Assim como não houve nenhum lugar seguro, nem na Alemanha,
nem na Itália nem na França, onde não saíssem alguns ramos daquela frutífera
raiz de Lutero, do mesmo modo não restou esta ilha de Grã Bretanha sem seu
fruto e sem seus galhos. Entre eles estava Patrick Hamilton, um escocês de
nobre e elevado berço, e de sangue real, de excelente temperamento, de vinte e
três anos de idade, chamado abade de Feme. Saindo de seu país com três
companheiros para fazer-se uma piedosa educação, se achegou à Universidade de
Marburgo, na Alemanha, universidade que para aquela época tinha sua nova
fundação por Felipe, landgrave de Hesse.
Durante sua residência lá se familiarizou intimamente com
aqueles eminentes fanais do Evangelho que eram Martinho Lutero e Felipe
Melanchton, e mediante cujos escritos e doutrinas se aderiu tenazmente à
religião protestante.
Sabendo o arcebispo de St. Andrews (que era um rígido
papista) das atuações do senhor Hamilton, o fez apresar, e, fazendo-o
comparecer diante dele para interrogá-lo brevemente acerca de seus princípios
religiosos, o fez encerrar no castelo, com ordens de que fosse lançado na
masmorra mais imunda da prisão.
Na manhã seguinte, o senhor Hamilton foi feito comparecer
diante do bispo, junto com outros, para ser interrogado, sendo as principais
acusações contra ele que desaprovada em público as peregrinações, o purgatório,
as orações aos santos, pelos mortos, etc.
Estes artigos foram reconhecidos como verdadeiros pelo senhor
Hamilton, em conseqüência do qual foi de imediato condenado à fogueira; e para
que sua condena tivesse tanta maior autoridade, se fez assinar a todas as
pessoas destacadas ali presentes, e para fazer o número tão grande como for
possível inclusive se admitiu a assinatura dos meninos que fossem filhos da
nobreza.
Tão desejoso estava este fanático e perseguidor prelado por
destruir o senhor Hamilton, que ordenou a execução da sentença na mesma tarde
do dia em que se pronunciou. Por isso, foi levado ao lugar designado para a
terrível tragédia, onde se amontoou um grande número de espectadores. A maior
parte da multidão não acreditava que realmente fossem dar-lhe morte, senão que
somente se fazia para espantá-lo, e assim levá-lo a abraçar os princípios da
religião romanista. Porém logo deveriam sair de seu erro.
Quando chegou até a estaca, se ajoelhou e orou durante um
tempo com grande fervor. Depois foi acorrentado à estaca, e colocaram a lenha
em sua volta. Colocando-lhe uma quantidade de pólvora embaixo dos braços, a
acenderam primeiro, com o qual sua mão esquerda e um lado de sua cara ficaram
abrasados, porém sem causá-lhe danos mortais, nem acendendo o fogo na lenha.
Então trouxeram mais pólvora e combustível, e desta vez acendeu a lenha. Com o
fogo aceso, ele clamou com voz audível: "Senhor Jesus, recebe meu
espírito! Até quando reinarão as trevas sobre este reino? E até quando sofrerás
Tu a tirania destes homens?"
Ardendo o fogo lentamente ao princípio, sofreu cruéis
tormentos; porém os sofreu com magnanimidade cristã. O que mais dor lhe
provocou foi o clamor de alguns malvados incitados pelos frades, que gritavam
com freqüência: "Converte-te, herege; clama a nossa Senhora; dize o Salve
Regina, etc". e a estes ele replicava: "Deixai-me e parai de
incomodar-me, mensageiros de Satanás". Um frade chamado Campbell, o líder,
continuou molestando-o com uma linguagem insultante, e ele replicou:"
Malvado, que Deus te perdoe!". Depois disso, impedido já de falar a causa
da violência da fumaça e a voracidade das labaredas, entregou sua alma nas mãos
dAquele que a tinha dado.
Este firme crente em Cristo sofre o martírio no ano 1527.
Um jovem e inofensivo beneditino chamado Henry Forest,
acusado de falar respeitosamente do anterior Patrick Hamilton, foi lançado no
cárcere; ao confessar-se a um frade, reconheceu que considerava a Hamilton como
um homem bom, e que os artigos pelos que tinha sido sentenciado a morrer podiam
ser defendidos. Ao ser isto revelado pelo frade, foi admitido como prova, e o
coitado beneditino foi sentenciado a ser queimado.
