O Divino Legado da Paz

Por Horatius Bonar

“Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; eu não vo-la dou como o mundo a dá”. (Jo 14:27).

Certamente “ninguém jamais falou como este homem!” Os homens bem podiam se maravilhar das “palavras graciosas que vinham de seus lábios”. A graça brotava de Seus lábios, e de Seus lábios a graça fluía para os filhos dos homens. Ele tinha a língua de erudito, para que pudesse falar palavras a seu tempo ao cansado (Is 50:4); e abençoadas eram as palavras que falou aos tais.

Nunca ninguém entrou tão profunda e ternamente em nossos sentimentos, prevendo, com Suas palavras de compaixão e consolação, cada tristeza e necessidade! Que amor há aqui! Que cuidado e simpatia! Que majestade também! Pois somente aquele que sabia ter vindo de Deus e estar voltando para Deus, e que Ele mesmo era a infinita fonte da paz, poderia dizer: “Deixo-vos a paz”. As palavras proferidas aqui são certamente a segurança para nós do amor e poder do promitente. Ele também é capaz para cumprir. As palavras ainda são frescas e novas. Elas jamais poderão envelhecer; pois Aquele que as proferiu é o mesmo “ontem, hoje, e sempre”. Elas foram ditas a nós nestes últimos dias tão verdadeiramente como foram nas eras passadas. Cristo se referia a nós quando as proferiu. Notemos aqui: (a) a herança; (b) o dom; (c) o contraste; (d) a consolação.

a) A herança. “Deixo-vos a paz”. Esta é a divisão de bens de alguém que estava para partir. Ele mesmo estava se despedindo, mas não levaria Sua paz embora Consigo. Ele a trouxe quando veio (“paz na terra”), e a deixa para trás como uma relíquia celestial. Sua presença havia sido a fonte de paz para eles e Sua ausência não devia seca-la. Aquela fonte permaneceria a mesma. Presente ou ausente, distante ou perto, na terra ou no céu, Ele ainda seria o fundamento de paz para eles. O mundo seria um vazio sem Ele, mas Ele deixava para trás uma paz que animaria e alegraria. Não era tudo o que tinham quando Ele estava com eles, nem era tudo o que deveriam ter quando Ele retornou, mas ainda era muito, o suficiente para confortar, abençoar e derramar luz sobre a escuridão de seus caminhos. No mundo haveria tribulação, nEle paz. A paz de Deus devia prevalecer em seus corações. Deviam permanecer em paz e ter paz dentro de si.

b) O dom. “A minha paz vos dou”. Evidentemente isso é algo adicional à condição anterior. A paz não é algo meramente deixado, mas positivamente dado: “Dou”. Não é emprestado ou vendido, mas dado; é o dom do próprio Cristo, gratuito e incondicional. Sua paz é como Ele mesmo, um presente para nós; espontâneo, que não se pode comprar, imerecido. Contudo a expressão notável aqui é, “a minha paz”, a paz do próprio Cristo, totalmente peculiar, que transcende em natureza e em plenitude qualquer outra paz. O que foi então a paz de Cristo?

1. Foi a paz de uma consciência na qual jamais repousou a sombra de um sentimento de culpa. Foi preeminentemente “uma boa consciência”, uma consciência isenta de ofensa. De onde vem nossa falta de paz? De um sentimento de culpa na consciência. É uma má consciência que nos perturba. A mínima partícula ou sombra de culpa quebra nossa paz. Já em Jesus havia a perfeição de uma boa consciência. Nenhuma sombra sequer jamais repousou ali. É um pensamento abençoado que existiu uma vez aqui, um homem como nós, cuja consciência nunca foi tocada com a mais leve mancha de culpa; que nunca teve de se arrepender de um pensamento, ou revogar uma palavra, ou desejar não ter feito uma ação. A paz que Ele possuía era profunda, mesmo em meio a um mundo tempestuoso. É nesta profunda paz de consciência que Ele nos guiaria. Daquela verdadeira paz Ele nos faria participantes. O resultado de nosso “receber” a Ele, ou “crer em Seu Nome”, é de conduzir-nos ao mesmo estado de consciência e àquele mesmo tipo de paz que Aquele que não conheceu pecado possuía. Nossos vasos, são de fato pequenos e podem conter pouco, o dEle era grande e podia conter muito, mas o tipo ou qualidade daquela paz que os enche é a mesma. Ele fez a paz pelo Seu sangue na cruz, Ele é de fato a nossa paz e, logo que somos levados a saber disso e a toma-Lo como nossa paz, somos feitos participantes não meramente da paz, mas daquilo que Ele chama de “a minha paz”.

