mas nem se moveu.

Sob as nossas vistas um guarda atravessou o pátio e levantou as tampas dos esquifes, deixando expostos os cadáveres. Atrás dele seguiu um vulto corpulento com um espeto de aço na mão. Enterrou-o nos cadáveres, um após o outro.

Os guardas com aquilo certificavam-se de que todos estavam mortos e que nenhum suposto fugitivo do cárcere se tinha colocado no lugar de um cadáver. Castão tremia. Envolvi-o com o lençol, mas ele continuou a olhar enquanto os esquifes eram cobertos e postos no caminhão que os levaria ao cemitério de Rozsa Sandor.

Dias depois Gastão ficou meditativo. Fosse o que fosse que ocupava sua mente não quis revelar-nos. Repelia todas as minhas tentativas de penetrar na sua angústia. Sempre à noite ouvia os outros na permuta de histórias, mas só uma vez contribuiu com uma.

Os presos trocaram relances de vista; ele tinha estado silencioso e mal-humorado por tanto tempo que eles não sabiam o que ia sair.

Por fim falou: "Eu estava sentado num restaurante pouco antes de minha captura. Pensei em levantar meu ânimo com uma boa refeição. Assim, pendurei meu paletó num canto da mesa e pedi tudo de que gostava. Outro freguês perto olhou para mim preocupado e se levantou para falar, mas com a mão fiz sinal para que se afastasse. "Por favor", disse eu, "todos temos nossas tribulações e gostaria de jantar em paz". A refeição foi boa. Acendi um charuto e pensei em pedir desculpas por ter sido incivil; pedi perdão ao cavalheiro, dizendo que talvez agora ele quisesse me referir a dificuldade. "É tarde demais", respondeu, "o fogareiro fez um rombo no seu paletó".

A história de Gastão mereceu algum riso, mas ele voltou para o seu leito e ficou deitado no escuro. Durante certo período passou horas dizendo-nos como honrava a Cristo como o maior mestre, porém, não como Deus, e o que os unitários aceitavam. Uma nova apreciação das doutrinas deles não deixou muito a que a gente se apegasse. Não se preocupavam muito com a vida eterna, disse ele. Depois voltou a falar no Professor Popp. Que prova havia de que algo restava depois da cena horrível que tínhamos presenciado naquela madrugada? A criatura humana, do sexo masculino, dizia ele, precisava de quatro coisas para sobreviver: alimento, calor, sono e uma companheira. "A última pode ser dispensada", prosseguiu. "Minha mulher foi viver com  outro. Nossos dois filhos estão num estabelecimento do governo".

"Você mesmo não crê nisso", observei. "Nossa vida aqui depende de um mínimo dessas coisas, e todavia você ouve risos e gente a cantar. Os corpos deles não apresentam nenhum motivo de canto. É outra coisa neles que canta. Você acredita na alma, não é? Isto que os antigos egípcios chamavam Kaa, os gregos psyche, os hebreus nexama? Por que aliás você se preocupa com a criação dos seus filhos? Se tudo vai acabar para eles dentro de poucas décadas, para que nos serve a religião, a moral e a decência?"

"É tarde demais", disse ele. "Não posso mudar agora. Minha vida vem-se consumindo a fogo lento, como o meu paletó no restaurante, e pessoas têm procurado fazer-me advertências; mas agora já vou muito longe. Nada tenho que sirva de alvo à vida, e a única coisa que me impede o suicídio é a morte me assustar. Outro dia guardei um fragmento de vidro - tencionava cortar os pulsos, mas não tive coragem".

Eu disse: "O suicídio nada prova, senão que a alma é forte e bastante independente para matar o corpo, levado por suas próprias razões. Mesmo que você estivesse livre e tivesse tudo quanto quisesse, podia sentir da mesma forma. O caso de sua esposa e filhos é terrível: mas percebo haver outra coisa que o atribula, e que não tem dito a ninguém".

Gastão ficou em silêncio.

Continuei: "Conheci um preso que intencionalmente passava fome para dar o seu pão a um filho que estava encarcerado com ele, até que morreu de desnutrição. Isso mostra a força da alma. Um homem como Kreuger, o milionário sueco, que tinha tudo quanto o corpo podia precisar, suicidou-se, deixando um bilhete em que falava de "melancolia". Ele possuía algo mais do que o corpo, a alma de que não tinha cuidado. Mas você tem recursos íntimos, tem o Cristianismo para ajudá-lo. Fale com Jesus: Ele lhe dará conforto e forças".

Gastão suspirou no escuro: "Você fala como se ele estivesse aqui vivo conosco".

"É certo que ele está vivo", repliquei. "Nem na ressurreição você crê? Amanhã prová-la-ei a você!".

"Como você é insistente!" exclamou. "É pior do que um comunista!"

Na noite seguinte, enquanto os presos conversavam, lembrei-lhes que a Páscoa estava próxima - minha segunda em Gherla.

"Se tivéssemos alguns ovos duros podíamos pintá-los de vermelho e quebrá-los juntos, seguindo costume ortodoxo", disse eu. Estirei a mão como a oferecer um ovo de Páscoa, e continuei: "Cristo ressuscitou!" O velho Vasilescu, um dos fazendeiros, bateu no meu punho com o seu e exclamou: "Ele ressuscitou de verdade!" Um coro de vozes ecoou a resposta tradicional.

"E estranhável!" observei, voltando-me para os demais. "Cristo com certeza morreu na Cruz? Que provas vocês tem de que ele ressurgiu?"

Fez-se silêncio. Vasilescu torcia o grosso bigode. "Sou um simples fazendeiro, mas creio nisso porque meu pai e minha mãe, meu avô e todos os nossos padres e mestres diziam assim. Creio nisso porque vejo a natureza ressuscitar todos os anos. Quando a neve cobre a terra, nem se acredita que os campos darão safra na primavera. No entanto as árvores rebentam folhas, o ar se aquece e o mato reverdece. Se o mundo pode revivescer, Cristo também pode.

"Boa resposta", disse Miron.

"Mas no mundo em que cada afirmação cristã é contestada, essa não basta", interveio Gastão.

"Precisamos das provas mas fortes, concordo", disse eu, "e elas existem. Mommsen, o grande historiador do Império Romano, chama a Ressurreição o fato da história mais bem provado. Você crê que os historiadores clássicos fossem em grande parte verazes?"

Ninguém discutiu.

"Comumente eram cortesãos, bajuladores dos reis, homens que elogiavam por amor ao lucro ou para agradar a protetores poderosos. Quanto mais devemos acreditar em Paulo, Pedro, Mateus, André, apóstolos que morreram mártires pela difusão da verdade!"

Perguntei ao Major Braileanu: "Quando o senhor servia em conselhos de guerra, levava em consideração o caráter das testemunhas tanto quanto as suas palavras?" "Naturalmente", replicou. "Havendo provas em conflito, isso era de toda a importância".

"Então, nesse fundamento, devemos dar crédito aos Apóstolos, visto como passaram o tempo fazendo e pregando o bem".

"São os milagres, como o da alimentação dos cinco mil com cinco peixes, que pedem demais de minha fé, disse o major.

"Que é um milagre?", interpelei-o "Missionários da África dizem que a princípio eles são recebidos como operadores de milagres; o primitivo membro da tribo espanta-se em ver riscar um fósforo. Pearl Buck dizia às mulheres, numa parte remota da China, que em seu país carros se moviam sem serem puxados a cavalos. "Que mentira!" murmuravam elas. Milagre é então simplesmente algo que uma criatura superior é capaz de fazer, e Jesus era um homem de poderes excepcionais".

Gastão objetou: "Um homem primitivo podia aceitar isso. Mas para um racionalista, é difícil".

"É racional crer que Cristo se levantou dos mortos; do contrário temos de aceitar o impossível - que a igreja, que vem há 2.000 anos sobrevivendo a assaltos externos e corrupções internas, assenta em mentira. Considere-se somente que Jesus em sua vida não tivesse organizado igreja nenhuma, nem escrito livro algum. Dispunha de um pequeno grupo de pobres discípulos, sendo que até um deles o traiu por dinheiro, enquanto os outros fugiram ou o negaram na hora da prova. Morreu na Cruz, exclamando: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparastes?" Seu túmulo foi fechado com uma enorme pedra".

- Começo nada promissor, disse Braileanu.

- Então como explica que deu lugar a uma religião universal?

- Os discípulos reuniram-se outra vez, disse Gastão hesitante.

- Mas que foi que lhes deu o poder de pregar e morrer por sua fé?

- Venceram o medo com o passar do tempo, suponho.

- Sim, eles dizem como o dominaram: ao terceiro dia Cristo apareceu em pessoa e lhes deu coragem. Pedro, que se acovardara diante de uma empregada, ergueu-se em Jerusalém e declarou que ele e seus irmãos viram Jesus e com ele falaram; ressurgia em verdade. Pedro afirmou que podiam matá-lo, antes que ele voltasse a negá-lo. E foi o que os romanos fizeram.

"Seria racional crer", indaguei, "que Pedro e os discípulos se deixassem crucificar por causa de uma mentira? Pedro proferiu seu primeiro sermão sobre a Ressurreição a uns 400 metros do túmulo vazio. Sabia que os fatos não podiam ser contraditados, e nenhum dos inimigos de Cristo se atreveu a tanto".

"Por que Saulo de Tarso se converteu com tanta facilidade pela visão que teve de Cristo a repreendê-lo, na estrada de Damasco? Saulo era o flagelo do Cristianismo", disse eu.

- Deve ter sido uma alucinação auditiva e visual, disse Braileanu.

- Paulo conhecia estas coisas. Uma aparição não constitui argumento para um experimentado como ele. Entregou-se tão rápida e completamente porque, como membro do Sinédrio, conhecia o grande segredo - o túmulo estava vazio!

O Arquimandrita Miron sentara-se a costurar um remendo em suas calças, enquanto conversávamos. Ergueu seus olhos de intensa luminosidade para Gastão e disse: "Anos atrás recebi um postal de meu irmão em Nova York, que dizia ter estado no alto do Empire State Building. Para subir lá não investigou primeiro as condições dos alicerces, Pastor Gastão. O fato de estar lá há quarenta anos é prova de que as suas fundações são boas. O mesmo se dá com a Igreja, que se tem alicerçado há 2.000 anos na verdade".

Nossos argumentos produziram efeito em Gastão. Seu so­frimento foi mitigado e sua fé aprofundou-se. O desejo de suicídio desvaneceu-se com o passar das semanas; mas ainda parecia carregar um fardo de sentimento de culpa.

O verão trouxe nova afluência de prisioneiros. Fomos transferidos para diferentes celas, pelo que o perdi de vista.

Passaram-se meses, pregando eu e trabalhando numa dúzia de celas em Gherla. Várias vezes fui castigado, e foi por causa de uma surra que me avistei outra vez com Gastão.

Jogávamos xadrez na cela um dia com figuras feitas de pedaços de pão, quando Dorabantu, fazendo ronda nos corredores, entrou de repente: "Não quero jogo aqui!" berrou.

Fiz ver que xadrez era um jogo de prova de habilidade, não de azar.

O comandante arfando o peito, protestou: "Irra, como é ridículo! Habilidade também é negócio de azar!"

Satisfeito com esta resposta, lá se foi todo empertigado. Quando saiu, os presos rebentaram a rir, arremedando a voz dele. A porta escancarou-se de novo. Dorabantu tinha ficado à escuta.

"Wurmbrand - saia!" Outros receberam ordem de sair comigo.

"Desta vez vocês vão rir do outro lado da cara", berrou o comandante.

Recebemos cada um vinte e cinco vergastadas e depois fomos levados a uma cela isolada. Lá, sozinho no leito, deitado de bruços, encontrei Gastão. Também ele fora surrado. Suas costas eram uma porção de feridas ensanguentadas. Procuramos amenizar-lhe as dores com aplicações de uma camisa ensopada em água, e quando o pior havia passado, catei nas feridas em carne viva taliscas de madeira. O corpo estremecia como se estivesse febril. A princípio não podia falar muito, mas aos poucos, em frases partidas, explicou ter sido castigado por estar pregando. Um preso o delatara.

Disse-me: "Preciso dizer-lhe uma coisa..."

- Você não deve falar.

- Agora ou nunca mais. É sobre o Professor Popp... e o pastor que o traiu...

Parou; seus lábios tremiam.

- Você não precisa contar-me, disse-lhe.

- Não pude suportar a angústia! Tenho sofrido. Quando ele morreu...

Começou a soluçar. Oramos juntos. Disse não poder nunca perdoar a si mesmo.

- O professor não perdoou; como outro pode? Perguntou.

- Naturalmente pode, até Popp, se soubesse tudo, eu disse. Deixe-me contar de um homem que estava muito pior do que você. Isso nos ajudará a passar a noite. Foi o assassino da família de minha mulher. Ela o perdoou e ele se tornou um dos nossos amigos mais íntimos. Só existem dois homens a quem minha mulher beija - eu, seu marido, e o assassino de sua família. E contei a história a Gastão.

Quando a Roménia entrou na guerra ao lado dos alemães, começou um movimento popular de violências contra os judeus, em que muitos mimares foram mortos ou deportados. Somente em lasi 11.000 foram massacrados num dia. Minha mulher, que é protestante comigo, é também judia de origem. Morávamos em Bucareste, de onde os judeus não foram deportados, mas os pais dela, um dos irmãos, três irmãs e outros parentes que moravam em Bucovina foram levados a Transmistria, uma província agreste da fronteira que os romenos tinham tomado à Rússia. Os judeus que não foram assassinados no final dessa viagem, foram deixa­dos a morrer de fome, e foi aí que a família de Sabina morreu.

Tive que dar essa notícia. Ela, recobrando o equilíbrio, disse: "Não chorarei. Você tem direito a uma mulher contente, e Mihai a uma mãe alegre, e nossa igreja a uma serva corajosa". Se ela verteu lágrimas a sós não sei, mas daquele dia em diante não vi mais Sabina chorar.