Enquanto consultavam entre si acerca de como executá-lo, John
Lindsay, um dos cavalheiros do arcebispo, deu seu conselho de como queimar o
frade Forest em alguma adega subterrânea, porque, disse, "a fumaça de
Patrick Hamilton tem infestado a todos aqueles sobre os quais tem caído".
Este conselho foi aceito, e a pobre vítima morreu mas por asfixia que queimado.
Os seguintes em caírem vítimas por professar a verdade do
Evangelho foram David Stratton e Normam Gourlay.
Quando chegaram ao lugar fatal, ambos se ajoelharam, e oraram
durante algum tempo com grande fervor. Depois se levantaram e Stratton,
dirigindo-se aos espectadores, os exortou a deixar de lado seus conceitos
supersticiosos e idolátricos e a empregar seu tempo em buscar a verdadeira luz
do Evangelho. Teria falado mais, porém se viu impedido pelos oficiais
presentes.
Sua sentença foi executada, e ambos devolveram animadamente
suas almas ao Deus que as havia entregado a eles, esperando, pelos méritos do
grande Redentor, uma gloriosa ressurreição para a vida imortal. Sofreram no ano
1534.
Os martírios das duas pessoas mencionadas foram logo seguidos
pelo do senhor Tomás Forret, que durante um tempo considerável tinha sido o
decano da Igreja de Roma; dois ferreiros chamados Killor e Beverage; um
sacerdote chamado Duncan Smith, e um gentil-homem chamado Robert Forrester.
Todos eles foram queimados juntos, no monte do Castelo, em Edinburgo, o último
dia de fevereiro de 1538.
No ano seguinte do martírio dos já mencionados, isto é, em
1539, outros dois foram apreendidos por suspeita de heresia: Jerome Russell e
Alexander Kennedy, um jovem de uns dezoito anos de idade.
Estas duas pessoas, depois de terem sido interrogadas em
prisão durante um tempo, foram feitas comparecer ante o arcebispo para seu
interrogatório. No curso do mesmo, Russell, que era um homem muito inteligente,
arrazoou com erudição contra seus acusadores, enquanto estes empregavam contra
ele uma linguajem muito insultante.
Terminado o interrogatório, e considerados ambos como
hereges, o arcebispo pronunciou a terrível sentença de morte, e foram de
imediato entregues ao braço secular para sua execução.
No dia seguinte foram conduzidos ao lugar designado para seu
suplicio; de caminho para lá, Russell, ao ver que seu companheiro de
sofrimentos parecia mostrar temor no rosto, se dirigiu assim a ele:
"Irmão, não tema; maior é Aquele que está em nós que o que está no mundo.
A dor que deveremos sofrer é breve, e será suave; porém nosso gozo e consolação
nunca terão fim. Portanto, lutemos para entrar no gozo de nosso Amo e Salvador,
pelo mesmo caminho reto que Ele tomou antes de nós. A morte não nos pode fazer
dano, porque foi destruído por Ele, por Aquele por cuja causa vamos agora
sofrer".
Quando chegaram no lugar fatal, se ajoelharam ambos e oraram
por um tempo; depois disso foram acorrentados à estaca e se acendeu o fogo da
lenha, encomendando eles com resignação suas almas Àquele que as tinha dado a
eles, na plena esperança de uma recompensa eterna nas mansões celestiais.
Uma relação da vida, sofrimentos e morte de Sir George
Wishart, que foi estrangulado e depois queimado, na Escócia, por professar a
verdade do Evangelho
Por volta do ano de nosso Senhor de 1543 havia, na
Universidade de Cambridge, um mestre George Wishart, comumente chamado Mestre
George do Benet's College, homem de elevada estatura, careca, e com a cabeça
coberta por um boné francês da melhor qualidade; se julgava que era de caráter
melancólico por sua fisionomia; tinha o cabelo preto de longa barba, galhardo,
de boa reputação em seu país, a Escócia; cortes, humilde, amável e gentil;
amante de sua profissão de mestre, desejoso de aprender, e tendo viajado muito;
se vestia com umas roupas até os pés, uma capa preta e meias pretas, tecido
rústico branco para a camisa, e bandas brancas e abotoaduras nos punhos.
