A prematura morte do célebre e jovem monarca Eduardo IV
causou acontecimentos do mais extraordinários e terríveis que jamais tiveram
lugar desde os tempos da encarnação de nosso bendito Senhor e Salvador em forma
humana. Este triste acontecimento se converteu logo em tema de geral
lamentação. A sucessão ao trono britânico chegou a ser objeto de disputa, e as
cenas que se sucederam foram uma demonstração da séria aflição na que estava
envolvido o reino. Conforme foram desenvolvendo-se mais e mais as conseqüências
desta perda para a nação, a lembrança de seu governo veio a ser mais e mais um
motivo de gratidão generalizada. A terrível expectativa que em seguida se
apresentou aos amigos da administração de Eduardo, sob a direção de seus conselheiros
e servos, veio a ser algo que as mentes reflexivas se viram obrigadas a
contemplar com a mais alarmada apreensão. A rápida aproximação que se fez a uma
total inversão das atuações do reinado do jovem rei mostrava os avanços que
deste modo iam rumo a uma resolução total na direção das questões públicas
tanto na Igreja como no estado.
Alarmados pela condição na que provavelmente ficaria
implicado o reino pela morte do rei, a tentativa por impedir as conseqüências,
que se viam sobrevir com muita claridade, produziu os mais sérios e fatais
efeitos. O rei, em sua longa e prolongada doença, foi induzido a fazer
testamento, no qual outorgava a coroa inglesa a Lady Jane, filha do duque de
Suffolk, quem estava casada com LordeGuilford, filho do duque de Northumberland,
e que era neta da segunda irmã do rei Henrique, casada com Carlos, duque de
Suffolk. Por este testamento se passou por alto a sucessão de Maria e
Elizabete, suas duas irmãs, pelo temor à volta ao sistema do papado; e o
conselho do rei, com os chefes da nobreza, o alcaide maior da cidade de
Londres, e quase todos os juízes e os principais legisladores do reino,
assinaram seus nomes neste documento, como sanção a esta medida. O
Lordeprincipal da Justiça, embora um verdadeiro protestante e reto juiz, foi o
único em negar-se a colocar seu nome em favor de Lady Jane, porque já havia
expressado sua opinião de que Maria tinha direito de tomar as rédeas do
governo. Outros objetavam que Maria fosse colocada no trono, pelos temores que
tinham de que pudesse casar com um estrangeiro, e com isso pôr a coroa em
considerável perigo. Também a parcialidade que ela demonstrava em favor do
papismo deixava bem poucas dúvidas nas mentes de muitos de que seria induzida a
reavivar os interesses do Papa e a mudar a religião que tinha sido usada nos
dias de seu pai, o rei Henrique, como nos de seu irmão Eduardo; porque durante
todo este tempo tinha ela manifestado uma grande teimosia e inflexibilidade,
como será evidente em base à carta que enviou aos lorde s do conselho, pela
qual apresentou seus direitos à coroa após a morte de seu irmão.
Quando esta teve lugar, os nobres, que se haviam associado
para impedir a sucessão de Maria, e que tinham sido instrumentos em promover e
talvez aconselhar as medidas de Eduardo, passaram rapidamente a proclamar a
Lady Jane Gray como rainha da Inglaterra, na cidade de Londres e em várias
outras cidades populosas do reino. Embora era jovem, possuía talentos de
natureza superior, e seu aproveitamento sob um mui excelente tutor tinha-lhe dado
grandes vantagens.
Seu reinado durou somente cinco dias, porque Maria,
conseguindo a coroa por meio de falsas promessas, empreendeu rapidamente a
execução de suas expressas intenções de extirpar e queimar a cada protestante.
Foi coroada em Westminster da maneira usual, e sua ascensão foi o sinal para o
início da sangrenta perseguição que teve lugar.
Tendo obtido a espada da autoridade, não foi remissa a
empregá-la. Os partidários de lady Jane Gray estavam destinados a sentir sua
força. O duque de Northumberland foi o primeiro em experimentar seu selvagem
ressentimento. Depois de um mês de encerro na Torre foi condenado, e levado ao
cadafalso para sofrer como traidor. Devido à variedade de seus crimes
provocados por uma sórdida e desmesurada ambição, morreu sem que ninguém se
compadecesse dele nem o lamentasse.
As mudanças que se sucederam com toda celeridade declararam
de maneira inequívoca que a rainha era pouco afeiçoada ao atual estado da
religião. O doutor Poynet foi afastado para dar lugar a Gardiner como bispo de
Winchester, o qual recebeu também o importante posto de LordeChanceler. O
doutor Ridley foi expulso da sede de Londres, e Bonne colocado em seu lugar. J.
Story foi banido do bispado de Chichester, para pôr ali o doutor Day. J. Hooper
foi enviado predo a Fleet, e o doutor Heath instalado na sede de Worcester.
Miles Coverdale foi também efastado de Exeter, e o doutor Vesie tomou seu lugar
naquela diocese. O doutor Tonstail foi também ascendido à sede de Durham. Ao
observar-se e indicar-se estas modificações, foram oprimindo-se e turbando-se
mais e mais os corações dos bons homens; mas os malvados se regozijavam. Aos
mentirosos tanto dava como fosse a questão; mas àqueles cujas consciências
estavam ligadas à verdade perceberam como se acendiam as fogueiras que depois
deveriam servir para destruição de tantos verdadeiros cristãos.
As palavras e a conduta de lady Jane Gray no cadafalso
A seguinte vítima foi a gentil lady Jane Gray, que, por sua
aceitação da coroa ante as insistentes petições de seus amigos, incorreu no
implacável ressentimento de Maria. Ao subir no cadafalso, se dirigiu com estas
palavras aos espectadores: "Boa gente, vim aqui para morrer, e por uma lei
tenho sido condenada a isso. O fato contra a majestade da rainha era ilegítimo,
e que eu acedesse a isso; porém acerca da tomada de decisão e o desejo do mesmo
por minha parte ou em meu favor, me lavou neste dias as mãos em minha inocência
diante de Deus e diante de vós, boa gente cristã". E fez então o movimento
de esfregar-se as mãos, nas que tinha seu livro. Depois disse: "Peço-vos a
todos, boa gente cristã, que me sejais testemunhas de que morro como boa
cristã, e que espero ser salva somente pela misericórdia de Deus no sangue de
seu único Filho Jesus Cristo, e não por nenhum outro médio; e confesso que
quando conheci a Palavra de Deus a descuidei, amando-me a mim mesma e ao mundo,
e por isso felizmente e com merecimento me sobreveio esta praga e castigo;
porém dou graças a Deus que em sua bondade me deu desta maneira tempo e descanso
para arrepender-me. E agora, boa gente, enquanto estou viva, rogo-vos que me
auxilieis com vossas orações". Depois, ajoelhando-se, se dirigiu a
Feckenham, dizendo-lhe: "Direi este Salmo?", e ele disse:
"SIM". Então pronunciou o Salmo Miserere meu Deus em ingles, da forma
mais devota até o final; depois se levantou, e deu a sua dama, a senhora Ellen,
suas luvas e seu lenço, e seu livro ao senhor Bruges; depois desamarrou seu
vestido, e o carrasco se aproximou para ajudá-la a tirá-lo; mas ela, pedindo-lhe
que a deixasse sozinha, se voltou para suas duas damas, que a ajudaram a
tirá-lo, e também lhe deram um bonito lenço com o qual vendar seus olhos.
Depois o carrasco se ajoelhou, e lhe pediu perdão, dando-o
ela bem disposta. Depois pediu-lhe que ficasse de pé sobre a palha, e ao
fazê-lo viu o talho. Então disse: "Rogo-te que acabes comigo
rapidamente". Depois se ajoelhou, dizendo: "Me decapitarás antes que
a estique?" E o verdugo disse: "Não, senhora". Então se vendou
os olhos, e tateando para achar o talho, disse: "Que vou fazer? Onde está,
onde está?". Um dos que ali estavam a conduziu, e ela pus a cabeça sobre o
talho, e depois disse: "Senhor, em tuas mãos encomendo meu espírito".
Assim acabou sua vida, no ano do Senhor de 1554, o 12 de fevereiro, tendo por
volta de dezessete anos.
Assim morreu lady Jane; e naquele mesmo dia foi decapitado
lorde Guilford, seu marido, um dos filhos do duque de Northumberland; eram dois
inocentes em comparação com aqueles que estavam sobre eles. Porque eram muito
jovens, e aceitaram ignorantemente aquilo que outros haviam tramado,
consentindo que por proclamação pública fosse arrebatado para outros o que lhes
fora dado a eles.
Acerca da condenação desta piedosa dama, deve lembrar-se que
o juiz Morgan, que pronunciou sentença contra ela, caiu louco depois de tê-la
condenado, e em seus delírios clamava continuamente que tiraram a lady Jane de
diante dele, e assim acabou sua vida.
O 21 do mesmo mês, Henrique, duque de Suffolk, foi decapitado
na Torre, o quarto dia depois de sua condena; naquele mesmo tempo muitos
cavalheiros e fidalgos foram condenados, dos quais alguns foram executados em
Londres, e outros em outros condados. Entre eles se encontrava lorde Tomás
Gray, irmão do duque de Suffolk, que foi apresado não muito tempo depois no
norte de Gales, e executado pela mesma causa. Sir Nicolas Throgmorton escapou
muito apressadamente.
John Rogers, vicário do Santo Sepulcro, e leitor de são Paulo
em Londres
John Rogers se educou em Cambridge, e foi depois muitos anos
capelão dos mercadores empurrados a Amberes, em Brabante. Ali conheceu o
célebre mártir William Tyndale, e a Miles Coverdale, ambos voluntariamente
exilados de seu país por sua aversão à superstição e idolatria papal. Eles
foram os instrumentos de sua conversão, e se uniu com eles na produção daquela
tradução da Bíblia ao inglês conhecida como a "Tradução de Tomás
Mathew". Pelas Escrituras soube que os votos ilegítimos podiam ser
legitimamente quebrantados; por isso se casou e se dirigiu a Wittenberg, na Saxônia,
para aumentar seus conhecimentos; ali aprendeu a língua alemã, e recebeu o
encargo de uma congregação, cargo que desempenhou fielmente durante muitos
anos. ao aceder o rei Eduardo ao trono, se foi a Saxônia para impulsionar a
obra da Reforma na Inglaterra. Após um tempo, Nicolas Ridley, que era então o
bispo de Londres, o fez canônigo da catedral de são Paulo, e o decano e o
capítulo o designaram leitor da lição de teologia. Ali continuou até o Ascenso
ao trono da rainha Maria, quando foram desterrados o Evangelho e a verdadeira
religião, e introduzido o Anticristo de Roma, com sua superstição e idolatria.
A circunstância pela qual o senhor Rogers predicou em Paul's
Cross depois que a rainha Maria chegasse à Torre, já foi relatada. Confirmou
ele em seus sermões a doutrina ensinada na época do rei Eduardo, exortando o
povo a guardar-se da abominação do papismo, da idolatria e da superstição. Por
esta razão foi chamado a dar conta, mas se defendeu de maneira tão capaz que
foi pelo momento libertado. Mas a proclamação da rainha proibindo a verdadeira
predicação deu a seus inimigos um novo pretexto contra ele. Por isso, foi
chamado de novo ante o conselho, e se ordenou seu arresto domiciliário. Ficou
então em sua casa, embora houvesse podido escapar e foi quando viu que o estado
da verdadeira religião era desesperado. Sabia que não lhe faltaria um salário
na Alemanha; e não podia esquecer sua mulher nem seus dez filhos, nem deixar de
tentar obter os meios para suprir suas necessidades. Mas todas estas coisas
foram insuficientes para induzi-lo a ir embora, e, quando foi chamado a
responder a causa de Cristo, a defendeu firmemente, e pus sua vida em perigo
por esta causa.
Depois de um longo encarceramento em sua própria casa, o
agitado Bonner, bispo de Londres, o fez encerrar em Newgate, lançando-o em
companhia de ladrões e assassinos.
Depois que o senhor Rogers tiver sofrido um estrito
encarceramento durante um longo tempo, entre ladrões, e tendo sofrido muitos
interrogatórios e um tratamento muito pouco caritativo, foi finalmente
condenado da forma mais injusta e cruel por Stephen Gardiner, bispo de
Winchester, o 4 de fevereiro de 1555. Uma segunda-feira pela manhã, foi
repentinamente advertido pelo guarda de Newgate que se preparasse para a
fogueira. Estava profundamente dormido, e lhes deu muito trabalho acordá-lo. ao
final, desperto e levantado, ao ser apressado, disse: "Se é assim, não há
necessidade de amarrar-me os sapatos". Assim o levaram, primeiro ao bispo
Bonner, para que o degradasse. Feito isto, lhe fez um único pedido ao bispo
Bonner, e este lhe perguntou de que se tratava. O senhor Rogers lhe pediu para
falar um breve tempo com sua mulher antes de ser queimado; porém o bispo se
negou.
Quando chegou o momento de ser levado de Newgate a
Smithfield, onde seria executado, um xerife chamado Woodroofe se aproximou do
senhor Rogers e lhe perguntou se queria desdizer-se de sua abominável doutrina
e da má opinião acerca do Sacramento do altar. O senhor Rogers respondeu:
"O que tenho predicado o selarei com meu sangue". Então Woodroofe lhe
disse: "Tu és um herege". "Isto se saberá", replicou o
senhor Rogers "no Dia do Juízo". "Bem", disse Woodroofe,
"nunca orarei por ti". "Porém eu sim orarei por ti",
disse-lhe o senhor Rogers; assim foi tirado naquele mesmo dia, o 4 de fevereiro,
e levado pelos xerifes até Smithfield, dizendo pelo caminho o Salmo Miserere, e
deixando o povo surpreendido com sua inteireza, dando louvores a Deus e
gratidão por tudo. Ali, em presença do senhor Rochester, controlador da Casa da
Rainha, de Sir Richard Sothwell, ambos xerifes e uma grande multidão, foi
reduzido a cinzas, lavando-se as mãos na chama enquanto ardia. Pouco antes de
ser queimado lhe trouxeram o indulto, caso se desdissesse; mas negou-se de
forma total. Ele foi o primeiro mártir de toda a bendita companhia que sofreu
em tempos da Rainha Maria. Sua mulher e filhos, onze em total, dez que podiam
caminho e um bebê de peito, foram vê-lo no caminho, enquanto se dirigia a
Smithfield. O triste espetáculo de ver sua própria carne e sangue não o moveu,
contudo, a debilidade, senão que aceitou sua morte com constância e ânimo, em
defesa e na batalha do Evangelho de Cristo.
O reverendo Lawrence Saunders
O senhor Saunders, depois de passar algum tempo na escola de
Eaton, foi escolhido para ir ao King's College, em Cambridge, onde permaneceu
durante três anos, crescendo em conhecimentos e aprendendo muito por aquele
breve espaço de tempo. Pouco depois saiu da universidade e voltou à casa de
seus pais, mas logo voltou a Cambridge para seguir estudando, e começou a
agregar ao conhecimento do latim o estudo das línguas gregas e hebraica, e se
deu ao estudo das Sagradas Escrituras, para capacitar-se melhor para o ofício
de predicador.
A começo do reinado de Eduardo, quando foi introduzida a
verdadeira religião de Deus, depois de obter licença começou a predicar, e foi
tão do agrado dos que então tinham autoridade, que o designaram para ler um
conferencia de teologia no College de Fothringham. Ao dissolver-se o College de
Fothringham, foi designado como leitor da catedral em Litchfield. Depois de um
certo tempo, saiu daí com uma prebenda em Leicestershire chamada
Church-Langton, onde teve residência, ensinou com diligência, e manteve casa
aberta. Dali foi chamado a tomar uma prebenda na cidade de Londres chamada
Todos Santos, em Bread Street. Depois disso predicou em Northhampton, nunca
misturando-se com o estado, más pronunciando-se abertamente sua consciência
contra os papistas que podiam logo voltar a levantar cabeça na Inglaterra, como
uma justa peste pelo escasso amor que mostrava a nação inglesa então pela
bendita Palavra de Deus, que tinha-lhes sido oferecida de forma tão abundante.
O partido da rainha se encontrava ali, e ao ouvi-lo se
sentiram ofendidos por seu sermão por isso o levaram preso. Mas em parte por
seu amor a seus irmão e amigos, que eram os principais agentes da rainha entre
eles, e em parte porque não tinha quebrantado lei alguma com sua predicação, o
deixaram ir.
Alguns de seus amigos, ao ver aquelas terríveis ameaças, lhe
aconselharam que fugisse do reino, o que ele recusar a fazer. Mas ao ver que
seria privado por meios violentos de fazer o bem naquele lugar, voltou a
Londres a visitar sua grei.
Na tarde do domingo 15 de outubro de 1554, enquanto lia em
sua igreja para exortar a seu povo, o bispo de Londres o interrompeu, enviando
um xerife para levá-lo.
Disse o bispo que em sua caridade se comprazia em deixar
passar sua traição e sedição por enquanto, mas que estava disposto a demonstrar
que era herege ele e todos os que ensinavam que a administração dos Sacramentos
e todas as ordens da Igreja são mais puros quanto mais se aproximam à ordem da
Igreja primitiva.
Depois de uma longa conversação acerca desta questão, o bispo
lhe pediu que escrevesse o que acreditava acerca da transubstanciação. Lawrence
Saunders o fez, dizendo: "Meu senhor, vós buscais meu sangue, e o tereis;
rogo a Deus que sejais batizado nele de modo tal que desde então abomineis o
derramamento de sangue e vireis um homem melhor". Acusado de contumácia,
as severas réplicas do senhor Saunders ao bispo (que em épocas passadas, para
obter o favor de Henrique VIII havia escrito e feito imprimir um livro de
verdadeira obediência, no qual havia declarado abertamente que Maria era uma
bastarda), o irritaram de tal modo que exclamou: "Levai este frenético
insensato à prisão".
Depois deste bom e fiel mártir passou encarcerado um ano e
três meses, os bispos finalmente o chamaram, a ele e a seus companheiros de
prisão, para serem interrogados ante o conselho da rainha.
Acabado seu interrogatório, os oficiais o tiraram do lugar, e
ficaram fora até que o resto de seus companheiros fossem igualmente
interrogados, para levá-los a todos junto de novo ao cárcere.
Depois de sua excomunhão e entrega ao braço secular, foi
levado pelo xerife de Londres ao Compter, um cárcere em sua própria paróquia de
Bread Stree, com o qual se regozijou grandemente, porque ali encontrou um
companheiro de cárcere, o senhor Cardmaker, com quem teve muitas consoladoras
conversações cristãs; e porque quando saísse daquela prisão, como antes em seu
púlpito, poderia ter a oportunidade de predicar a seus fiéis. O 4 de fevereiro,
Bonner, bispo de Londres, acudiu à cela para degradá-lo; no dia seguinte, pela
manhã, o xerife de Londres o entregou a certos membros da guarda da rainha, que
tinham ordem de levá-lo à cidade de Coventry, para ali ser queimado.
Quando houveram chegado em Coventry, um coitado sapateiro que
costumava servi-lo com sapatos, acudiu a ele e lhe disse: "Oh, meu bom
senhor, que Deus lhe fortaleça e console". "bom sapateiro", lhe
respondeu o senhor Saunders, "te peço que orem por mim, porque sou o homem
mais inapropriado que jamais tenha sido designado para esta elevada missão;
porém meu Deus e Pai amante e cheio de graça é suficiente para fazer-me forte
como seja necessário". No dia seguinte, o 8 de fevereiro de 1555 foi
levado ao lugar da execução, no parque fora da cidade. Foi numa túnica velha e
camisa, descalço, e amiúde se prostrava em terra para orar. Quando chegaram
perto do lugar, o oficial designado para cuidar da execução disse ao senhor
Saunders que ele era um dos que faziam mal ao reino da rainha, porém que se
retratasse haveria perdão para ele. "Não serei eu", respondeu o santo
mártir, "senão vós outros os que fazeis dano ao reino. O que eu sustento é
o bendito Evangelho de Cristo; acredito nele, o ensinei, e jamais o
revogarei". Depois o senhor Saunders se dirigiu lentamente para o fogo, se
ajoelhou em terra e orou. Depois se levantou, abraçou a estaca e disse várias
vezes: "Bem-vinda, cruz de Cristo! Bem-vinda, vida eterna!".
Aplicaram então fogo á pira, e ele, abrumado pelas terríveis labaredas, caiu
dormido em braços do Senhor Jesus.
A história, encarceramento e interrogatório do senhor John
Hooper, bispo de Worcester e Gloucester
John Hooper, estudante e graduado da Universidade de Oxford,
sentiu-se tão movido com tão fervoroso desejo de amar e conhecer as Escrituras
que se viu obrigado a ir embora dali, e ficou em casa de Sir Tomás Arundel como
mordomo, até que Sir Tomás soube de suas opiniões e religião, que ele não
favorecia de modo algum, ainda que favorecesse cordialmente sua pessoa e
condição e anelasse ser seu amigo. O senhor Hooper teve agora a prudência de
abandonar a casa de Sir Tomás e foi a Paris, porém pouco tempo depois voltou
para Inglaterra, e foi acolhido pelo senhor Sentlow, até o momento em que de
novo foi fustigado e perseguido, com o que voltou a passar para a França, e às
terras altas da Alemanha; ali, entrando em contato com homens eruditos, recebeu
deles livre e afetuosa hospitalidade, tanto na Basiléia como especialmente em
Zurique, pelo senhor Bullinger, que foi especialmente amigo dele; ali também
casou com sua mulher, que era de Borgonha, e se aplicou diligentemente ao
estudo da língua hebraica.
No final, quando Deus teve o beneplácito de dar fim ao
sangrento tempo dos seis artigos e dar-nos o rei Eduardo para reinar sobre este
reino, com alguma paz e repouso para a Igreja, entre os muitos outros exilados
que voltaram à pátria se encontrava também o senhor Hooper, quem voltou
conscientemente, não para ausentar-se de novo, senão buscando o momento e a
oportunidade, oferecendo-se para impulsionar a obra do Senhor até os limites de
sua capacidade.
Quando o senhor Hooper se despediu do senhor Billinger e de
seus amigos em Zurique, se dirigiu de volta à Inglaterra no reinado do rei
Eduardo VI, e chegando a Londres, começou a predicar, a maioria dos dias duas
vezes, ou pelo menos uma vez por dia.
Em seus sermões, conforme seu costume, corrigia o pecado e
falava severamente Cintra a iniqüidade do mundo e os abusos corrompidos da
Igreja. O povo comparecia em grandes multidões e grupos a ouvir sua voz a
diário, como se fosse o som mais melodioso e a música da harpa de Orfeu, de
modo que às vezes, quando predicava, a igreja estava tão lotada que não cabia
nem uma agulha. Era fervoroso em seu ensino, eloqüente em sua palavra, perfeito
nas Escrituras, infatigável em sua tarefa, exemplar em sua vida.
Tendo predicado ante a majestade real, logo foi designado
bispo de Gloucester. Prosseguiu dois anos naquele cargo, e se comportou tão bem
que seus inimigos não puderam achar ocasião contra ele, e depois foi feito
bispo de Worcester.
O doutor Hooper cumpriu a função do mais solícito e vigilante
pastor por espaço de dois anos e algo a mais, enquanto o estado da religião, no
reinado do rei Eduardo, foi sadio e florescente.
Depois de ser sido citado a comparecer ante Bonner e o doutor
Heath, foi levado ao Conselho, acusado em falso de dever dinheiro à rainha, e
no ano seguinte, 1554, escreveu relato dos duros tratos recebidos durante um
confinamento de dezoito meses no Fleet, e depois de seu terceiro
interrogatório, o 28 de janeiro de 1555, em St. Mary Overy's, ele e o reverendo
Rogers foram levados ao Compter em Southwark, onde foram deixados até o dia
seguinte às nove da manhã, para ver se voltavam para trás. "Venha, irmão
Rogers", lhe disse o doutor Hooper, "devemos tomar esta questão por
nós, e começar a sermos assados nestas fogueiras?" "Sim,
doutor", disse o senhor Rogers, "pela graça de Deus". "Não
tenha dúvida alguma", respondeu o doutor Hooper "de que Deus nos dará
forças"; e o povo apludia tanto sua tenacidade que apenas se podiam
passar.