Algum tempo depois nosso senhorio, um bom cristão, contou-me com tristeza de um cidadão que estava em sua casa, de licença do "front". "Eu o conhecia antes da guerra", disse, "mas está de todo mudado. Tornou-se um indivíduo brutal, que gosta de gabar-se de se haver alistado como voluntário para exterminar judeus na Transmistria e como matou centenas com suas próprias mãos".

Fiquei profundamente aflito e resolvi passar a noite orando. Para não incomodar Sabina que não estava passando bem e que mesmo assim desejaria fazer comigo aquela vigília, subi ao apartamento do senhorio no andar de cima, depois da ceia, para orar com ele. Movendo-se numa cadeira de balanço estava um indivíduo agigantado, que o senhorio me apresentou como sendo Borila, o assassino de judeus da Transmistria. Ao levantar-se era mais alto do que eu, e pareceu haver à volta dele uma emanação de odor, como de cheiro de sangue. E logo passou a descrever-nos suas aventuras na guerra e os judeus que trucidara.

"É uma história horrorizante", disse eu, "mas não receio pêlos judeus - Deus os compensará pelo que sofreram. Só me pergunto com angústia o que vai ser dos assassinos ao comparecerem perante o tribunal do juízo divino".

Uma cena selvagem foi evitada pelo senhorio, que disse sermos nós dois visitantes de sua casa, e mudou o assunto da conversa. O assassino provava não ser apenas homicida. Ninguém é uma coisa só. Tinha uma conversa agradável, e por fim desco­brimos gostar muito de música.

Declarou que, enquanto serviu na Ucrânia, ficou fascinado pelas canções de lá. "Gostaria de ouvi-las outra vez", disse.

Eu conhecia algumas daquelas antigas canções. Pensei comigo mesmo, olhando para Borila: "Fisguei o peixe com o meu anzol!"

Se o senhor gosta de ouvir algumas daquelas canções", disse-lhe, "venha ao meu apartamento - não sou pianista, mas posso tocar algumas melodias ucranianas".

O senhorio, a esposa e uma filha acompanharam-nos. Minha mulher estava deitada. Acostumada a me ouvir tocar em surdina à noite, não se levantou. Toquei canções populares, que palpitavam de sentimento e afeto, e pude ver que Borila ficou muito emocionado. Lembrei-me como, estando o Rei Saul aflito com um espírito mau, o rapaz Davi tocou para ele a harpa.

Parei me voltei para Borila: "Tenho algo muito importante a lhe dizer".

- Diga, por favor.

- Se o senhor olhar para lá daquela cortina, poderá ver alguém dormindo no quarto. É minha esposa, Sabina. Os pais dela, suas irmãs e seu irmão de doze anos foram mortos com o restante da família. O senhor me contou haver matado centenas de judeus perto de Golta, e foi lá que eles foram capturados.

Olhando para dentro dos olhos dele, continuei: "O senhor mesmo não sabe em quem atirou, de modo que podemos supor ser o senhor o assassino da família dela".

O homem levantou-se de um pulo, olhos faiscando, parecendo querer estrangular-me. Levantei minha mão e disse: "Agora - façamos uma experiência. Vou acordar minha esposa e dizer-lhe quem é o senhor e o que fez. Posso dizer ao senhor o que vai acontecer. Minha esposa não dirá uma palavra de repro­vação! Abraçá-lo-á, como se o senhor fosse seu irmão. Dar-lhe-á ceia, o que melhor tenha em casa.

"Agora, se Sabina, que é pecadora como todos nós, pode perdoar e amar assim, calcule como Jesus, que é perfeito Amor, pode perdoá-lo e amá-lo! Volte-se para ele, somente isto - e tudo quanto tiver feito lhe será perdoado!"

Borila não era insensível: no íntimo consumia-se de sentimento de culpa e miséria pelo que praticara, voltando-se contra nós num gesto brutal como caranguejo faz com suas pinças. Uma batida leve nesse ponto fraco, e toda sua resistência iria abaixo. A música já havia comovido o seu coração e agora - ao invés do ataque por ele esperado - ouviu palavras de perdão. Sua reação foi admirável. Deu um salto e agarrou com ambas as mãos o próprio colarinho, rasgando a camisa de alto a baixo. "Ó Deus, que devo fazer, que devo fazer?" exclamou. Levou as mãos à cabeça e soluçando alto sentou-se na cadeira que ficou a balançar. "Sou um assassino, estou ensopado de sangue, que farei?" Lágrimas lhe corriam pelo rosto.

Bradei: "No nome do Senhor Jesus Cristo ordeno ao demônio do ódio que saia de sua alma!"

Borila caiu de joelhos tremendo e começamos a orar em voz alta. Ele nada sabia de oração; apenas pediu perdão repetidas vezes, dizendo esperar e saber que lhe seria concedido. Ficamos juntos de joelhos por algum tempo; depois nos levantamos e nos abraçamos, dizendo eu: "Prometi fazer uma experiência e quero cumprir minha palavra".

Fui ao quarto e encontrei minha esposa ainda a dormir calmamente. Estava naquela época muito fraca e esgotada. Acordei-a delicadamente e disse: "Está aí um cidadão que você precisa conhecer. Cremos ter sido o assassino de sua família, mas está arrependido, e agora é nosso irmão".

Ela saiu em seu chambre e estendeu os braços para abraçá-lo: ambos começaram a chorar e a se beijar repetidas vezes. Nunca vi casal de noivos beijando-se com tanto amor, sentimento e pureza como esse homicida e a sobrevivente de suas vítimas. Depois, como eu predisse Sabina foi à cozinha para lhe trazer alimento.

Enquanto Sabina estava no interior da casa veio-me o pensamento de que o crime de Borila tinha sido tão terrível que era necessário outra lição. Fui ao quarto junto e voltei com meu filho Mihai, que tinha dois anos, dormindo nos meus braços. Fazia poucas horas que Borila se tinha gabado de matar meninos judeus nos braços dos pais, e agora ele estava horrorizado; o que via era uma repreensão insuportável. Esperava que eu o acusasse, mas eu disse: "Vê como ele dorme tranquilamente? O senhor é também uma criança recém-nascida que pode repousar nos braços do Pai. O sangue que Jesus derramou o purificou".

O contentamento de Borila era muito comovente: ficou conosco aquela noite e quando acordou no dia seguinte disse: "Fazia tempo que não dormia assim".

Sto. Agostinho diz: "Anima humana naturaliter christina est" - a alma humana é por natureza cristã. O crime é contra a nossa natureza, resultado de coação social ou de outras muitas causas, e que alívio quando é atirado fora, como no caso desse homem!

Naquela manhã, Borila querendo conhecer nossos judeus, levei-o a muitos lares de hebreus cristãos. Em toda parte foi contando sua história, sendo acolhido como o pródigo de volta ao lar. Depois, com um Novo Testamento que lhe dei, foi juntar-se ao seu regimento noutra cidade.

Logo mais foi comunicar-me que sua unidade recebera ordem de seguir para o "front". "Que devo fazer?" perguntou. "Vou começar a matar outra vez".

Eu disse: "Não, o senhor já matou mais do que cumpre a um soldado matar. Não quero dizer que o cristão não deva defender sua pátria, no caso de ser atacada. Mas o senhor, pessoalmente, não deve matar mais - será melhor deixar-se matar. A Bíblia não o proíbe!"

Contada que foi essa história, Gastão ficou mais calmo. No fim sorriu e estendeu-me a mão para um aperto; e em seguida caiu em sono tranquilo.

Na manhã seguinte fomos levados de volta a outra cela. Entre os presos encontrei Grigore, que também era criminoso de guerra, responsável pelo massacre de judeus. Conheceu Borila.

Eu disse a Castão: "A história do homem que matou a família de minha esposa tem um epílogo. Este aqui pode contá-lo a você''.

Grigore explicou como servira com Borila em Transmistria, onde ambos massacraram judeus. "Quando fomos outra vez à Rússia, era ele um homem transformado", disse ele. "Não podíamos entender isso. Punha de lado as armas e ao invés de tirar vidas, salvava-as. Alistou-se como voluntário para socorrer os feridos debaixo de fuzilaria, e no final salvou o seu próprio oficial".

Os meses tornaram-se anos: dois já se haviam escoado, e a não ser os rostos que iam e vinham, tudo permanecia no mesmo. O cárcere fez santos de alguns homens, e de outros fez brutos, sendo difícil dizer quem ia ser uma coisa ou outra; isto no entanto era certo - a maioria dos presos continuaria a viver, por assim dizer, num vácuo. Escarrapachavam-se nos leitos, horas a fio, sem nada para fazer. Conversar tornou-se tudo na vida. Fiquei a imaginar o que aconteceria se a ciência chegasse a tornar desnecessário trabalhar. Há um limite à inovação em matéria de sexo, filmes e novos entorpecentes, e assim muitos ficariam sem nada mais em que pensar.

À medida que avançava meu terceiro ano em Gherla, as coisas amainaram um pouco. Tivemos mais alguma liberdade de falar, uns bocados a mais de alimento. As condições fora do cárcere mudavam uma vez mais, segundo ouvíamos. Não sabíamos em que sentido, nem que a maior provação ainda estava para vir.

 

 

PARTE OITAVA

CERTA MANHÃ DE MARÇO de 1962, os guardas invadiram Al de repente as celas bradando: "Todos os padres para fora!" Meus companheiros juntaram seus pertences e obedientemente se enfileiraram nos corredores. Quanto a mim, não me mexi.

Tínhamos novo comandante, um oficial rigoroso chamado Alexandrescu. Essa mudança, qualquer que fosse a sua finalidade, significava maiores tribulações, e eu queria trabalhar e pregar sem novos empecilhos. Veio a saber-se que o presídio inteiro estava sendo dividido por classes: os "intelectuais" numa cela, camponeses em outra, militares numa terceira, e assim por diante. A superlotação e a estupidez dos guardas causaram desordens. Um membro de um grupo chamado "Estudantes da Bíblia" foi colocado numa cela de escritores e professores; era um operário sem instrução, mas para os funcionários do presídio todos os "estudantes" eram intelectuais.

Quando os clérigos tinham saído, um guarda perguntou-me o que eu era. "Pastor", respondi num sotaque matuto. E assim fui posto numa cela com os que guardavam ovelhas e trabalha­dores em fazendas.

Fiquei ali por poucas semanas. Um informante traiu-me e, depois de um açoite, fui levado à cela em que os padres estavam reunidos. Ia ser meu lar no restante de minha estada em Gherla

- lar cavernoso, com paredes de cimento sujo. A luz era a que entrava por duas janelas estreitas. Os leitos se comprimiam, sobrepostos em quatro camadas. Havia alguns banquinhos e uma mesa. Os presos - na maioria clérigos e alguns crentes cristãos -eram uns 100. Havia sempre uma fila esperando usar os baldes sanitários.

Ao entrar ouvi uma voz grave: "Seja bem-vindo, seja bem-vindo!" Era o velho Bispo Mirza, homem exemplar da fé ortodoxa e muito bondoso. Seu pulôver preto e desbotado estava todo esburacado. Seus olhos eram tristes e meigos, uma auréola de cabelos brancos circundava-lhe a cabeça.

Cabeças ergueram-se quando saudei pessoas que conhecia

- inclusive o Arquimandrita Miron, cujo leito ficava acima dos de Gastão e do bispo.

À noite, na hora reservado à oração, os católicos juntavam-se num canto, os ortodoxos ocupavam outro, os unitários outro. Os testemunhas de Jeová aninhavam-se nos leitos de cama; os calvinistas reuniam-se embaixo. Duas vezes no dia, realizavam-se nossos vários cultos: mas entre todos aqueles ardorosos adoradores não havia dois que dissessem juntos o "Pai Nosso".

Longe de promover compreensão, nossa situação comum, que era má, fomentava conflitos. Os católicos não perdoavam a hierarquia ortodoxa por colaborar com o Comunismo. Minorias discordavam em torno de "direitos". Havia disputa a respeito de cada ponto de doutrina. E enquanto as discussões normalmente se desenvolviam com elegante malícia, como haviam aprendido nos seminários em tardes chuvosos de domingo, algumas vezes perdiam as estribeiras, zangando-se.

Quando celebravam a missa, o pastor evangélico Haupt, do seu leito, à distância de poucos metros, dia após dia evocava palavras de Martin Lutero.

"Que é aquilo?" perguntava um dos católicos.

Haupt erguia mais a voz condescendentemente: "Repeti palavra de Lutero - 'Todos os bordéis que Deus condena, todos os homicídios, roubos, adultérios não causam os danos que a abominação da missa papal ocasiona'".

Depois da cerimónia, um dos católicos, Padre Fazekas, disse: "Caro irmão, você ainda não ouviu dizer - 'o gênero humano tem sofrido três grandes catástrofes - a queda de Lúcifer, a de Adão e a revolta de Martin Lutero'?"

O Padre Andicu, ortodoxo, aderiu ao contra-ataque: "Lutero e Lúcifer são uma e a mesma coisa!" Católicos e ortodoxos tornavam-se assim aliados temporários. Mas antes de anoitecer, estavam eles disputando em torno da supremacia de Roma.

Fazekas era de origem húngara, e isto lhe era atirado ao rosto até pelo seus irmãos católicos. Quando rezava em voz alta à Virgem Maria, chamando-a "padroeira da Hungria", todos se mostravam incomodados.

"A Santa Virgem não é também padroeira da Roménia?" perguntava um padre patriota ortodoxo.

- Certo que não, ela é padroeira da Hungria.

Gastão ironicamente indagava se a Virgem não era Padroeira da Palestina, visto como parecia traição deixar o país do nascimento dela à proteção de outros.

"Acaso você nunca ouviu que os judeus mataram o filho dela?" disse Fazekas. O Bispo Mirza, sorrindo gentilmente, procurou acalmar os ânimos. "A Virgem não está circunscrita a nenhum país", disse ele. "Ela dirige a Igreja, é a Rainha do Céu, move os planetas e rege o coro dos anjos!"

Eu disse que nesse caso não restava muito para Deus fazer.