2. Foi a paz de alguém inteiramente obediente à vontade do Pai. Foi para fazer essa vontade que Ele veio. Sua vida era faze-la: “Me deleito em fazer a tua vontade, meu Deus”, “Seja feita a tua vontade e não a minha”. Como em toda obediência há paz, assim na obediência a tal vontade, da parte de um ser como o Filho, deve ter havido uma paz que ultrapassa todo entendimento, uma paz completamente infinita, uma paz proporcionada para a totalidade e perfeição da obediência. Tal obediência jamais fora prestada antes e tal paz jamais foi possuída, nem na terra nem no céu, por homem ou anjo. É a esta paz que Ele nos guia: a paz perfeita e profunda, a paz que não provém nem é proporcionada à nossa obediência, mas à dEle; a paz da qual a Sua obediência ao Pai é, ao mesmo tempo, o fundamento e a medida.

3. Foi a paz de alguém cuja peculiar constituição da personalidade o fez participante de uma paz peculiar. Ele era “a Palavra que se fez carne”; Filho de Deus e Filho do homem. Como tal, Ele era um vaso de dimensões infinitas, capaz de conter uma paz tal que ninguém jamais poderia conter. Neste vaso de infinita capacidade toda a plenitude da paz foi depositada pelo Pai, e fora deste vaso esta paz é depositada em nós, não com a mesma amplitude, mas no obstante proporcionalmente à nossa capacidade. É da paz divina do Deus-homem que somos feitos participantes. Que paz há como esta? Como as uvas de Escol eram de delicadeza peculiar, os cedros do Líbano de beleza peculiar, os jardins de Salomão de fertilidade e fragrância peculiares, assim era esta paz que enchia o Cristo de Deus peculiarmente excelente, e dessa paz peculiar Ele dá a promessa aos santos, “A minha paz vos dou”.

4. Foi a paz de alguém cujo relacionamento com o Pai o fez possuidor da paz peculiar. Há algo na paz filial, a paz de um filho resultante da conexão entre seu pai e ele mesmo e de sua própria posição peculiar na casa, a qual não pode ser muito bem descrita. Quanto mais é esta verdade da paz dEle que é o Filho Unigênito de Deus? Sua deve ter sido a paz tão especial quanto infinita, a paz depositada no seio do Filho amado pelo próprio Pai. Essa não é a paz de um servo ou de um amigo, mas a paz de um Filho, e que Filho! Essa paz divina e filial, a paz do Unigênito do Pai, Ele a transfere a nós como Seu dom gratuito: “A minha paz vos dou”. E isso tudo se torna mais verdadeiro e abençoado quando aqueles a quem Ele dá a paz são os próprios filhos de Deus! O Pai deposita uma paz especial de Seu seio paternal no seio de Seu Filho amado; e esse Filho deposita essa paz especial no seio daqueles que são participante de Sua filiação, os verdadeiros filhos de Deus!

5. Foi uma paz que jamais poderia ser destruída. A paz é como Ele mesmo, e como Aquele de quem Ele a recebe, eterna e imutável. Esta paz é participante de Seu caráter como alguém eterno, o mesmo ontem, hoje e para sempre. É a paz iniciada agora, dada aqui mesmo, é a paz a ser perpetuada no reino eterno, paz sem fim, interrupção ou mudança para sempre.

Assim é o dom de Cristo para os seus! É precioso, perfeito e divino. É como Ele mesmo. É uma paz que ultrapassa todo entendimento. Que tesouro para a terra! Que penhor de abundante riqueza armazenada para nós quando Ele vier novamente. Por maior que seja a paz que Ele dá agora ela é nada para a paz reservada para nós no futuro. Ele a dá aos Seus, e propõe a todos os homens que se acheguem para se tornarem dEle! “Vinde a mim e lhes darei descanso”, é Sua primeira mensagem; e a segunda é como esta, “A minha paz vos dou”.

c) O contraste. “Eu não vo-la dou como o mundo a dá”. Em todos os aspectos há um contraste entre Cristo e o mundo, com nenhuma semelhança ou simpatia. Mas não é dEle mesmo que Ele fala aqui, mas de Seus dons e maneira de dar. A paz de Cristo e a do mundo são opostas; assim são o Seu dar e o do mundo.