O 29 de janeiro, o bispo Hooper foi degradado e condenado, e
o reverendo senhor Rogers foi tratado de forma similar. Ao escurecer, o doutor
Hooper foi levado a Newgate pelo meio da cidade; ao passar muitas pessoas
saíram a suas portas com luzes, saudando-o e dando graças a Deus pela sua
constância. Durante os poucos dias que esteve em Newgate foi freqüentemente
visitado por Bonner e outros, mas sem êxito algum. Tal como Cristo foi tentado,
assim o tentaram a ele, e depois informaram maliciosamente que se havia
retratado. O lugar de seu martírio foi fixado em Gloucester, com o que se
regozijou muito, levantando ao olhos ao céu, e louvando a Deus que o enviava
entre aquela gente da qual era pastor, para confirmar ali com sua morte a
verdade que antes tinha-lhes ensinado.
O 7 de fevereiro chegou a Gloucester, por volta das cinco da
tarde, e se alojou na casa de um chamado Ingram. Depois de dormir um pouco, se
manteve em oração até a manhã; e o resto do dia o dedicou do mesmo modo à
oração, exceto um pouco de tempo nas comidas e quando conversava com aqueles
que o guarda gentilmente lhe permitia.
Sir Anthony Kingston, que antes tinha sido um bom amigo do
doutor Hooper, foi designado por uma carta da rainha para que presidisse a
execução. Tão logo como viu o bispo prorrompeu em lágrimas. Com entranháveis
rogos o exortou a viver. Certo é que a morte é amarga, e que a vida é
doce", lhe disse o bispo, "porém, ay! Considera que a morte vindoura
é mais amarga, e que a vida vindoura é mais doce".
Aquele mesmo dia um menino cego recebeu permissão para ser
conduzido à presença do doutor Hooper. Aquele mesmo menino tinha sofrido prisão
em Gloucester, não muito tempo antes, por confessar a verdade. "Ah, pobre
menino!", disse o bispo, "embora Deus tenha tirado a visão externa,
pela razão que Ele saberá melhor, contudo tem dotado tua alma com a visão do
conhecimento e da fé. Que Deus te dê graça para que ores a Ele continuamente,
para que não percas a visão, porque então estarias certamente cego de corpo e
alma".
Enquanto o alcaide esperava que se preparasse para a
execução, ele expressou sua total obediência, e somente pediu que fosse um fogo
rápido que desse fim a seus tormentos. Depois de levantar-se pela manhã, pediu
que não deixassem entrar ninguém em sua câmara, para poder ficas a sós até a
hora da execução.
Por volta das 8 da manhã do dia 9 de fevereiro de 1555 foi
tirado, e havia milhares de pessoas congregadas, porque era dia de mercado. A
todo o longo do caminho, tendo ordens estritas de não falar, e vendo o povo,
que se lamentava amargamente por ele, levantava seus olhos ao céu, e olhava
alegremente aos que conhecia; nunca o viram, durante todo o tempo que estivera
entre eles antes, com um semblante tão alegre e iluminado como naquela ocasião.
Quando chegou no lugar designado para a execução, contemplou sorridente a
estaca e os preparativos feitos para ele, perto do grande olmo diante do
colégio de sacerdotes, onde costumava predicar antes.
Agora, depois de ter entrado em oração, trouxeram uma caixa e
a colocaram sobre um banquinho. Na caixa estava o perdão da rainha se ele
voltava atrás. Ao vê-lo, exclamou: "Se amais minha alma, tirai isso
dali!" Ao ser tirada a caixa, disse lorde Chandois: Já vedes que não há
remédio; acabai com ele rapidamente".
Agora deram ordem para que se acendesse o fogo. Porém devido
a que não havia mais lenha verde que a que podiam trazer dois cavalos, não
acendeu rapidamente, e também se passou bastante tempo antes que acendessem as
canas sobre a lenha. No final acendeu o fogo em sua volta, mas havendo muito
vento naquele lugar, e sendo uma manhã glacial, afastava a chama a seu redor,
pelo que apenas foi tocado pelo fogo.
Após um tempo trouxeram lenha seca, e se acendeu um novo foco
com brasas (porque não havia já mais canas), e somente queimou a parte de
baixo, mas não tinha muita chama por acima, devido ao vento, embora lhe queimou
o cabelo e lhe abrasou um pouco a pele. Durante o tempo deste fogo, já desde a
primeira labareda, orou, dizendo mansamente, e não muito forte, como algum sem
dor: "Oh, Jesus, Filho de Davi, tem misericórdia de mim e recebe minha
alma!" Quando se houve apagado o segundo fogo, se esfregou ambos olhos com
as mãos, e olhando as pessoas, disse-lhe com voz calma e forte: "Pelo amor
de Deus, boa gente, colocai mais fogo!". Enquanto isso seus membros
inferiores ardiam, mais as brasas eram tão poucas que a chama somente chamuscava
suas partes superiores.
Acenderam o terceiro fogo após um tempo, que era mais intenso
que os outros dois. Neste fogo ele orou em alta voz: "Senhor Jesus, tem
misericórdia de mim! Senhor Jesus, recebe meu espírito!" E estas foram as
últimas vozes que se ouviram. Mas quando tinha a boca escurecida e sua língua
estava tão inchada que não podia falar, catacumba se moveram seus lábios até
ficarem encolhidos sobre as gengivas, e se batia no peito com suas mãos até que
um de seus braços se desprendeu, e depois continuou batendo com a outra,mas
enquanto saia gordura, sangue e água dos extremos dos dedos; finalmente, ao
renovar-se o fogo, desapareceram suas energias, e sua mão ficou fixa após bater
na corrente sobre seu peito. Depois, inclinando-se para a frente, entregou seu
espírito.
Assim permaneceu três quartos de hora ou mais no fogo. Como
um cordeiro, paciente, suportou esta atroz tortura, não mexendo-se nem para
atrás nem para nenhum lado, senão que morreu tão aprazivelmente como um bebê em
seu berço. E agora reina, não tenho dúvida, como bendito mártir nos gozos do
céu, preparados para os fiéis em Cristo desde antes da fundação do mundo, e
pela constância dos quais todos os cristãos devem louvar a Deus.
A vida e conduta do doutor Rowland Taylor de Hadley
O doutor Rowland Taylor, vigário de Hadley, em Suffolk, era
homem de eminente erudição, e tinha sido admitido ao grau de doutor de lei
civil e canônica.
Sua adesão aos princípios puros e incorruptos do cristianismo
o recomendaram ao favor e à amizade do doutor Cranmer, arcebispo de Canterbury,
com quem viveu muito tempo, até que por meio de seu interesse obteve o
vicariato de Hadley.
Não só sua palavra lhes predicava, senão que toda sua vida e
conversação era um exemplo de vida cristã não fingida e de verdadeira
santidade. Estava isento ed soberba; era humilde e gentil como uma criança, de
modo que ninguém era tão pobre que não pudesse recorrer a ele como a um pai,
com toda liberdade; e sua humildade não era infantil ou cobarde, senão que,
quando a ocasião o demandava e o lugar o requeria, era firme em repreender o
pecado e os pecadores. Ninguém era demasiado rico para que ele não fosse a
repreendê-lo claramente por suas faltas, com recriminações tão solenes e graves
como convinham a um bom clérigo e pastor. Era um homem disposto a fazer o bem a
todos; perdoava bem disposto a seus inimigos, e nunca tentou fazer dano algum e
ninguém.
Era, para os pobres que eram cegos, coxos, que estavam
doentes, deitados no leito da dor, ou que tinham muitos filhos, um verdadeiro
padre, um protetor solícito, e um provedor diligente, de forma que fez que os
fiéis fizessem um fundo geral para eles; e ele mesmo (além do alívio contínuo
que sempre encontravam em sua casa) dava uma porção digna a cada ano às
oferendas comuns. Sua mulher era também uma matrona honrada, discreta e sóbria,
e seus filhos, e seus filhos estavam bem educados, criados no temor de Deus e
numa boa instrução.
Era boa sal da terra, com um sadio mordente para as formas
corrompidas dos malvados; luz na casa de Deus, colocada num candeeiro para que
o imitassem e continuassem todos os homens bons.
Assim continuou este bom pastor entre sua grei, governando-os
e conduzindo-os através do deserto deste malvado mundo, todos os dias daquele
santo e inocente rei de abençoada memória, Eduardo VI. Porém a sua morte, e com
a ascensão da Rainha Maria ao trono, não escapou à negra nuvem que se abateu
também sobre os santos; porque dois membros de sua paróquia, um advogado
chamado Foster e um comerciante chamado Clark, guiados pelo cego zelo,
decidiram que se celebrasse a missa com todas suas formas de superstição, na
igreja paroquial de Hadley, na segunda-feira antes da Páscoa. O doutor Taylor,
entrando na igreja, o proibiu estritamente; porém Clarck expulsou o doutor fora
da igreja, celebrou a missa e imediatamente informou ao lorde chanceler, bispo
de Winchester, de sua conduta, o qual o chamou a comparecer e a dar resposta
das acusações que se faziam contra ele.
O doutor, ao receber o chamamento, se preparou bem disposto
para obedecê-lo, rejeitando o conselho de seus amigos para fugir ao outro lado
do mar. Quando Gardiner viu o doutor Taylor, o injuriou, segundo era seu
costume. O doutor Taylor escutou os insultos com paciência, e quando o bispo
lhe disse: "Como te atreves a olhar-me na cara? Não sabes quem sou
eu?", o doutor Taylor respondeu: "Vós sois Stephen Gardiner, bispo de
Winchester e lorde chanceler, mas somente sois um homem mortal. Contudo, se eu
devesse temer vossa senhoril aparência, por que não temeis vós a Deus, o Senhor
de todos nós? Com que rosto aparecereis ante o tribunal de Cristo, e
respondereis do juramento que fizestes primeiro ao rei Henrique VIII, e depois
a seu filho o rei Eduardo VI?"
Continuou sua longa conversação, na que o doutor Taylor falou
tão mesurada e severamente a seu antagonista que este exclamou: "Tu és um
blasfemo herege! Em verdade blasfemas contra o bendito Sacramento (e aqui tirou
o chapéu) e falas em contra da santa missa, que é constituída sacrifício pelos
vivos e os mortos!". Depois, o bispo o entregou ao tribunal real.
Quando o doutor Taylor chegou ali, encontrou o virtuoso e
diligente predicador da Palavra de Deus que era o senhor Bradford, o qual
igualmente deu graças a Deus por dar-lhe tão bom companheiro de prisão; e ambos
juntos louvaram a Deus, e persistiram em oração, em leitura, e em exortar-se
mutuamente.
Depois que o doutor Taylor esteve um tempo em cárcere, foi
citado para comparecer sob as arcadas da igreja de Bow.
Condenado, o doutor Taylor foi enviado a Clink, e os guardas
daquele cárcere receberam ordens de tratá-lo mal. Pela noite foi levado a
Poultry Compter.
Quando o doutor Taylor houve permanecido em Compter por volta
de uma semana, o 4 de fevereiro chegou Bonner para degradá-lo, levando consigo
ornamentos pertencentes à comédia da missa; porém o doutor recusou aqueles
disfarces, que finalmente lhe foram colocados pela força.
A noite depois de ser degradado, sua mulher o visitou com seu
servo John Hull e com seu filho Tomás, e pela bondade dos carcereiros puderam
jantar com ele.
Depois de jantar, andando adiante e atrás, deu graça a Deus
por sua graça, que lhe tinha dado a fortaleza para manter-se em sua santa
Palavra. Com lágrimas oraram juntos, e se beijaram. A seu filho Tomás lhe deu
um livro latino que continha os ditados notáveis dos antigos mártires, e no
final do mesmo escreveu seu testamento: "Digo a minha esposa e a meus
filhos: o Senhor me deu a vós outros, e o Senhor me tira de vós e a vós de mim.
Bendito seja o nome do Senhor! Acredito que são bem-aventurados os que morrem
pelo Senhor. Deus se cuida dos passarinhos, e conta os cabelos de nossas
cabeças. O encontrei a Ele mais fiel e favorável do que possa sê-lo nenhum pai
ou marido. Portanto, confiai nEle por meio dos méritos de nosso amado Senhor
Jesus Cristo; crede nEle, amai-o, temei-o e obedecei-o. orar a Ele, porque Ele
tem prometido ajudar. Não me considereis morto, porque certamente viverei e
nunca morrerei. Vou na frente, e vós me seguireis depois a nosso eterno
lar".
Pela manhã, o xerife de Londres e seus oficiais foram a
Compter às duas da madrugada, e levaram o doutor Taylor, e sem luz alguma o
conduziram a Woolsalk, uma pousada fora das muralhas, perto de Aldgate. A
mulher do doutor Taylor, que suspeitava que naquela noite levariam seu marido,
tinha ficado vigiando na entrada da igreja de St. Botolph, junto de Aldgate,
tendo suas duas filhas consigo, Elizabete, de treze anos (a qual, órfã de pai e
mãe tinha sido adotada pelo doutor Taylor desde os três anos de idade) e outra,
Maria, filha carnal do doutor Taylor.
Agora, quando o xerife e seu grupo chegaram frente à igreja
de St. Botolph, Elizabete gritou: "Pai querido! Mãe, mãe, ali estão
levando meu pai!" Então, a mulher gritou: "Rowland, Rowland, onde
estás?", porque era uma manhã sumamente escura, e não podiam ver-se bem
uns a outros. O doutor Taylor respondeu: "Querida esposa, estou
aqui", e se deteve. Os homens do xerife o teriam empurrado para obrigá-lo
a prosseguir o caminho, porém o xerife disse: "Detende-vos um pouco,
senhores, rogo-vos, e deixai-o falar com sua mulher". Então se detiveram.
E ela se aproximou dele, e ele tomou sua filha Maria em seus
braços; ele, sua mulher e Elizabete se ajoelharam e oraram a Oração do Senhor,
ante o qual o xerife chorou abertamente, como também vários outros da
companhia. Depois de ter orado, se levantou e beijou a sua mulher, e lhe deu a
mão, dizendo-lhe: "Adeus, minha querida esposa; encoraja-te, porque tenho
a consciência em paz. Deus suscitará um pai para minhas filhas".
A todo o longo do caminho, o doutor Taylor esteve gozoso e
feliz, como dispondo-se para ir ao banquete ou festa de bodas mais
esplendoroso. Disse muitas coisas notáveis ao xerife e aos cavalheiros da
guarda que o levavam, e freqüentemente os moveu às lágrimas, com seus
fervorosos chamamentos a arrepender-se e a emendar suas vidas malvadas e
perversas. Outras várias vezes os assombrou e alegrou, ao vê-lo tão constante e
firme, carente de temor, gozoso de coração, e feliz de morrer.
Quando chegou a Aldham Common, o lugar onde devia sofrer, ao
ver tanta multidão reunida, perguntou: "Qual é este lugar, e para que se
tem reunido tanta gente aqui?" Lhe responderam: "Este lugar se chama
Aldham Common, o lugar de teu sofrimento; e esta gente tem vindo a
contemplar-te". Então ele disse: "Graças a Deus, já quase estou em
casa!", e desmontou de seu cavalo e com ambas as mãos se arrancou o capuz
da cabeça.
Seu cabelo tinha sido raspado e cortado como se cortava cabelo
aos loucos, e o custo disto o havia sufragado o bom bispo Bonner de seu próprio
bolso. Mas quando o povo viu seu reverendo e ancião rosto, com uma longa barba
branca, prorromperam todos em lágrimas, chorando e clamando: "Deus te
salve, bem doutor Taylor! Que Jesus Cristo te fortaleça e te ajude! Que o
Espírito Santo te conforte!" e outros bons desejos parecidos.
Depois de orar foi até a estaca e a beijou, e entrou num
barril de breu que tinham colocado para que entrasse nele, e ficou de pé
dando-lhe as costas à estaca, com as mãos pregadas juntas, e os olhos no céu, e
orando de contínuo.
Depois o amarraram com correntes, e tendo colocado a lenha,
um chamado Warwick lhe lançou cruelmente um feixe de lenha acima, que o bateu
na cabeça e lhe cortou o rosto, de modo que manou sangue. Então o doutor Taylor
lhe disse: "Amigo, já tenho suficiente dano, para que isto?"
Sir John Shelton estava perto enquanto o doutor Taylor
falava, e ao dizer o Salmo Miserere em inglês, lhe bateu nos lábios:
"Velhaco", lhe disse, "fala em latim: te obrigarei". Afinal
acenderam o fogo, e o doutor Taylor, alçando ambas mãos e clamando a Deus,
disse: "Misericordioso Pai do céu! Por causa de Jesus Cristo, meu
Salvador, recebe minha alma em tuas mãos!". Assim permaneceu então sem
gritar nem mexer-se, com as mãos juntas, até que Soyce o feriu na cabeça com
uma lança até derramar-se-lhe os miolos, e o cadáver caiu dentro do fogo.
Assim entregou este homem de Deus sua bendita alma em mãos de
seu misericordioso Pai, e a seu armadíssimo Salvador Jesus Cristo, a quem amou
tão completamente, e tinha predicado tão fiel e fervorosamente seguindo-o com
obediência em sua vida, e glorificando-o constantemente em sua morte.
O martírio de William Hunter
William Hunter tinha sido instruído nas doutrinas da Reforma
desde sua mais tenra infância, descendendo de pais religiosos que o instruíram
com solicitude nos princípios da verdadeira religião.
Hunter, que tinha então dezenove anos, recusou receber a
comunhão na missa, e foi ameaçado com ser levado diante do bispo, ante quem
este valoroso jovem mártir foi conduzido por um policia.
Bonner fez levar a William a uma sala, e ali começou a
arrazoar com ele, prometendo-lhe seguridade e perdão se se desdizia. Inclusive
se teria contentando com que somente recebesse a comunhão e a confissão, porém
William não estava disposto a isso nem por nada do mundo.
Portanto, o bispo ordenou a seus homens que colocassem a
William no cepo em sua casa, na porta, onde ficou dois dias e duas noites, com
somente a casca de um pão negro e um copo de água, que ele nem tocou.
Ao finalizar estes dois dias, o bispo foi até ele e,
achando-o firme em sua fé, o enviou à prisão dos convictos, ordenando ao
carcereiro que o carregasse com tantas correntes como pudesse levar. Ficou em
prisão por nove meses, durante os quais compareceu cinco vezes ante o bispo,
além de uma ocasião na que foi condenado no consistório de são Paulo, o 9 de
fevereiro, ocasião na que esteve presente seu irmão Robert Hunter.
Então o bispo chamou a William, e lhe perguntou se estava
disposto a retratar-se, e ao ver que permanecia inabalável, pronunciou sentença
contra ele de que devia ir desde aquele lugar a Newgate por um tempo, e depois
a Brentwood, para ser ali queimado.
Após um mês, William foi enviado a Brentwood, onde seria
executado. Ao chegar à estaca, se ajoelhou e leu o Salmo 51, até que chegou a
estas palavras: "Os sacrifícios de Deus são o espírito quebrantado: ao
coração contrito e humilhado não desprezarás Tu, oh, Deus". Firme em
recusar o perdão da rainha se apostatava, finalmente um xerife chamado Richard
Ponde acudiu e o amarrou com uma corrente em sua volta.
William lançou agora seu saltério em mãos de seu irmão, quem
lhe disse: "William medita na santa paixão de Cristo, e não temas a
morte". "Eis aqui", respondeu William, "não tenho
medo". Depois alçou suas mãos ao céu, e disse: "Senhor, Senhor,
Senhor, recebe meu espírito!", e inclinando a cabeça para a asfixiante
fumaça, entregou sua vida, selando-a com seu sangue para louvor de Deus.
O doutor Robert Farrar
Este digno e erudito prelado, bispo de St. David's em Gales,
tinha-se mostrado muito zeloso no anterior reino, como também desde a ascensão
de Maria, em impulsionas as doutrinas reformadas e em denunciar os erros da
idolatria papista, e foi chamado, entre outros, para comparecer ante o
perseguidor bispo de Winchester e outros comissionados designados para esta
abominável obra de devastação e matança.
Seus principais acusadores e perseguidores, sobre uma
acusação de traição à coroa durante o reinado de Eduardo VI, foram seu criado
George Constantine Walter, Tomás Youg, dignitário da catedral e depois bispo de
Bangor, etc. O doutor Farrar respondeu idoneamente às cópias da denuncia que
lhe deram, consistente em cinqüenta e seis artigos. Todo o processo judicial
foi longo e tedioso. Houve retraso após retraso, e depois que o doutor Farrar
tivesse sido injustamente detido em custódia, sob o reinado do rei Eduardo,
porque tinha sido ascendido pelo duque de Somerset, pelo que depois de sua
queda encontrou menos amigos para apoiá-lo contra os que queriam seu bispado ao
chegar a rainha Maria, foi acusado e interrogado não por questão alguma de
traição, senão por sua fé e doutrina; por este motivo foi feito comparecer ante
o bispo de Winchester com o bispo Hooper, e os senhores Rogers, Bradford,
Saunders e outros, o 4 de fevereiro de 1555; aquele mesmo dia também fora
condenado com eles, mas sua condena foi aprazada, e foi enviado de novo à
prisão, onde continuou até o 14 de fevereiro, sendo depois enviado a Gales a
receber a sentença. Foi seis vezes obrigado a comparecer diante de Henry
Morgan, bispo de St. David's, quem lhe pediu que abjurasse; isto o rejeitou
cheio de zelo, apelando ao cardeal Pole; apesar disto o bispo, cheio de ira, o
declarou herege isolado, e o entregou ao braço secular.
O doutor Farrar, condenado e degradado, foi não muito tempo depois
levado ao lugar de execução na cidade de Carmathen, em cujo mercado, ao sul da
cruz do mercado, sofreu com grande inteireza os tormentos do fogo o 30 de março
de 1555, que era o sábado antes do Domingo da Paixão.
Acerca de sua constância, se diz que um tal Richard Jones,
filho de um cavalheiro do rei, se aproximou do doutor Farrar pouco antes de sua
morte, parecendo lamentar a dor da morte que iria sofrer; o bispo lhe respondeu
que se o visse uma vez agitar-se nas dores de seu suplicio, poderia então não
dar crédito a sua doutrina; e o que disse o manteve, permanecendo
imperturbável, até que um tal Richard Graveil o abateu com um cacetete.
O martírio de Rawlins White
Rawlins White era pescador de vocação e ocupação, e viveu e
se manteve desta profissão por espaço de vinte anos pelo menos, na cidade de
Cardiff, onde tinha boa reputação entre seus vizinhos.
Embora este bom homem carecia de instrução, e era além disso
muito simples, aprouve a Deus tirá-lo do erro da idolatria e levá-lo ao
conhecimento da verdade, por meio da bendita Reforma no reinado de Eduardo. Fez
que ensinassem a seu filho a ler em inglês, e depois que o pequeno pôde ler
bastante bem, seu pai o fazia ler a cada dia uma porção das Sagradas
Escrituras, e de vez em quando alguma parte de um bom livro.
Após ter-se mantido nesta confissão por cinco anos, morreu o
rei Eduardo, e a sua morte ascendeu a Rainha Maria, e com ela se introduziram
toda classe de superstições. White foi apreendido pelos oficiais da cidade como
suspeito de heresia, levado ante o bispo Llandaff e encarcerado em Chepstow, e
no final levado ao castelo de Cardiff, onde esteve por espaço de um ano
inteiro. Conduzido ante o bispo em sua capela, lhe aconselhou que abjurasse,
combinando promessas e ameaças. Mas como Rawlins não estava disposto a
retratar-se de suas crenças, o bispo lhe disse diretamente que deveria proceder
contra ele pela lei, e condená-lo como herege.