Outros protestantes deram-me apoio, mas de uma maneira que não gostei. "Por que devo venerar desse modo a mãe de Jesus", disse um. "Ela não pode salvar".

Fazekas replicou: "Coitado! Então você só venera a quem salva? A mão do Senhor canta no Magnificai: 'Todas as gerações me chamarão bem-aventurada'. Elas fazem isto porque Maria foi a mãe de Jesus, não porque distribui favores".

Foi boa resposta. Honro muito a Virgem Maria, entretanto creio que seu papel tem sido exagerado pêlos seus adeptos, começando esse desvirtuamento em tempos antigos. Quando os cristãos começaram a pensar no Céu, vinha-lhes à mente uma corte oriental: um lugar de luxo, música e perfumes. Alguém que quisesse pedir um favor ao sultão, procurava um amigo; este falava com um vizir, que por seu turno levava o caso à esposa favorita do sultão, e ela então se comunicava com o marido. Isso criou a ideia de uma hierarquia espiritual, em que simples pessoas apresentavam suas rogativas aos padres, estes as transmitiam aos santos, e os outros à Virgem.

Minha fé alicerça-se no seguinte: qualquer pessoa pode falar diretamente a Deus, mas há tempos em que argumentar só faz acirrar ódio. Contei o caso dos dois mártires de confissões diferentes, que foram condenados à fogueira. Perguntaram-lhes se tinham um último pedido a fazer. Ambos disseram: "Sim! Amarremo-nos de costas um para o outro, porque assim não verei morrer esse herege que foi condenado como eu".

Algumas vezes também não pude esconder minhas impressões. Durante horas ouvia o Padre Ranghet, dominicano, no leito abaixo do meu, rezar o seu terço. Por fim eu disse: "Por que precisa você invocar a Virgem mil vezes no dia? É surda, ou indiferente, ou relutante em ouvir? Quando aqui peço um favor a alguém, ele faz o favor se pode; mas não fico a pedir, a pedir, se essa pessoa não me atende".

Ranghet agastou-se. "Uma vez que vocês luteranos não crêem na infalibilidade do Santo Padre, muito menos motivo têm de crer na sua", disse. "O que no seu entender defeituoso está errado, no meu está certo". E continuou repetindo "Ave Maria..." ainda mais alto do que antes.

"Você sempre está a falar no 'Santo Padre' - quer referir-se a Deus?" perguntei.

"Refiro-me à Sua Santidade o Papa!" - respondeu.

"A mim afigura-se blasfémia empregar títulos divinos tratando-se de seres humanos", repliquei. "Você o chama Vigário de Cristo na terra, o que significa seu substituto - mas não posso aceitar tal substituto, assim como não posso consentir que minha mulher tenha outro homem que me substitua".

"Você está indo muito longe!" exclamou.

Mas eu é que pensava isso dele. Só naquele dia ele dissera que todos os sacrifícios de vida, de liberdade, oferecidos por todos os homens, nada eram comparados com a oferenda por ele feita no altar ao sacrificar o filho de Deus. Eu não podia aceitar que um padre, de um pedaço de pão, fizesse Deus, ou que houvesse necessidade para isso. Não podia crer que meu destino eterno dependesse da absolvição dada por um homem, que por sua vez podia não ter ele mesmo certeza do Céu.

Procurei assuntos em que pudéssemos assentir. Quando o Pastor Weigartner, modernista, discutia com os católicos sobre o nascimento virginal de Jesus, vi-me forçado a tomar o lado deles.

Weingartner disse não poder aceitar tal inversa semelhança científica.

Repliquei: "É muito tarde para se abrir um inquérito his­tórico em torno do nascimento virginal, mas também é muito cedo para ser repudiado como cientificamente impossível. Um biólogo americano, chamado Loeb, já produziu um nascimento sem o concurso de macho e infra-organismos. O que os biólogos podem fazer com um pequeno ser, Deus certamente pode fazer com o homem".

"Mas a história das religiões está cheia de nascimentos virginais", disse ele. "Só pode ser mito".

Respondi contando a história de um famoso rabino que vivia na Ucrânia na época dos czares, e que certa vez foi convidado a apresentar prova em defesa de um adepto seu. O aspecto nobre e de espiritualidade do Rabino Hofez Haim impressionou o tribunal, mas o ancião recusou fazer o juramento; não queria, disse ele, envolver o nome de Deus em sua prova testemunhal. O promotor protestou: "Precisamos ter uma garantia de que ele diz a verdade".

O advogado da defesa levantou-se: "Excelência, posso mencionar algo que prova o caráter de minha testemunha e mostra que podemos aceitar o seu testemunho, mesmo se, por motivos religiosos, ele não se submete a juramento? O Rabino Hofez Haim muitas vezes anda de loja em loja pedindo dinheiro para os pobres. Certo dia um ladrão derrubou-o e arrebatou-lhe a bolsa que continha o dinheiro coletado. O rabino ficou perplexo - não tanto com a perda do dinheiro, que logo ele decidiu substituir com as suas minguadas economias guardadas em casa - mas com o prejuízo dado à alma do ladrão. Correu atrás dele, dizendo: "Você não tem culpa nenhuma diante de Deus; o dinheiro era meu e eu lho dou livremente! O dinheiro dos pobres está seguro em casa! Gaste o que você me arrebatou com a consciência tranquila!"

O juiz fitou austeramente o advogado: "O senhor crê nessa história?" perguntou.

- Não, não creio.

- Então por que nos conta histórias em que o senhor mesmo não acredita?

- Excelência, já contaram uma história desta a seu respeito, ou acerca de mim, ou do promotor seu amigo? Ao invés disso dizem - naturalmente é de todo inverdade - que nós somos loucos por mulheres, ou bebidas, ou jogo. Que santo este homem então deve ser para que tais lendas envolvam o seu nome!"

Weingartner disse: "É muita divertida - mas não sei se a história a respeito do rabino é verídica, e tampouco eu posso acreditar na história do nascimento virginal".

"Os cristãos crêem na palavra de Deus!" eu disse. "Mas se é mito, como você lhe chama, não zombe. Os mitos ocupam um lugar importante no pensamento humano. São muitas vezes a medida da grandeza de uma pessoa".

"Quer dizer que o povo deve ter feito de Jesus um elevado conceito de modo a tornar acreditável que ele não nasceu como os demais homens?" disse ele.

"Meu filho, quando muito jovem, perguntou-me como foi que Jesus nasceu", continuei. "Então contei para ele a história da manjedoura. "Não", objetou ele, "não é isso que quero saber. Algumas vezes o povo diz: 'O que nasce de gato come rato', e se Jesus nascesse como nós, teria sido ruim também como nós".

O Bispo Mirza estava-nos escutando: "Que criança para falar como essa!" disse.

"Você tem o seu objetivo", admitiu o Pastor Weingartner. "precisamos procurar com afinco entender cada ponto de vista dos outros".

Eu disse: "Confesso que teria aceitado o Cristianismo noutra forma que não o Luteranismo, se me tivesse sido apresentado ao tempo de minha conversão. O que importa é o respeito às Escrituras como única regra, e a salvação pela fé em Jesus. No­mes e formas não têm valor".

Na manhã seguinte aconteceu uma coisa agradável. O Bispo Mirza veio a mim e disse: "À noite estive pensando na Oração Dominical que nos ensina a pedir, 'Pai nosso que estás no céu... perdoa-nos as transgressões'. Jesus não disse que nos confessássemos a um padre e dele recebêssemos a absolvição -ele nos mandou pedir perdão ao Pai. Naturalmente a questão não é simples, mas se eu fosse protestante usaria este argumento. Pensei fazer-lhe, por amizade, um presente disto em troca da defesa que fez da Virgem Maria".

O bispo deu-nos assim um exemplo. Se falhássemos em viver unidos e em paz, cairíamos na armadilha que os comunistas nos armavam: fechando-nos à chave todos juntos, privavam os outros presos de direção espiritual, enquanto nós íamos arruinando nossa causa com disputas. Que outra coisa seria que eles tinham em mira?

Eletricistas estiveram trabalhando na prisão durante algum tempo, e em muitas celas instalados alto-falantes, um em cada parede, íamos ter programas de rádio.

Gastão disse: "Não vai ser música suave".

Quando o presídio inteiro foi dividido em classes, começou uma série de preleções, pareciam absurdas. Um jovem oficial político, petulante, explicou que um eclipse do sol estava para ocorrer, mas não havia razão para alarme - a ciência socialista libertara-nos de superstições. Continuou explicando o processo de um eclipse solar a uma audiência enfadada de personagem ilustres e médicos. O caso ia dar-se a 15 de fevereiro, e visto como cumpria à República Popular alargar nossos conheci­mentos, podíamos olhar do pátio.

Weingartner ergueu a mão: "Por favor, se chover, podemos olhar o eclipse no salão?"

"Não", disse o preletor em tom sério, e começou sua explanação outra vez do princípio.

As preleções doutrinárias duravam horas. Os mesmos pormenores eram apresentados repetidas vezes. Ao fim do dia, exaustos e mal-humorados éramos despedidos para que nos entregássemos às nossas próprias discussões.

As alterações quase sempre eram provocadas pelo Padre Andricu, para quem Lutero e Lúcifer eram a mesma coisa. Seu extremismo fê-lo oscilar entre uma cruzada contra os russos durante a guerra e uma defesa das ideias comunistas depois dela. Tinha viajado pelo país pregando a favor do Partido até que seus ex-camaradas decidiram que o "Padre Vermelho" tinha ultrapassado seu ciclo de utilidade, de modo que foi preso, açoitado e sentenciado a dez anos por suas atividades no tempo da guerra. Agora era um campeão vociferante da fé ortodoxa. "E a única religião verdadeira!" gostava de trombetear. "O resto são fraudes e contrafações!"

Uma vez perguntei: "Quando você se batizou, Padre Andricu, foi na Igreja Ortodoxa?"

- Naturalmente! Por um bispo!

- E estudou doutrina religiosa em colégio ortodoxo?

- Em colégio da mais alta qualidade da Roménia!

- Então não vai ficar surpreso se eu lhe disser a única razão honesta e lógica pela qual você é um crente ortodoxo? É que há cinquenta anos um cidadão romeno ortodoxo teve contato sexual com uma mulher romena ortodoxa.

Ficou furioso; mas eu disse que esse princípio valia para a maioria de nós. Somos postos em forma desde a primeira mocidade; ensinam-nos apenas os argumentos favoráveis à religião de nossos pais. No entanto ficamos convencidos de que as conclusões que chegamos a tirar desses argumentos são nossas e de ninguém mais.

Continuei: "Uma vez surpreendi os moradores de uma estrebaria discutindo suas crenças. Os cordeiros diziam que a única religião verdadeira era dizer Be, Be. Os bezerros diziam que o ritual correto era dizer Mon. Os porcos afirmavam que a música exata do louvor era Ron, Ron.

"Não nos ponha no mesmo nível dos animais", protestou Andricu. "Posso ser um padre simples, mas estudei outras crenças além da minha".

Eu disse que todos fazemos assim, mas de um ângulo que é nosso através do acidente do nascimento. Voltando-me para um grupo de protestantes, perguntei de improviso. "Quantos de vocês conhecem as noventa e cinco teses que Lutero afixou na porta da igreja de Wittenberg?"

Todos eles conheciam. O Pastor Haupt citou as palavras de Lutero: "Aqui estou; outra coisa não posso fazer!"

Perguntei se os protestantes podiam repetir, da bula papal, as razões da excomunhão de Lutero. "Leão X não era nenhum maluco", disse eu; "devemos conhecer suas razões". Nenhum deles, porém, havia lido aquela grande e história letra papal.

O Padre Andricu estava agora discutindo com um rabino, que a ele se dirigia perguntando: "Por acaso você conhece nosso Talmude?"

Andricu retrucou-lhe: "Você jápôs os olhos no nosso Novo Testamento?"

A resposta em cada caso foi um incisivo "Não".

Para evitar outro choque, perguntei ao grupo: "Vocês conhecem a história de como Tolstoy certa vez explicou sua fé ponto por ponto a um rabino: mansidão, humildade, paciência... 'Não precisamos do Novo Testamento para ter essas virtudes; também nós as honramos', disse o rabino. Finalmente Tolstoy disse: 'Jesus ensinou-nos uma coisa que a religião judaica não ensina. Manda que amemos nossos inimigos'. 'Isto não praticamos, admitiu o rabino, 'nem vocês cristãos".

Continuando as palestras no cárcere, vi que, embora ridículas em si mesmas, obedeciam a um plano astuto. Os locutores, deixando de lado a política, passaram a dirigir-se àquela parte irresponsável em todos nós, sedenta de prazeres, que os freudianos denominam Id. Diziam-nos quanto estávamos perdendo no mundo lá fora. Falavam de alimento, de bebida, de sexo - assuntos em que estavam mais versados do que em dialética marxista, embora não esquecessem esta. Uma palestra levou-nos de volta aos macacos de Darwin. Um jovem oficial político mediante uma súmula de razões, introduziu-se pouco a pouco na teoria da evolução, e com citações mutiladas de Marx, Lenin e Darwin prosseguiu sob o pretexto de conflitos entre o Cristianismo e a ciência, alegando as tristes consequências disso na América, onde milhões morriam de fome.

A princípio animamo-nos a argumentar, e quando um preletor disse que "somente um punhado de substâncias químicas" ficava do corpo, depois da morte, eu perguntei por que razão, sendo assim, alguns comunistas tinham dado a vida por suas crenças. "No caso de um cristão o sacrifício de si mesmo", disse eu, "pode ser considerado judicioso. Abrir mão das coisas transitórias da vida em troca da eternidade é como entregar dez dólares para ganhar um milhão. Mas por que deve \um comunista dar a vida - a não ser que ele tenha coisa a ganhar com isso?"

O oficial político não pôde encontrar resposta. Assim, sugeri que a resposta a isso foi dada por Sto. Agostinho, quando disse que "a alma é por natureza cristã".