Era homem modesto, temperado, temeroso de Deus, aborrecedor
da cobiça; sua caridade nunca acabava, nem de noite nem de dia; pulava uma de
cada três comidas, um dia de cada quatro em geral, exceto por algo para
fortalecer o corpo. Dormia num saco de palha e com rústicos lençóis novos que,
quando trocava, dava a outrem. Ao lado de sua cama tinha uma banheira, na qual
(quando os estudantes estavam já dormidos, e as luzes apagadas e tudo em
silêncio), costumava tomar banho. Ele tinha-me grande afeição, e eu por ele.
Ensinava com grande modéstia e gravidade, de mofo que alguns de seus estudantes
o consideravam severo, e teriam desejado matá-lo; porém o Senhor era sua
defesa. E ele, depois de uma devida correção pela malícia deles, os emendava
com uma boa exortação, e ia embora. Ah, se o Senhor o tivesse deixado a mim,
seu pobre menino, para terminar o que tinha começado! Porque foi a Escócia com
vários da nobreza que vieram para formular um tratado com o rei Henrique.
Em 1543, o arcebispo de St. Andrews fez uma visita em várias
partes da diocese, durante a qual se denunciaram a várias pessoas em Perth, por
heresia. Entre estas, as seguintes foram condenadas a morte: William Anderson,
Robert Lamb, James Finlayson, James Hunter, James Raveleson y Helen Stark.
As acusações contra estas pessoas foram, respectivamente: as
primeiras quatro estavam acusadas de terem pendurado a imagem de são Francisco,
cravando chifres de carneiro em sua cabeça, e de fixar uma cauda de vaca a seu
traseiro; mas a razão principal de sua condena foi por ter-se permitido comer
um ganso em dia de jejum.
James Ravelson foi acusado de ter enfeitado sua casa com a
diadema triplamente coroada de são Pedro, talhada em madeira, o que o arcebispo
considerou um escárnio de seu capelo cardinalício.
Helen Stark foi acusada de não ter tido o costume de orar à
Virgem Maria, muito especialmente durante o tempo em que acabava de dar a luz.
Todos foram achados culpáveis destes delitos dos quais eram
acusados, e de imediato foram sentenciados a morte; os quatro homens à forca,
por comerem o ganso; James Raveleson a ser queimado; e a mulher, que acabava de
dar a luz um bebê e o criava, a ser metida num saco e afogada.
Os quatro com a mulher e o bebê, foram mortos no mesmo dia,
porém James Raveleson não foi executado senão alguns dias depois.
Os mártires foram conduzidos por um grande bando de homens
armados (porque temiam uma rebelião na cidade, o que teria podido acontecer se
os homens não tivessem estado na guerra) até o lugar da execução, que era o
comum para os ladrões, e isto para fazer parecer sua causa mais odiosa ante o
povo. Todos se consolavam uns aos outros, e se asseguravam que jantariam juntos
no Reino dos Céus naquela noite; se encomendaram a Deus, e morreram com
constância no Senhor.
A mulher desejava ansiosamente morrer com seu marido, mas não
lhe foi permitido; contudo, seguindo-o até o lugar da execução, lhe deu
consolo, exortando-o à perseverança e paciência por causa de Cristo, e
despedindo-se dele com um beijo, lhe disse: "Esposo, regozija-te, porque
temos vivido juntos durante muitos dias gozosos; mas neste dia no qual devemos
morrer deveria ser-nos ainda mais gozoso, pois teremos alegria para sempre; por
isso, não te direi senão até logo, porque nos encontraremos de repente com gozo
no Reino dos Céus". Depois disto, a mulher foi levada para ser afogada, e
ainda que tinha um bebê mamando em seu peito, isto não moveu para nada a
compaixão os implacáveis corações dos inimigos. Assim, depois de ter
encomendado seus outros filhos aos vizinhos da cidade por causa de Deus, e que
o pequeno bebê fosse entregue a uma aia, ela selou a verdade com sua morte.
Desejoso de propagar o verdadeiro Evangelho em seu próprio
país, George Wishart deixou Cambridge em 1544 e ao chegar na Escócia predicou
primeiro em Montrose, e depois em Dundee. Neste último lugar fez uma exposição
pública da Epístola aos Romanos, que fez com tanta unção e liberdade que
alarmou enormemente os papistas.