Antes de passar a este extremo, o bispo propus que se
realizasse uma oração por sua conversão. "Esta é", disse White,
"uma atuação digna de um bispo digno, e se vossa petição é piedosa e reta,
e orais como deveis, sem dúvida Deus vai ouvir você; orai, pois, ao vosso Deus,
e eu orarei ao meu Deus". Quando o bispo e seu grupo terminaram suas
orações, perguntou agora a Rawlins se estava disposto a abjurar.
"Vereis", disse ele, "que vossa oração não tem sido concedida,
porque eu permaneci igual que antes; e Deus me fortalecerá em apoio de sua
verdade". Depois o bispo provou como iria dizendo missa, mas Rawlins
chamou a todos como testemunhas de que ele não se inclinava ante a hóstia.
Terminada a missa, Rawlins foi chamado de novo, e o bispo utilizou muitas
persuasões, mas o bem-aventurado homem se manteve tão firme em sua anterior
confissão que de nada serviram os arrazoamentos do bispo. Então este fez que se
lesse sua sentença definitiva, e ao acabar a leitura Rawlins foi levado de novo
a Cardiff, a um abominável cárcere da cidade chamado Cockmarel, onde passou o
tempo em oração e cantando salmos. Após umas três semanas chegou que ordem
desde a cidade para que fosse executado.
Quando chegou ao lugar, onde sua coitada mulher e filhos
estavam em pé chorando, a súbita contemplação deles traspassou de tal modo seu
coração que as lágrimas banharam seu rosto. Chegando até o altar de seu
sacrifício, indo até a estaca se ajoelhou, e beijou a terra; levantando-se de
novo restou algo de terra grudada em sua face, e disse estas palavras:
"Terra à terra, e pó ao pó; tu és minha mãe, e ti voltarei".
Quando todas as coisas estiveram dispostas levantaram uma
plataforma frente a Rawlins White, diretamente diante da estaca, na qual subiu
um sacerdote, que se dirigiu ao povo; porém, enquanto falava da doutrina
romanista dos Sacramentos, Rawlins gritou: "Ah, hipócrita branqueado! Tu presumes
de demonstrar tua falsa doutrina pela Escritura? olha o que diz o texto que
segue: Acaso não disse Cristo 'Fazei isto em memória de mim'?"
Então alguns dos que estavam perto dele gritaram:
"Acendei o fogo, acendei o fogo!". Feito isto, a palha e as canas
deram uma grande e subida labareda. Nesta chama este bom homem banhou durante
longo tempo sua mão, até que os tendões se encolheram e a gordura se desfez,
exceto por um momento em que fez como se enxugasse o rosto com uma delas. Todo
este tempo, que se prolongou bastante, clamou com forte voz: "Oh, Senhor,
recebe meu espírito!", até que já não pôde mais abrir a boca. Finalmente,
a violência do fogo foi tal contra suas pernas que ficaram consumidas quase
antes que o resto do corpo fosse danificado, o que fez com que o corpo caísse
sobre as correntes até o fogo antes do que teria sido normal. Assim morreu este
bom homem por seu testemunho da vida de Deus, e agora está indubitavelmente
recompensado com a coroa da vida eterna.
O reverendo George Marsh
George March nasceu na paróquia de Deane, no condado de
Lancaster, recebendo uma boa educação e ofício de seus pais; aos vinte e cinco
anos casou e viveu numa granja, com a bênção de vários filhos, até que sua
mulher morreu. Depois foi a estudar a Cambridge, e veio ser capelão do
reverendo Lawrence Saunders, e neste posto expus de maneira constante e cheia
de zelo a verdade da Palavra de Deus e as falsas doutrinas do moderno
Anticristo.
Encerrado pelo doutor Coles, bispo de Chester, sob arresto
domiciliário, ficou impedido da relação com seus amigos durante quatro meses.
Seus amigos e sua mãe lhe rogavam insistentemente que fugisse "da ira
vindoura"; porém o senhor March pensava que um passo assim não seria
coerente com a profissão de fé que tinha mantido abertamente durante nove anos.
Contudo, no final fugiu ocultando-se, mas teve muitas lutas, e em oração
secreta rogou que Deus o conduzisse, por meio do conselho de seus melhores
amigos, para Sua própria glória e para fazer o que melhor fosse. No final,
decidido por uma carta que recebera a confessar abertamente a fé em Cristo, se
despediu de sua sogra e outros amigos, encomendando seus filhos aos cuidados
deles, e se dirigiu a Smethehills, desde onde foi levado, junto com outros, a
Latburn, para sofrer um interrogatório ante o conde de Derby, Sir William
Nores, o senhor Sherbum, o pároco de Grapnal e outros. Respondeu com boa
consciência as várias perguntas que lhe fizeram, mas quando o se Shepburn o
interrogou acerca de sua crença no Sacramento do altar, o senhor March
respondeu como um verdadeiro protestante que a essência do pão e do vinho não
mudava em absoluto; assim, depois de receber terríveis ameaças de parte de uns
e boas palavras de parte de outros pelas suas opiniões, foi levado sob
custódia, dormindo duas noites sem cama alguma.
O Domingo de Ramos sofreu um segundo interrogatório, e o
senhor March lamentou muito que seu temor o tivesse induzido a prevaricar e a
buscar sua segurança enquanto não negasse abertamente a Cristo; e outra vez
clamou com mais fervor a Deus pedindo-lhe forças para não ser abrumado pelas
sutilezas daqueles que tratavam de derrubar a pureza de sua fé. Sofreu três
interrogatórios diante do doutor Coles, quem, achando-o firme na fé
protestante, começou a ler sua sentença; porém foi interrompido pelo chanceler,
quem rogou ao bispo que se detivesse antes que fosse demasiado tarde. O
sacerdote orou então pelo senhor March, mas este, ao ser-lhe pedido outra vez
que voltasse atrás, disse que não ousava negar a seu Salvador Cristo, para não
perder Sua misericórdia eterna e sofrer assim a morte sempiterna. Então o bispo
passou a ler a sentença. Foi enviado a uma tenebrosa masmorra, e se viu privado
de toda consolação (porque todos temiam aliviá-lo ou comunicar-se com ele) até
o dia marcado no qual devia sofrer. Os xerifes da cidade, Amry e Couper, com
seus oficiais, acudiram à porta norte, e levaram o senhor George March, quem
andou todo o caminho com o Livro em sua mão, olhando para o mesmo, pelo que a
gente dizia: "Este homem não vai a sua morte como ladrão, nem como alguém
que mereça morrer".
Quando chegou no lugar da execução, fora da cidade, perto de
Spittal Boughton, o senhor Cawdry, assistente deputado de Chester, mostrou ao
senhor March um escrito sob um grande selo, dizendo-lhe que era um indulto para
ele se voltasse atrás. Ele respondeu que o aceitaria gostoso se não era sua
intenção afastá-lo de Deus.
Depois disto começou a falar às pessoas, mostrando qual era a
causa de sua morte, e teria desejado exortá-los a aderirem a Cristo, mas um dos
xerifes o impediu. Ajoelhando-se então, disse suas orações, tirou as roupas até
ficar em camisa, e foi acorrentado ao poste, tendo vários feixes de lenha
embaixo dele, e algo feito a modo de pipa, com breu e alcatrão para lançar
sobre sua cabeça. Ao ter sido mal preparada a fogueira, e assoprando o vento em
círculos, sofreu atrozmente, mas o suportou com inteireza cristã.
Depois de ter permanecido longo tempo atormentado no fogo sem
mexer-se, com sua carne tão assada e inchada que os que estavam perto dele não
conseguir ver a corrente com que tinha sido amarrado, achando por isso que
estava morto, de repente estendeu os braços, dizendo: "Pai celestial, tem
misericórdia de mim!", e assim entregou seu espírito em mãos do Senhor.
Com isto, muitos dentre o público diziam que era um mártir e que tinha morrido
com uma gloriosa paciência. Isto levou pouco tempo depois ao bispo a dar um
sermão na catedral, no qual afirmava que o tal "March era um herege,
queimado como tal, e é uma brasa no inferno". O senhor March sofreu o 24
de abril de 1555.
William Flower
William Flower, também conhecido como Branco, nasceu em
Show-hill, no condado de Cambridge, onde foi à escola durante alguns anos, e
depois foi à abadia de Ely. Depois de ter permanecido ali durante um tempo,
professou como monge, foi feito sacerdote na mesma casa, e ali celebrou e
cantou a missa. Depois disso, por ação de uma visitação, e por certas ordens
emanadas da autoridade de Henrique VIII, adotou o hábito de um sacerdote
secular, e voltou a Snow-hill, onde tinha nascido, e ensinou a crianças durante
meio ano.
Depois foi a Ludgate, em Suffolk, onde serviu como sacerdote
secular durante uns três meses; dali se dirigiu a Stoniland, depois a
Tewksbury, onde casou, continuando sempre de modo fiel e honesta com aquela
mulher. Do de casar-se permaneceu em Tewksbury uns dois anos, e dali foi a
Brosley, onde praticou a medicina e a cirurgia; mas afastando-se daqueles
lugares foi a Londres, e finalmente se instalou em Lambeth, onde ele e sua
mulher conviveram. Contudo, estava geralmente fora, exceto uma ou duas vezes
por mês para visitar e ver a sua mulher. Estando em sua casa um domingo de
Páscoa pela manhã, passou o rio desde Lambeth à Igreja de St. Margaret em
Westminster; ao ver ali um sacerdote chamado John Celtham que ministrava e dava
o Sacramento do altar ao povo, e sentindo-se gravemente ofendido em sua
consciência contra o sacerdote por aquilo, bateu nele e o feriu na cabeça, e
também no braço e na mão, com uma faca para madeira, tendo naquele momento o sacerdote
o cálice com a hóstia consagrada nele, que ficou borrifada de sangue.
Por seu abobalhado zelo, o senhor Flower foi pesadamente
acorrentado e colocado na casa da porta de Westminster, e depois feito
comparecer ante o bispo Bonner, e seu ordinário; o bispo, após fazê-lo jurar
sobre um Livro, o submeteu a acusações e interrogatório.
Depois do interrogatório, o bispo começou a exortá-lo a
voltar à unidade de sua mãe a Igreja católica, com muitas boas promessas. Mas
ao rejeitá-las firmemente o senhor Flower, o bispo lhe ordenou que se
apresentasse naquele mesmo lugar pela tarde, e que entretanto meditasse bem em
sua anterior resposta; mas ao não escusar-se ele por ter batido no sacerdote
nem vacilar em sua fé, o bispo o assinou o dia seguinte, 20 de abril, para
receber a sentença se não se desdizia. Na manhã seguinte, o bispo passou então
a lê-lhe a sentença, condenando-o e excomungando-o como herege, e depois de
pronunciá-lo degradado, o entregou ao braço secular.
0 24 de abril, na véspera de são Marcos, foi levado ao lugar
de seu martírio, no pátio da igreja de St. Margaret, em Westminster, onde tinha
sido cometido o ato; chegando à estaca, orou ao Deus Onipotente, fez confissão
de sua fé, e perdoou todo o mundo.
Feito isto, sujeitaram sua mão contra a estaca, e foi cortada
de um golpe, e lhe amarraram a mão esquerda atrás. Depois lhe pegaram fogo, e
queimando-se nele, clamou com voz forte: "Oh, Tu, Filho de Deus, recebe
minha alma!", três vezes. Ficando sem voz, deixou de falar, mas levantou seu
braço mutilado com o outro todo o tempo que pôde.
Assim suportou o tormento do fogo, sendo cruelmente
torturado, porque tinham colocado poucos feixes, e sendo insuficientes para
queimá-lo, precisaram abatê-lo tendendo-o no fogo, onde, deitado em terra, sua
parte inferior foi consumida pelo fogo, enquanto sua parte superior ficava
pouco danificada, e sua língua se mexeu em sua boca durante um tempo
considerável.
O reverendo John Cardmaker e John Warne
O 30 de maio de 1555, o reverendo John Cardmaker, também
chamado Taylor, prebendado da Igreja de Wells, e John Warne, tapeceiro, de St.
John's, Walbrook, padeceram juntos em Smithfield. O senhor Cardmaker, que foi
um frade observante antes da dissolução das abadias, foi depois um ministro
casado, e no tempo do rei Eduardo foi designado leitor em são Paulo; apreendido
a começos do reinado da Rainha Maria, junto com o doutor Barlow, bispo de Bath,
foi levado a Londres e lançado no cárcere de Fleet, estando ainda em vigor as
leis do rei Eduardo. No reinado de Maria, quando foi feito comparecer ante o
bispo de Winchester, este lhe ofereceu a misericórdia da rainha se se desdizia.
Tendo-se apresentado artigos de acusação contra o senhor John
Warne, foi interrogado por Bonner, que o exortou ardentemente para que se
retratasse de suas opiniões, porém este lhe respondeu: "Estou persuadido
de que estou na reta opinião, e não vejo causa alguma para retratar-me; porque
toda a imundícia e idolatria se encontram na Igreja de Roma".
Então, o bispo, ao ver que não podia prevalecer com todas
suas boas promessas e suas terríveis ameaças, pronunciou a sentença definitiva
de condenação, e ordenou o 30 de maio de 1555 para a execução de John Cardmaker
e John Warne, que foram levados pelos xerifes a Smithfield. Chegados à estaca,
os xerifes chamaram aparte o senhor Cardmaker, e falaram com ele em segredo,
enquanto o senhor Warnes orou, foi acorrentado à estaca, e colocaram lenha e
canas em sua volta.
Os espectadores estavam muito afligidos pensando que o senhor
Cardmaker voltaria atrás ante a queima do senhor Warne. No final, o senhor
Cardmaker se afastou dos xerifes, se dirigiu à estaca, ajoelhou-se e fez uma
longa oração em silêncio. Depois se levantou, tirou as roupas até a camisa, e
foi com valentia ao poste, beijando-o; e tomando da mão o senhor Warnes, o
consolou cordialmente, e foi amarrado ao poste, regozijando-se. A gente, ao ver
como isto acontecia tão rapidamente e em contra de suas anteriores
expectativas, clamou: "Deus seja louvado! Deus te fortaleça, Cardmaker!
Que o senhor Jesus receba teu espírito!". E isto prosseguiu enquanto o
carrasco acendia o fogo e até que ambos passaram através dele a seu bendito
repouso e paz entre os santos e mártires de Deus, para gozar da coroa do
triunfo e da vitória preparada para os soldados e guerreiros escolhidos de
Cristo Jesus em seu bendito Reino, a quem seja a glória e a majestade para
sempre. Amém.
John Simpson e John Ardeley
Estes dois mártires foram condenados o mesmo dia que o senhor
Cardmaker e John Warne, que era o 25 de maio. Foram pouco depois enviados desde
Londres a Essex, onde foram queimados o mesmo dia, John Simpson em Rochford, e
John Ardeley em Railey, glorificando a Deus em seu amado Filho, e
regozijando-se de serem considerados dignos de padecer por Ele.
Tomás Haukes, Tomás Watts e Anne Askew
Tomás Haukes foi condenado, junto com outros seis, o 9 de
fevereiro de 1555. Era erudito em sua educação, e galhardo de presença pessoal,
e alto; em suas maneiras era um cavalheiro, e um cristão sincero. Pouco antes
de sua morte, vários dos amigos do senhor Haukes, aterrorizados ante a dureza
do castigo que devia sofrer, pediram-lhe em privado que em meio das chamas lhes
mostrasse de alguma maneira se as dores do fogo eram demasiado grandes que não
pudessem ser sofridas com compostura. Isto ele o prometeu, e se concordou que
se a atrocidade da dor podia ser sofrida, que elevasse as mãos sobre sua cabeça
até o céu, antes de expirar.
Não muito depois, o Senhor Haukes foi conduzido ao lugar
indicado para sua morte pelo lorde Rich, e chegando à estaca, se preparou mansa
e pacientemente para o fogo; lhe colocaram uma pesada corrente na cintura,
rodeando-o uma multidão de espectadores, e depois de ter-lhes falado
largamente, e derramado sua alma a Deus, se acendeu o fogo.
Quando houve permanecido muito tempo no fogo, e ficou sem já
poder falar, com a pele encolhida e os dedos consumidos pelo fogo, de modo que
se pensava e já havia morrido, subitamente e em contra de todas as
expectativas, este bom homem, lembrando sua promessa, alçou suas mãos, que estavam
queimadas nas chamas, e as levantou para o Deus vivo, e com grande regozijo,
pelo que parece, as bateu ou palmeou três vezes seguidas. Seguiu um grande
clamor ante esta maravilha circunstância, e depois este bendito mártir de
Cristo, caindo sobre o fogo, entregou seu espírito, o 10 de junho de 1555.
Tomás Watts, de Billericay, Essex, da diocese de Londres, era
um tecelão de linho. Esperava a diário ser tomado pelos adversários de Deus, e
isto lhe aconteceu o 5 de abril de 1555, quando foi levado diante do lorde Rich
e os outros comissionados de Chelmsford, acusado de não acudir à igreja.
Entregue ao sanguinário adversário, que o chamou para vários
interrogatórios, e como era usual, muitos argumentos, com muitos rogos para que
se tornasse discípulo do Anticristo, porém suas predicas de ns serviram, e
recorreu então a sua última vingança, a da condenação.
Na estaca, após tê-la beijado, falou ao lorde Rich,
exortando-o a arrepender-se, porque o Senhor vingaria sua morte. Assim ofereceu
este bom mártir seu corpo ao fogo, em defesa do verdadeiro Evangelho do
Salvador.
Tomás Osmond, William Bamford e Nicolas Chamberlain, todos da
cidade de Coxhall, foram enviados a um interrogatório, e Bonner, após várias
audiências, os declarou hereges obstinados, e os entregou aos xerifes,
permanecendo em custódia deles até que fossem entregues ao xerife do condado de
Essex, sendo executados por ele; Chamberlain em Colchester, o 14 de junho;
Tomás Osmond em Maningtree, e William Bamford, apelidado Buller, em Harwich, o
15 de junho de 1555; todos eles morreram plenos da esperança gloriosa da
imortalidade.
Depois Wriotheseley, lorde chanceler, ofereceu a Anne Askew o
perdão do rei se se desdizia; ela lhe deu esta resposta: que não tinha ido lá
para negar a seu Senhor e Mestre. E assim a boa Anne Askew, rodeada de
labaredas como bendito sacrifício para Deus, dormiu no Senhor em 1546, deixando
trás de sim um singular exemplo de constância cristã para seguimento de todos
os homens.
Reverendo John Bradford e John Leaf, um aprendiz
O reverendo John Bradford nasceu em Manchester, Lancashire;
chegou a ser um grande erudito em latim, e depois veio a ser servo Deus Sir
John Harrington, cavalheiro do rei.
Continuou por vários anos de uma maneira honrada e
proveitosa, mas o Senhor o havia escolhido para melhores funções. Portanto, se
afastou de seu patrão, abandonando o Templo, em Londres, dirigindo-se à
Universidade de Cambridge, para aprender, mediante a Lei de Deus, como
impulsionar a edificação do templo do Senhor. Poucos anos depois, a universidade
lhe concedeu o grau de mestre em artes, e foi escolhido companheiro de Pembroke
Hall.
Martinho Bucero o pressionou a que predicasse, e quando com
modéstia pus em dúvida sua capacidade, Bucero replicou: "Se não tens um
fino pão de farinha de trigo, dá então aos pobres pão de centeio, ou o que o
Senhor te tenha encomendado". O doutor Ridley, aquele digno bispo de
Londres e glorioso mártir de Cristo, o chamou primeiro para dá-lhe o grau de
diácono e uma prebenda em sua igreja catedral de são Paulo.
Neste ofício de predicação, o senhor Bradford se dedicou a
uma diligente atividade por espaço de três anos. Repreendeu severamente o
pecado, predicou docemente a Cristo crucificado, refutou com grande capacidade
os erros e as heresias, persuadindo fervorosamente a viver piedosamente. Depois
da morte do bem-aventurado rei Eduardo VI, o senhor Bradford continuou
predicando diligentemente, até que foi suprimido pela Rainha Maria.
Seguiu agora uma ação da mais negra ingratidão, ante a qual
coraria até um pagão. Tem-se falado que o senhor Bourne (então bispo de Bath)
suscitou um tumulto predicando em St. Paul's Cross; a indignação da gente pôs
sua vida em iminente perigo; inclusive lhe lançaram uma adaga. Nesta situação,
rogou ao senhor Bradford, que estava detrás dele, para que falasse em seu lugar
e acalmasse os ânimos. A gente acolheu bem o senhor Bradford, e este se manteve
desde então perto de Bourne, para com sua presença impedir que a plebe
renovasse seus ataques.
O mesmo domingo, pela tarde, o senhor Bradford predicava na
igreja de Bow em Cheapside, e reprovou duramente o povo por sua conduta
sediciosa. Apesar de sua ação, após três dias foi enviado à Torre de Londres,
onde estava então a rainha, para comparecer ante o Conselho. Ali foi acusado
por este ato de salvar o senhor Bourne, que foi considerado como sedicioso, e
também objetaram contra ele por sua predicação. Foi então enviado primeiro à
Torre, depois a outras prisões, e, depois de sua condena, a Poultry Compter,
onde predicou duas vezes ao dia de maneira contínua, até que foi impedido por
uma doença. Tal era seu crédito para com o guarda do cárcere real que lhe
permitiu uma noite visitar a uma pessoa pobre e doente perto do deposito de
aço, sob a promessa de voltar a tempo; e nisto não falhou.
A noite antes de ser enviado a Newgate, viu-se turbado em seu
descanso por sonos pressagiadores, no sentido de que na seguinte segunda-feira
seria queimado em Smithfield. Pela tarde, a mulher do guarda foi vê-lo, e lhe
anunciou a terrível notícia, mas nele somente suscitou agradecimento a Deus.
pela noite foram a visitá-lo meia dúzia de amigos, com os que passou toda a
véspera em oração e piedosas atividades.
Quando foi levado a Newgate, o acompanhou uma multidão que
chorava, e tendo-se estendido o rumor de que iria sofrer o suplício às quatro
do dia seguinte, apareceu uma imensa multidão. Às 9 da manhã o senhor Bradford
foi levado a Smithfield. A crueldade do xerife merece ser destacada; porque o
cunhado do senhor Bradford, Roger Beswick, lhe deu a mão ao passar, e
Woodroffe, o xerife, lhe abriu a cabeça com seu cacetete.
Tendo chegado o senhor Bradford ao lugar, caiu prostrado no
chão. Depois, tirando-se a roupa até ficar em camisa, foi até a estaca, e ali
padeceu junto a um jovem de vinte anos de idade, chamado John Leaf, um aprendiz
do senhor Humphrey Gaudy, um fabricante de velas de Christ Church, em Londres.
Tinha sido apresado na sexta-feira antes do Domingo de Ramos, e encerrado no
Compter em Bread Street, e depois interrogado e condenado pelo sanguinário bispo.
Se informa acerca dele que quando se leu sua ata de
confissão, em lugar de uma pluma, tomou uma agulha e, furando-se um dedo,
borrifou com seu sangue sobre a mencionada ata, dizendo ao leitor da mesma que
mostrasse ao bispo que já tinha selado o documento com seu sangue.
Ambos terminaram suas vidas mortais o 12 de julho de 1555
como dois cordeiros, sem alteração alguma em seus rostos, esperando obter
aquele prêmio pelo que tinham corrido tanto. Queira conduzir-nos ao mesmo o
Deus Onipotente, pelos méritos de Cristo nosso Senhor!
Concluiremos este artigo mencionando que o senhor xerife
Woodroffe caiu seis meses depois paralítico do lado direito, e que por espaço
de oito anos (até o dia de sua morte) não pôde voltar-se na cama por si mesmo;
assim chegou a ser, afinal, um espetáculo terrível.
O dia depois que o senhor Bradford e John Leaf sofreram em
Smithfield, William Minge, um sacerdote, morreu no cárcere de Maidstone. Com
uma constância e valor iguais de grandes que se tivesse aprazido a Deus
chamá-lo a sofrer no fogo (como muitos outros bons homens tinham sofrido antes
na estaca, e como ele mesmo estava disposto a sofrer, se Deus tivesse querido
chamá-lo a esta prova), entregou sua vida no cárcere.