"O ateísmo é máscara dos seus sentimentos. No profundo do seu coração - a que nunca se chega a não ser pela prática da meditação ou oração - o senhor também acredita haver uma recompensa para quem vive por um ideal. No profundo do seu coração o senhor também crê em Deus".

"Vejamos o que Lenin diz sobre isto!" continuou o preletor, e de um livreto bem manuseado, que já antes lhe dera algumas ideias, leu: "Até o namoro com a ideia de Deus é inexprimível vileza, contágio da espécie mais abominável. Atos de torpeza e violência, e infecções físicas são muito menos perigosas". Sorriu. "Mais alguma pergunta?"

- O senhor tem filhos? perguntei.

- Tenho uma filha no grupo das Jovens Pioneiras.

- O senhor prefere que seja acometida de uma moléstia horrível a chegar a crer no seu Criador? É o que Lenin diz - que o câncer é melhor do que a religião".

O oficial político chamou-me à frente e me esbofeteou.

Sob essa doutrinação violenta, uma bofetada ainda parecia um preço módico a pagar pela defesa da fé. Era claro que ainda mais estava para vir. Sentíamos que estávamos sendo espionados de contínuo. Uns alto-falantes que havia silenciosos deixavam-nos intrigados.

Até então tínhamos sofrido fome, recebido açoites, sido injuriados, mas não procuravam saber o que pensávamos. "Inventem quantos novos Gabinetes quiserem nas suas celas, bandidos - temos o Governo em Bucareste!" costumava dizer o Comandante Dorabantu. Mas ele se fora - transferido por falsificar suas prestações de conta. As palestras mostravam mudança nessa atitude, seguindo a nova política de Gheorghiu-Dej, ditador romeno, que experimentava amenizar o domínio exercido pelo Kremlin e fazer negócio com o Ocidente. Para isso Dej unha de apresentar uma fachada mais "democrática". O exército de prisioneiros políticos mantido na Roménia era um embaraço para ele, e no entanto não podíamos simplesmente ser libertados para a disseminação de "credos contra-revolucionários". Nossa maneira de pensar precisava ser modificada, por meio de lavagem cerebral em massa.

Para prisioneiros de Gherla em 1962, isso era uma teoria entre muitas, e poucos acreditavam nela. Não se tinha certeza sobre o que de fato acontecia na lavagem cerebral. Os pareceres eram sumariados por Radu Ghinda, autor cristão bem conhecido, que havia se juntado a nós. "Se eles não mudaram em quinze anos, como é que vão consegui-lo agora?"

Conversávamos sobre isto quando a porta da cela se abriu para entrar novos detentos. Entre eles estava um vulto alto, envergonhado, de andar esquivo, virando-se de um para o outro lado, como procurando fugir aos olhos dos presos.

Radu Ghinda foi o primeiro a reconhecê-lo. "Daianu!" exclamou.

Arrastou os pés, desajeitado, para abraçar o amigo. Nichifor Daianu fora grande figura na Roménia. Poeta, professor de Teologia Mística, líder da "Liga de Defesa Cristã Nacional", anti-semita, vinha a Gherla procedente do cárcere de Aiud para continuar sua sentença de vinte e cinco anos.

A princípio mal o reconheci. Sua barriga enorme desapareceu. A pele no queixo estava enrugada lembrando a de peru. O indivíduo bon viveur e sedutor de mulheres, cuja face uma vez fora esbofeteada num restaurante de Bucareste, era agora um velho trémulo, de compleição débil.

Colegas prisioneiros vindos de Aiud disseram-nos o que acontecera lá. Daianu, acostumado a comer muito, tentou uma repetição de sua papa de cevada, pedindo-a aos cozinheiros. O diretor do cárcere mandou-o embora. No dia seguinte, o diretor lá estava de novo. "Pare!" disse, "Aquele sujeito é gordo demais. Deixe que ele espera até amanhã". No dia imediato, chegada a vez de Daianu, o diretor disse: "Diga-me, Daianu, existe um Deus?" O cozinheiro manteve a concha suspensa. Daianu murmurou alguma coisa. "Fale alto para nós ouvirmos!" Daianu disse: "Não existe Deus". "Mais alto", interveio o diretor. "Não existe Deus!" bradou Daianu. O diretor fez sinal com a cabeça para que fosse servido. Daianu comeu a papa com sofreguidão. Esse espetáculo tanto agradou ao diretor que fez fosse repetido todos os dias da semana seguinte. A história espalhou-se por toda a Roménia e mais tarde também no exterior.

Mas não desapareceu o dom de que Daianu tinha para a poesia religiosa. Amigos dos seus dias de fascismo animavam-no a declamar alguns versos por ele escritos em Aiud. Eram canções de aflição e arrependimento, mais lindas do que outras já compostas. Conservou entretanto seu anti-semitismo, como seu amigo Radu Ghinda. Seus seguidores, dentre ex-guardas de ferro prisioneiros, contrabandeavam restos de comida e até cigarros para eles na sala dos padres. É difícil o anti-semitismo morrer; Daianu e Ghinda eram mártires dessa causa.

Ao serem discutidas, uma noite, teorias sobre lavagem cerebral, Ghinda escarneceu. "Asneira! Pavlov fazia truques com os hábitos do comportamento próprio de cachorros e os comunistas na Coreia aplicavam algumas de suas ideias para fazer prisioneiros americanos bandear-se para eles - mas tais métodos não influem em pessoas educadas e inteligentes. Não somos pracinhas!""Nem cães", atalhou Daianu. Ninguém discordou.

O Pastor Weingartner referiu-nos um teste simples de personalidade que aprendera quando estudava psicologia: traça-se uma linha no centro de um cartão, depois pede-se a alguém que com aquilo desenhe a primeira coisa que lhe venha à cabeça. Nós usamos uma mesa esfregada com sabão e riscávamos com a unha.

Um dos presos desenhou uma espada, outro um capacete, outros uma flor, um crucifixo, um livro, uma figura geométrica. Eu disse: "Preciso de outra mesa - esta é muito pequena para o que quero desenhar".

Nem um entre dez de nós mostrou em seu desenho o toque do misticismo que está no âmago da natureza de um padre.

Weingartner riu. "Não admira que não me deixasse experimentar isso no seminário! Talvez todos devamos aprender a fazer sapatos - porque o sapateiro que temos aqui é quem parece ter um caráter verdadeiramente espiritual!"

Referia-se a Gelu, crente sectarista que conhecia muito a Bíblia. Isso pareceu irritar Daianu.

"Meu caro", disse ele, "se você falar-nos a respeito de sapatos e como consertá-los, está muito bem. Mas você aqui está no meio de homens que se graduaram em teologia em grandes universidades da Europa e não precisamos de aulas de Bíblia".

- Está certo, professor, replicou Gelu. Sou eu é que preciso de instrução. Pode o senhor dizer-me de que trata o livro de Habacuque, no Velho Testamento?

- É um dos profetas bem menores, disse Daianu. Não quebre sua cabeça com ele.

- Bem, e o livro de Obadias?

- Obadias é outro profeta que os sapateiros não precisam conhecer.

- Talvez me possa dizer algo de Ageu.

Daianu não pôde. Não havia na sala um teólogo que pudesse arranjar três períodos sobre o assunto. Gelu deixava-nos espantados citando de cor capítulos inteiros desses profetas.

O clero estudava livros que versavam sobre a Bíblia, não as próprias Escrituras. Outra censura que bem podia fazer-se a eles era que se baseavam em dogmas e dialética, mas quase nada sabiam da ideologia comunista que procurava destruí-los.

Em 1963 ouvimos falar do apelo feito pelo Papa João no sentido de uma reconciliação dos "irmãos separados", e logo nos pusemos a disputar sobre os meios de alcançar essa unidade.

"Disputamos sobre o Reino do Céu, que nenhum de nós possui", eu disse. "Se o possuíssemos, não disputaríamos. Os que em verdade amam a Cristo devem amar-se mutuamente. Como tantos cegos curados por Jesus, discutimos como foi que nossa visão nos foi restaurada. Um diz: "Foi pelo poder da fé". Outro afirma: "Ele tocou nos meus olhos". Outro ainda: "Ele me pôs nos olhos lodo feito de terra e saliva". Se Jesus estivesse no nosso meio, diria: "Curei vocês de maneiras diferentes. Agora não devem brigar, mas regozijar-se!"

Goethe diz que "as cores são o sofrimento da luz": passando através de um prisma, ela se decompõe. Eu via nossa divisão em busca da verdade como dores sofridas por Cristo.

O alto-falante na parede afinal estalou dando sinais devida. "Um-dois-três-quatro-testando", disse uma voz repetidas vezes. Depois ouviram-se as palavras: "O Comunismo é bom.O Comunismo é bom. O Comunismo é bom". Uma pausa. Mais estalos. A voz voltou em maior volume, ressonância e autoridade:

O Comunismo é bom.

O Comunismo é bom.

O Comunismo é bom.

Continuou pela noite inteira até o dia seguinte. Em breve, apenas de vez em quando, tínhamos consciência daquelas palavras gravadas em "tape", que ainda assim penetravam em nossas mentes, e quando afinal a voz parou, feita a desligação num centro de controle em alguma parte do presídio, as palavras soavam em minha cabeça: "O Comunismo é bom. O Comunismo é bom. O Comunismo é bom".

Weingartner disse que aquilo era o primeiro estágio de um longo processo. "Nossos governantes aprenderam isto dos russos, e os russos de Pequim. Adiante vai ser confissão pública. Sob Mao-Tsé-Tung os chineses devem assistir a palestras em fábricas, escritórios e ruas. Depois são levados a denunciar-se a si mesmos, a dizer como conspiravam contra o proletariado cinco, dez ou vinte anos antes. Se a pessoa não confessa, é presa como obstinada contra-revolucionária: se confessa, vai para a cadeia por causa do que disse. Sendo assim, o povo procura confessar e ao mesmo tempo não confessar: confessar que deu guarida a pensamentos insidiosos, mas negando haver-se deixado levar por eles. Uma pessoa denuncia outra. Toda confiança entre amigos e dentro das próprias famílias fica destruída. O mesmo processo começa agora conosco!"

O Padre Fazekas disse: "Satanás sempre arremeda Deus. É uma zombaria da confissão cristã".

"Quanto tempo isso vai durar?" perguntou Gastão.

"Até você crer que 'O Comunismo é bom'; talvez dure anos", disse Weingartner.

Nossa palestra seguinte foi prolongada e prazenteira. Di­zia-nos da nova e maravilhosa Roménia, que se estava desenvol­vendo sob o Plano de Dezesseis Anos de Gheorghiu-Dej, e refe­ria-nos o paraíso que já estavam gozando aqueles que o Partido considerava dignos. Descrevia os privilégios concedidos aos tra­balhadores leais, a boa alimentação, a abundância de vinho, as esplêndidas férias nas estações balnearias do mar Negro, onde por toda parte se viam moças de biquini.

"Mas esqueço!" ria ele. "A maioria de vocês, colegas, nunca viu um biquini. Vocês nem sabem o que é isso, meus chapas! Vou explicar. As melhores coisas da vida não fica no Ocidente decadente!"

Seus olhos cintilavam e a voz ia ficando rouca ao começar a descrever com maligna satisfação bustos, barrigas e coxas, misturando os prazeres do vinho e de viagens em sua conversa indecente. Nunca vi estampada em rostos humanos tal fome de lascívia, como vi então na maior parte dos que estavam ao redor de mim no vasto salão. O aspecto deles era feio e de amedrontar, parecendo animais na época do cio. A decência humana deles fora expulsa pela conversa sem freio do locutor, ficando apenas voracidade sensual.

Tantos prazeres aguardavam-nos lá fora, dizia o prelecionador.' 'A porta está lá. Vocês podem abri-la, se quiserem. Lancem de si o lixo de ideias reacionárias, que fizeram de vocês uns criminosos. Passem para o nosso lado! Aprendam como ficar libertos!"

Pouco se disse depois dessas palestras. Ninguém pensava agora nas esposas e no trabalho duro que os esperavam no mundo lá fora. O desejo natural que é parte de nossa vontade de viver foi habilmente despertado.

Os protestantes e padres ortodoxos, que tinham suas esposas, sofriam certamente muito mais ouvindo aquele apelo ao instinto sexual do que os padres católicos acostumados ao celibato desde a mocidade.

Durante meses tivemos rações reduzidas e nos pesávamos com regularidade para ter certeza de que nos mantínhamos uns dezoito quilos abaixo do peso normal. Por último a alimentação melhorou, mas tinha um sabor estranho. Suspeitei da presença de afrodisíacos, e médicos aprisionados mais adiante concordavam comigo em que drogas excitantes do apetite sexual tinham sido adicionadas as nossas refeições. Muitos funcionários saíram e agora os médicos, os escreventes que vinham ler qualquer anúncio ou veredicto de tribunal eram quase sempre moças. Usavam vestidos apertados, provocadores, perfume e maquilagem. Parecia que de propósito se demoravam nas celas.

"Vocês só têm uma vida", dizia o preletor todos os dias. "Ela passa rapidamente. Quanto tempo ainda lhes resta? Lancem sua sorte conosco. Queremos ajudá-los a aproveitar o máximo do que lhes resta para viver!"

Esta solicitação ao ego, àquela parte da natureza humana que se impõe, que se defende de si mesma, chegou quando as emoções primárias estavam em franca fermentação. Finalmente, estourando a camada superficial, a solicitação atingia o super­ego, a consciência, os valores sociais e padrões de ética. Os preletores diziam que nosso patriotismo tinha sido falso, nossos ideais uma fraude, e no lugar deles procuravam implantar a ideologia comunista.

"Encontros de luta" era o nome dado a essas sessões de sugestão de massa, e a luta não parava nunca. "Que estão fazendo agora suas esposas?" perguntava o preletor em tom jovial. "O que vocês mesmos gostaria de fazer!" Estávamos exaustos e para a histeria não faltava muito. As gravações em "tape" tocavam a mensagem de que o Comunismo era bom durante todas as horas quando as palestras não estavam sendo apresentadas. Os presos brigavam entre si.