Como conseqüência disso (por instigação do cardeal Beaton,
arcebispo de St. Andrews), um tal Robert Miln, homem principal em Dundee, foi
até a igreja onde predicava Wishart, e em meio do discurso lhe disse para não
perturbar mais a cidade, porque estava decidido a não admiti-lo.
Este repentino desaire surpreendeu enormemente a Wishart,
quem, depois de uma breve pausa, olhando dolorido a quem lhe falava e a sua
audiência, disse: "Deus me é testemunha de que jamais tenho tentado
perturbar, senão confortar; sim, vossa turbação me dói mais a mim que a vós
outros mesmos; mas estou certo de que o negação da Palavra de Deus e a expulsão
de Seu mensageiro não vos preservará de turbação, senão que vo-la atrairá;
porque Deus vos enviará ministros que não temerão nem o fogo nem o desterro. Eu
vos ofereci a Palavra de salvação. Com perigo de minha vida tenho permanecido
entre vós. Agora vós mesmos me rejeitais; mas devo declarar minha inocência diante
de Deus: se tendes longa prosperidade, não sou guiado pelo Espírito da
verdade;porém se caírem sobre vós perturbações não procuradas, reconhecei a
causa e voltai-vos a Deus, que é clemente e misericordioso. Contudo, se não
voltardes na primeira advertência, Ele vos visitará com fogo e espada". Ao
terminar este discurso, saiu do púlpito e se retirou.
Depois disto foi ao Oeste da Escócia, onde predicou a Palavra
de Deus e foi bem acolhido por muitos.
Pouco tempo depois disto, o senhor Wishart recebeu notícias
de que se havia desatado uma praga em Dundee. Começou quatro dias depois que
lhe for proibido predicar lá, e foi tão violenta que era quase incrível quantos
morreram no espaço de vinte e quatro horas. Ao ser-lhe isto relatado, apesar da
insistência de seus amigos por detê-lo, decidiu voltar lá, dizendo: "Agora
estão turbados e necessitam de consolo. Talvez a mão de Deus os faca agora
exaltar e reverenciar a Palavra de Deus, que antes estimaram em pouco".
Em Dundee foi recebido gozosamente pelos piedosos. Escolheu a
porta oriental como lugar de predicação, de maneira que os sãos estavam dentro,
e os doentes fora da porta. Tomou este texto como o tema de seu sermão:
"Enviou a sua palavra, e os sarou...", etc. Em seu sermão
se estendeu principalmente na vantagem e a consolação da Palavra de Deus, nos
juízos que sobrevêm pelo menosprezo ou rechaço da mesma, a liberdade da graça
de Deus para com todo seu povo, e a felicidade de seus escolhidos, aos quais
Ele mesmo tira deste mundo miserável. Os corações dos ouvintes se elevaram
tanto ante a força divina deste discurso que vieram a não considerar a morte
com temor, senão a ter por ditosos os que seriam então chamados, não sabendo se
voltaria ele a ter tal consolação para com eles.
Depois disto, a peste amainou, ainda que, no meio dela,
Wishart visitava constantemente os que jaziam na hora fatal, e os consolava com
exortações.
Quando se despediu da gente de Dundee, lhes disse que Deus
quase tinha dado fim àquela peste, e que agora ele era chamado a outro lugar.
Foi dali a Montrose, onde predicou algumas vezes, porém passou a maior parte de
seu tempo em meditação privada e oração.
Se diz que antes de sair de Dundee, e enquanto estava
dedicado à obra de amor para com os corpos e as almas daquelas coitadas pessoas
aflitas, o cardeal Beaton induziu a um sacerdote papista fanático, chamado John
Weighton, para que o matasse, e esta tentativa foi como se segue: um dia,
depois que Wishart houve acabado um sermão e a gente tinha id embora, um
sacerdote permaneceu em pé esperando ao pé das escadas, com uma adaga
desembainhada em sua mão sob sua batina de padre. Mas o senhor Wishart, que
tinha o olhar sagaz e penetrante, vendo o sacerdote enquanto descia do púlpito,
lhe disse: "Meu amigo, o que você deseja?", e de imediato,
aferrando-lhe a mão, lhe tirou a adaga. O sacerdote, aterrado, caiu de joelhos,
confessou suas intenções, e lhe rogou perdão. A notícia correu e, chegando a
ouvidos dos doentes, estes disseram: "Dai-nos o traidor, ou o tomaremos à
força", e se lançaram sobre a porta. Porém Wishart, tomando o sacerdote em
seus braços, lhes disse: "Quem lhe fizer dano, me fará dano a mim, porque
não me tem feito mal algum, senão um grande bem, ensinando-me a ser mais
prudente no futuro". Com esta conduta, apaziguou o povo, e salvou a vida
do malvado sacerdote.