O reverendo John Bland, o reverendo John Frankesh, Nicolas
Shetterden Humphrey Middleton
Estes cristãos foram todos queimados em Canterbury pela mesma
causa. Frankesh e Bland eram ministros e predicadores da Palavra de Deus, sendo
um pároco de Adesham, e o outro vigário de Rolvenden. O senhor Bland foi citado
a responder por sua oposição ao anti-cristianismo, e sofreu vários
interrogatórios ente o doutor Harpsfield, prelado de Canterbury, e finalmente
foi condenado o 25 de junho de 1555, por opor-se ao poder do Papa, e entregue
ao braço secular. O mesmo dia foram condenados John Frankesh, Nicolas
Shetterden, Humphrey Middleton, Thacker e Crocker, dos quais somente Thacker
voltou atrás.
Entregue ao braço secular, o senhor Bland e os três
anteriores foram queimados em Canterbury o 12 de julho de 1555, em duas distintas
estacas mas num mesmo fogo, onde eles, à vista de Deus e de seus anjos, e
diante dos homens, deram, como verdadeiro soldados de Jesus Cristo, um
testemunho firme da verdade de seu santo Evangelho.
John Lomas, Agnes Snoth, Anne Wright, Joan Sole e Joan Catmer
Estes cinco mártires sofreram juntos o 31 de janeiro de 1556.
John Limas era um jovem de Tenteren. Foi citado a comparecer em Canterbury, e
interrogado o 17 de janeiro. Ao serem suas respostas adversas à idolatria
papista, foi condenado no dia seguinte, e sofreu o 31 de janeiro.
Agnes Snoth, viúva, da paróquia de Smarden, foi feita
comparecer várias vezes diante dos farisaicos católicos, e ao rejeitar a
absolvição, as indulgências, a transubstanciação e a confissão auricular, foi
considerada digna de morte, e suportou o martírio o 31 de janeiro, com Anne
Wright e Joan Sole, que se encontravam nas mesmas circunstâncias e que morreram
ao mesmo tempo e com idêntica resignação. Joan Catmer, a última desta celestial
companhia, da paróquia de Hithe, era esposa do mártir George Catmer.
Poucas vezes tem-se dado mas país algum que por controvérsias
políticas quatro mulheres tenham sido levadas a execução, ainda quando suas
vidas foram irrepreensíveis, vidas as quais a compaixão dos sacrilégios teria
perdoado. Não podemos deixar de observar aqui que quando o poder protestante
alcançou no princípio o domínio sobre a superstição católica, q foi necessário
algum grau de força nas leis para impor uniformidade, pelas que algumas poucas
pessoas tenazes sofreram privações de suas pessoas e bens, lemos de poucas
fogueiras, crueldades selvagens ou de coitadas mulheres levadas à estaca; mas
está na natureza do erro recorrer à força em lugar de a argumentação, e
silenciar a verdade arrebatando a vida, e o caso do próprio Redentor é um
exemplo disso.
As anteriores cinco pessoas foram queimadas em duas estacas
numa mesma fogueira, cantando hosana ao glorificado Salvador, até que foi
extinguido o alento de vida. Sir John Norton, que estava presente, chorou
amargamente ante seus desmerecidos sofrimentos.
O arcebispo Cranmer
O doutor Tomás Cranmer descendia de uma antiga família, e
nasceu no povo de Arselacton, no condado de Northampton. Depois da usual
educação escolar, foi enviado a Cambridge, e escolhido companheiro do Jesus
College. Ali casou com a filha de um cavalheiro, pelo que perdeu sua condição
de companheiro, e passou a ser leitor em Buckingham College, instalando a sua
mulher em Dolphin Inn, sendo a patroa uma parenta dela, de onde se suscitou o
falso rumor de que ele era um moço de cavalariça. Ao morrer sua mulher pouco
depois, de parto, foi escolhido, para seu crédito, de novo como companheiro do
colégio antes mencionado. Poucos anos depois foi elevado a professor de
Teologia, e designado como um dos examinadores daqueles que estavam já prontos
para ser Bachareles ou Doutores em Divindade. Era princípio seu julgar as
qualificações com base mais no conhecimento que possuíam das Escrituras, que no
que conheciam dos antigos padres, e por isto muitos sacerdotes papistas foram
rejeitados, e outros obtiveram grandes vantagens.
Foi intensamente solicitado pelo doutor Capon para que fosse
um dos companheiros na fundação do colégio do cardeal Wolsey, em Oxford, cargo
que aventurou recusar. Enquanto continuou em Cambridge, se suscitou a questão
do divórcio de Henrique VIII com Catarina. Naquele tempo, por causa da peste, o
doutor Cranmer foi morar à casa de um tal senhor Cressy, em Waltham Abbey,
cujos dois filhos foram então educados sob sua supervisão. A questão do divórcio,
em contra da aprovação do rei, tinha ficado indecisa por mais de dois ou três
anos, devido às intrigas dos canônigos e civis, e embora os cardeais Campeius e
Wolsey foram comissionados por Roma para decidir acerca desta questão,
retardaram a sentença a propósito.
Aconteceu que o doutor Gardiner (secretário) e o doutor Fox,
defensores do rei neste pleito, foram à casa do senhor Cressy para alojar-se
ali, enquanto o rei se alojava em Greenwich. Durante o jantar, se manteve uma
conversação com o doutor Cranmer, que sugeriu que a questão de se um homem
podia casar com a mulher de seu irmão ou não, podia resolver-se de forma rápida
recorrendo à Palavra de Deus, e isto tanto nos tribunais ingleses como nos de
qualquer nação estrangeira. O rei, inquieto ante esta demora, enviou a buscar o
doutor Gardiner e o doutor Fox para consultá-los, lamentando ter que enviar
outra comissão a Roma e que a questão continuasse assim dilatada sem fim. Ao
contar ao rei da conversação mantida na noite anterior com o doutor Cranmer,
sua majestade mandou buscá-lo, e lhe comunicou os escrúpulos de consciência
acerca de seu próximo parentesco com a rainha. O doutor Cranmer aconselhou que
a questão fosse remitida aos mais eruditos teólogos de Cambridge e Oxford,
porquanto se sentia remisso a misturar-se com uma questão tão importante; porém
o rei lhe ordenou que lhe desse seu parecer por escrito, e dirigir-se para isso
ao conde de Wiltshire, que o proveria de livros e de tudo o necessário.
O senhor Cranmer obedeceu de imediato, e em sua declaração
citou não só a autoridade das Escrituras, dos Concílios gerais, e dos antigos
escritores, senão que manteve que o bispo de Roma não tinha autoridade alguma
para deixar de lado a Palavra de Deus. O rei lhe perguntou se manter-se-ia
nesta atrevida declaração, e ao responder ele em sentido afirmativo, foi
enviado como embaixador a Roma, junto com o duque de Wiltshire, o doutor
Stokesley, o doutor Bennet e outros, antes do qual se tratou acerca daquele
matrimônio na maior parte das universidades da cristandade e dentro do reino.
Quando o Papa apresentou o polegar de seu pé para ser
beijado, segundo era o costume, o conde de Wiltshire e sua companhia recusaram
fazê-lo. inclusive se afirma que o cachorro spaniel do conde, atraído pelo
brilho do polegar do Papa, o mordeu, com o qual sua Santidade retirou seu
sagrado pé, dando um chute ao ofensor com o outro.
Ao demandar o Papa a causa desta embaixada, o conde
apresentou o livro do doutor Cranmer, declarando que seus eruditos amigos
tinham vindo a defendê-lo. o Papa tratou honrosamente a embaixada e marcou um
dia para a discussão, que depois retrasou, como temendo o resultado da
pesquisa. O conde voltou, e o doutor Cranmer, por desejo do rei, visitou o
imperador, e logrou atraí-lo a sua opinião. Ao voltar o doutor a Inglaterra e
morrer o doutor Warham, arcebispo de Canterbury, o doutor Cranmer foi
merecidamente elevado, por desejo do doutor Warham mesmo, àquela iminente
posição.
Nesta função pode dizer-se que cumpriu diligentemente o
encargo de são Paulo. Diligente no cumprimento de seus deveres, acordava às
cinco da manhã e prosseguia no estudo e oração até as nove; entre então e a
comida se dedicava às questões temporais. Depois da comida, se alguém
solicitava uma audiência, decidia suas questões com tal afabilidade que
inclusive os que recebiam decisões contrárias não se sentiam totalmente
frustrados. Depois jogava xadrez por uma hora, ou contemplava como outros
jogavam, a às cinco ouvia a Oração Comum, e desde então até o jantar se
recreava passeando. Durante seu jantar sua conversação era vivaz e entretida;
de novo passeava ou se entretinha até as nove, e depois se dirigia a seu
escritório.
Teve a mais alta estima e favor do rei Henrique, e sempre
teve dentro de seu coração a pureza e os interesses da Igreja de Inglaterra.
Seu temperamento manso e perdoador se registra com o seguinte exemplo: um
sacerdote ignorante, no campo, tinha chamado a Cranmer de moço de cavalariça, e
se havia referido de forma muito depreciativa à sua cultura. Ao sabê-lo lorde Cromwell,
aquele homem foi enviado ao cárcere do fleet, e seu caso foi apresentado diante
do arcebispo por um tal senhor Chertsey, um mercador, parente do sacerdote. Sua
graça, fazendo chamar o ofensor, arrazoou com ele e pediu ao sacerdote que lhe
perguntasse sobre qualquer assunto de erudição. A isto se negou o homem,
vencido pela cordialidade do arcebispo e sabendo de sua própria e patente
incapacidade, e lhe pediu perdão, que lhe foi concedido de imediato, com a
ordem de que empregasse melhor seu tempo quando voltasse a sua paróquia.
Cromwell sentiu-se muito ofendido pela indulgência mostrada, mas o bispo estava
mais disposto a receber insultos que a vingar-se de qualquer outra maneira que
com bons conselhos e bons ofícios.
Para o tempo em que Cranmer foi ascendido a arcebispo, era
capelão do rei e arquidiácono de Taunton;
foi também constituído pelo Papa penitenciário geral da Inglaterra. O rei
considerou que Cranmer seria obsequioso, e por isso este casou o rei com Ana
Bolena, celebrou a coroação dela, foi padrinho de Elizabete, o primeiro fruto
do matrimônio, e divorciou o rei de Catarina. Embora Cranmer fosse confirmado
em sua dignidade pelo Papa, sempre protestou contra reconhecer qualquer outra
autoridade que a do rei, e persistiu nos mesmos sentimentos de independência
quando foi feito comparecer ante os comissionados de Maria em 1555.
Um dos primeiros passos após o divórcio foi impedir a
predicação em toda sua diocese, mas esta estreita medida tinha uma finalidade
mais política que religiosa, porquanto havia muitos que denegriam a conduta do
rei. Em sua nova dignidade, Cranmer suscitou a questão da supremacia, e com
seus argumentos poderosos e justos induziu o parlamento a "dar ao César o
que é do César". Durante a residência de Cranmer na Alemanha em 1531
conheceu a Osiandro em Nuremberg, e casou com sua sobrinha, mas a deixou com
ele ao voltar a Inglaterra. Depois de um tempo a fez vir privadamente, e ficou
com ele até o ano 1539, quando os Seis Artigos o obrigaram a devolvê-la a seus
amigos por um tempo.
Deveríamos lembrar que Osiandro, tendo logrado a aprovação de
seu amigo Cranmer, publicou a laboriosa obra da Harmonia dos Evangelhos em
1537. Em 1534, o arcebispo alcançou o mais querido objetivo de seu coração, a
eliminação de todos os obstáculos para a consumação da Reforma, mediante a
subscrição por parte dos nobres e dos bispos à única supremacia do rei. Somente
se opuseram o bispo Fisher e Sir Tomás More. Cranmer estava disposto a
considerar suficiente o acordo deles a não opor-se à sucessão, mas o monarca
queria uma concessão total.
Não muito tempo depois, Gardiner, numa conversação privada
com o rei, falou mal de Cranmer (a quem odiava malignamente), por ter aceitado
o título de primado de toda a Inglaterra, como depreciativo da supremacia do
rei. Isto suscitou fortes ciúmes contra Cranmer, e sua tradução da Bíblia foi
fortemente oposta por Stokesley, bispo de Londres. Se diz que ao ser despedida
a Rainha Catarina, sua sucessora Ana Bolena se gozou. Isto é uma lição de quão
superficial é o juízo humano, porquanto a execução desta última teve lugar na
primavera do ano seguinte, e o rei, no dia seguinte da decapitação desta dama
sacrificada, casou com a bela Jane Seymour, dama de honra da defunta rainha.
Cranmer foi sempre amigo de Ana Bolena, mas era perigoso opor-se à vontade
daquele tirânico e carnal monarca.
Em 1538 se expuseram publicamente as Sagradas Escrituras para
a venda, e os lugares de culto se enchiam de multidões para escutar a exposição
de suas santas doutrinas. Ao passar o rei como lei os famosos Seis Artigos, que
voltavam de novo quase a estabelecer os artigos essenciais do credo romanista,
Cranmer resplandeceu com todo o brilho de um patriota cristão, resistindo as
doutrinas contidas neles, no que foi apoiado pelos bispos de Sarum, Woreester,
Ely e Rochester, demitindo os dois primeiros de seus bispados. O rei, embora
agora oposto a Cranmer, continuava reverenciando a sinceridade que marcava sua
conduta. A morte do bom amigo de Cranmer, lorde Cromwell, na Torre em 1540, foi
um forte golpe para a vacilante causa protestante, porém inclusive agora, ainda
vendo a maré contrária total à causa de verdade, Cranmer se apresentou
pessoalmente ante o rei e conseguiu, com seus varonis e cordiais argumentos,
que o Livro dos Artigos fosse deixado de lado, para confusão de seus inimigos,
que tinham considerado sua queda como inevitável.
Cranmer viveu agora de um modo tão escuro como lhe foi
possível, até que o rancor de Winchester o levou à apresentação de umas
denúncias contra ele,a respeito das perigosas opiniões ensinadas em sua
família, junto com outras acusações de traição. Estas as apresentou o Pai rei a
Cranmer, e acreditando firmemente na fidelidade e nos protestos de inocência do
acusado prelado, fez investigar a fundo a questão, e se descobriu que
Winchester o doutor Lenden, junto com Thompton e Barber, dois domésticos do
bispo, resultaram, por papéis obtidos, ser os verdadeiros conspiradores. O
gentil e perdoador Cranmer teria gostado de interceder por toda remissão de
castigo se Henrique, comprazido com o subsídio votado pelo Parlamento, não os
tivesse deixado livres. Mas estes nefastos homens voltaram iniciar suas tramas
contra Cranmer, caindo vítimas do ressentimento do rei, e Gardiner perdeu para
sempre sua confiança. Sir G. Gostwick apresentou pouco depois acusações contra
o arcebispo, que Henrique esmagou, e que o primado esteve disposto a perdoar.
Em 1544 foi queimado o palácio arzobispal de Canterbury, e
seu cunhado e outros morreram no incêndio. Estas várias aflições podem
servir-nos para reconciliar-nos com um humilde estado, porque, de que
felicidade podia vangloriar-se este homem, porquanto sua vida estava sendo
constantemente carregada, bem com cruzes políticas, religiosas ou naturais?
Outra vez o implacável Gardiner apresentou graves acusações contra o manso
arcebispo, e teria desejado mandá-lo à Torre; porém o rei era seu amigo, lhe
deu seu selo para defender-se, e no Conselho não somente declarou que o bispo
era um dos homens de melhor caráter de seu reino, senão que repreendeu azedamente
os acusadores por sua calúnia.
Tendo-se assinado a paz, Henrique e o rei francês Henrique o
Grande mostraram unanimidade na abolição da missa em seus reinos, e Cranmer se
lançou nesta grande tarefa; porém a morte do monarca inglês em 1546 levou à
suspensão desta ação, e o rei Eduardo VI, seu sucessor, confirmou a Cranmer nas
mesmas funções; em sua coroação lhe encomendou uma tarefa que sempre honrará
sua memória, por sua pureza, liberdade e verdade. Durante este reinado
continuou efetuando a gloriosa Reforma com um zelo incansável, até no ano 1552,
quando se viu açoitado por umas severas febres, aflição da qual aprouve a Deus
restaurá-lo, para que pudesse testemunhar com sua morte da verdade daquela
semente que havia plantado tão diligentemente.
A morte de Eduardo, em 1553, expus a Cranmer a toda a fúria
de seus inimigos. Embora o arcebispo estava entre os que haviam apoiado a
ascensão de Maria, foi arrestado ao reunir-se o parlamento, e em novembro foi
declarado culpável de alta traição em Guildhall, e degradado de suas
dignidades. Enviou uma humilde carta a Maria, explicando a causa de sua
assinatura do testamento em favor de Eduardo, e em 1554 escreveu ao Conselho, a
quem pressionou a pedir perdão à rainha, mediante uma carta entregada ao doutor
Weston, mas este a abriu e, ao ler seu conteúdo, cometeu a baixeza de
devolvê-la.
A traição era uma acusação totalmente inaplicável contra
Cranmer, quem havia apoiado o direito da rainha, enquanto outros, que haviam
favorecido a lady Jane foram liberados mediante o pagamento de uma pequena
multa. Agora se espalhou contra Cranmer uma calúnia de que havia acedido a
certas cerimônias papistas para congraçar-se com a rainha, o que ousou negar em
público, justificando seus artigos de fé. A ativa parte que o prelado tivera no
divórcio da mãe de Maria sempre tinha ficado profundamente encravada no coração
da rainha, e a vingança foi um rasgo destacado na morte de Cranmer.
Nesta obra temos mencionado as disputas públicas em Oxford,
nas que os talentos de Cranmer, Ridley e Latimer se mostraram de maneira tão
patente, e que levaram à sua condena. A primeira sentença foi ilegal, porquanto
o poder usurpado do Papa não tinha sido restabelecido de forma legal.
Deixados no cárcere até que isto esteve em último lugar, se
enviou uma comissão desde Roma, designando o doutor Brooks como representante
de Sua Santidade, e os doutores Story e Martin como os da rainha. Cranmer
estava disposto a submeter-se à autoridade dos doutores Story e Martin, mas
objetou a do doutor Brooks. Tais foram as observações e contestações de
Cranmer, após um longo interrogatório, que o doutor Brooks comentou:
"Viemos interrogar-vos a vós, e para que sois vós que nos interroga".
Enviado de novo a seu encerro, recebeu uma citação para
comparecer em Roma após dezoito dias; mas isto lhe era impossível, porquanto
estava encarcerado na Inglaterra, e como disse, ainda que tivesse estado livre,
era demasiado pobre para pagar um advogado. Por absurdo que pareça, Cranmer foi
condenado em Roma, e o 14 de fevereiro de 1556 se designou uma nova comissão
pela qual foram estabelecidos Thirlby, bispo de Ely, e Bonner, de Londres, para
agir em juízo em Christ Church, Oxford. Em virtude deste tribunal, Cranmer foi
degradado gradualmente, colocando-lhe uns míseros farrapos para representar as
vestes de um arcebispo. Tirando-lhe depois estas roupas, lhe arrancaram a
própria toga, e lhe colocaram acima uma velha; isto o suportou imperturbável, e
seus inimigos, ao ver que a severidade somente o deixava mais decidido,
tentaram o caminho oposto, e o alojaram em casa do arquidiácono do Christ
Church, onde foi tratado com todas as contemplações.
Isto constituiu tal contraste com os três anos de duro
encerro que havia sofrido que lhe fez baixar a guarda. Seu natural aberto e
generoso era mais susceptível a ser seduzido por uma conduta liberal que por
ameaças e correntes. Quando Satanás vê a um cristão a prova contra todo ataque,
tento outro. E que forma há mais sedutora que os sorrisos, as recompensas e o
poder, depois de um encarceramento longo e penoso? Assim aconteceu com Cranmer;
seus inimigos lhe prometeram sua anterior grandeza se se desdizia, e também o
favor da rainha, e isto quando já sabiam que sua morte tinha sido decidida no
Conselho. Para suavizar o caminho para a apostasia, o primeiro documento que
lhe apresentaram para assinar estava redigido em termos gerais; uma vez
assinado, outros cinco lhe foram sucessivamente apresentados como explicativos
do primeiro, até que no final assinou este detestável documento: "Eu, Tomás
Cranmer, anterior arcebispo de Canterbury, renuncio, aborreço e detesto toda
forma de heresias e erros de Lutero e Zuínglio, e todos os outros ensinos
contrários com a sã e verdadeira doutrinária. E creio com toda constância em
meu coração, e confesso com minha boca, uma igreja santa e católica visível,
fora da qual não há salvação; e por isso reconheço o bispo de Roma como o
supremo cabeça na terra, a quem reconheço como o mais elevado bispo e Papa, e
vicário de Cristo, a quem deveriam sujeitar-se todas as pessoas cristãs".
"No que respeita aos sacramentos, creio e adoro no
sacramento do altar o corpo e o sangue de Cristo, contidos bem verdadeiramente
sob as forma de pão e vinho; sendo o pão, pelo infinito poder de Deus,
transformado no corpo de nosso Salvador Jesus Cristo, e o vinho em seu
sangue".
"E nos outros seis sacramentos também (como neste) creio
e mantenho como o mantém a Igreja universal, e como o julga e determina a
Igreja de Roma".
"Creio também que há um lugar de purgação, onde as almas
dos defuntos são desterradas por um tempo, pelas quais a Igreja ora piedosa e
sadiamente, como também honra os santos e faz orações aos mesmos".
"Finalmente, em todas as coisas professo que não creio
de outra forma que o que mantém e ensina a Igreja Católica e a Igreja de Roma.
Sinto ter jamais mantido ou pensado coisa diferente. E rogo ao Deus Onipotente
que em sua misericórdia me outorgue o perdão por tudo o que tenho ofendido
contra Deus ou sua Igreja, e também desejo e rogo a todos os cristãos que orem
por mim".
"E que todos os que têm sido enganados já por meu
exemplo, já pela minha doutrina, lhes demando, pelo sangue de Jesus Cristo, que
voltem à unidade da Igreja, para que todos sejamos de um pensar, sem cismas nem
divisões".
"E para concluir, tal como me submeto à Católica Igreja
de Cristo, e a sua suprema cabeça, do mesmo modo me submeto a suas mais
excelentes majestades Felipe e Maria, rei e rainha deste reino de Inglaterra,
etc., e a todas suas outras leis e decretos, estando sempre como fiel súbdito
presto a obedecê-lhes. E Deus é testemunha que tenho feito isto não pelo favor
ou temor de ninguém, senão voluntariamente, e por minha própria consciência, em
quando a instruções de outros".
"O que pensa estar firme, olhe que não caia", disse
o apóstolo, e esta foi certamente uma queda! Os papistas tinham agora triunfado
de vez, obtendo dele tudo o que queriam aparte de sua vida. Sua retratação foi
imediatamente impressa e dispersada, para que surtisse seu efeito sobre os
atônitos protestantes. Mas Deus predominou sobre todos os desígnios dos
católicos pela sanha com a que executaram implacáveis a perseguição de sua
presa. É indubitável que o amor à vida foi o que induziu a Cranmer a assinar a
anterior declaração; porém pode-se dizer que a morte teria sido preferível para
ele que a vida, estando sob o aguilhão de uma consciência violada e do
menosprezo de cada cristão evangélico; e esta ação a sentiu com toda sua força
e angústia.
A vingança da rainha somente podia ser satisfeita com o
sangue de Cranmer, e portanto ela escreveu uma ordem ao doutor Pole para que
preparasse um sermão que devia ser predicado o 21 de março, diretamente antes
do martírio, em St. Mary's, Oxford. O doutor Pole o visitou uns dias antes, e o
induziu a acreditar que proclamaria publicamente suas crenças como confirmação
dos artigos que tinha assinado. Por volta das 9 da manhã do dia da imolação, os
comissionados da rainha, acompanhados pelos magistrados, levaram o gentil e
infortunado homem à Igreja de St. Mary's. Seu hábito esfarrapado e sujo, o
mesmo com o qual o vestiram quando o degradaram, excitou a compaixão da gente.