Quanto à paz:

1. A paz de Cristo é perfeita, a do mundo é parcial e imperfeita, superficial e fraca. É e tem sido uma coisa pobre e escassa na melhor das hipóteses.

2. A paz de Cristo enriquece a consciência, a do mundo não. Ela alivia a consciência adormecida, mas isso é tudo. Ela intoxica, mas não dá descanso para o homem interior. Ela não é o resultado de uma consciência purificada ou pacificada.

3. A paz de Cristo é satisfatória, a do mundo é insatisfatória. A paz que vem de qualquer forma e de qualquer região deste mundo maligno não pode satisfazer. Não encontra nenhuma ânsia e desejo de nosso espírito, não alimenta nossa fome ou extingue nossa sede. Ela nos deixa tão vazios quanto antes. Ela fala de paz quando não há nenhuma.

4. A paz de Cristo é firme, a do mundo é oscilante. O mundo em si mesmo é instável e assim os são seus dons, especialmente o da paz. Essa é facilmente perturbada, facilmente quebrada, mudando constantemente.

5. A paz de Cristo é santa, a do mundo profana. A paz de Cristo é eterna, a do mundo cedo finda. Por mais longa, a paz do mundo é apenas para uma existência, mas raramente dura a metade, quando muito, mais geralmente um dia ou uma hora. Paz eterna é dom de Cristo!

Quanto ao dar:

1. O dar de Cristo é gratuito, nenhum dos dons do mundo é assim. Ele dá como se deu a si mesmo. O mundo barganha e vende.

2. O dar de Cristo é genuíno, o do mundo é fingido. O mundo nos deseja paz, essa é sua saudação diária, mas tudo é insincero. Cristo tenciona o que Ele diz quando nos deseja paz!

3. O dar de Cristo é voluntarioso. O mundo não tem prazer em dar; não é generoso e amoroso. Cristo dá como um Rei em total amor. Ele não censura.

4. O dar de Cristo é imediato; o do mundo é tardio. O mundo nos deixa esperando, Cristo não. Sua palavra é agora!

5. O dar de Cristo é irrevogável, o mundo freqüentemente toma de volta o que deu. Sua paz é certa, Ele não a revoga, nem a revogará para sempre.

Que vívido contraste! Pode alguém hesitar em escolher? Rejeitar a falsa paz do mundo e tomar a verdadeira paz de Cristo é uma das coisas mais razoáveis que pode ser proposta ao homem! Considere bem o contraste e aja adequadamente.

c) A consolação. “Não se turbe o vosso coração”. Existirão muitas coisas para perturbar e amedrontar neste mundo; um mundo onde tudo é ódio, inimizade e perseguição; mas contra tudo isso uma provisão foi feita e ela é a paz de Cristo. Sem dúvida Ele dá também outras coisas para os dias de provação – força, fé, esperança – mas é a Sua paz que é o antídoto especial, o preeminente sustentador e confortador nas horas difíceis.

É paz, e que paz! Ela conserva a alma firme quando a tempestade é furiosa. Ela nos faz sentir como se ocultos na concha da mão de Cristo, protegidos por Seu escudo, acolhidos em Seus braços. É luz nas trevas, é uma torre forte em meio ao assalto das hostes. Deixemos o mundo repreender ou perseguir, temos uma paz interior que satisfaz mais do que todas suas reprovações e perseguições. Deixemos o Anticristo e Satanás se enfurecerem, a paz interior divina nos mantém inalteráveis. Deixemos as dores físicas nos assaltarem, somos sustentados pela paz de Cristo. Nosso coração não está perturbado com ansiedade ou acusação, nem temerosos em meio à perseguição e injúria.

Com a paz de Cristo em nós e o próprio Cristo como companheiro ao nosso lado, vamos em frente em nossa peregrinação na possessão de uma paz celestial que nos preserva em perseverança e tranqüilidade, que nos faz invencíveis, mais do que vencedores, através dAquele que nos ama.

(Do livro “Estudos do Evangelho de João” [Studies in the Gospel of John])