Pouco depois de voltar a Montrose, o cardeal de novo
conspirou contra sua vida, fazendo-lhe enviar uma carta como procedente de um
amigo íntimo, o senhor de Kennier, na que se pedia que acudisse a vê-lo com
toda pressa, pois tinha caído numa repentina doença. Enquanto isso, o cardeal
tinha apostado sessenta homens armados emboscados a uns dois quilômetros de
Montrose, para assassiná-lo quando passasse por ali.
A carta foi entregue em mão de Wishart por um rapaz, que também
lhe trouxe um cavalo para a viagem. Wishart, acompanhado por alguns homens
honrados, amigos seus, empreendeu a viagem, mas vindo-lhe qualquer coisa à
mente enquanto ia de caminho, voltou-se. Seus amigos se assombraram, e lhe
perguntaram qual era a causa de seu proceder, ao qual ele respondeu: "Não
irei; Deus mo proíbe; estou certo de que é uma traição. Que alguns passem a
frente, e me digam o que encontram". Fazendo-o, descobriram a armadilha, e
voltando a toda pressa, o disseram ao senhor Wishart; este disse, então:
"Sei que acabarei minha vida nas mãos deste homem sanguinário, porém não
assim".
Pouco tempo depois saiu de Montrose e passou a Edimburgo,
para propagar o Evangelho naquela cidade. no caminho se alojou com um fiel
irmão, chamado James Watson de Inner-Goury. Em meio da noite se levantou e saiu
no pátio, e ouvindo-o dois homens, o seguiram com grande sigilo. No pátio ficou
de joelhos, e orou com o maior fervor, depois do qual se levantou e voltou à
cama. Seus acompanhantes, aparentando não saber nada, acudiram e lhe
perguntaram onde tinha estado, mas não quis responde-lhes. No dia seguinte o
importunaram para que contasse a eles, dizendo: "Seja franco conosco,
porque ouvimos seus lamentos e vimos seus gestos".
A isto ele disse, com roto abatido: "Tomara que não
tivésseis saído de vossas camas". Mas insistindo eles por saber algo, lhes
disse: "Vou dizer-vos; estou certo de que minha batalha está perto de seu
fim, e por isso oro a Deus para que fique comigo, e que eu não me acobarde
quando a batalha ruja com maior força".
Pouco depois, ao saber o cardeal Beaton, arcebispo de St.
Andrews, que o senhor Wishart estava na casa do senhor Cockburn, de Ormiston,
em East Lothian, pediu ao regente que o fizesse apreender. A isto acedeu o
regente, após muita insistência e muito em contra de sua vontade.
Como conseqüência disto, o cardeal procedeu de imediato a
julgar a Wishart, apresentando-se não menos de dezoito artigos de acusação em
sua contra. O senhor Wishart respondeu aos respectivos artigos com tal coerência
de mente e de uma forma tão erudita e clara que surpreendeu em grande medida
aos presentes.
Acabado o interrogatório, o arcebispo tentou convencer o
senhor Wishart para que se desdissesse; porém esse estava demasiado firme e
arraigado em seus princípios religiosos e demasiado iluminado pela verdade do
Evangelho para que não o pudessem mover no mais mínimo.
Na manhã da execução lhe vieram dois frades de parte do
cardeal; um deles o vestiu de uma túnica de linho preto, e o outro trazia
várias sacolinhas de pólvora, que lhe amarraram em diferentes partes do corpo.
Tão logo como chegaram á pira, o verdugo lhe colocou uma
corda em volta do pescoço e uma corrente na cintura, com o qual ele se pôs de
joelhos, exclamando: "Oh, Salvador do mundo, tem misericórdia de mim! Pai
do céu, em tuas santas mãos encomendo meu espírito!"
Depois disto orou por seus acusadores, dizendo:
"Rogo-te, Pai celestial, perdoa os que, por ignorância ou por mente
perversa, têm forjado mentiras contra mim, os perdôo de todo coração. Rogo a
Cristo que perdoe a todos os que ignorantemente me condenaram".