Na igreja encontrou uma pobre e mísera plataforma, levantada justo diante do
púlpito, onde o deixaram, e ali voltou o rosto e orou fervorosamente a Deus.
A igreja estava repleta de pessoas de ambas convicções,
esperando ouvir uma justificação de sua recente apostasia; os católicos
regozijando-se, e os protestantes profundamente feridos em seu espírito ante o
engano do coração humano. O doutor Pole denunciou em seu sermão a Cranmer como
culpável dos mais atrozes crimes; alentou o enganado sofredor a não temer a
morte, nem a duvidar do apoio de Deus em seus tormentos, nem de que se diriam
missas por ele em todas as igrejas de Oxford para o descanso de sua alma.
Depois o doutor observou sua conversão, a qual atribuiu à evidente operação do
poder do Onipotente, e a fim de que a gente se convencesse de sua realidade,
pediu ao prisioneiro que lhes desse um sinal. E Cranmer o fez, rogando a
congregação que orassem por ele, porque tinha cometido muitos e graves pecados;
porém de todos eles havia um que gravitava pesadamente sobre ele, do qual
falaria em breve.
Durante o sermão, Cranmer chorou amargas lágrimas, levantando
as mãos e o olhar ao céu e deixando-as cair, como se indigno de viver; sua dor
encontrou agora seu alívio nas palavras; antes de sua confissão caiu de
joelhos, e com as seguintes palavras desvelou a profunda convicção e agitação
que moviam sua alma.
"Oh, Pai do céu! Oh, Filho de Deus, Redentor do mundo!
Oh, Espírito Santo, três pessoas num Deus! tem misericórdia de mim, o mais
miserável dos covardes e pecadores. Pequei tanto contra o céu como contra a
terra, mais do que minha língua possa expressar. Aonde posso ir, ou aonde posso
fugir? Ao céu posso estar envergonhado de levantar meus olhos, e na terra não
acho lugar onde refugiar-me nem quem me socorra. A ti, pois, corro, Senhor;
ante ti me humilho, dizendo: oh, Senhor, meu Deus, meus pecados são grandes,
mas tem misericórdia Tu de mim por tua grande misericórdia. O grande mistério
de que Deus se fizesse homem não teve lugar por pequenas ou poucas ofensas. Tu
não nos deste a teu Filho, ó Pai celestial, à morte somente por pequenos
pecados, senão pelos maiores pecados do mundo, para que o pecador possa voltar
a ti de todo coração, como eu o faço agora. Por isso, tem misericórdia de mim,
oh, Deus, cuja qualidade é sempre ter misericórdia, tem misericórdia de mim,
oh, Senhor, por tua grande misericórdia. Nada anelo por meus próprios méritos,
senão por causa de teu nome, para que seja por isso santificado, e por causa de
teu amado Filho, Jesus Cristo. E agora, pois, Pai nosso que estás no céu,
santificado seja teu nome..." etc.
Depois, levantando-se disse que desejava antes de sua morte
fazer algumas piedosas observações pelas que Deus pudesse ser glorificado, e
eles mesmos edificados. Depois falou acerca do perigo do amor pelo mundo, do
dever da obediência a suas majestades, do amor de uns pelos outros, e da
necessidade de que os ricos ministrassem para as necessidades dos pobres. Citou
os três versículos do quinto capítulo de Tiago, e então prosseguiu: "Que
os ricos ponderem bem estas três sentenças: porque se jamais tiveram ocasião de
mostrar sua caridade, a têm agora neste tempo presente, havendo tantos pobres,
e sendo tão caros os alimentos".
"E agora, porquanto tem chegado o fim de minha vida, no
qual pende toda minha vida passada e a minha vida vindoura, bem para viver com
meu Senhor Cristo para sempre com gozo, ou bem para estar em penas sempiternas
com os malvados no inferno, e enxergo agora com meus olhos, neste momento, o
céu pronto para receber-me, ou o inferno prestes a engolir-me; por isso vos
exporei minha própria fé que acredito, sem cores nem engano algum, porque não é
agora o momento de enganar, seja o que for que tenha escrito em tempos
passados".
"Primeiro, creio em Deus o Pai Onipotente, Criador dos
céus e da terra, etc. e creio cada um dos artigos da fé católica, cada palavra
e frase ensinada por nosso Salvador Jesus Cristo, seus apóstolos e profetas, no
Novo e Antigo Testamento".
"E agora chego ao que tanto perturba minha consciência,
mais que nada do que tenha feito ou falado em toda minha vida, e é a difusão de
um escrito contrário à verdade que aqui agora renuncio e recuso como coisas
escritas por minha mão em contra da verdade que pensava em meu coração, e
escritas por temor à morte, e para salvar minha vida se isso for possível; e se
trata de todos aqueles documentos e papéis escritos ou assinados por minha mão
desde minha degradação nos que tenho escrito muitas coisas falsas. E porquanto
minha mão tem ofendido, escrevendo em contra de meu coração, por isso minha mão
será a primeira em ser castigada; porque quando chegue ao fogo será o primeiro
em ser queimado".
"Em quanto ao Papa, o rejeito como inimigo de Cristo e
Anticristo, com todas suas falsas doutrinas".
Ao concluir esta inesperada declaração, se respirava assombro
e indignação em todos os cantos da igreja. Os católicos estavam totalmente
confundidos, frustrados totalmente em seu intento, tendo Cranmer, a semelhança
de Sansão, causado uma maior ruína sobre seus inimigos na hora da morte que em
sua vida.
Cranmer teria desejado prosseguir em sua denuncia das
doutrinas papistas, porém os murmúrios dos idólatras afogaram sua voz, e o
predicador deu ordem de "Levai este herege!". A selvagem ordem foi
obedecida diretamente, e o cordeiro a pastor de sofrer foi arrancado de sua
plataforma para ser levado ao matadouro, xingado a todo o longo do caminho,
injuriado e escarnecido por aquela praga de monges e frades.
Com os pensamentos centrados num objeto muito mais elevado
que as vãs ameaças dos homens, chegou ao lugar maculado com o sangue de Ridley
e Latimer. Ali se ajoelhou para um breve tempo de fervorosa devoção, e depois
se levantou, para tirar a roupa e preparar-se para o fogo. Dois frades que
tinham participado da operação de lograr sua abjuração trataram agora de voltar
a afastá-lo da verdade, mas ele se mostrou firme e inamovível no que acabava de
professar e de ensinar em público. Lhe colocaram uma corrente para amarrá-lo à
estaca, e depois de tê-lo rodeado ferreamente com ela, acenderam a fogueira, e
as labaredas começaram a subir.
Então se fizeram manifestos os gloriosos sentimentos do
mártir, quem, estendendo sua mão direita, a manteve tenazmente sobre o fogo até
ficar reduzida a cinzas, incluso antes que seu corpo fosse danificado,
exclamando com freqüência: "Esta indigna mão direita!"
Seu corpo suportou a queima com tal firmeza que pareceu não
mexer-se mais que a estaca a qual estava sujeito. Seus olhos estavam fixos no
céu, enquanto repetia: "Esta indigna mão direita" durante o tempo que
sua voz lhe permitiu, e empregando muitas vezes as palavras de Estevão,
"Senhor Jesus, recebe meu espírito", entregou o espírito em meio de
uma grande flama.
A visão das três escadas de mão
Quando Robert Samuel foi conduzido para ser queimado, vários
dos que estavam perto dele o ouviram contar estranhas coisas que lhe tinham
acontecido durante o tempo de seu encarceramento; como que depois de ter estado
quase morrendo ed fome por dois ou três dias, caiu logo num sono como médio
adormecido, no qual lhe pareceu ver a um todo vestido de branco diante dele,
que o confortou com estas palavras: "Samuel, Samuel, tem ânimo, e alenta
teu coração; porque depois deste dia não estarás nem faminto nem sedento".
Não menos memoráveis nem menos dignas de menção são as três
escadas que narrou a vários que viu em seu sono, que subiam ao céu; uma delas
era um tanto mais compridas que as outras duas, porém no final se transformaram
numa só, unindo-se as três numa única.
Enquanto este piedoso mártir ia para o fogo, se aproximou
dele certa donzela, que o abraçou e o beijou; esta, observada pelos que estavam
perto, foi buscada no dia seguinte para lançá-la no cárcere e queimá-la, como a
mesma moça me informou; contudo, tal como Deus o ordenou em sua bondade, ela
fugiu de suas mãos ferozes, e se manteve oculta na cidade durante bastante
tempo depois.
Mas assim como esta moça, chamada Rose Nottingham, foi
maravilhosamente preservada pela providência de Deus, houve não obstante duas
honradas mulheres que caíram sob a fúria desatada daqueles tempos. A primeira
era a mulher de um cervejeiro, e a outra a mulher de um sapateiro, porém ambas
estavam agora desposadas a um novo marido, a Cristo.
Com estas duas tinha esta moça já mencionada uma grande
amizade; ao aconselhar ela a uma das casadas, dizendo-lhe que devia ocultar-se
enquanto tivesse tempo e oportunidade, recebeu esta resposta: "Sei muito
bem que para ti é legítimo fugir; este é um remédio que podes utilizar se
desejas. Meu caso é distinto. Estou ligada a meu marido, e além disso tenho
crianças pequenas em casa; por isso, estou decidida, por amor a Cristo, a
manter-me firme até o fim".
Assim, no dia seguinte que padecera Samuel, estas piedosas
mulheres, uma chamada Anne Ponen e a outra Joan Trunchfield, esposa de Michael
Trunchfield, sapateiro de Ipswich, foram encarceradas e lançadas juntas na
prisão. Como eram ambas, por seu sexo e constituição, mais bem fracas, foram
portanto menos capazes no princípio de resistir a dureza da prisão; e de forma
especial a mulher do cervejeiro se viu lançada numas agonias e angústias de
mente por isso. Porém Cristo, contemplando a debilidade de sua serva, não
deixou de ajudá-la nesta necessidade; e assim as duas sofreram depois de
Samuel, o 19 de fevereiro de 1556. e elas eram indubitavelmente as duas escadas
que, unidas à terceira, viu Samuel subindo para o céu. Este bem-aventurado
Samuel, servo de Cristo, tinha sofrido o 31 de agosto de 1555.
Conta-se entre os que estiveram presentes e que o viram ser
queimado, que ao queimar seu corpo resplandeceu nos olhos dos que estavam perto
dele, tão brilhante e branco como a prata de lei.
Quando Agnes Bongeor se viu separada se seus companheiros de
prisão se lamentou e se pus a gemer de tal modo, lhe sobrevieram tais estranhos
pensamentos à cabeça, se viu tão falta de assistência e desolada e afundou em
tal profundeza de desespero e de angústia, que foi um espetáculo lastimoso e
penoso; tudo porque ela não pôde ir com eles a dar sua vida em defesa de seu
Cristo; porque a vida era o que menos valorava de todas as coisas deste mundo.
Isso se devia a que aquela manhã na que não foi levada à
fogueira tinha-se colocado um vestido que havia preparado só para aquele
propósito. Tinha também um filho pequeno, de peito, a quem tinha guardado
docemente todo o tempo que estava no cárcere, até aquele dia em que também o
entregou a uma aia, preparando-se ela para entregar-se para o testemunho do
glorioso Evangelho Deus Jesus Cristo. Tão pouco desejava a vida, e tão
grandemente operavam nela os dons de Deus por sobre a natureza, que a morte lhe
parecia muito mais bem-aventurada que a vida. Depois disto começou a
estabilizar-se e a exercitar-se na leitura e na oração, o que lhe deu não pouco
consolo.
Pouco tempo depois chegou a ordem de Londres para que fosse
queimada, ordem que foi executada.
Hugh Laverick e John Aprice
Aqui vemos que nem a impotência da idade nem a aflição da
cegueira podiam desviar as garras assassinas destes monstros babilônicos. O
primeiro destes desafortunados era da paróquia de Barking, de sessenta e oito
anos de idade, pintor e paralítico. O outro era cego, escurecido certamente em
quanto a suas faculdades visuais, porém intelectualmente iluminado com a luz do
Evangelho eterno da verdade. Pessoas inofensivas que eram, foram denunciadas
por alguns filhos do fanatismo, e arrastados ente o sanguinário prelado de
Londres, onde sofreram um interrogatório, e replicaram os artigos que lhes
propuseram, como já tinham feito outros mártires cristãos. O 9 de maio, no
consistório de são Paulo, foram cominados a desdizer-se, e ao recusarem foram
enviados a Fulham, onde Bonner, depois de ter comido, como sobremesa os
condenou às agonias do fogo. Entregues ao braço secular o 15 de maio de 1556,
foram levados em carreta desde Newgate a Stratford-le-Bow, onde foram amarrados
à estaca. Quando Hugh Laverick ficou amarrado com a corrente, sem precisar já
de sua muleta, a lançou longe, dizendo-lhe a seu companheiro de martírio,
enquanto o consolava: "Alegra-te, meu irmão, porque o lorde de Londres é
um bom médico; pronto nos curará, a ti de tua cegueira, e a mi de minha
paralisia". E foram alimento das chamas, para levantar-se na imortalidade.
O dia depois dos anteriores martírios, Catherine Hut, de
Bocking, uma viúva, Joan Homs, solteira, de Billericay, e Elizabeth Thackwel,
solteira, de Great Burstead, sofreram a morte em Smithfield.
Tomás Dowry. Outra vez temos que registrar um ato de
crueldade implacável, cometido contra este rapaz, a quem o bispo Hooper tinha
confirmado no Senhor e no conhecimento da Palavra.
Não se sabe com certeza quanto tempo esteve este coitado
sofrente no cárcere. Pelo testemunho de John Paylor, atuador de Gloucester,
sabemos que quando Dowry foi feito comparecer ante o doutor Williams, então
chanceler de Gloucester, lhe foram apresentados os artigos usuais para que os
assinasse; ao dissentir dos mesmos, e ao exigi-lhe o doutor que lhe dissesse
quem e onde tinha aprendido suas heresias, o jovem respondeu: "Senhor
chanceler, as aprendi de vossa parte naquele mesmo púlpito. Em tal dia (citando
uma data) vós dissestes, ao predicar sobre o Sacramento, que devia ser exercido
espiritualmente pela fé, e não carnalmente, como o ensinam os papistas".
Então o doutor Williams o convidou a que se desdissesse, como ele mesmo tinha
feito; porém Dowry não tinha aprendido as coisas desta forma. "Embora vós
podais zombar tão facilmente de Deus, do mundo e de vossa própria consciência,
eu não agirei assim".
A preservação de George Crow e de seu Novo Testamento
Este coitado, de Malden, zarpou um 26 de maio de 1556 para
carregar em Lent terra, porém o barco encalhou num banco de areia, se encheu de
água, e perdeu toda a carga; contudo, Crow salvou seu Novo Testamento, e não
cobiçava nada mais. Com Crow estavam um homem e um rapaz, e sua terrível
situação se fez mais e mais alarmante com o passar dos minutos, e a embarcação
era inútil. Estavam a dez milhas de terra, esperando que a maré começasse logo
a subir sobre eles. Depois de orar a Deus, subiram ao mastro, e se aferraram a
ele por espaço de dez horas, até que o coitado rapaz, vencido pelo frio e o
esgotamento, caiu e se afogou. Ao descer a maré, Crow propus baixar os mastros
e flutuar sobre eles, e assim o fizeram; e às dez da noite se entregaram às
ondas. Na quarta-feira pela noite, o companheiro de Crow morreu de fadiga e
fome, e ele ficou sozinho, clamando a Deus que o socorresse. Afinal foi
recolhido pelo capitão Morse, rumo de Amberes, que quase tinham passado por
ele, tomando-o por uma bóia de pescador flutuando no mar. Tão logo como Crow
esteve a bordo, pus a mão em seu bolso e tirou seu Novo Testamento, que estava
desde logo molhado, porém sem maiores danos. Em Amberes foi bem recebido, e o
dinheiro que tinha perdido lhe foi mais que compensado.
Execuções em Stratford-le-Bow
Neste sacrifício que vamos detalhar, não menos de treze foram
condenados à fogueira.
Ao recusar cada um deles afirmar coisas contrárias a suas
consciências, foram condenados, e o 27 de junho de 1556 foi marcado como o dia
de sua execução em Stratford-le-Bow. Sua constância e fé glorificaram a seu
Redentor, o mesmo em vida que na morte,
O reverendo Julius Palmer
A vida deste cavalheiro mostra um singular exemplo de erro e
de conversão. Em tempos de Eduardo foi um rígido papista, tão adverso à piedosa
e sincera predicação que incluso era menosprezado por seu próprio partido; que
sua mentalidade mudasse, e sofresse perseguição em tempos da Rainha Maria,
constitui um daqueles acontecimentos da onipotência ante os que nos
maravilhamos e ficamos enchidos de admiração.
O senhor Palmer nasceu em Coventry, onde seu pai tinha sido
alcaide. Ao trasladar-se posteriormente a Oxford, chegou a ser, sob o senhor
Hartey, do Magdalen College, um elegante erudito de latim e grego. Adorava as
conversações interessantes, possuis um grande engenho e uma poderosa memória.
Infatigável no estudo privado, levantava-se às quatro da manhã, e com esta
prática se qualificou para chegar a ser o leitor de lógica no Magdalen College.
Mas ao favorecer a Reforma o reinado de Eduardo, viu-se freqüentemente
castigado por seu menosprezo à oração e à conduta ordenada, e foi finalmente
expulsado da instituição.
Depois abraçou as doutrinas da Reforma, o qual o levou a seu
arresto e final condena.
Um certo nobre lhe ofereceu a vida se abjurava. "Se
assim fizeres", lhe disse, "viverás comigo. E se pensas casar, te
conseguirei uma esposa e uma granja, e vos ajudarei a equipá-la. Que dizes a
isto?"
Palmer lhe agradeceu com muita cortesia, mas de forma muito
modesta e respeitosa lhe observou que já havia renunciado a viver em dois
lugares por causa de Cristo, pelo que pela graça de Deus estaria disposto
também a dar sua vida pela mesma causa, quando Deus o dispuser.
Quando Sir Richard viu que seu interlocutor não estava
disposto a ceder em absoluto, lhe disse: "Bem, Palmer, vejo que um de nós
dois vai condenar-se; porque somos de duas fés distintas, e estou bem certo de
que existe uma única fé que leva à vida e à salvação".
Palmer: "Bem, senhor, eu espero que ambos nos
salvemos".
Sir Richard: "E como poderá ser isto?"
Palmer: "De forma muito clara. Porque a nosso
misericordioso Deus lhe aprouve chamar-me, em conformidade com a parábola do
Evangelho, na terceira hora do dia, em meu florescimento, à idade de vinte e quatro
anos, assim como espero que vos tenha chamado, e vos chamará, na hora undécima
desta vossa velhice, para dar-vos vida eterna como vossa porção".
Sir Richard: "Isto dizes? Bem, Palmer, bem, gostaria ter
você um só mês em minha casa; não duvido que eu te converteria, ou que tu me
converterias".
Então disse o Master Winchcomb: "Apieda-te destes anos
dourados, e das prazerosas flores da frondosa juventude, antes que seja
demasiado tarde".
Palmer: "Senhor, anelo aquelas flores primaverais que
jamais murcharão".
Foi julgado o 15 de julho de 1556, junto com um companheiro
de prisão chamado Tomás Askin. Askin e um tal John Guin tinham sido
sentenciados o dia anterior, e o senhor Palmer foi levado o 15 para ouvir sua
sentença definida. Foi ordenado que a execução seguisse à sentença, e às 5
daquela mesma tarde estes mártires foram amarrados ao poste num lugar chamado
Sand-pits. Depois de ter orado devotamente juntos, cantaram o Salmo 31.
Quando foi aceso o fogo e pegou seus corpos, continuaram
clamando, sem dar aparência alguma de sofrer dor: "Senhor Jesus,
fortalece-nos! Senhor Jesus, recebe nossas almas!", até que ficou
suspendida sua vida e desapareceu o sofrimento humano. Deve destacar-se que
quando suas cabeças tiveram caído juntas como numa massa pela força das chamas,
e os espectadores achavam que Palmer estava já sem vida, de novo se mexeram sua
língua e lábios, e o ouviram pronunciar o nome de Jesus, a quem seja a glória e
a honra para sempre.
Joan Waste e outros
Esta pobre e honrada mulher, cega de nascimento e solteira,
de vinte e dois anos de idade, pertencia à paróquia de Todos os Santos, Derby.
Seu pai era barbeiro, e também fabricava cordas para melhor ganhar-se o
sustento. Nesta tarefa ela o ajudava, e também aprendeu a tecer vários artigos
de vestir. Recusando comunicar-se com aqueles que mantinham doutrinas
contrárias às que ela tinha aprendido nos dias do piedoso Eduardo, foi feita
comparecer ante o doutor Draicot, o chanceler do bispo Blaine, e ante Peter
Finch, oficial de Derby.
Tentaram confundir esta coitada moça com sofismas e ameaças,
mas ela ofereceu ceder à doutrina do bispo se este estiver disposto a responder
como no Dia do Juízo (como o havia feito o piedoso doutor Taylor em seus
sermões) de que sua crença na presença real do Sacramento era verdadeira. A
princípio, o bispo respondeu que o faria, mas ao lembrá-lo o doutor Draicot que
não podia de jeito nenhum responder por um herege, retirou sua confirmação de
suas próprias crenças; ela então lhes respondeu que se suas consciências não lhes
permitiam responder ante o tribunal de Deus pela verdade que eles queriam que
ela aceitasse, que ela não contestaria nenhuma outra de suas perguntas. Então
se pronunciou sentença, e o doutor Draicot foi encomendado para predicar o
sermão da condena da moça, o que teve lugar o 1 de agosto de 1556, o dia de seu
martírio. Ao terminar seu fulminante discurso, a coitada cega foi logo
conduzida a um lugar chamado Windmill Pit, perto da cidade, onde por um tempo
susteve a mão de seu irmão, e depois se separou para o fogo, pedindo à
compadecida multidão que orasse por ela, e a Cristo que tivesse misericórdia
dela, até que a gloriosa luz do eterno Sol de justiça resplandeceu sobre seu
espírito fora do corpo.
Em novembro, quinze mártires foram aprisionados no castelo de
Canterbury, os quais foram todos ou queimados ou deixados morrer de fome. Entre
estes últimos estavam J. Clark, D. Chittenden, W. Foster de Stonc, Mice
Potkins, y J. Archer, de Cranbrooke, tecelão. Os dois primeiros não tinham sido
condenados, mas os outros tinham sido sentenciados ao fogo. Foster, em seu
interrogatório, comentou acerca da utilidade de levar círios acesos no dia da
Candelária, que igual valeria levar uma forca, e que um patíbulo teria tanto
efeito como uma cruz.
Temos agora levado a seu fim as sanguinárias atuações da
impiedosa Maria, no ano 1556, cujo número se elevou acima de OITENTA E QUATRO.
O começo do ano 1557 foi notável pela visita do cardeal Pole
à Universidade de Cambridge, que parecia ter grande necessidade de ser limpada
de predicadores hereges e de doutrinas reformadas. Um objetivo era também
executar a farsa papista de julgar a Martinho Bucero e a Paulus Phagius, que
tinham estado enterrados já durante três ou quatro anos. Com este propósito, as
igrejas de Santa Maria e de são Miguel foram colocadas sob interdito como
lugares vis e ímpios, indignos do culto de Deus, até que fossem perfumadas e
lavadas com água benta papista, etc. o torpe ato de citar a comparecer a estes
defuntos reformadores não teve o mais mínimo efeito sobre eles, e o 26 de
janeiro se pronunciou sentença de condenação, parte da qual rezava assim, e
pode servir como amostra dos processos desta natureza: "Por isso
pronunciamos ao dito Martinho Bucero e a Paulus Phagius excomungados e
anatematizados, tanto pelas leis comuns como por cartas processais; e para que
sua memória seja condenada, condenamos também seus corpos e ossos (que no
malvado tempo do cisma, e florescendo outras heresias neste reino, foram
precipitadamente sepultados em terra sagrada) sejam exumados e lançados longe
dos corpos e ossos dos fiei, segundo os cânones santos, e mandamos que eles e
seus escritos, se encontram-se aqui quaisquer deles, sejam publicamente
queimados; e proibimos a todas as pessoas desta universidade, cidade ou lugares
limítrofes, que leiam ou escondam seus heréticos livros, tanto pela lei comum
como por nossas cartas processais".