Daianu, o poeta, foi o primeiro a romper. No fim de uma palestra levantou-se de um pulo e começou a falar em torno dos seus crimes contra o Estado. "Agora vejo, estou vendo tudo! Desperdicei minha vida numa causa falsa!" Censurava seus pais proprietários de terra por havê-lo posto no caminho errado. Ninguém lhe pedira que atacasse a religião, mas ele repudiava sua fé, os santos e os sacramentos. Berrava contra a "superstição" e blasfemava contra Deus. E por aí afora ia ele.

Depois Radu Ghinda se levantou e continuou no mesmo diapasão. "Fui tolo", exclamou. "Fui desencaminhado por mentiras de capitalistas e de cristãos... Nunca mais porei os pés numa igreja, só se for para cuspir nela".

Daianu e Ghinda apelavam para os presos, no sentido de renunciarem sua velhas crenças, com entusiasmo maior do que o de preletores. Ambos tinham talento para falar, e muitos que ouviram os louvores eloquentes deles à alegria e liberdade que o Comunismo traz, ficaram profundamente abalados e convictos de que o que falavam lhes era ditado por uma fé genuína.

Quando Ghinda se sentou, um velho macilento e trémulo exclamou: "Todos vocês me conhecem - o General Silvianu do Exército Real. Renego minha posição social e minha lealdade. Envergonha-me o papel que fiz movendo uma guerra criminosa à nossa aliada, a Rússia. Servi às classes exploradoras. Desgracei minha pátria..."

Depois do general faliu um ex-chefe de polícia que "confessou" não ter chegado o Comunismo ao poder mais cedo porque a polícia o impediu; como se todos ali não soubessem que o Comunismo fora imposto pêlos russos.

Um após outro os homens se levantavam e repetiam como papagaios suas confissões. Foi esse o primeiro fruto de meses de Nos subterrâneos de deus

fome planejada, degradação, maus-tratos e sugestão de massa. Os primeiros a ceder foram aqueles como Daianu e Ghinda, cujas vidas já estavam consumidas de culpas particulares. Daianu pregara ascetismo, mas praticara a glutonaria e vivera atrás de mulheres. Dizia aos estudantes que renunciassem o mundo por amor a Deus, e ele mesmo se fez propagandista de Hitler. Dizia: "Amém a jesus", e odiava os judeus. Julgava-se crente, mas aquilo em que o homem crê manifesta-se na sua vida diária: suas poesias, belas que fossem, exprimiam aspirações, não realizações. Ghinda, de igual modo, fora dividido por ideologias, de um lado o anti-semitismo, do outro, sua fé. E os dois homens estavam envelhecendo: já haviam cumprido mais de quinze anos de cadeia e ainda tinham mais pela frente.

Outros na sala dos padres não se entregaram tão rapidamente assim, e para eles estava reservado maior sofrimento. Nossas alterações, afinal, pararam. Aprendemos que todas as nossas denominações podiam ser reduzidas a duas: a primeira era o ódio, que fazia de ritos e dogmas um pretexto para atacar os outros; a segunda era o amor, pelo qual pessoas de todas as espécies descobriam sua unidade e irmandade perante Deus. Às vezes parecera que uma missão que tivesse os padres por alvo valeria mais do que outra qualquer. Muito mais agora, que a cela estava inflamada do espírito de sacrifício pessoal e fé renovada. Em tais momentos os anjos pareciam estar à volta de nós.

Para o Culto de Comunhão necessitava-se de pão, e muitos prontificaram a sacrificar sua ração. Mas o ritual ortodoxo exige que o pão seja consagrado em altar que encerre uma relíquia do corpo de um mártir. Não havia tal relíquia.

"Temos mártires vivos conosco", disse o Padre Andricu. Consagraram o pão e um pouco de vinho num copo rachado que viera escondido de um hospital e que passara sobre o corpo do Bispo Mirza, estando ele doente guardando o leito.

Não tardou que os presos que se tinham "convertido" fossem solicitados a fazer por seu turno palestras para os demais, e eles passaram a fazer isso com entusiasmo, crendo que sua soltura dependia dos seus esforços naquele sentido. E logo circulou a notícia de um trágico resultado da defecção de Daianu e Ghinda. Dois membros da Guarda de Ferro furtaram um formão da carpintaria, abriram com eles as veias e morreram, em sinal de protesto.

Encontrei Daianu e Ghinda em um canto da cela. "Que pensam de si mesmos, agora que sua traição custou a vida de dois que acreditavam em vocês?" perguntei.

Ghinda respondeu: "Eles morreram para que o povo viva!"

"Uma semana atrás vocês figuravam entre os inimigos do povo", retorqui-lhe.

Daianu explodiu: "O que pretendo é sair daqui, sofra quem sofrer".

Ficaram tão malquistos que foram transferidos para outra cela. Miron disse: "É de estranhar que homens que escreveram aparentemente com tão profunda fé cristã virassem traidores tão facilmente!"

Talvez a resposta fosse que nos seus escritos Daianu e Ghinda exaltaram Cristo pelas dádivas que ele nos faz de paz, amor e salvação. Um verdadeiro discípulo não procura dádivas, mas sim ao próprio Cristo, e assim dispõe-se a sacrificar-se até ao fim. Eles não eram seguidores de Jesus, mas fregueses; quando os comunistas abriram adiante uma loja vendendo a preços mais baixos, eles bateram lá. Voltei a piorar muito da saúde. Durante 1963 fui removido para o hospital-presídio. Depois de uma semana lá, todos tivemos ordem de nos levantar. Alguns andavam com dificuldade, mas fomos nos ajudando uns aos outros a sair para um pátio espaçoso onde todos nos reunimos. Lá ficamos de pé durante uma hora enquanto apresentaram uma peça, tendo por atores presos escolhidos. A peça escarnecia do Cristianismo e quando os oficiais à volta do comandante batiam palmas e riam, o auditório fazia o mesmo.

Quando terminou, Alexandrescu ergueu sua voz áspera pedindo comentários, positivos ou negativos. Não bastava aprovar; deviam ser dadas razões disso. Daianu começou. A seguir falou Ghinda. Um após outro ia à frente para repetir "slogans" contra a religião. Enquanto iam e vinham, alguns me abraçaram com lágrimas, dizendo: "Devemos dizer o mesmo antes de terminar!"

Quando o comandante me chamou, lembrei-me do que minha esposa me dissera muitos anos antes, no Congresso dos Cultos: "Vai e lava esta vergonha da face de Cristo!"

Eu era muito conhecido em Gherla, pois tinha estado em muitas celas.

Centenas de ornares caíram sobre mim, e todos pareciam indagar uma coisa só: "Ele também vai louvar o Comunismo?"

O Major Alexandrescu insistiu: "Vamos, fale!" Não temia oposição. Se os obstinados acabavam cedendo - isto era apenas uma questão de tempo, pensavam - era prova da força do Partido.

Comecei cautelosamente: "É manhã de domingo; nossas esposas, mães e filhos estão orando por nós, nas igrejas ou em casa. Devíamos querer orar por elas também... Ao invés disso assistimos a esta peça".

Ao falar dos familiares deles, os olhos dos presos encheram-se de lágrimas. Continuei: "Muitos aqui falaram contra Jesus, mas que é que vocês apresentam contra ele? Vocês falam de proletariado, mas Jesus não era carpinteiro? Vocês dizem que quem não trabalha não deve comer, mas isso foi dito há muito tempo na Epístola de S. Paulo aos Tessalonicenses. Vocês falam contra os ricos, mas Jesus expulsou os cambistas do templo a chicotadas. Vocês querem o Comunismo, mas não esqueçam que os primeiros cristãos viviam numa comunidade, dividindo entre si o que possuíam. Vocês desejam soerguer os pobres, mas o Magnificai, cântico que a Virgem Maria entoou às vésperas do nascimento de Jesus, diz que Deus exalta os pobres e abate os ricos. O que há de bom no Comunismo vem dos cristãos!"

Prossegui: "Ora, Marx disse que todos os proletários devem unir-se. Alguns, porém, são comunistas, outros são socialistas e ainda outros, cristãos, e se escarnecemos uns dos outros não podemos nos unir. Nunca que eu zombe de um ateu. Mesmo do ponto de vista de Marx isso é um erro, porque se dele zombamos cindimos o proletariado".

Citei o que Marx diz na introdução de sua obra "Capital", que o Cristianismo é a religião ideal para se refazer uma vida estragada pelo pecado. Perguntei se havia alguém, mesmo comunista, que estava sem pecado - porque mesmo não tendo pecado contra Deus, pecava contra o Partido. Fiz muitas citações dos próprios autores deles. O Major Alexandrescu mexia-se na cadeira e batia no chão com a ponta do sapato, mas não me interrompeu.

Os presos também se mantiveram calmos, e notando eu que eles estavam sendo tocados esqueci-me do lugar onde estava e comecei a pregar abertamente a respeito de Cristo, e do que Ele fizera por nós, e o que Ele significa para nós. Disse que assim como ninguém nunca ouvira falar de escola sem exames,  fábrica em que o trabalho não fosse fiscalizado para se saber se estava bom, assim todos seremos julgados, por nós mesmos, por nossos companheiros, por Deus. Olhei para o comandante e disse: "Também o senhor será julgado, Major Alexandrescu".

Outra vez deixou passar. Referi como Jesus ensina o amor e dá vida eterna. No final os presos romperam de súbito em aplausos.

Quando tomei meu lugar Miron disse: "Você desfez tudo quanto eles fizeram", mas eu sabia que não. Castão murmurou: "Você ouviu os aplausos?" Respondi: "Aplaudiram o que viram em seus próprios corações, não em mim".

Até então só uma minoria barulhenta de clérigos tinha sucumbido à influência da lavagem cerebral. Nós, que nos opúnhamos a ela francamente, também éramos poucos, mas os que simpatizavam conosco eram muitos, ainda que lhes faltasse a coragem ou o tino de baterem em retirada.

Não era fácil. Como resultado desse discurso perdi o asilo sagrado do hospital-presídio, e fui mandado de volta à sala dos padres.

Os oficiais políticos disseram-nos que Daianu e Radu Ghinda, em suas celas particulares, tinham-se apresentado voluntariamente para escrever sobre as maravilhas da República Popular, a qual nenhum deles via já fazia uns quinze anos. Receberam caneta e papel e toda a literatura do Partido, bem como propaganda turística de que pudessem necessitar. Os dois aproveitaram-se ao máximo dessa oportunidade para provar suas novas convicções, e algumas semanas depois foram libertos. Foi um golpe tremendo desferido contra a nossa resistência. Foram os primeiros a ser soltos sob o novo sistema, e não sabíamos que também foram os últimos.

O Tenente Konya, oficial político, levou um jornal à sala dos clérigos e chamou o Padre Andricu.

"Leia isto alto", disse, "para que todos ouçam".

Andricu leu a manchete: UM PAÍS QUE RI E CORAÇÕES QUE CANTAM. Era um artigo de Radu Ghinda, com uma foto do autor a sorrir, tirada antes de ser preso.

O Tenente Konya disse: "Queremos que saibam que todos vocês terão a mesma oportunidade de uberdade e trabalho assim que abandonarem suas crenças ridículas e desatualizadas e se juntarem ao povo da nova Roménia!"

Corações que cantam! Todos estavam lembrados de Ghinda, um saco de ossos. Sabíamos que sua família estava aflita e a um filho tinham recusado educação.

Daianu também emprestou seu nome à glorificação da liberdade na Roménia Socialista, mas, como os estudantes franceses de medicina que inutilizaram seus cadernos de apontamentos e foram marcados como "bom pour POrient" -"bons para uso do Oriente" - a produção de Daianu e Ghinda servia apenas para o Ocidente. Aí podiam tirar partido da ignorância dos que não conheciam o país. Os artigos que escreveram foram publicados em jornais e revistas de edição especial, enviada a milhares de romenos no exterior, mas que ninguém podia obter para ler na Roménia.

Todo o mundo ficou perplexo com a soltura dos dois homens. Muitos que haviam sofrido crueldades e humilhações durante anos, sem recuar, agora começavam a ceder. Contudo os que se entregavam, ao invés de serem libertos, tinham de provar sua conversão prontificando-se a trabalhar quatorze a dezesseis horas por dia. Retornando as suas celas tinham de assistir a mais palestras, ou fazê-las. Tinham de manter um "gráfico de temperatura de sanidade política" - o que significava terem todos de escrever acerca da atitude dos seus vizinhos para com o Comunismo, se era morna, fria ou mesmo hostil.

As autoridades não podiam receber bons relatórios a meu respeito. O Tenente Konya foi levar-me duas notícias. Primeiro, disse que minha esposa estava presa algum tempo já. Segundo, que eu ia ser açoitado as 10 horas daquela noite, como castigo dos meus repetidos desafios a minha insolência, que culminaram naquele discurso feito no pátio.

A notícia sobre Sabina foi um choque terrível, e ao meu sofrimento com isso juntava-se o medo dos açoites que ia receber. Todos tínhamos pavor desses períodos de espera. O tempo demorava a passar e depois passava rápido, ao ouvir eu passos no corredor. O som das botas continuou adiante. Alguém foi tirado da cela contígua. Daí a pouco ouvi os golpes e gritos que vinham da sala no fim do corredor. Ninguém foi buscar-me naquela noite. Na manhã seguinte fui avisado outra vez. Durante seis dias o "suspense" foi mantido. Afinal fui levado. Os açoites queimavam como fogo. Quando terminou, o Tenente Konya, que assistiu, gritou: "Dê-lhe mais alguns!" Demorei a me por de pé. "Mais dez!" disse Konya. Fui ajudado a voltar à cela, onde o alto-falante trombeteava:

O Cristianismo é uma estupidez.

O Cristianismo é uma estupidez.

O Cristianismo é uma estupidez.

Por que não o renuncia?

Por que não o renuncia?

Por que não o renuncia?

O Cristianismo é uma estupidez.

O Cristianismo é uma estupidez.

O Cristianismo é uma estupidez.

Por que não o renuncia...?