Foi então acorrentado à estaca, e ao acender-se a lenha,
acendeu de imediato a pólvora que tinha amarrada por seu corpo, que explodiu
numa conflagração de chamas e fumaça.
O governador do castelo, que estava tão perto que ficou
chamuscado pela labareda, exortou ao mártir, em poucas palavras, a ter bom
ânimo e pedir a Deus perdão por suas culpas. Ao qual ele respondeu: "Esta
chama faz sofrer meu corpo, certamente, mão não tem quebrantado meu espírito.
Mas o que agora me olhar de forma tão soberba desde seu exaltado trono (disse,
indicando o cardeal) será, antes que transcorra muito tempo, lançado
ignominiosamente, embora agora se folgue orgulhosamente de seu poder".
Esta predição foi cumprida pouco depois.
O carrasco, que devia atormentá-lo, ficou de joelhos e lhe
disse: "Senhor, rogo-vos que me perdoeis, porque não sou culpável de vossa
morte". E ele lhe disse: "Vem aqui". Quando se aproximou dele, o
beijou na face, e lhe disse: "Isto é uma mostra de que te perdôo. De
coração, cumpre com teu ofício". E então foi colocado no patíbulo,
pendurado e reduzido a cinzas. Quando a gente viu aquele grande suplício, não
puderam reprimir algumas lastimosas lamentações e queixas pela matança daquele
homem inocente.
Não se passou muito tempo após o martírio deste
bem-aventurado homem de Deus, o Mestre George Wishart, que foi morto por David
Beaton, o sanguinário arcebispo e cardeal da Escócia, o 1 de março de 1546, que
o mencionado David Beaton, por justa retribuição divina, foi morto em seu
próprio castelo de St. Andrews a mãos de um homem chamado Leslie e outros
cavalheiros que, movidos por Deus, se lançaram de súbito sobre ele no último
dia de maio daquele mesmo ano, enquanto ele estava na cama e berrava: "Aí,
aí, não me mateis! Sou um sacerdote!". Assim como carniceiro viveu e como
carniceiro morreu, e esteve sete meses e mais insepulto, e no final foi lançado
como podridão num estercoleiro.
O último em sofrer martírio na Escócia por causa de Cristo
foi um homem chamado Walter Mill, que foi queimado em Edinburgo, no ano 1558.
Este homem tinha viajado por Alemanha em seus anos moços, e
ao voltar, designado sacerdote da igreja de Lunan em Angus mas, por uma
denuncia de heresia, em tempos do cardeal Beaton, foi obrigado a abandonar seu
posto e ocultar-se. Sem embargo, logo foi descoberto e apresado.
Interrogado por Sir Andrew Oliphant acerca de se iria
reatratar-se de suas opiniões, respondeu em sentido negativo, dizendo que
"antes perderia dez mil vidas que ceder uma partícula daqueles celestiais
princípios que tinha recebido pela palavra de seu bendito Redentor".
Como conseqüência disto, se pronunciou de imediato sua
sentença de morte, e foi levado ao cárcere para ser executado no dia seguinte.
Este corajoso crente em Cristo tinha oitenta e dois anos, e
estava sumamente debilitado, pelo que se supunha que apenas seria ouvido.
Contudo, quando foi conduzido ao lugar da execução, expressou suas crenças
religiosas com tal valor e ao mesmo tempo com tal coerência lógica que deixou
atônitos até a seus inimigos. Tão logo como se viu amarrado à estaca e a lenha foi
acesa, se dirigiu assim aos espectadores: "A causa pela que sofro hoje não
é nenhum crime (embora me reconheço um mísero pecador), senão somente sofro pela
defesa da verdade segundo está em Jesus Cristo; e louvo ao Deus que tem me
chamado, por Sua misericórdia, a selar a verdade com minha vida; a qual, assim
como antes a recebi dEle, a entrego voluntária e gozosamente para Sua glória.
Por isso, se quiserdes escapar à condição eterna, não vos deixeis seduzir mais
pelas mentiras da sede do Anticristo: dependei somente de Jesus Cristo e de Sua
misericórdia, e podereis ser liberados da condenação". Depois agregou que
esperava ser o último em sofrer a morte na Escócia por causa da religião.
Assim entregou este piedoso cristão animadamente sua vida em
defesa da verdade do Evangelho de Cristo, com a certeza de que seria feito
participe de Seu reinado celestial.
JOSÉ MATEUS
zemateus@msn.com