Depois que a sentença fosse lida, o bispo mandou que seus
corpos foram exumados de seus sepulcros e, degradados de seus sagradas ordens,
entregues em mãos do braço secular; porque não lhes era legítimo a pessoas tão
inocentes, e odiando todo derramamento de sangue e detestando todo ânimo de
homicídio, dar morte a ninguém.
O 6 de fevereiro, seus corpo, dentro de seus ataúdes, foram
levados ao meio da praça do mercado em Cambridge, acompanhados por uma vasta
multidão. Se afincou um posto no chão, ao qual se amarraram os ataúdes com
grandes correntes, fixadas pelo centro, como se os conversão tivessem estado
vivos. Quando o fogo começou ascender e pegou nos ataúdes, foram lançados às
chamas também alguns livros dos condenados, para queimá-los. Contudo, no
reinado de Elizabete se fez justiça à memória destes piedosos e eruditos
homens, quando o senhor Ackworth, orador da universidade, e o senhor J. Pilkington
pronunciaram discursos em honra de sua memória, reprovando seus perseguidores
católicos.
O cardeal Pole infligiu também sua impotente fúria contra o
cadáver da mulher de Peter Martyr que, por ordem sua, foi exumado da sepultura,
e enterrado num distante estercoleiro, em parte porque seus ossos estavam muito
perto das relíquias de são Fridewide, que tinha sido anteriormente muito
estimado naquele colégio, e em parte porque queria purificar Oxford de restos
heréticos, igual que Cambridge. Porém no reinado que se seguiu, seus restos
foram restaurados a seu anterior cemitério, e inclusive misturados com os do
santo católico, para assombro e mortificação absolutos dos discípulos de Sua
Santidade o Papa.
O cardeal Pole publicou uma lista de cinqüenta e quatro
artigos contendo instruções para o clero de sua diocese de Canterbury, alguns
dos quais são demasiado ridículos e pueris para excitar em nossos dias outra
coisa senão o riso.
Perseguições na diocese de Canterbury
No mês de fevereiro foram encerradas em prisão as seguintes
pessoas: R. Coleman, de Waldon, um operário; Joan Winseley, mulher solteira de
Horsley Magna; S. Glover, de Rayley; R. Clerk, de Much Holland, marinheiro; W.
Munt, de Much Bendey, serrador; Margaret Field, de Ramsey, mulher solteira; R.
Bongeor, curtidor; R. Jolley, marinheiro; Allen Simpson, Helen Ewire, C.
Pepper, viúva; Alice Walley (que se desdisse); W. Bongeor, vidraceiro, todos
eles de Colchester; R. Atkin, de Halstead, tecelão; R. Barbock, de Wilton,
marceneiro; R. George, de Westbarhonlt, operário; R. Debnam de Debenham,
tecelão; C. Wanen, de Cocksall, solteira; Agnes Whitlock, de Dover-court,
solteira; Rose Allen, solteira; y T. Feresannes, menor; ambos de Colchester.
Estas pessoas foram feitas comparecer ante Bonner, que as teria
feito executar imediatamente, mas o cardeal Pole era partidário de medidas
muito mais misericordiosas, e Bonner, numa de suas cartas ao cardeal, parece
estar consciente de que o havia desagradado, porque utiliza esta expressão:
"Pensei em mandá-los a todos a Fulham, e pronunciar ali sentença contra
eles; contudo, percebendo que em minha última atuação vossa graça se ofendeu,
achei meu dever, antes de prosseguir, informar a vossa graça". Esta
circunstância confirma o relato de que o cardeal era uma pessoa com humanidade;
e embora um católico zeloso, nós, como protestantes, estamos dispostos a
rendê-lhe a honra que merece seu caráter misericordioso. Alguns dos acerbos
perseguidores o denunciaram ante o Papa como favorecedor de hereges, e foi
chamado a Roma, porém a Rainha Maria, por um rogo particular, logrou sua
permanência na Inglaterra. Contudo, antes do final de sua vida, e pouco antes
de sua última viagem de Roma a Inglaterra, esteve sob graves suspeitas de
favorecer a doutrina de Lutero.
Assim como no último sacrifício quatro mulheres honraram a
verdade, igualmente no seguinte auto de fé temos um número semelhante de
mulheres e varões que sofreram, o 30 de junho de 1557, em Canterbury, e que se
chamavam J. Fishcock, F. White, N. Pardue, Barbary Final, que era viúva, a
viúva de Barbridge, a esposa de Wilson e a esposa de Benden.
Deste grupo observaremos mais particularmente a Alice Benden,
mulher de Edward Benden, de Staplehurst, em Kent. Tinha sido arrestada em
outubro de 1556 por não assistência, e liberada com estritas ordens de emendar
sua conduta. Seu marido era um fanático católico, e ao falar em público da
contumácia de sua mulher, foi enviada ao castelo de Canterbury, onde sabendo
quando fosse enviada ao cárcere do bispo seria matada de fome com uma misérrima
quantidade de alimentos ao dia, começou a preparar-se para este sofrimento
tomando uma mínima refeição diária.
O 22 de janeiro de 1557, se marido escreveu ao bispo que caso
se impedisse que o irmão de sua mulher, Roger Hall, a continuasse confortando e
ajudando, talvez ela voltaria atrás; por isso foi trasladada à prisão chamada
Monday's Hole. Seu irmão a buscou com diligência, e depois de cinco semanas, de
forma providencial, ouviu sua vos numa masmorra, mas não pôde dar-lhe outro
alívio que pôr algo de dinheiro num pedaço de pão, e alcançá-lo com a ajuda de
uma longa vara. Deve ter sido terrível a situação desta pobre vítima, jazendo
na palha, entre paredes de pedra, sem trocar de vestido nem com os mais mínimos
requisitos de limpeza durante nove semanas!
O 25 de março foi chamada diante do bispo, que lhe ofereceu a
liberdade e recompensas se voltava a sua casa e se submetia. Mas a senhora
Benden tinha-se acostumado ao sofrimento, e mostrando-lhe os braços contraídos
e seu rosto famélico, recusou afastar-se da verdade. Sem embargo, foi tirada
deste buraco escuro e levada a West Gate, de onde foi tirada no final de abril
para ser condenada e depois lançada na prisão do castelo até o 19 de junho, dia
em que deveria ser queimada. Na estaca deu seu lenço a um homem chamado John
Banns como memória, e do cinto tirou uma renda branca, pedindo-lhe que a
entregasse a sua irmã, dizendo-lhe que era a última atadura que tinha levado, a
exceção da corrente; e a seu pai devolveu um xelim que tinha-lhe enviado.
Estes sete mártires tiraram as roupas com presteza, e já
preparados se ajoelharam, e oraram com tal fervor e espírito cristão que até os
inimigos da cruz se sentiram afetados. Depois de ter feito uma invocação
conjunta, foram amarrados à estaca e, rodeados de implacáveis labaredas,
entregaram suas almas em mãos do Senhor vivo.
Matthew Plaise, um tecelão e cristão sincero e agudo, foi
levado diante de Tomás, bispo de Dover, e de outros inquisidores, aos que
embromou engenhosamente com suas respostas indiretas, das que se segue uma
amostra:
Doutor Harpsfield: Cristo chamou ao pão Seu corpo; que dizes
tu que é?
Plaise: Creio que é o que lhes deu.
Dr. H.: E que era?
P: O que Ele partiu.
Dr. H.: E que partiu?
P: O que tomou.
Dr. H.: Que tomou?
P: Digo eu que o que lhes deu, o que certamente comeram.
Dr. H.: Bem, então tu dizes que era somente pão o que os
discípulos comeram.
P: Eu digo que o que Ele lhes deu é o que eles
verdadeiramente comeram.
Seguiu-se uma discussão muito prolongada, na qual pediram a
Plaise que se humilhasse ante o bispo; mas a isto ele recusou. Não se sabe se
este valoroso homem morreu no cárcere, se foi executado ou liberado.
O reverendo John Hullier
O reverendo John Hullier se educou no Eton College, e com o
tempo veio ser vigário de Babram, a três milhas de Cambridge, e depois foi a
Lynn, onde, ao opor-se à superstição dos papistas, foi levado ante o doutor
Thirlby, bispo de Ely, e enviado ao castelo de Cambridge; aqui esteve um tempo,
e depois foi enviado à prisão de Tolbooth onde, depois de três meses, foi
conduzido à Igreja de Santa Maria, e ali condenado pelo doutor Fuller. Na
Quinta-Feira Santa foi levado à fogueira; enquanto tirava as roupas, disse as
pessoas que estava a ponto de sofrer por uma causa justa, e os exortou a
acreditar que não havia outra rocha senão Jesus Cristo sobre a qual edificar.
Um sacerdote chamado Boyes pediu então ao alcaide que o silenciasse. Depois de
orar, foi mansamente à fogueira, e amarrado então com uma corrente e metido num
barril de alcatrão, pegaram fogo às canas e à lenha. Mas o vento arrastou o
fogo diretamente detrás dele, o que o fez orar tanto mais fervorosamente sob
uma severa agonia. Seus amigos pediram ao verdugo que acendesse os feixes com o
vento em sua cara, o que foi feito de imediato.
Lançaram agora uma quantidade de livros ao fogo, um dos quais
(o Serviço de Comunhão) ele pegou, o abriu, e gozosamente ficou lendo-o, até
que o fogo e a fumaça o privaram da visão; mas incluso então, em fervorosa
oração, apertou o livro contra seu coração, dando graças a Deus por dar-lhe, em
seus últimos momentos, este dom tão precioso.
Sendo cálido o dia, o fogo ardeu violentamente; num momento
determinado, quando os espectadores pensavam que já tinha deixado de existir,
exclamou repentinamente: "Senhor Jesus, recebe meu espírito!", e com
mansidão entregou sua vida. Foi queimado em Jesus Greden, não longe do Jesus
College. Tinham-lhe colocado pólvora, porém morreu antes que se acendesse. Este
piedoso mártir constituiu um singular espetáculo, porque sua carne ficou tão
queimada desde os ossos, que continuaram erguidos, que apresentou a idéia de
uma figura esquelética acorrentada numa estaca. Seus restos foram ansiosamente
tomados pela multidão, e venerados por todos os que admiraram sua piedade ou
detestavam o desumano fanatismo.
Simão Miller e Elizabete Cooper
No seguinte mês de julho estes dois receberam a coroa do
martírio. Miller vivia em Lynn, e acudiu a Norwich, onde, colocando-se à porta
de uma das igrejas, enquanto a gente saia, pediu saber onde poderia ir para
receber a Comunhão. Por esta causa, o sacerdote o fez levar diante do doutor
Dunning, que o fez encerrar; porém depois o deixaram voltar a sua casa para
arranjar seus assuntos; após isso voltou à casa do bispo, e a seu cárcere, onde
permaneceu até o 13 de julho, dia em que foi queimado.
Elizabete Cooper, mulher de um artesão de metais de St.
Andrews, Norwich, tinha-se retratado; porém, atormentada pelo que tinha feito
pelo verme que nunca morre, pouco depois se dirigiu voluntariamente a sua
igreja paroquial durante o momento do culto papista, e, em pé, proclamou de
forma audível que revogava sua anterior retratação, e advertiu a gente que
evitasse seu indigno exemplo. Foi tirada de sua casa pelo senhor Sunon, o
xerife maior, que muito contra sua vontade cumpriu com a letra da lei,
porquanto tinham sido servos e amigos no passado. Na estaca, a coitada mulher,
sentindo o fogo, gritou, ao qual o senhor Miller, passando a mão por detrás
dele para ela, a animou, "porque (disse), boa irmã, teremos um gozoso e
feliz jantar". Alentada por este exemplo e exortação, se manteve
inamovível na terrível prova e demonstrou, junto com ele, o poder da fé sobre a
carne.
Execuções em Colchester
Já mencionamos antes que vinte e duas pessoas tinham sido
enviadas desde Colchester, as quais, com uma ligeira submissão, foram depois
liberadas. Delas, William Munt, de Much Bentley, granjeiro, com sua mulher
Alice e Rose Allin, sua filha, após voltar a casa, se abstiveram de ir à
igreja, o que induziu o fanático sacerdote a escrever secretamente a Bonner.
Durante um certo tempo se ocultaram, mas ao voltar o 7 de março, um tal Edmund
Tyrrel (parente do Tyrrel que deu morte ao rei Eduardo V e a seu irmão) entrou
com oficiais na casa enquanto Munt e sua mulher estavam na cama, informando-lhes
que deviam ir ao castelo de Colchester. A senhora Munt estava então muito
doente, e pediu que sua filha lhe desse algo para beber. Rose recebeu permissão
para isso, e pegou uma vela e uma jarra; ao voltar a casa se encontrou com
Tyrrel, que lhe ordenou que aconselhasse seus pais que se tornassem bons
católicos. Rose lhe informou em poucas palavras que tinham o Espírito Santo
como conselheiro, e que ela estava disposta a dar sua vida pela mesma causa.
Voltando-se para a companhia, lhes declarou que estava pronta para ser
queimada; então um deles lhe disse que a provasse, para ver de que seria ela
capaz no futuro. O insensível desalmado executou no instante esta proposta;
tomando a moça por uma munheca, manteve a vela acendido sob sua mãe, queimando-a
transversal-mente no dorso, até que os tendões se separaram da carne, durante o
qual a insultou com muitos qualificativos insultantes. Ela suportou
imperturbável esta fúria, e depois, quando ele houve terminado a tortura, ela
lhe disse que começasse por seus pés ou por sua cabeça, pois não tinha medo que
seu cruel patrão fosse algum dia castigá-lo por isso. Depois levou a bebida a
sua mãe.
Este cruel ato de tortura não está isolado. Bonner tinha
tratado a um coitado harpista de uma maneira muito semelhante, por ter mantido
firmemente a esperança de que ainda que lhe queimassem todas as articulações,
não se afastaria de sua fé. Com isto, Bonner, fez um sinal em secreto aos
homens para que trouxessem brasas acesas, que colocaram na mão daquele coitado,
fechando-a pela força, até que queimou profundamente na carne.
George Eagles, um alfaiate, foi acusado de ter orado que
"Deus mudará o coração da Rainha Maria, ou a arrebatará"; a causa
ostensível de sua morte foi sua religião, porque dificilmente poderia ter sido
acusado de traição por ter orado pela reforma de uma alma tão execrável como a
de Maria. Condenado por este crime, foi arrastado sobre um trenó até o lugar da
execução, junto com dois bandidos, que foram executados com ele. Depois que
Eagles subisse a escadinha e tivesse permanecido pendurado durante um certo
tempo, foi despedaçado antes de ter ficado por completo inconsciente; um xerife
chamado William Swallow o arrastou então ao trenó, e com um machado velho
cortou-lhe torpemente a cabeça, e com vários golpes; de uma forma igual de
torpe e cruel abriu-lhe o corpo em canal e lhe desgarrou o coração.
Em meio de todos estes sofrimentos, o pobre mártir não se
queixou, senão que clamou a seu Salvador. A fúria destes fanáticos não acabou
aqui. Seus intestinos foram queimados e o corpo despedaçado, enviando-se os
quatro quartos a Colchester, Harwich, Chelmsford e St. Rouse's. Chelmsford teve
a honra de reter sua cabeça, que foi encravada numa estaca na praça do mercado.
Após um tempo foi deitada pelo vento, e ficou vários dias na rua, até que foi
sepultada uma noite no pátio da igreja. O juízo de Deus caiu pouco depois sobre
Swallow, que em sua velhice ficou reduzido á mendicância, e foi flagelado por
uma lepra que o tornou horroroso até para os animais; e tampouco escapou da mão
vingadora de Deus Richard Potts, que angustiou Eagles em seus momentos finais.
A senhora Lewes
Esta senhora era a mulher do senhor T. Lewes, de Manchester.
Tinha recebido como verdadeira a religião romanista, até a queima daquele piedoso
mártir que tinha sido o senhor Saunders de Coventry. Ao saber que sua morte
surgia de uma rejeição de receber a missa, começou a inquirir pela base desta
rejeição, e sua consciência, ao começar a ser iluminada, começou a agitar-se e
alarmar-se. Nesta inquietude, recorreu ao senhor John Glover, quem vivia perto,
e lhe pediu que lhe desvendasse aquelas ricas fontes que possuía de
conhecimento dos Evangelhos, particularmente acerca da questão da
transubstanciação. Conseguiu convencê-la facilmente de que a mascarada do
papado e da missa estavam em contra da santíssima Palavra de Deus, e a
repreendeu fielmente por seguir excessivamente as vaidades de um mundo malvado.
Para ela foi em vida futura uma palavra oportuna, porque logo cansou de sua
anterior vida de pecado, e resolveu abandonar a missa e o culto idolátrico.
Embora obrigada à força pelo marido a ir à igreja, seu menosprezo pela água
benta e por outras cerimônias era tão evidente que foi acusada ante o bispo por
desprezo dos sacramentos.
De imediato seguiu-se uma citação, dirigida a ela, que foi
dada ao senhor Lewes, que, num arrebato de paixão, pus uma adaga no pescoço do
oficial e o fez comê-la, e depois o obrigou a beber água para fazê-la descer, e
então o fez sair. Por esta ação o bispo citou o senhor Lewes ante ele, igual
que sua mulher; este se submeteu com presteza, porém ela afirmou com resolução
que ao recusar a água benta nem ofendia a Deus nem quebrantava nenhuma de Suas
leis. Foi enviada a sua casa durante um mês, sendo seu marido fiador pecuniário
pelo comparecimento dela; durante este tempo o senhor Glover a convenceu da
necessidade de fazer o que fazia não por vaidade, senão pela honra e glória de
Deus.
O senhor Glover e outros exortaram seriamente a Lewes a
perder o dinheiro que tinha pagado de fiança antes de entregar a sua mulher a
uma morte certa, mas ficou surdo à voz da humanidade, e a entregou ao bispo,
que logo achou causa suficiente para enviá-la a uma imunda prisão, de onde foi
algumas vezes tirada para ser submetida a interrogatórios. No final, o bispo
arrazoou com ela acerca do justo que era para ela ir à missa e receber como
sagrado o Sacramento e os outros sacramentos do Espírito Santo. "Se estas
coisas estivessem na Palavra de Deus", disse-lhe a senhora Lewes, "as
receberia de todo coração, acreditando nelas e apreciando-as". O bispo lhe
respondeu com a mais ignorante e ímpia insolência: "Se não queres crer
mais que o que está justificado pelas Escrituras, estás em estado de
condenação!". Atônita ante esta declaração, esta digna sofredora replicou
com razão que suas palavras eram tão impuras quanto blasfemas.
Depois de ser sentenciada, permaneceu doze meses encarcerada,
não estando disposto o xerife maior a executá-la durante o exercício de seu
cargo, ainda que o acabavam de escolher para o mesmo. Quando chegou a ordem
para sua execução desde Londres, ela enviou buscar uns amigos, aos que
consultou acerca de em que forma poderia sua morte ser gloriosa para o nome de
Deus, e prejudicial para a causa dos inimigos. Sorrindo, disse: "Em quanto
a minha morte, me é pouca coisa. Quando sei que contemplarei a amante face de
Cristo, meu amado salvador, o feio rosto da morte não me preocupa
demasiado". A véspera antes de sofrer, dois sacerdotes desejavam vivamente
visitá-la, mas ela recusou tanto confessar-se como receber a absolvição,
porquanto podia manter melhor comunicação com o Sumo Sacerdote das almas. Por
volta das três da madrugada, Satanás começou a lançar seus dardos acesos,
colocando dúvidas em sua mente acerca de se teria sido escolhida para a vida
eterna, e se Cristo teria morrido por ela. Seus amigos lhe indicaram com
presteza aquelas passagens consoladoras da Escritura que confortam o coração
fatigado, e que tratam do Redentor que tira os pecados do mundo.
Por volta das 8, o xerife maior lhe anunciou que tinha só uma
hora de vida; no princípio sentiu-se abatida, porém logo se repus, e deu graças
a Deus de que sua vida seria logo dedicada a Ser serviço. O xerife deu
permissão a dois amigos para que a acompanhassem à estaca, indulgência esta
pela qual foi depois severamente tratado; ao ir para o lugar quase desmaiou,
devido à grande distância, sua grande debilidade e a multidão que se
aglomerava. Três vezes orou fervorosamente a Deus para que livrasse a terra do
papismo e da idolátrica missa; e a maioria da gente, assim como o xerife maior,
disseram amém.
Quando houve orado, tomou aquele cálice (que tinha sido
enchido de água para refrescá-la) e disse "Bebo para todos aqueles que sem
fingimento amam o Evangelho de Cristo, e brindo pela abolição do papado".
Seus amigos, e muitas mulheres do lugar, beberam com ela, pelo que à maioria
delas foram depois impostas penitências.
Quando foi acorrentada à estacam seu rosto estava alegre, e o
rubor de suas faces não esvaeceu. Suas mãos estiveram estendidas para o céu até
que o fogo a deixou sem forças, quando sua alma foi recebida nos braços do
Criador. A duração de sua agonia foi breve, porque o xerife, a petição de seus
amigos, tinha preparado uma lenha tão boa que em poucos minutos ficou abrumada
pela fumaça e as chamas. O caso desta mulher fez brotar lágrimas de compaixão
em todos aqueles cujo coração não estava endurecido.
Execuções em Islington
Por volta do 17 de setembro sofreram em Islington os quatro
seguintes confessores de Cristo: Ralph Allerton, James Austoo, Margery Austoo,
e Richard Roth.
James Austoo e sua mulher, de A'lhallows, em Baiking,
Londres, foram sentenciados por não crer na presença. Richard Roth rejeitou os
sete sacramentos, e foi acusado de ajudar os hereges pela seguinte carta,
escrita com seu próprio sangue, e que tinha tratado de enviar a seus amigos de
Colchester:
Queridos irmãos e irmãs:
Quanto maior razão tendes para regozijar-vos em Deus por
ter-vos dado tal fé para sobrepor-vos até agora a este sanguinário tirano! E é
indubitável que Aquele que tem começado a boa obra em vós outros, a consumará
até o fim. Oh, queridos corações em Cristo, que coroa de glória recebereis com
Cristo no Reino de Deus! Queira Deus que tivesse estado pronto para ir
convosco; porque estou de dia no incômodo, subministrada pelo xerife, e de
noite jazo na carvoeira, afastado de Ralph Allerton ou de qualquer outro; e
esperamos cada dia quando seremos condenados; porque ele disse que seria
queimado no período de dez dias antes da Páscoa; continuo estando à borda do
estanque, e cada um entra antes que eu; porém esperamos pacientemente a vontade
do Senhor, com muitas correntes, com ferros e cepos, pelos que temos recebido
grande gozo de Deus. e agora que vos vá bem, queridos irmãos e irmãs, neste
mundo, pois espero vê-los no céu face a face".
Oh, irmão Munt, com tua mulher e tua irmã Rose, quão
bem-aventurados sois no Senhor, que vos tem achado dignos de padecer por Sua
causa!, e isso com todo o resto de meus queridos irmãos e irmãs, conhecidos ou
desconhecidos. Gozai-vos até a morte. Não temais, disse Cristo, porque eu venci
a morte. Oh, querido coração, vendo que Jesus Cristo será nossa ajuda, espera
até que Ele o deseje. Sede fortes, que se alentem vossos corações, e esperai
quietos no Senhor. Ele está perto. Sim, o anjo do Senhor coloca sua tenda em
volta dos que o temem, e os livra da forma que melhor lhe parece. Porque nossas
vidas estão em mãos do Senhor; e não nos podem fazer nada se o Senhor não lhes
permitir. Por isso, dai todos graças a Deus.