Algumas vezes os açoites eram dados na cela por guardas em razão de "pequeninas irregularidades". "Desça as calças pra apanhar!" Descíamos.

"Deite de barriga pra baixo!" Deitávamos.

"Fique de barriga pra cima e levante os pés". Ficávamos.

Procurávamos orar. Algumas vezes um padre dizia: "Eu invoco 'Pai Nosso', mas que espécie de pai, que Deus é este que me abandona assim aos meus inimigos?" Eu insistia com ele: "Não desista. Continue dizendo 'Pai Nosso'. Seja teimoso. Persistindo você renova sua fé. Ele pode ouvir-nos porque participamos dos seus sofrimentos".

Quando os guardas ficavam enfadados de açoitar, lançavam mão de dois presos e diziam: "Muito bem! Dê uma bofetada na cara do seu amigo!" Se ele não obedecia, diziam: "Você perdeu sua oportunidade", e mandavam o outro que esbofeteasse o primeiro. Ele desferia um soco às cegas. "Agora devolva-lhe o soco!" E os dois batiam na cara um do outro, até que o sangue corria. Os guardas rebentavam-se de rir.

Certa noite o Tenente Konya mandou que eu juntasse meus pertences. Visto como eu não tinha correspondido ao tratamento recebido, um estágio na quadra especial podia ajudar neste sentido. Corriam muitos rumores na prisão sobre aquela secção da mesma. Eram poucos os que voltavam de lá. Morriam, ou se rendiam à lavagem cerebral e eram removidos. Alguns passavam a integrar o quadro do pessoal do doutrinamento e aprendiam o processo de lavagem cerebral para aplicá-la em outros.

Atravessamos o pátio, viramos diversas esquinas e paramos diante de uma série de portas. Uma foi aberta e fechada atrás de mim com duas voltas.

Fiquei sozinho numa cela cujas paredes eram cobertas de azulejos brancos. O teto refletia fortíssima luz esbranquiçada de lâmpadas escondidas. Era pleno verão, mas o aquecimento a vapor - que não havia em parte alguma de Gherla - estava em perfeito funcionamento. Konya deixara-me algemado, de modo que só me podia deitar de costas ou de lado. Fiquei lavado de suor. A fresta de espia tilintou e o guarda do lado de fora, com risadinha abafada, perguntou: "Alguma irregularidade no aquecimento?" Senti dor no estômago. O alimento tivera um sabor diferente, pensando eu que lhe tinham outra vez adicionado droga. O alto-falante aí apresentou uma mensagem nova:

Ninguém mais crê em Cristo.

Ninguém mais crê em Cristo.

Ninguém mais crê em Cristo.

Ninguém mais vai à igreja.

Ninguém mais vai à igreja.

Ninguém mais vai à igreja.

Desista.

Desista.

Desista.

Ninguém mais crê em Cristo... Konya voltou na manhã seguinte, deixando entrar uma lufada fria pela porta aberta. Minhas algemas foram retiradas. Estendi os braços rígidos e obedeci à ordem de segui-lo pelo

corredor.

Nova cela me aguardava e novas roupas. Havia uma cama com lençóis, uma mesa com toalha e um vaso de flores. Era demais: sentei-me e comecei a chorar. Quando Konya saiu, recobrei o equilíbrio. Vi um jornal sobre a mesa. Era o primeiro que via em todos os anos de meu encarceramento. Procurei ver lá a notícia de um boato que se propalava em Gherla, de ter a Sexta Esquadra norte-americana entrado no mar Negro, a fim de exigir eleições livres nos países escravizados, mas o que encon­trei foi um tópico sobre um ditador comunista que galgara ao poder em Cuba e estava provocando a América nos seus próprios batentes.

Quem primeiro me visitou foi o Comandante Alexandrescu. Disse que meu novo ambiente era uma amostra da vida boa que estava à minha disposição. Começou a atacar a religião. Cristo, dizia ele, era uma fantasia inventada pêlos Apóstolos com o intuito de iludir escravos dando-lhes esperança de liberdade em um paraíso.

Peguei o jornal e dei a ele. "Foi impresso nas oficinas do Partido", disse eu. "Traz uma data de julho de 1963. Quer isso dizer 1963 anos contados do nascimento de uma pessoa que -segundo o senhor diz - nunca existiu. O senhor não crê em Cristo, mas aceita-o como sendo o fundador de nossa civilização".

Alexandrescu deu de ombros. "Isso não quer dizer nada; é costume contar desse modo".

"Mas se Cristo nunca veio à terra, como apareceu esse costume?" perguntei.

"Alguns mentirosos começaram com ele". Eu disse: "Suponha que o senhor me diz que os russos aterrissaram em Marte. Não sou obrigado a crer nisso. Mas se ligo o rádio e ouço Nova York e os americanos se congratulando com eles então sei que é verdade. De igual modo, devemos aceitar a existência de Cristo como um fato histórico visto como os piores inimigos dele, os fariseus, reconhecem isso na Talmude, mencionando até o nome de sua mãe e de alguns dos Apóstolos. Aliás, devemo-nos impressionar quando os fariseus atribuem milagres a Cristo, embora afirmando que foram operados por magia negra. Muitos escritores pagãos também o reconheceram. Só os comunistas negam esse fato evidente da História, simplesmente porque não se coaduna com as suas teorias".

Alexandrescu não quis argumentar. Em vez disso, mandou-me um livro. Que maravilha ter nas mãos um livro, depois de todos aqueles anos, embora fosse o "Guia do Ateu". Esse manual, desconhecido no Ocidente, é indispensável a todos quantos querem fazer carreira atrás da Cortina de Ferro.

Meu exemplar era de boa encadernação, ilustrado e com argumentos cuidadosamente arranjados. Começando com as origens da religião, passa ao Hinduísmo, Budismo, Confucionismo e Islamismo. Depois vem o Cristianismo, dando-se um capítulo a cada confissão cristã. O Catolicismo é muito mal apresentado; o Luteranismo aparece muito melhor (Lutero desafiou o Papa), porém tudo é apresentado como imposturas. A ciência provou isso, por este motivo a Igreja sempre a perseguiu. Um capítulo inteiro retrata a Igreja como instrumento do capitalismo através dos séculos; a exortação de Cristo sobre o amor aos inimigos não quer dizer outra coisa senão curvar a fronte diante dos exploradores. Uma secção especial é dedicada à corrupção do clero russo (o livro evidentemente é tradução do russo). Uma gravura após outra mostra enganosamente que os ritos cristãos se baseiam em superstições pagãs. O último capítulo analisa "Formas de Propaganda Ateística", concluindo com uma relação dois decretos soviéticos contra a religião. Depois disso caí no sono.

Nas poucas semanas seguintes alternaram-se promessas e ameaças, minha sala particular ornada de flores e a cela ofuscante com alto-falante, boas refeições mas provavelmente com drogas que lhes eram adicionadas e regime de fome, argumentos e castigos. Certa manhã, enquanto eu passava pelo castigo do calor, juntou-se a mim o Padre Andricu, o antigo "Padre Vermelho", que se arrependera. Sentou-se arquejante até que não pôde mais suportar. Levantou-se de súbito e bateu com força na porta, pedindo para sair. Daí a pouco o comandante apareceu.

"Pode ser mais quente ainda", disse Alexandrescu. Ou podíamos ser homens libertos, se preferíssemos, repetiu ele. "Mas se vocês forem soltos, como irão proceder e que espécie de sermões irão pregar? Quero que vocês escrevam um esboço". Deu-nos caneta e papel, e saiu,

Sentamo-nos a escrever. Quando terminei, passei aAndricu minhas folhas de papel, e tomei as dele para ler.

"Você pode ouvir sermões como estes todos os domingos", disse ele, pondo-se na defensiva. "Progressistas, de uma forma científica e marxista".

Eu disse: "Não se engane, Padre Andricu. Você sabe que isto é uma retratação de tudo quanto você crê. Mesmo no caso de um padre perder a fé, deve ficar calado. Eu não falo do juízo diante de Deus. Que pensarão seus paroquianos, seus amigos, sua família ouvindo-o pregar essa droga? Não deixe que os comunistas o iludam outra vez. Compram você com promessas que não cumprem nunca".

Discuti longo tempo com Andricu, dizendo-lhe que em seu coração ele ainda estava certo da verdade do Cristianismo. Por fim ele disse: "Devolva-me os sermões", e rasgou-os.

Nova série de "encontros de luta", assistidos por centenas de presos, começou no salão principal e fomos enviados da quadra especial a fim de presenciá-los. A maior parte das palestras eram agora feitas por homens que, não fazia muito, foram nossos colegas de cela. Depois de receber instruções, voltavam agora a declamar louvaminhas ao Comunismo, que lhes tinha dado anos de sofrimentos. Os ataques deles à religião baseavam-se quase sempre em teólogos modernistas que negam as Escrituras: propagandistas como esses da escola da 'Morte de Deus'. Diziam-nos: "Estudem os seus próprios pensadores! Eles têm provado não haver qualquer verdade objetiva no Cristianismo".

Durante dez a doze horas por dia ouvíamos palestras, entrávamos em discussões e absorvíamos os "slogans" gravados em "tape". As palestras de lavagem cerebral apelavam ao Id mais frequente e grosseiramente do que os funcionários locutores; e as visões deles de liberdade, dinheiro; emprego estável - e assalto ao Ego - eram mais conviventes.

Em cada cela um punhado de homens relatavam diariamente a "sanidade política" dos demais. Os que se sujeitavam a eles estavam bem seguros. Os que não se sujeitavam, acabavam na quadra especial. A febre de delação alcançava a todos. Um homem perto de mim queixou-se a um oficial a respeito de um guarda que vasculhava seu leito, mas não olhara debaixo

dele!

No dia 23 de agosto, aniversário do armistício com a Rússia, a maioria dos presos estava pronta a crer em qualquer coisa que lhes dissessem. A um grande número de presos reunidos no salão o Major Alexandrescu dirigiu a palavra, começando: "Temos boas notícias".

Camponeses, cujas fazendas tinham sido tomadas, ficaram sorridentes quando ouviram o anúncio de que suas terras estavam florescentes na organização coletivista. Antigos negociantes e banqueiros aplaudiram quando ele lhes disse que os negócios começavam a desenvolver-se.

"Alguns de vocês", disse o comandante, "afinal estão ouvindo a voz da razão. Outros são muito tolos. Idiotas! Vocês estão parados no cárcere dez ou quinze anos, à espera dos americanos que venham libertá-los. Tenho notícias a dar a vocês.

Os americanos estão vindo - não para soltá-los. Estão vindo para fazer comércio conosco!"

Disse que o Partido, sob o Primeiro-Ministro Gheorghiu-Dej tinha tomado medidas no sentido de obter favores comerciais no Ocidente. Empréstimos estavam sendo levantados, fábricas se construíam, usinas nucleares estavam operando, tudo com o auxílio do Ocidente.

"Tolos!" expectorou novamente a palavra. "Todos vocês tem vivido de ilusões. Conhecemos os americanos melhor do que vocês. Se vocês pedem, eles não lhes dão nada. Se vocês os insultam e ridicularizam, arranjam tudo quanto quiserem. Temos sido mais ladinos do que vocês".

Alguém riu alto e outros aderiram. De repente o salão inteiro se agitava. O barulho ia-se tornando histérico quando, levantando a mão, o comandante o reprimiu. Bem-humorado disse que em compensação de não podermos tomar parte nos festejos do "Dia da Liberdade", tinha tomado providências para que os víssemos - um aparelho de televisão instalara-se para aquele fim.

O programa de TV começou com discursos feitos por Gheorghiu-Dej e outros sobre a queda do regime fascista na Roménia. Nenhum dos oradores, naturalmente, mencionou o papel vital desempenhado em 23 de agosto de 1944 pelo jovem Rei Miguel, nem pelo estadista Juliu Maniu, do movimento Nacional Camponês, e pelo comunista Ministro da Justiça Patrascanu, visto como o rei fora exilado e os outros dois morreram no cárcere.

Lembrava-me que nos primeiros tempos do comunismo o povo procurava se afastar da parada de aniversário, mas agora, quando começou a passeata, fiquei admirado de ver colunas passando a pé diante dos retratos de Marx, Lenin e Dej, com bandeiras vermelhas desfraldadas ao vento. Ouvimos a banda marcial, os aplausos das multidões e os brados - "O 23 de agosto nos traz a liberdade!"

"No passado nunca houve isto", disse eu ao Padre Andricu ao meu lado.

Ele murmurou em resposta: "A primeira vez que uma jovem é violada, ela luta. Na segunda vez, protesta. Na terceira vez, acaba gostando".

Terminando o espetáculo, começou outro.

"Agora vamos discutir a festa", disse Alexandrescu.

Uma após outra as pessoas apresentaram seu testemunho. Ex-soldados, antigos policiais, proprietários de terras, camponeses, industriários. Todos eles, terminada sua contribuição, bradavam: "O 23 de agosto trouxe-nos liberdade!"

Chegou minha vez. Comecei ferindo a nota do dia.

"Se alguém há a quem no 23 de agosto trouxe liberdade, essa pessoa sou eu", disse. "Os fascistas odiavam-me, e se Hitler tivesse ganhado sua guerra eu hoje seria uma barra de sabão. Mas estou vivo, e a Bíblia tem um ditado: 'Vale mais um cão vivo do que um leão morto'".

Continuei, enquanto ouvia murmúrios de aprovação, "Mas em outro sentido eu estava livre antes do 23 de agosto. Vou dizer a vocês como foi. Em tempos antigos o Tirano de Siracusa leu o livro de Epicteto, o escravo filósofo, e o admirou tanto que lhe ofereceu a liberdade. "Liberte-se o senhor mesmo!" O filósofo retrucou-lhe: "Um tirano que é dominado por sua luxúria está em escravidão; um escravo que governa suas paixões, esse é livre. Ó rei, liberte-se a si mesmo!"