Oh, queridos corações, serei revestidos de longas vestes
brancas no monte Sião, com a multidão dos santos, e com Jesus Cristo nosso
Salvador, que jamais nos desamparará. Oh, bem-aventuradas virgens, tendes
jogado o papel de virgens prudentes ao ter tomado azeite em vossas lâmpadas,
para poder entrar com o Esposo, quando venha, para o gozo eterno com Ele.
Porém, quanto às insensatas, ser-lhes-á fechada a porta, pois não se dispuseram
a sofrer com Cristo, nem a levar sua cruz. Oh, queridos corações, quão preciosa
será vossa morte aos olhos do Senhor!, porque preciosa lhe é a morte de Seus
santos. Que vos vá bem, e continuai orando. Seja convosco a graça de nosso
Senhor Jesus Cristo. Amém, amém. Orai, orai, orai!"
Escrito por mim, com meu próprio sangue,
RICHARD ROTH"
Esta carta, na que se denomina com tanta justiça a Bonner
como "sanguinário tirano" não era provável que excitasse sua
compaixão. Roth o acusou de levá-lo a interrogar secretamente e de noite,
porque tinha medo de dia à gente. Resistindo-se a todas as tentações de
abjurar, foi condenado, e o 17 de setembro de 1557 estes quatro mártires
morreram em Islington, pelo testemunho do Cordeiro, que foi imolado para que
eles pudessem ser os remidos de Deus.
John Noyes, um sapateiro de Laxfield, Suffolk, foi levado a
Eye, e na meia-noite do 21 de setembro de 1557 o levaram de novo de Eye para
Laxfield, para ser queimado. Na manhã seguinte foi conduzido ao poste,
preparado para o horrendo sacrifício. O senhor Noyes, ao chegar no lugar fatal,
e ajoelhou, orou e recitou o Salmo 50. Quando a corrente o rodeou, disse:
"Não temais os que matam o corpo, mas temei Àquele que pode matar corpo e
alma, e lançá-los no fogo eterno!". Enquanto um tal Cadman lhe colocava um
feixe de lenha sobre ele, bendisse a hora em que havia nascido para morrer pela
verdade; e enquanto se confiava somente aos méritos todo-suficientes do
Redentor, pegaram fogo à pira, e em pouco tempo o fogo devorador apagou suas
últimas palavras: "Senhor, tem misericórdia de mim! Cristo, tem misericórdia
de mim!". As cinzas de seu corpo foram sepultadas num fosso, e com elas um
de seus pés, inteiro até o tornozelo, com a meia colocada.
A senhora Cicely Ormes
Esta jovem mártir, de vinte e dois anos de idade, estava
casada com o senhor Edmund Ormes, tecelão de estame de St. Lawrence, Norwich.
Ao morrer Miller e Elizabete Cooper, antes mencionados, ela disse que desejava
partilhar do mesmo cálice que eles haviam bebido. Por estas palavras foi levada
até o chanceler, que a teria liberado sob sua promessa de assistis à igreja e
de guardar-se suas crenças para si mesma. Como ela não estava disposta a
consentir nisto, o chanceler a pressionou dizendo que tinha-lhe mostrado mais
indulgência a ela que a ninguém porque era uma mulher ignorante e insensata; a
estas palavras respondeu ela (quiçá com maior agudeza da que ele esperava) que
por grande que fosse o desejo dele de dar perdão a sua pecaminosa carne, não
poderia igualar-se ao desejo dela de oferecê-la numa briga de tanta
importância. O chanceler pronunciou então a sentença condenatória, e o 23 de
setembro de 1557 foi levada à estaca, às 8 da manhã.
Depois de proclamar sua fé ante a gente, pus sua mão sobre a
estaca, e disse: "Bem-vinda, cruz de Cristo". Sua mão ficou cheia de
fuligem ao fazer isto porque era a mesma estaca em que tinham sido queimados
Miller e Cooper; no princípio ela a limpou, porém de imediato voltou sujá-la e
se abraçou a ela como à "doce cruz de Cristo". Depois que os
carrascos tivessem acendido o fogo, disse: "Engrandece minha alma o Senhor,
e meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador". Depois, cruzando suas
mãos sobre seu peito, e olhando para acima com a maior serenidade, suportou o
ardente fogo. Suas mãos continuaram levantando-se gradualmente até que ficaram
secos os tendões, e depois caíram. Não pronunciou exclamação alguma de dor,
senão que entregou sua vida, um emblema daquele paraíso celestial no qual está
a presença de Deus, bendito pelos séculos.
Poderia-se dizer que esta mártir buscou voluntariamente sua
própria morte, porquanto o chanceler apenas se lhe exigiu outra penitencia que
a de guardar para si mesma duas crenças; mas parece neste caso como se Deus a
tiver escolhido como luz resplandecente, porque doze meses antes de ser
apresada tinha-se retratado; porém se sentiu muito desgraçada até que o
chanceler foi informado, por meio de uma carta, que se arrependia de sua
retratação desde o mais fundo de seu coração. Como que para compensar por sua
anterior apostasia e para convencer os católicos de que não tinha já mais intenções
de entrar em acordos por sua seguridade pessoal, recusou abertamente seu
amistoso oferecimento de permiti-lhe contemporizar. Seu valor em tal causa
merece elogio; era a causa dAquele que disse: "Aquele que se envergonhar de mim
na terra, dele me envergonharei eu no céu.
O reverendo John Rough
Este piedoso mártir era escocês. Aos dezessete anos entrou a
formar parte da ordem dos frade pretos em Stirling, na Escócia. Tinha sido
excluído de uma herança por seus amigos, e deu este passo como vingança pela
conduta deles. Depois de ter permanecido lá dezesseis anos, sentido simpatia
por ele lorde Hamilton, conde de Arran, o arcebispo de St. Andrews induziu o
provincial da casa a que dispensasse seu hábito e ordem; e assim veio ser
chapelão do conde. Permaneceu neste emprego espiritual durante um ano, e
naquele tempo Deus o levou ao conhecimento salvador da verdade; por esta razão
o conde o enviou a predicar na liberdade de Ayr, onde permaneceu durante quatro
anos; porém ao ver que se abatia o perigo devido às características religiosas
da época, e sabendo que havia muita liberdade para o Evangelho na Inglaterra,
se dirigiu ao duque de Somerset, então lorde Protetor da Inglaterra, quem lhe
concedeu um salário anual de vinte libras, e o autorizou a predicar em
Carlisle, Berwick e Newcastle, onde casou. Foi depois enviado a uma reitoria em
Hull, onde permaneceu até a morte de Eduardo VI.
Como conseqüência da maré de perseguição que então começou,
fugiu com sua mulher à Frísia, e a Nordon, onde se ocuparam em tecer meias,
bonés, etc., para ganhar a vida. Incomodados nesta atividade por falta de
materiais, foi à Inglaterra para procurar-se uma quantidade, e o 10 de novembro
chegou a Londres, onde logo soube de uma sociedade secreta de fiéis, a qual se
uniu, e da qual logo foi escolhido ministro, ocupação na que os fortaleceu com
toda boa resolução.
O 12 de dezembro, por denúncia de um chamado Taylor, membro
da sociedade, foi apresado um membro dela, chamado Rough, com Cuthbert Symson e
outros, em Saracen's Head, Islington, onde celebravam seus serviços religiosos
sob a coberta de presenciar uma função teatral. O secretário do ajudante de
câmara da rainha levou a Rough e a Symson ante o Conselho, em presença do qual
foram acusados de reunir-se para celebrar a Comunhão. O Conselho escreveu a
Bonner, e este não perdeu tempo neste sanguinário assunto. Em três dias o teve
diante dele, e no seguinte (o 20) decidiu condená-lo. as acusações contra ele
eram que sendo sacerdote estava casado, e que havia rejeitado o serviço em
língua latina. Rough não carecia de argumentos para contestar estas
fraquíssimas acusações. Em resumo, foi degradado e condenado.
Deveria observar-se que o senhor Rough, quando estava no
norte, tinha salvado a vida do doutor Watson durante o reinado de Eduardo, e
este estava sentado junto ao bispo Bonner no tribunal. Este ingrato prelado,
como recompensa pela bondade recebida, o acusou abertamente de ser o mais
pernicioso herege do país. O piedoso ministro o repreendeu por mostrar um
espírito tão malicioso; afirmou que durante seus trinta anos de vida nunca
havia dobrado seu joelho ante Baal; e que duas vezes em Roma tinha visto o Papa
levado em ombros de homens com o falsamente chamado Sacramento diante dele,
apresentando uma verdadeira imagem do mesmíssimo Anticristo; e que contudo lhe
mostravam mais reverência a ele que à imagem da hóstia, que eles consideravam
seu Deus. "Ah", disse Bonner, levantando-se e dirigindo-se a ele,
como se desejasse desgarrar suas vestes. "Tens estado em Roma, e visto
nosso santo pai o Papa, e blasfemas dele deste modo?". Dito isto, se
lançou sobre ele, lhe arrancou um pedaço da barba, e para que o dia começasse com
satisfação sua, ordenou que o objeto de sua ira fosse queimado às cinco e meia
da manhã seguinte.
Cuthbert Symson
Poucos confessores de Cristo exibiram mais atividade e zelo
que esta excelente pessoa. Não só trabalhou para preservar seus amigos do
contágio do papismo, senão que também se esforçou por guardá-los dos terrores
da perseguição. Era diácono da pequena congregação sobre a que presidia como
ministro o senhor Rough.
O senhor Symson escreveu uma narração de seus próprios
sofrimentos, que não pode descrever melhor o que padeceu:
"O 13 de dezembro de 1557 fui enviado pelo Conselho à
Torre de Londres. Na quinta-feira seguinte fui chamado ao corpo de guarda
diante do alcaide da Torre e do chefe do arquivo de Londres, o senhor Cholmly,
que me mandaram lhes desse os nomes dos que acudiam ao serviço em inglês.
Respondi que não diria nada, e como conseqüência de minha rejeição me colocaram
sobre um potro de tormento de ferro, eu acho que por espaço de três
horas".
"Depois me perguntaram se estava disposto a confessar;
respondi igual que antes. Depois de desamarrar-me, me devolveram a minha cela.
O domingo seguinte foi levado de novo ao mesmo lugar, ante o tenente e o chefe
do arquivo de Londres, e me submeteram a interrogatório. E lhes respondi agora
como antes. Então o tenente jurou por Deus que eu confessaria; depois disso me
amarraram juntos meus dois dedos índices, e colocaram entre eles uma pequena
seta, e a arrancaram tão rapidamente que manou sangue, e se quebrou a
seta".
"Depois de agüentar duas vezes mais o potro do tormento,
fui devolvido a minha cela, e dez dias depois o tenente me perguntou se estava
agora disposto a confessar o que já me haviam perguntado. Respondi que já tinha
falado tudo quanto diria. Três semanas depois fui enviado ao sacerdote, onde
fui gravemente assaltado, e de mãos de quem recebi a maldição do Papa, por dar
testemunho da ressurreição de Cristo. E assim os encomendo a Deus e à Palavra
de Sua graça, com todos aqueles que invocam sem fingimentos o nome de Jesus;
pedindo a Deus por Sua misericórdia infinita, pelos méritos de seu amado Filho
Jesus Cristo, que nos dê entrada em seu Reino eterno. Amém. Louvo a Deus por
Sua grande misericórdia que nos tem mostrado. Cantai Hosana ao Altíssimo junto
a mim, Cuthbert Symson. Que Deus perdoe meus pecados! Peço perdão a todo mundo
e a todo mundo perdôo, e assim abandono o mundo, na esperança de uma gozosa
ressurreição!"
Se considerar atentamente esta narração, que imagem temos de
repetidas torturas! Porém incluso a crueldade da narração e excedida pela
paciente mansidão com a que foram suportadas. Não aparecem expressões
maliciosas, nem invocações sequer à justiça retributiva de Deus, nem uma queixa
por sofrer sem causa. Ao contrário, o que dá fim a esta narração é o louvor a
Deus, perdão do pecado, e um perdão para todo mundo.
A firme frialdade deste mártir levou a Bonner à admiração.
Falando de Symson no consistório, disse: "Vedes que pessoa mais aprazível
é, e depois, falando de sua paciência, eu diria, se não fosse um herege, que é
a pessoa de maior paciência que jamais tive diante de mim. Três vezes num dia
foi colocado na Torre no potro do tormento; também tem sofrido em minha casa, e
ainda não vi quebrantada sua paciência".
O dia antes de ser condenado este piedoso diácono,
encontrando-se no cepo na carvoeira do bispo, teve uma visão de uma forma
glorificada, que lhe foi de grande alento. Disto testemunhou a sua mulher, à
senhora Austen, e a outros, antes de sua morte.
Junto a este adorno da Reforma Cristã foram apreendidos o
senhor Hugh Foxe e John Devinish; os três foram trazidos ante Bonner o 19 de
março de 1558, e lhes colocaram diante deles os artigos papistas. Os
rejeitaram, e foram por isso condenados. Assim como adoravam juntos na mesma
sociedade, em Islington, assim sofreram juntos em Smithfield, o 28 de março; na
morte deles foi glorificado o Deus da Graça, e confirmados os verdadeiros crentes.
Tomás Hiason, Tomás Carman e William Seamen
Estes foram condenados por um fanático vigário de Aylesbury
chamado Berry. O lugar da execução se chamava Lollard's Pit, fora de
Bishopsgate, em Norwich. Depois de unir-se em humilde rogo ante o trono da graça,
se levantaram, foram até a estaca, e foram rodeados com suas correntes. Para
grande surpresa dos espectadores, Hudson se deslizou por debaixo de suas
correntes e foi à frente. Prevaleceu a idéia entre a multidão de que estava a
ponto de abjurar; outros acharam que queria pedir mais tempo. Enquanto isso,
seus companheiros na estaca o incitaram com todas as promessas de Deus e com
exortações para sustentá-lo. Mas as esperanças dos inimigos da cruz se viram
frustradas; aquele bem homem, longe de temer o mais pequeno terror entre as
garras cada vez mais próximas da morte, estava somente alarmado pelo fato de
que parecia que a face de seu Senhor se lhe ocultava. Caindo sobre seus
joelhos, seu espírito lutou com Deus, e Deus verificou as palavras de seu Filho:
"Pedi, e recebereis". O mártir se levantou com um gozo extasiado e
exclamou: "Agora, graças dou a Deus, estou forte; e não temo o que me faça
o homem!" Com um rosto sereno voltou colocar-se embaixo da corrente,
unindo-se a seus companheiros de suplício, e com eles sofreu a morte, para
consolação dos piedosos e confusão do Anticristo.
Berry, sem sentir-se saciado por sua diabólica ação, convocou
a duzentas pessoas na cidade de Aylesham, as que obrigou a ajoelhar-se em
Pentecoste ante a cruz, e infligiu outros castigos. Bateu num pobre homem por
uma palavra sem importância, com um golpe que foi fatal. Também deu um soco tal
numa mulher chamada Mice Oxes, ao vê-la entrar no vestíbulo num momento em que
ele estava irritado, que a matou. Este sacerdote era rico, e tinha grande
autoridade. Era um réprobo, e como sacerdote se abstinha do matrimônio, para
gozar-se tanto mais de uma vida corrompida e licenciosa. O domingo depois da
morte da Rainha Maria estava de orgia com uma de suas concubinas, antes das
vésperas; depois foi à igreja, ministrou um batismo, e se dirigia de volta a
seu lascivo passatempo, quando foi abatido pela mão de Deus. sem ter um momento
de oportunidade para arrepender-se, caiu no chão, e somente lhe foi permitido
exalar uma queixa. Nele podemos ver a diferença entre o fim de um mártir e o de
um perseguidor.
A história de Roger Holland
Num cercado retirado perto de um campo de Islington tinham-se
reunido um grupo de umas quarenta pessoas honradas. Enquanto se dedicavam
religiosamente à leitura e exposição das Escrituras, vinte e sete delas foram
levadas ante Sir Roger Cholmly. Algumas das mulheres escaparam, e vinte e dois
foram levados a Newgate, ficando em cárcere durante sete semanas. Antes de
serem interrogados foram informados pelo guarda, Alexandre, que o único que
precisavam para ser liberados era ouvir missa. Por fácil que possa parecer esta
condição, estes mártires valorizavam mais a pureza de suas consciências que a
perda da vida ou de suas propriedades; por isso, treze foram queimados, sete em
Smithfield e seis em Brentwood; dois morreram em prisão, e outros sete foram
providencialmente preservados. Os nomes dos sete que sofreram em Smithfield
eram: H. Pond, R. Estland, R. Southain, M. Ricarby, J. Floyd, J. Holiday, e
Roger Holland. Foram enviados a Newgate o 16 de julho de 1558, e executados o
27.
Este Roger Holland, um mercador e alfaiate de Londres, foi
primeiro aprendiz de um mestre Kempton, em Black Boy, Watling St., dando-se à
dança, esgrima, o jogo e às más companhias. Uma vez recebeu de seu patrão uma
certa quantia de dinheiro, trinta libras, e perdeu tudo jogando aos dados. Por
isso se propus fugir ao outro lado do mar, para a França ou a Flandes.
Com esta decisão, chamou cedo pela manhã a uma discreta
criada da casa, chamada Elizabete, que professava o Evangelho, e que vivia uma
vida digna desta profissão. A ela revelou a perda que tinha sofrido por sua
insensatez, lamentando não ter seguido seus conselhos, e rogando-lhe que lhe
entregasse a seu amo uma nota autógrafa na qual reconhecia a dívida, que
pagaria se alguma vez lhe era possível; também lhe rogava que mantivesse
secreta sua vergonhosa conduta, para não levar os cabelos brancos de seu pai
com dor a uma sepultura prematura.
A criada, com uma generosidade e uns princípios cristãos
raramente ultrapassados, consciente de que sua imprudência poderia ser sua
ruína, lhe deu trinta libra, que eram parte de uma suma que recentemente tinha
recebido por um testamento. "Aqui tens o dinheiro que necessitam; toma-o,
eu fico com a nota, porém com esta expressa condição: que abandones tua vida
lasciva e cheia de vício; que nem jures nem fales obscenamente, e que deixes de
jogar; porque se fizerdes tal coisa, mostrarei de imediato esta nota a teu
patrão. Também queiro que me prometas assistir à prédica diária em Todos os
Santos, e ao sermão em são Paulo cada domingo; que jogues fora todos teus
livros papistas, e que em lugar deles coloque o Novo Testamento e o Livro de
Culto, e que leias as Escrituras com revelação e temor, pedindo a Deus Sua
graça para que te dirija em sua verdade. ora também fervorosamente a Deus que
perdoe teus anteriores pecados, e que não se lembre dos pecados de tua
juventude; e que de Seu favor recebas o temor de quebrantar Suas leis ou de
ofender Sua majestade. Assim te guardará Deus e te concederá o desejo de teu
coração". Temos que honrar a memória desta excelente criada, cujos
piedosos esforços estavam igualmente dirigidos a beneficiar o irreflexivo jovem
nesta vida e na vindoura. Deus não permitiu que o desejo desta excelente criada
se perdesse em solo estéril; apos meio ano o licencioso Holland se transformou
num zeloso confessor do Evangelho, e foi instrumento para a conversão de seu
pai e de outros aos que visitou em Lancashire, para consolo espiritual deles e
reforma e saída do papismo.
Seu pai, comprazido com a mudança de sua conduta, lhe deu
quarenta libras para que começasse seu negócio em Londres.
Logo Roger voltou a Londres, e foi à criada que havia-lhe
emprestado o dinheiro para pagar a seu patrão, e lhe disse: "Elizabete,
aqui está o dinheiro que me emprestas-te; e pela amizade, boa vontade e bom
conselho que recebi de ti não posso pagar-te mais que fazendo de ti minha
esposa". E pouco depois se casaram, por que teve lugar no primeiro ano da
Rainha Maria.
Depois disto permaneceu nas congregações dos fiéis, até ser
apresado, junto com os outros seis mencionados.
E depois de Roger Holland, ninguém mais sofreu em Smithfield
pelo testemunho do Evangelho; graças sejam dadas a Deus.
Flagelações ministradas por Bonner
Quando este cruel católico viu que nem as perseguições, nem
as ameaças nem a prisão podia produzir alteração alguma na mente de um jovem
chamado Tomás Hinshaw, o mandou a Fullham, e durante a primeira noite o colocou
no cepo, sem outro alimento que pão e água. Na manhã seguinte foi ver se este
castigo tinha executado alguma mudança em sua mente, porém ao ver que não,
enviou seu arquidiácono, o doutor Harpsfielf, para que conversasse com ele. O
doutor logo perdeu o humor ante suas respostas, o acusou de briguento, e lhe
perguntou se percebia que com tal atitude condenaria sua alma. "Do que
estou certo", disse-lhe Tomás, "é de que vos dedicais a promover o
tenebroso reino do mal, não o amor pela verdade". Estas palavras foram
transmitidas pelo doutor ao bispo, que com uma paixão que quase lhe impedia
articular as palavras, lhe disse: "Assim respondes tu a meu arquidiácono,
moleque perverso? Pois sabe que vou humilhar-te!" Lhe trouxeram então dois
galhos de salgueiro, e fazendo que o jovem, que não opus resistência alguma, se
ajoelhasse frente a um longo banco numa enramada de seu jardim, o acoitou até
que se viu obrigado a cessar por falta-lhe o alento e estar exausto uma das
varas ficou totalmente destroçada.
Muitos outros sofrimentos parecidos padeceu Hinshaw em mãos
do bispo; este, ao final, para eliminá-lo, se conseguiu falsas testemunhas que
apresentassem falsas acusações contra ele, todas as quais o jovem negou, e, em
resumo, se negou a responder a nenhum interrogatório que lhe fizeram. Quinze
dias depois disto, o jovem foi atacado por umas febres ardentes, e a petição de
seu patrão, o senhor Pugston, do pátio da igreja de são Paulo, foi tirado, não
duvidando o bispo que o havia procurado a morte de forma natural; contudo,
permaneceu doente durante mais de um ano, e durante este tempo morreu a Rainha
Maria, ato da Providência pelo qual escapou da fúria de Bonner.
John Willes foi outra fiel pessoa sobre a qual caíram os
açoites de Bonner. Era irmão de Richard Willes, já mencionado, que foi amo em
Brentford. Hinshaw e Willes foram encerrados juntos na carvoeira de Bonner, e
depois levados a Fulham, onde ele e Hinshaw permaneceram durante oito ou dez
dias em cepos. O espírito perseguidor de Bonner se manifestou no tratamento que
aplicou a Willes durante seus interrogatórios, batendo-lhe freqüentemente na
cabeça com uma vara, puxando-o das orelhas e batendo-lhe embaixo do queixo,
dizendo que baixava a cabeça como um bandido. Ao não conseguir com isto nenhum
indício de abjuração, o levou ao arvoredo, e ali, sob uma enramada, o acoitou
até que ficou exausto. Esta cruel ferocidade a suscitou uma resposta do coitado
jovem, que ao perguntar-se-lhe quanto tempo fazia que não tinha acudido de
joelhos ante um crucifixo, disse que "não o tenho feito desde a idade da razão,
nem o farei ainda que me despedacem com cavalos indômitos". Bonner então o
mandou fazer o sinal da cruz sobre a testa, o qual ele recusou, e então o levou
ao arvoredo.
Um dia, enquanto Willes estava no cepo, Bonner lhe perguntou
se estava gostando de seu alojamento e comida. "Bom seria", repus
ele, "ter algo de palha sobre a qual sentar-me ou deitar-me". Justo
nesse momento entrou a mulher de Willer, então num avançado estado de gravidez,
rogando-lhe ao bispo por seu marido, e dizendo-lhe valorosamente que pariria
ali se não lhe permitia a seu marido acompanhá-la a sua própria casa. Para
livrar-se da importunidade da boa mulher, e dos problemas de uma parturiente na
casa, disse a Willes que fizesse o sinal da cruz e que dissesse: "In
nomine Patris, et Filli, et Spriritus Sancti, Amém". Willes omitiu o
sinal, e repetiu as palavras: "Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito
Santo, Amém". Bonner quis que repetisse as palavras em latim, ao que
Willes não fez objeção, ao conhecer o significado das palavras. Depois lhe
permitiu que fosse a sua casa com sua mulher, sendo encarregado seu parente
Robert Rouze de levá-lo a são Paulo no dia seguinte, aonde foi por si mesmo, e
assinando um banal documento latino, foi deixado em liberdade. Ele foi o último
dos vinte e dois apreendidos em Islington.