O salão era todo silêncio. "Embora eu esteja preso, sou livre. Fui liberto de minhas culpas por Jesus, e também das trevas de minha mente. Posso ser grato aos acontecimentos de 23 de agosto por me haverem libertado do Fascismo. Mas a outra liberdade, liberdade de tudo quanto é transitório, libertação da morte, essa eu agradeço a Jesus".

O comandante levantou-se. "Diga essas tolices a Gagarin. Ele esteve lá no espaço e não viu sinal nenhum de Deus!"

Ele riu. Os presos riram com ele.

Respondi de uma maneira prosaica: "Uma formiga que ande à volta da sola do meu sapato pode dizer que não vê sinal nenhum de Wurmbrand".

Fui castigado com outro estágio na Quadra Especial, e estava lá quando Alexandrescu me procurou especialmente para me informar que o Presidente dos Estados Unidos tinha sido assassinado.

"Que é que você pensa disso?" inquiriu.

Respondi: "Não posso acreditar".

Mostrou-me um jornal que relatava a morte de Kennedy em um curto parágrafo.

"E então?" interpelou-me. Insistindo em perguntas desse tipo usava a técnica para descobrir como ia funcionando a mente dos presos.

Ao responder eu que, se Kennedy era cristão estava feliz no céu, Alexandrescu  foi debandando.

Mais tarde estava numa cela com o Padre Andricu quando os guardas vieram ter conosco. Tivemos os olhos vendados e as mãos algemadas antes de sermos levados para fora - pelo que tudo indicava íamos ser executados.

Os guardas iam dizendo: "Virem à direita", "Agora dobrem à esquerda".

Em local distante, na prisão, nossas vendas foram retiradas. Achamo-nos num conjunto de gabinetes limpos e aquecidos.

Andricu foi levado a outra parte do que devia ser o setor administrativo central. Fiquei fora de um porta, sozinho com um guarda que, em dias passados, ouvira-me falar calmamente a respeito de Cristo.

Ele me sussurrou: "Meu pobre amigo! Você está passando uns maus bocados, mas em nome de Deus continue!"

Afastou-se alguns passos, seu rosto inexpressivo, mas suas palavras animaram-me.

Ao abrir-se a porta, fui conduzido à presença de um homem fardado de general. Era Negrea, o Ministro-Substituto do Interior, cuja inteligência emparelhava com a energia candente de seu rosto vigoroso de gitano. O oficial e alguns funcionários de Bucareste estavam sentados ao seu lado.

Negrea disse cortesmente: "Tenho estado estudando o seu caso, Sr. Wurmbrand. Não me importo com as suas opiniões, mas aprecio um homem que mantém firme sua posição. Nós comunistas também somos teimosos. Já tenho estado preso e muita coisa se fez para que eu mudasse de ideia, mas fiquei firme.

"Creio que é tempo de fazermos concessões. Se o senhor está preparado para esquecer o que tem sofrido, nós esqueceremos o que o senhor tem feito contra nós. Podemos virar a página e nos tornar amigos em vez de inimigos. Assim, longe de agir contra suas próprias convicções, o senhor pode agir baseado nelas e ainda ingressar num período de frutuosa cooperação".

Um arquivo estava aberto diante dele. "Li até mesmo os seus sermões. As explanações feitas à Bíblia são tecidas com muita beleza, mas o senhor precisa reconhecer que vivemos numa era científica..."

"E daí?" perguntei a mim mesmo, ao penetrar Negrea na conversa do Partido acerca de ciência. Teria sido para isto que um importante ministro viajara 50 léguas?

Tal como o Danúbio que vai serpenteando para um e outro lado das planícies, mas acaba desaguando no mar, seu discurso chegou ao fim.

"Precisamos de homens como o senhor! Não queremos gente que adere a nós por acomodação às circunstâncias, mas por ver as falácias do seu pensamento passado. Se o senhor está preparado para ajudar-nos na luta contra a superstição, pode encetar imediatamente uma nova vida. Terá uma posição com elevado salário, e sua família, ao seu lado, gozando conforto em segurança. Que diz?"

Respondi já ter alegria na vida que ia levando, mas quanto a ajudar o Partido, eu estivera pensando num modo de fazer isso, se fosse solto.

O oficial político levantou-se. Negrea disse: "Quer dizer que vai trabalhar para nós?"

"Sugiro que o senhor me envie de cidade em cidade, de vila em vila com o melhor professor marxista que tiver. Primeiro exporei minha ignorância e os absurdos de minha retrógrada religião cristã; a seguir o seu professor marxista poderá explicar suas teorias, e o povo ficará então habilitado a arrazoar e escolher entre nós dois".

Negrea lançou-me um olhar severo. "O senhor está-nos provocando, Sr. Wurmbrand. É isto o que aprecio no senhor. Foi este precisamente o modo que nós, comunistas, empregamos para responder aos mandões de outrora. Assim pois não discutamos. Vou fazer-lhe ainda uma proposta melhor. Ninguém quer que o senhor se torne um propagandista de ateísmo. Se o senhor está realmente assim aferrado a uma fé cediça - ainda que não possa eu compreender como é que um homem culto aceita tamanho absurdo - então conserve-a consigo. Mas tenha também em mente que o poder está conosco! O Comunismo já conquistou um terço do mundo, a Igreja precisa entrar em acordo conosco.

Ponhamos as cartas na mesa, por esta vez. Francamente, estamos cansados de líderes da Igreja que fazem tudo quanto pedimos, e algumas vezes até mais. Têm-se desacreditado aos olhos do povo; não se apercebem mais do que vai acontecendo, perderam o contato com a realidade".

Um a um, Negrea mencionou os bispos remanescentes. Todos estavam reduzidos à impotência, disse ele, ou eram homens do Partido; e todo o mundo sabia disso.

"Agora, se um homem como o senhor se tornar bispo, poderá conservar sua fé e ainda ficar leal ao regime. Sua Bíblia diz que o senhor deve submeter-se à autoridade, visto proceder ela de Deus; por que não à nossa?"

Eu nada adiantei. Negrea pediu aos outros oficiais que se retirassem, deixando-nos a nós dois sozinhos por um momento. Estava convencido que eu aceitaria a oferta e falou-me confidencialmente sobre uma coisa que não queria que os outros ouvissem.

"O Partido cometeu um erro atacando o seu Concílio Mundial de Igrejas. Este concílio começou num conluio de espionagem, mas os pastores envolvidos são quase todos de origem proletária; não são acionistas, por assim dizer, mas são funcionários de alta categoria. Em lugar de nos opormos a homens assim, devemos ganhá-los para o nosso lado, de modo que o próprio concílio se tome um instrumento nosso".

Inclinando-se sobre a carteira, continuou: "Sr. Wurmbrand, é nisto que o senhor pode ajudar. O senhor trabalhou para o Concílio Mundial de Igrejas. É largamente conhecido no exterior: ainda estamos colhendo muitos informes a seu respeito. Se o senhor for feito bispo, poderá ajudar nossos outros aliados do CMI a construir um baluarte para nós - não de ateísmo, mas de Socialismo e paz. Certo que o senhor reconhece o universal idealismo de nossas campanhas em prol do banimento da bomba e da guerra fora da lei, não é? E poderá prestar seu culto para o seu próprio contentamento: aí não interferiremos".

Pensei por um momento.

"Até onde deve ir essa cooperação? Bispos que trabalharam com os senhores no passado têm sido obrigados a delatar seus próprios padres. Será que esperam isto também de mim?"

Negrea começou a rir. "O senhor, por força do seu ofício, não ficará sob nenhuma obrigação especial", disse ele. "Quem quer que seja sabedor de um ato qualquer que possa prejudicar o Estado é obrigado a denunciar a pessoa autora desse ato, e como bispo o senhor certamente ouvirá coisas assim.

"O atual bispo luterano da Roménia está muito velho. O senhor será bispo-eleito e chefe efetivo de sua igreja na Roménia, desde logo".

Pedi que me desse tempo para refletir, e Negrea concordou.

"Voltaremos a encontrar-nos antes de voltar para Bucareste a fim de dar entrada aos seus papéis solicitando libertação", disse ele.

Fui levado de volta a uma cela isolada e fiquei pensando durante horas. Lembrei-me do velho conto judaico de outro homem que pedira tempo para pensar: um rabino, enfrentando a Inquisição, que lhe pedira negasse sua fé. Na manhã seguinte o rabino disse: "Não me tornarei católico, mas faço um último pedido - que antes de ser queimado vivo, minha língua seja cortada por não ter respondido imediatamente". A tal solicitação a resposta foi "Não!"

Mas este era apenas um lado da questão: o outro era eu saber que a Igreja oficial num país comunista só pode sobreviver por meio de alguma transigência; até em pagar impostos a um Estado ateu o cristão transige. Era fácil dizer que a Igreja podia agir as ocultas, mas uma Igreja secreta precisa de cobertura para realizar o seu trabalho. Na falta de cobertura, milhões de pessoas são deixadas sem lugar onde se reunam para o culto, ficam sem pastores que preguem, batizem, casem, sepultem os seus mortos - uma alternativa inconcebível, quando eu podia ajudar a evitar isso, dizendo umas poucas palavras em favor da coletivização ou das chamadas campanhas pró paz.

E depois, não via minha esposa e filho havia anos já; não sabia se estavam vivos. O oficial político dissera que Sabina estava presa; que seria dela e de Mihai, se eu recusasse aquela proposta?

Precisava de força de cima para dizer não, quando agindo assim teria de cumprir mais onze anos, com o sacrifício de minha família e uma morte quase certa sob condições terríveis, mas naquele momento a face de Deus ficou velada e minha fé falou. Tinha diante dos olhos o fantasma enorme do Comunismo que já cobria tantas áreas do mundo e ameaçava o resto; e minha imaginação foi vencida pelo perigo de morrer, de ser açoitado repetidas vezes, e pela ideia da fome e das privações a que estava condenando minha mulher e meu filho. Minha alma estava como um navio levado de um para outro lado, agitado por violenta tempestade, um momento baixando ao abismo, outro momento elevando-se ao Céu. Bebi naquelas horas o cálice de Cristo; aquilo era para mim o Jardim do Getsêmani. E tal qual Jesus, lancei-me com o rosto em terra e orei aos soluços, pedindo a Deus que me ajudasse a vencer aquela horrível tentação.

Depois da oração senti-me um pouco mais calmo. Mas ainda via diante de mim Nichefor Daianu e Radu Ghinda e tantos outros que tinham prejudicado sua fé, inclusive o Patriarca; eles eram mimares, e agora tinha-me tornado um homem de fé medíocre e seria engolido como eles foram, por causa da fraqueza da carne. Comecei a pensar detidamente de todas as vezes que eu tinha demonstrado a verdade do Cristianismo. Fazia a mim mesmo as mais simples perguntas. É o caminho do amor melhor do que o do ódio? Tinha Jesus Cristo tirado de sobre mim o fardo de pecados e dúvidas? É Ele o Salvador? Não havia dificuldade alguma em responder imediatamente "Sim". E com isto como que um peso enorme era removido de minha mente.

Durante uma hora, deitado na cama, dizia a mim mesmo: "Vou experimentar agora não pensar em Cristo". Mas era em vão. Não podia pensar em nada mais. Sem o Cristianismo o coração me ficava vazio. Uma última vez minha mente se deteve na proposta de Negrea. Pensei nos tiranos, começando com Nabucodonosor, que estabeleceu um rei sobre os judeus, até Hitler, que nomeou seus fantoches na Europa. No meu cartão de visita ler-se-ia: "Ricardo Wurmbrand, Bispo Luterano da Roménia, nomeado pela Polícia Secreta". Não seria um bispo de Cristo num lugar sagrado, mas um espião da polícia numa instituição estatal. Orei outra vez, e depois senti minha alma tranquila. No dia imediato fui outra vez chamado. O Comandante Alexandrescu compareceu, entre outros ao lado de Negrea, e quando eu disse que não podia aceitar, toda a questão voltou a ser debatida. Somente quando tocamos no assunto do Concílio Mundial de Igrejas Negrea outra vez pediu-me que os outros se retirassem. Insistiu que eu reconsiderasse minha recusa.

Eu disse: "Não me acho digno de ser bispo - não me achava digno de ser pastor, e mesmo ser um simples cristão era demasiada grandeza para mim. Os primeiros cristãos marchavam para a morte dizendo 'Christianus sum!' - 'Sou cristão' - e eu não fiz isso; pelo contrário, ainda cheguei a ponderar sua oferta vergonhosa. Mas não posso aceitá-la".

"Acharemos outro que queira", advertiu-me. Repliquei: "Se o senhor crê poder provar-me que estou errado, apresente-me seus argumentos ateísticos! Tenho os argumentos em defesa de minha fé: só procuro a verdade".

Perguntou-me: "O senhor sabe, por acaso, o que isto pode significar para o seu futuro?"

- Já ponderei bem, já pesei os perigos, e alegro-me em sofrer pelo que estou certo ser a verdade anal.

Negrea lançou-me o olhar de quem descobre que está perdendo o tempo. Cortês até ao fim, inclinou a cabeça em saudação, fechou sua pasta, levantou-se se dirigiu à janela de onde ficou olhando para fora enquanto os guardas me punham algemas e me levavam dali.

Durante longo tempo fiquei na "quadra especial", quanto não sei ao certo. O tempo reunia todos os dias de certos períodos de minha vida de preso num dia gigante. A lavagem cerebral aumentou de intensidade, mas mudou pouco de método. O alto-falante agora dizia:

O Cristianismo está morto.

O Cristianismo está morto.

O Cristianismo está morto.

Recordo-me bem de um dia. Deram-nos postais para que convidássemos nossas famílias a que nos levassem pacotes. No dia marcado, barbearam-me, tomei banho e deram-me para vestir uma camisa limpa. As horas passaram-se. Sentado na cela contemplava os azulejos brancos a cintilar, mas ninguém aparecia. Com o cair da noite tivemos apenas uma rendição de guardas. Não podia saber que meu postal não fora enviado, e o mesmo estratagema fizeram com outros presos obstinados. O alto-falante dizia:

^Ninguém mais o estima.

Ninguém mais o estima.

Ninguém mais o estima.

Comecei a chorar. O alto-falante continuava:

Não querem mais saber de vocês.

Não querem mais saber de vocês.

Não querem mais saber de vocês. Não podia suportar ouvir aquilo e não podia evitá-lo. No dia seguinte houve um brutal "encontro de luta", reservado aos desapontados. Muitíssimas outras esposas tinham vindo, disse o preletor. Nós é que éramos os tolos. Tínhamos sido abandonados. Nossas esposas estavam vivendo com outros homens - naquele momento exato. Descreveu o que estava acontecendo entre elas e eles, e isto em termos livre. E onde estavam nossos filhos? perambulando nas ruas, ateus todos eles! Não tinham nenhum desejo de ver os pais. Como nós éramos estúpidos!

Na quadra especial, dia após dia, eu escutava:

O Cristianismo morreu.

O Cristianismo morreu.

O Cristianismo morreu.

Com o passar do tempo cheguei a acreditar no que eles nos disseram naqueles meses todos. O Cristianismo estava morto. A Bíblia prediz um tempo de grande apostasia, e eu acreditava que já tinha chegado.

Depois pensei em Maria Madalena, e talvez isto, mais do que outra coisa, livrou-me a alma do veneno mortal da última e pior fase da lavagem cerebral. Lembrei-me como ficou ela fiel a Cristo, até mesmo quando Ele bradou do alto da cruz: "Deus meu, por que me desamparaste?" E quando Ele era cadáver no túmulo, ela chorava junto, esperando até que Ele ressurgiu. Assim pois quando por fim cheguei a acreditar que o Cristianismo estava morto, eu disse: "Mesmo assim, crerei nEle e chorarei ao pé do seu túmulo, até que ele ressurja, como é certo que ressurgirá".

PARTE NONA

JULHO DE 1964 todos os presos foram reunidos no salão principal. O comandante entrou com os seus ficiais e nos preparamos para novo estágio na "campanha da luta". Ao invés disso, o Major Alexandrescu anunciou que por força de uma anistia geral, concedida pelo governo, os presos políticos de todas as categorias iam ter liberdade.

Não podia eu acreditar. Olhando à volta de mim, vi atónitos todos os rostos. Foi quando Alexandrescu bradou uma ordem, e o salão inteiro estrugiu em vivas. Se lhes tivesse dito: "Amanhã todos vocês serão fuzilados", ainda assim teriam ovacionado, e berrado: "Muito bem! Não merecemos viver!"

O anúncio não foi, como a princípio pensamos, outro ardil. O verão daquele ano viu a soltura de muitos milhares de presos. Agradecíamos isto a outro chamado "degelo" entre o Oriente e o Ocidente, e também - embora que naquele tempo eu não soubesse - a uma verdadeira mudança no coração do nosso Primeiro Ministro Gheorghiu-Dej. Após muitos anos de dúvidas sobre o dogma do Comunismo, retornou à fé em que fora criado por sua mãe e na qual ele permaneceu até à morte. Dej tinha-se con­vertido pela instrumentalidade de uma empregada de sua casa e um tio dela, um bom velho que muitas vezes lhe falou sobre a Bíblia. O Cristianismo, embora não confessado por ele aberta­mente, deu-lhe forças para desafiar seus patrões soviéticos. Sem ligar para as ameaças deles, reatou relações com o Ocidente, e em fazer isto deu um exemplo a outros países escravizados. Infe­lizmente morreu poucos meses depois, apressado o seu fim, di­zia-se, pêlos agentes soviéticos.

Chegou minha vez de liberdade. Achei-me entre um dos últimos grupos de cem homens mais ou menos reunidos no enorme salão. Quase que fomos os últimos presos deixados em Gherla. Estranho silêncio imperava nos corredores. Cortaram nosso cabelo e nos deram roupas usadas, mas bem limpas.

Enquanto eu imaginava o que teria acontecido com o primeiro dono do terno que eu estava usando, ouvi alguém chamando, "Irmão Wurmbrand!" Chegou-se a mim e disse ter vindo de Sibiu, pelo que supus ser ele membro de nossa igreja ali.

"Ouvi muita coisa a seu respeito, contada pelo seu filho", acrescentou. "Vivíamos juntos numa cela".

Interrompi. "Meu filho - preso?" Não, não; você está enganado!"

"Quer dizer que não sabia?" continuou o homem. "Faz seis anos que está preso".

Virei as costas e ele se afastou. O choque era quase mais do que podia suportar. A saúde de Mihai não era boa; nunca que resistiria a tensão de um encarceramento prolongado.

Minha mente ainda estava sob o choque do sofrimento quando o Comandante Alexandrescu chegou. "Bem, Wurmbrand", perguntou em tom de curiosidade, "aonde vai, agora que está livre?" Respondi: "Não sei. Fui informado oficialmente que minha mulher está presa, e agora acabo de saber que também meu filho único. Não tenho ninguém mais".

Alexandrescu sacudiu os ombros. "O rapaz, também! Como você se sente com um filho engaiolado como pássaro?"

- Tenho certeza que não está preso por roubo ou qualquer outro crime, e se está na cadeia por amor a Cristo, então orgulho-me dele.

- O que! Gastamos tanto dinheiro mantendo-o na prisão durante anos, e achar você que é motivo de orgulho ter a família no cárcere por estas coisas!

- Não foi de minha vontade que gastassem fosse o que fosse comigo.

E assim nos separamos. Saí da prisão com a roupa de outro. As ruas de Gherla pareciam deslumbrantes. Carros passavam e eu comecei a ficar nervoso. As cores do casaco de uma mulher, de um ramalhete chocavam minha vista. A música de rádio que saía de uma janela aberta soava extremamente doce. O ar tinha o cheiro de pureza e novidade, como de feno que estivesse sendo carreado além dos limites da pequena cidade. Mas tudo se mesclava de tristeza, pensando eu na minha mulher e meu filho que estavam presos.

Fui de ônibus à cidade próxima de Cluj, onde tinha amigos, mas eles se haviam mudado. Saí andando de casa em casa, no calor abafado de pleno verão, até que afinal os encontrei. Ofereceram-me bolo e frutas, toda espécie de coisas boas. Mas na mesa havia uma bonita cebola roxa, e era o que me apetecia. Tantas vezes suspirara por uma cebola, que me tirasse da boca o gosto da comida do cárcere. Agora, porém, não via mais necessidade dela.

Dei uma telefonada para um vizinho nosso em Bucareste.

A voz de quem atendeu era a de Sabina!

"Sou Ricardo", disse eu. "Julgava você presa!"

Houve um barulho de vozes. Mihai tomou o fone: "Mamãe

desmaiou - continue!" Houve ainda sons estranhos. Depois ele

disse: "Ela está bem. Pensamos que o senhor tivesse morrido!" Mihai nunca esteve preso. A notícia falsa que recebi foi uma última volta na rosa para testar minhas reações à lavagem cerebral.

Tomei o trem para Bucareste. Ao aproximar-se da estação vi uma multidão de homens, mulheres e crianças. Carregavam ramalhetes e fiquei imaginando quem seria a pessoa felizarda, que ia ser recepcionada daquela forma. Depois reconheci rostos, debrucei-me na janela a acenar para eles. Ao descer, parecia que todo o povo de nossa igreja corria ao meu encontro, e logo abraçava minha esposa e meu filho.

Naquela noite Sabina contou-me haver tido notícia de minha morte anos antes. Recusou-se a acreditar, mesmo quando estranhos a procuraram, fazendo-se passar por ex-prisioneiros que tinham assistido aos meus funerais.

"Vou esperar por ele", disse ela.

Passaram-se os anos e nenhuma notícia, até que telefonei. Para ela foi como se eu tivesse ressurgido dos mortos.

Um domingo, meses depois de minha soltura, saí a passeio com um grupo de meninos de escola. A Polícia Secreta perseguiu-nos logo, porém vendo que tomávamos a direção do Jardim Zoológico deixaram-nos.

Levei os meninos à jaula dos leões e os reuni à minha volta, de modo a poder falar-lhes baixinho.

Eu disse: "Os antepassados de vocês na fé cristã foram lançados às feras, como estas. Morreram alegremente, porque criam em Jesus. Pode chegar o tempo de vocês também serem presos e sofrerem por ser cristãos. Agora vocês precisam decidir se estão prontos a enfrentar esse tempo".

Com lágrimas nos olhos cada um disse "sim". Não fiz nenhuma outra pergunta nessa última aula de confirmandos, que tive antes de deixar minha pátria.

Revelei no prefácio por que decidi sair do meu país, e como vim para o Ocidente. Agora tenho só o seguinte a acrescentar. Na parede de um edifício da municipalidade em Washington D.C. vê-se uma grande placa onde se lê a Constituição dos Estados Unidos, belamente gravada em cobre. Ao primeiro olhar, vemos somente as palavras gravadas da Constituição; depois, dando passos para trás, de modo que a luz incida de outro ângulo, a face de George Washington aparece, esculpida no texto.

É o que deve acontecer com este livro, que narra episódios da vida de um homem, e a história dos que com ele estiveram na prisão. Atrás deles todos ergue-se um ser invisível, Cristo que nos conservou a fé e nos deu forças para vencer.

RlCHARD WVWBRAND

 

beijando um herói

Estávamos saindo para mais uma viagem missionária. O nosso coração batia forte.

"Alo, Alo, estamos falando com o querido filho do Rev. Richard Wurmbrand, Michael Wurmbrand? Aqui fala o Rev. Adan Alvear presidente da Missão A Voz dos Mártires no Brasil".

Estamos de viagem marcada ao Vietaã - via Estados Uni­dos -Japão, Tailândia, Laos e Vietnã, e na volta gostaríamos muito de visitar o nosso mui amado fundador da Missão A Voz dos Mártires, Rev. Richard Wurmbrand". O Rev. Richard já havia tem­po que se encontrava em casa de cama, com uma assistência médica diuturna. Michael pediu a data em que viríamos, eu dis­se dia tal, ele me respondeu que conforme a agende dele, não haveria a possibilidade de vê-lo, pois ele já se havia comprome­tido com mais de 200 pessoas. "Devido à sua complicada situa­ção de saúde, há pessoas que vêm da Coreia do Sul, África, Roménia, Alemanha, Austrália e muitos outros países somente para vê-lo um instante". "Muito bem, mas eu já comprei a minha passagem a Los Angeles e não posso mais cancelar, que farei?" Michael responde, então, que somente poderia vê-lo se viesse desacompanhado. Viajei tranquilo ao Vietnã, onde passei mo­mentos inesquecíveis, e tive a oportunidade de levar um grande homem de Deus, que é o Pastor Virgilio, presidente das Assem­bleias de Deus no Sergipe. Durante a nossa viagem ao Vietnã ele me disse que fora por causa do Rev. Richard e por intermédio do seu livro "Torturado por amor a Cristo" que ele fora missionário em Madagáscar e que tinha vontade de conhecê-lo mais do que ao Papa. Chegando a Los Angeles o Pr. Renault já estava no aeroporto me esperando, e sem demora estávamos a cami­nho da casa do Rev. Richard.

Queridos irmãos e irmãs, leitores deste livro, conto esta História detalhada para vocês poderem entender um pouco de missões, e sobre seus líderes e respectivas experiências.

Chegando ao lar de Richard Wurmbrand, Michael nos explicou por que não nos poderia deixar entrar no quarto dele. Ele disse: "Papai é considerado o apóstolo do século 20, como também Billy Graham o chama e o mundo cristão o reconhece. Ele é um verdadeiro mártir, herói do cristianismo, o homem do século 20. Por intermédio dele a igreja clandestina foi organizada e sustentada por mais de 30 anos. Mas ao passar desta porta você verá uma outra pessoa, uma pessoa desgastada pêlos anos de sofrimento, de prisão, fome, tortura e lágrimas derramadas pela igreja do Senhor. O homem que mais se esforçou pela igreja do Senhor está muito velho, doente, nos seus últimos dias de vida. A imagem não é bonita, por isso eles não podem entrar, somente você, Rev. Adan, pode, porque esteve ao lado dele por 18 anos". Eu disse ao Michael: "Você está equivocado; para nós, ele continua sendo nosso herói, não importa a sua aparência portanto, vamos entrar. Quando o Rev. Richard me viu, aos seus 92 anos, ele gritou, lúcido e com seu coração emocionado: "Alvear! Irmão Alvear!"

Falamos com ele, cantamos com ele, relembrando a canção na prisão comunista com as correntes nas mãos e pés que pesavam 20 quilos, tornando-se um instrumento musical que produzia um sonido de "plin, plin, plin" ao batê-las juntas.

Rev. Richard se lembrou comovido das multidões que o assistiram em suas campanhas pelo Brasil. Ao total foram ganhas 26 mil almas para Jesus, e ele falava isto ao seu filho Michael, viu, viu...

Querido amigo leitor, possivelmente para você não tenha nenhum valor a igreja perseguida, mas ela tem suas histórias e seus mártires. Sua aparência não é bonita, você a encontra feia, não quer nem saber dela e nem sequer tocar nesse assunto, mas ela existe em todo o lugar e é a maior força do cristianismo no mundo.

A igreja do Senhor cresce, crescerá e vencerá, por que tem o maior dos conquistadores ao seu lado, Jesus Cristo. Quero lhe apresentar esta igreja perseguida, mártir, sofredora, sem apoio governamental, a igreja não registrada por não se curvar a um governo tirano ou a uma falsa ideologia ou religião.

 

Você conhecerá irmãos simples mas cheios do poder de Deus que entregaram suas vidas ao Senhor e que estão prontos a morrer por ele.

A imagem de um herói envelhecido e debilitado através dos anos de luta, que deu a sua vida pela igreja do Senhor. Eu me curvo e beijo não saben­do que seria a última vez que aqui na Terra estaria beijando alguém cujo nome já fora pronunciado nos céus para ser recebido e condecorado pelo meu mui amado e querido Salvadorjesus, que, cada vez que um mártir morre, Se levanta de Seu trono e o recebe empe.

Rev. Adan Alvear - A VOZ DOS MÁRTIRES -