O reverendo Richard Yeoman
Este devoto ancião era vigário do doutor Taylor, em Hadley, e
estava sumamente qualificado para sua sagrada função. O doutor Taylor lhe
deixou o vicariato ao ir embora, mas tão logo como o senhor Newall recebeu o
cargo depus o senhor Yeoman, colocando em seu lugar a um sacerdote romanista.
Depois disto, o senhor Yeoman foi de lugar em lugar, exortando a todos os
homens a manter-se firmes na Palavra de Deus, a dar-se fervorosamente à oração,
com paciência para suportar a cruz que agora se colocava sobre eles para sua
provação, com valor para confessar a vida futura diante de seus adversários, e
com uma esperança firme para esperar a coroa e a recompensa da felicidade
eterna. Mas quando viu que seus adversários estavam perseguindo-o, se dirigiu a
Kent, e com um pequeno pacote de rendas, agulhas, botões e outras mercadorias
foi de povoado em povoado, vendendo estes artigos, e subsistindo desta maneira
e mantendo a sua mulher e seus filhos.
Finalmente, o juiz Moile, de Kent, apreendeu o senhor Yeoman,
e o colocou no cepo um dia e uma noite; mas, não tendo nada concreto de que
acusá-lo, o deixou livre. Voltando ele em secreto a Hadley, ficou com sua
coitada mulher, que o ocultou numa câmera do ajuntamento, chamado o Guildhall,
durante mais de um ano. Durante este tempo o bom e ancião pai estava encerrado
numa estância todo o dia, passando o tempo em devota oração, na leitura das
Escrituras e em cardar a lã que sua mulher tecia. Sua mulher também pedia pão
para ela e seus filhos, e com estes precários meios se sustentavam. Assim, os
santos de Deus padeciam fome e miséria, enquanto os profetas de Baal viviam em
banquetes e eram custosamente obsequiados na mesa de Jezabel.
Ao ser Newall finalmente informado de que Yeoman estava sendo
escondido por sua mulher, este acudiu, assistido com soldados, e violentou a
estância onde estava o objeto de sua busca, em cama com sua mulher. Censurou a
pobre mulher de ser uma prostituta, e teria arrancado as roupas da cama de
forma indecente, mas Yeoman resistiu tanto este ato de violência como o ataque
contra o bom caráter de sua mulher, agregando que desafiava o Papa e o papismo.
Foi logo tirado para fora e colocado num cepo até se fazer de dia.
Na gaiola na qual foi colocado estava também um ancião
chamado John Dale, que tinha estado ali três ou quatro dias, por ter exortado o
povo durante o tempo em que Newall e seu vigário estavam celebrando a liturgia.
Suas palavras foram: "Oh, guias cegos e miseráveis"! Sereis por
sempre cegos guias de cegos? Não ireis corrigir-vos nunca? Não querereis ver a
verdade da Palavra de Deus? Não entrarão em vossos corações nem as ameaças nem
as promessas de Deus? Não suavizará o sangue dos mártires vossas pétreas
entranhas? Ah, geração endurecida, de duro coração, perversa e torcida, a qual
nada pode fazê-lhe bem!"
Estas palavras as pronunciou no fervor de seu espírito contra
a supersticiosa religião de Roma; por isso, Newall o fez apreender de imediato
e colocar o cepo numa gaiola, onde foi guardado até que chegou o juiz Sir Henry
Dolle a Hadley.
Quando Yeoman foi tomado, o pároco pediu persistentemente a
Sir Henry Doile que enviasse ambos à prisão. Sir Henry Doile pediu-lhe, igual
de insistentemente, que considerasse a idade dos homens, e sua mísera condição;
não eram nem pessoas destacadas, nem predicadores; por isso propus deixá-los
castigados um ou dois dias, e soltá-los, pelo menos a John Dale, que não era
sacerdote, e que por isso, como tinha estado já tanto tempo na gaiola,
considerava fosse um castigo suficiente para sua idade. Quando o pároco ouviu
isto, montou em cólera, e fora de si de raiva os acusou de hereges fedorentos,
indignos de viver num estado cristão.
Temendo Sir Henry mostrar-se demasiado misericordioso, Yeoman
e Dale foram maniatados, amarrados como bandidos com suas pernas sob os ventres
de cavalos, e levados ao cárcere de Bury, onde foram carregados de ferros; e
devido a que de contínuo repreendiam o papismo, foram metidos na masmorra mais
profunda, onde John Dale, pela doença carcerária e os maus-tratos, morreu pouco
tempo depois. Seu cadáver foi jogado fora e sepultado nos campos. Morreu aos
sessenta e seis anos. sua profissão era tecelão, e era bom conhecedor sas
Sagradas Escrituras, e firme em sua confissão das verdadeiras doutrinas de
Cristo tal como tinham sido expostas em tempos do rei Eduardo. Por elas padeceu
prisão e correntes, e desde este cárcere terreno partiu para estar com Cristo
na glória eterna, e o bendito paraíso da felicidade que não conhece fim.
Depois da morte de Dale, Yeoman foi levado ao cárcere de
Norwich, onde, após sofrer um tratamento muito duro, foi interrogado acerca de
sua fé, e se exigiu que se submetesse ao santo padre, o Papa. "O reto
(disse ele), e desafio todas suas detestáveis abominações; não terei nada a ver
com ele em absoluto". As principais acusações de que foi objeto foram seu
matrimônio e sua rejeição do sacrifício da missa. Ao vê-lo que continuava firme
na verdade, foi condenado, degradado e não somente queimado, senão também muito
cruelmente atormentado no fogo. Assim terminou ele esta pobre e miserável vida,
e entrou no bem-aventurado seio de Abraão, gozando com Lázaro daquele repouso
que Deus dispus para Seus escolhidos.
Tomás Bendridge
O senhor Bendridge era um cavalheiro solteiro, na diocese de
Winchester. Teria podido viver uma vida desassossegada, nas ricas possessões
deste mundo; mas preferiu antes entrar pela estreita porta da perseguição na
possessão celestial da vida do Reino do Senhor, que gozar dos prazeres
presentes com a consciência agitada. Mantendo-se valorosamente frente aos
papistas pela defesa da sincera doutrina do Evangelho de Cristo, foi apreendido
como adversário da religião romanista, e levado para ser interrogado ante o
bispo de Winchester, onde sofreu vários conflitos pela verdade contra o bispo e
seu colega. Foi por isso condenado, e algum tempo depois conduzido ao lugar de
seu martírio por Sir Richard Pecksal, xerife maior.
Quando chegou à estaca começou a desamarrar as laçadas de
suas roupas e a preparar-se; depois deu sua capa ao guarda, a modo de
pagamento. Seu colete tinha renda de ouro, e o deu a Sir Richard Pecksal, o
xerife maior. Tirou o boné de veludo da cabeça, e o lançou longe. Depois,
elevando sua mente ao Senhor, se dedicou à oração.
Quando foi acorrentado ao poste, o doutor Seaton lhe rogou
que se desdissesse, e que teria o perdão; mas quando viu que nada o comovia,
disse as pessoas que não orassem por ele a não ser que quisesse voltar atrás,
assim como também não orariam por um cão.
Estando o senhor Bendridge de pé junto à estaca e com as mãos
junta da forma em que os sacerdotes as sustêm durante o Memento, voltou a
dirigir-se a lê, exortando-o para desdizer-se, e este respondeu: "Fora,
fora, Babilônia!" Um que estava perto disse: "Senhor, cortai sua
língua!" Outro, um secular, o amaldiçoou pior do que o havia feito o
doutor Seaton.
Quando viram que não estava disposto a ceder, mandaram os
atormentadores que acendessem a pira, antes que ficasse coberta por completo
com feixes de lenha. O fogo prendeu primeiro num pedaço de sua barba, ante o
qual não se alterou. Depois passou ao outro lado, e pegou suas pernas e, sendo
de couro as meias interiores, fizeram com que sentisse o fogo tanto mais
intensamente, com o que a intolerável dor lhe fez exclamar: "Me
desdigo!", e empurrou repentinamente o fogo fora dele. Dois ou três amigos
dele, que estavam perto, queriam salvá-lo; se lançaram no fogo para ajudar a
apagá-lo, e por esta bondade foram encarcerados. O xerife, também, com sua
autoridade o tirou da estaca e mandou levá-lo ao cárcere, pelo que foi enviado
ao fleet e ali permaneceu um tempo. Contudo, antes de ser tirado da estaca, o
doutor Seaton escreveu uns artigos para que os assinasse. Mas o senhor
Bendridge fez tais objeções que o doutor Seaton ordenou que voltassem a pôr
fogo na pira. Então, com muita dor e tristeza de coração, assinou os mesmos
sobre as costas de um homem.
Feito isto, lhe devolveram sua capa, e foi enviado de volta à
prisão. Enquanto estava ali, escreveu uma carta ao doutor Seaton, desdizendo-se
daquelas palavras que havia dito na estaca e dos artigos que tinha assinado,
porque estava apenado de tê-los assinado jamais. Que o Senhor lhe dê
arrependimento a seus inimigos!
A senhora Prest
Pela quantidade de pessoas condenadas neste fanático reinado,
é quase impossível obter o nome de cada mártir, nem detalhar a história de cada
um dele com anedotas e exemplos de sua conduta cristã. Graças sejam dadas à
Providência, nossa cruel tarefa começa a chegar a seu fim, com a finalização
deste reinado de terror papal e de derramamento de sangue. Os monarcas que
sentam em tronos possuídos por direito hereditário deveriam, mais que ninguém,
considerar que as leis da natureza são as leis de Deus, e que por isso a
primeira lei da natureza é a preservação de seus súbditos. As táticas de
perseguição, de tortura e de morte deviam deixá-las àqueles que alcançaram a
soberania pelo fraude ou a espada; porém, onde exceto entre uns poucos loucos
imperadores de Roma e os pontífices romanos, encontraremos a ninguém cuja
memória esteja tão "maldita a uma fama eterna" como a da Rainha
Maria? As nações choram a hora que as separa para sempre de um governante
amado, porém, no que diz respeito à Maria, foi a hora mais bendita de todo seu
reinado. O céu tem ordenado três grandes açoites por pecados nacionais: a
praga, a pestilência e a fome. Foi vontade de Deus no reinado de Maria lançar
um quarto açoite sobre este reino, sob a forma de perseguições papistas. Foi um
tempo angustioso, porém glorioso; o fogo que consumiu os mártires minou o
papado; e os estados católicos, atualmente os mais fanáticos e cheios de
trevas, são os que se encontram mais baixos na escala da dignidade moral e da
relevância política. Que assim permaneçam, até que a pura luz do Evangelho
dissipe as trevas do fanatismo e da superstição! Mas voltemos a nosso relato.
A senhora Prest viveu durante um tempo em Cornualles, onde
tinha um marido e filhos, cujo fanatismo a obrigava a freqüentar as abominações
da Igreja de Roma. Resolvendo agir conforme lhe ditava sua consciência, os
abandoou e começou a ganhar-se a vida fiando. Depois de um tempo, voltando a
sua casa, foi denunciada por seus vizinhos, e levada a Exeter, para ser
interrogada ante o doutor Troubleville e por seu chanceler Blackston. Porquanto
esta mártir era considerada de inteligência inferior, a colocaremos em
competição com o bispo, para ver quem tinha um melhor conhecimento conducente à
vida eterna. Ao levar o bispo o interrogatório a seu desfecho acerca do pão e
do vinho, que ele afirmava eram carne e sangue, a senhora Prest disse: "Eu
vos perguntarei se podeis negar vosso credo, que diz que Cristo está
perpetuamente sentado à destra do Pai, em companheiro e alma, até Ele voltar;
ou que Ele está no céu como nosso Advogado, para interceder por nós ante Deus
seu Pai. Se for assim, Ele não está na terra num pedaço de pão. Se Ele não está
aqui, e se não mora em templos feitos por mãos, senão no céu, quê? O buscaremos
aqui? Se Ele não ofereceu Seu corpo de uma vez para sempre, por que fazes outra
nova oferta? Se com uma oferta o fez tudo na perfeição, por que você outros com
uma falsa oferenda tornais tudo imperfeito? Se Ele deve ser adorado em espírito
e em verdade, por que vós adorais um pedaço de pão? Se Ele for comido e bebido
em fé e em verdade; se Seu carne não é proveitoso para estar entre nós, por que
dizeis que fazeis que Seu carne e sangue, dizendo que é proveitosa tanto para o
corpo como para a alma? Ay! Eu sou uma pobre mulher, mas antes de fazer o que
dizeis, prefiro não viver mais. Acabei, senhor".
Bispo: Devo dizer que é uma protestante a carta cabal. Posso
perguntar em que escola te educaste?
Senhora Prest: Os domingos atendi os sermões, e neles aprendi
as coisas que estão tão dentro de meu peito que a morte não as afastará de mim.
Bispo: Ah, mulher insensata! Quem desperdiçará o hálito
contigo, e com as que são como tu? Mas, porque te afastas-te de teu marido. Se
fosses uma mulher honrada, não terias deixado teu marido e teus filhos, para
perambular assim pelo país como uma fugitiva.
Senhora Prest: Senhor, trabalhei para viver; e meu Senhor,
Cristo, me aconselha que quando me persigam numa cidade, fuja a outra.
Bispo: Quem te perseguia?
Senhora Prest: Meu marido e meus filhos. Porque quando eu
teria desejado que abandoassem a idolatria e adorassem o Deus do céu, não me
quiseram ouvir, senão que ele e meus filhos me repreenderam e me angustiaram.
Não fugi para fazer de prostituta, nem para roubar, senão porque não queria ter
parte com ele e os seus do abominável ídolo da missa; e lá aonde eu ia, e tão
freqüentemente como pude, em domingos e festividades, dava escusas para não ir
à igreja papista.
Bispo: Pois boa mulher eras, fugindo de teu marido e de tua
Igreja.
Senhora Prest: Quiçá não seja uma excelente ama de casa;
porém Deus me deu a graça de ir à verdadeira Igreja.
Bispo: A verdadeira Igreja; que queres dizer com isso?
Senhora Prest: Não tua Igreja papista, cheia de ídolos e
abominações, senão ali onde há dois ou três reunidos em nome de Deus, a esta
Igreja irei eu enquanto viver.
Bispo: Parece que quisesses ter tua própria igreja. Bem, que
esta mulher seja colocada em prisão até que chamemos a seu marido.
Senhora Prest: Não, eu só tenho um marido, que já está no
cárcere e no cárcere comigo, e de quem nunca me separarei.
Algumas pessoas trataram de convencer o bispo de que ela não
estava em seus cabales, e lhe permitiram ir-se. O guarda dos cárceres do bispo
a acolheu em sua casa, onde ou bem fiava, trabalhando como criada, ou bem
deambulava pelas ruas, falando acerca do sacramento do altar. Enviaram a buscar
a seu marido para que a levasse a sua casa, mas ela recusou enquanto pudesse
servir à causa da religião. Era demasiado ativa para estar mão sobre mão, e sua
conversação, que eles achavam simplória, atraiu a atenção de vários sacerdotes
e frades católicos. A acossavam com perguntas, até que alguns enviados pelo
bispo e outros pela própria vontade, a interpelaram. Ela lhes respondeu com
ira, e isto os moveu a riso, ante sua seriedade.
"Não", disse ela, "tendes mais necessidade de
chorar que de rir, e de sentir-vos triste de terdes nascido, para ser-vos
capelães desta prostituta que é Babilônia. A desafio a ela e a todas suas
falsidades; e afastai-vos de mim, que somente fazes para turbar minha
consciência. Quereríeis que seguisse vossas ações; antes perderei a vida.
Rogo-vos que partais".
"Por que, insensata?", disseram eles. "Viemos
para teu proveito e para a saúde de tua alma".
Ela respondeu: "Que proveito dás vós outros, que não
ensinais ns além de mentiras por verdades? Como salvais vossas almas, quando
não ensinais nada senão mentiras e destruís almas?"
"Como demonstras tu isto?", disseram eles.
"Acaso não destruís vós outros as almas quando ensinas
as pessoas a darem culto a ídolos, paus e pedras, as obras das mãos dos homens?
E a adorar um deus falso de vossa feitura, feito de um pedaço de pão, ensinando
e o Papa é vigário de Cristo, e que tem poder para perdoar pecados? E que há um
purgatório, quando o Filho de Deus o purificou tudo mediante Seu sacrifício de
uma vez e para sempre? Não ensinais à gente a contar seus pecados em vossos
ouvidos, e dizeis que se condenarão se não os confessam todos, quando a Palavra
de Deus diz: Quem pode contar vossos pecados? Não lhes prometeis trintenas, e
réquiens, e missas por suas almas, e vendeis vossas orações por dinheiro, e
fazeis com que comprem perdões, e confiais nestes insensatos inventos de vossas
imaginações? Não agis totalmente contra Deus? não nos ensinais a orar com
rosários, e a orar a santos, e a dizer que eles podem orar por nós? Não fazeis
água benta e pão bento para afugentar os demônios? E não fazeis milhares mais
de abominações? E ainda dizeis que vindes em proveito meu, para salvar minha
alma. Não, não, há um que me salvou. Adeus, vós outros e vossa salvação".
Durante a liberdade que lhe havia concedido o já mencionado
bispo, foi à Igreja de são Pedro, e ali viu um perito holandês que estava
fazendo narizes novos a certas belas imagens que tinham sido desfiguradas
durante o reinado do rei Eduardo. Então lhe disse: "Que louco estas, para
fazer narizes novos, quando dentro de poucos dias todas perderão a
cabeça!". O holandês a amaldiçoou, e a maltratou duramente com palavras. E
ela replicou: "Tu és maldito, e assim também tuas imagens". Ele a
chamou de prostituta. "Não", disse ela, "senão que tuas imagens
são prostitutas, e tu estás na luxuria; porque não diz Deus "vós outros
vos prostituis após deuses estranhos, figuras de vossas próprias mãos"?, e
tu és um deles". Depois disto se deu ordem que fosse encerrada, e não pôde
mais gozar de liberdade.
Durante o tempo de seu encarceramento, muitos a visitaram,
alguns enviados pelo bispo, e outros por sua própria vontade. Entre estes
estava um tal Daniel, um grande predicador do Evangelho, que andara, nos tempos
do rei Eduardo, pelos lugares de Cornualles e Devonshire, mas que, pela dura
perseguição sofrida, tinha recaído. Ela o exortou com urgência a arrepender-se
como Pedro, e que ficar mais firme em sua confissão de fé.
A senhora Walter Rauley e os senhores William e John Kede,
pessoas muito respeitáveis, deram abundante testemunho de sua piedosa
conversação, dizendo que a não ser que Deus tivesse estado com ela, seria
impossível que pudesse defender com tanta capacidade a causa de Cristo. A
verdade é que, para recapitular o caráter desta mulher, unia a serpente com a
pomba, abundando na mais elevada sabedoria com a maior simplicidade. Suportou
encarceramentos, ameaças, escárnios, e os mais vis insultos, mas nada pôde
induzi-la a desviar-se; seu coração estava fixo; tinha lançado sua âncora, e
não podiam todas as feridas da perseguição tirá-la da rocha na que estavam
erigidas toas suas esperanças de felicidade.
Tal era sua memória que, sem ter feito estudos, podia dizer
em que capítulo estava qualquer texto da Escritura; devido a esta singular
capacidade, um tal Gregório Basset, extremo papista, disse que estava louca, e
que falava como um papagaio, sem sentido algum. No final, após ter provado sem
exterior todos os meios para fazê-la nominalmente católica, a condenaram.
Depois disso, algum a exortou a abandonar suas opiniões e voltar a sua casa, a
sua família, porquanto era pobre e analfabeta. "Verdade é (disse ela), e
embora não tenho cultura estou feliz de setembro testemunha da morte de Cristo,
e espero que não vos retardeis já mais comigo, porque meu coração está afixado,
e nunca direi algo distinto, nem me voltarei a vossos caminhos de
superstição".
Para opróbrio do senhor Blackston, tesoureiro da Igreja, este
homem costumava mandar buscar do cárcere com freqüência a esta coitada mártir,
para divertir-se com ela tanto ele como uma mulher a qual mantinha; lhe fazia
perguntas religiosas, e ridicularizava suas respostas. Feito isto, a voltava a
mandar a sua mísera masmorra, enquanto ele se recriava a as coisas boas deste
mundo.
Talvez havia algo simplesmente ridículo na forma da senhora
Prest, porque era baixa, grossa e de uns cinqüenta e quatro anos de idade; mas
seu rosto era alegre e vivaz, como se preparada para o dia de seu matrimônio
com o Cordeiro. Zombar de sua forma era uma acusação indireta contra seu
Criador, que lhe deu a forma que Ele considerou mais idônea, e que lhe deu uma
mente muito transcendente às dotes fugazes da carne que perece. Quando lhe
ofereceram dinheiro, o rejeitou, dizendo: vou para uma cidade onde o dinheiro não
tem poder, e enquanto estiver aqui, Deus tem prometido alimentar-me".
Quando se leu a sentença condenando-a às chamas, ela levantou
sua voz e louvou a Deus, agregando: "Este dia tenho achado aquilo que por
tanto tempo procurei". Quando a tentaram para que abjurasse, disse:
"Não o farei; Deus não queira que eu perca a vida eterna por esta vida
carnal e breve. Nunca me afastarei de meu espoco celestial para meu esposo
terreno; da comunhão dos anjos para a dos filhos mortais; e se meu marido e
filhos são fiéis, então eu o sou deles. Deus é meu pai, Deus é minha mãe, Deus
é minha irmã, meu irmão, meu parente; Deus é meu amigo, o mais fiel".
Entregue ao xerife maior, foi levada pelo oficial ao lugar da
execução, fora das muralhas de Exeter, chamado Sothenhey, onde de novo os
supersticiosos sacerdotes a assaltaram. Enquanto estavam amarrando-a à estaca,
ela exclamava de contínuo: "Deus, PT piedade de mim, pecadora!".
Suportando pacientemente o fogo devorador, ficou reduzida a cinzas, e assim
acabou uma vida que não foi superada em quanto a uma imutável fidelidade à
causa de Cristo por nenhum mártir precedente.
Richard Sharpe, Tomás Banion e Tomás Hale
O senhor Sharpe, tecelão, foi levado o 9 de março de 1556
diante do doutor Dalby, chanceler da cidade de Briston, e depois de um
interrogatório referente ao Sacramento do altar, foi persuadido para que se
desdissesse; e no 29 se ordenou que pronunciasse sua retratação na igreja
paroquial. Mas apenas se havia começado a abjurar em público que começou a
sentir em sua consciência tal tormento que não se sentiu capaz de trabalhar em
sua profissão; por isso, pouco tempo depois, um domingo, entrou na igreja
paroquial, chamada Temple, e depois da missa maior se colocou na porta do coro,
e disse em alta voz: "Vizinhos, sede testemunhas de que este ídolo aqui
(indicando o altar) é o maior e mais abominável que tenha jamais existido; e
sinto ter jamais negado a meu Senhor e Deus!". apesar de que a policia
recebeu ordem de detê-lo, lhe foi permitido sair da Igreja; mas pela noite foi
apreendido e levado a Newgate. Pouco depois, negando frente ao chanceler que o
Sacramento do altar fosse o corpo e o sangue de Cristo, foi condenado pelo
senhor Darby a ser queimado. E queimado foi o 7 de maio de 1558, morrendo
piedosa e pacientemente, firme em sua confissão dos artigos de fé protestante.
Com ele sofreu Tomás Hale, um sapateiro de Bristol, que foi
condenado pelo chanceler Darby. Estes mártires foram amarrados de costas. Tomás
Banion, tecelão, foi queimado o 27 de agosto daquele mesmo ano, morrendo pela
causa evangélica de seu Salvador.
J. Corneford, de Wortham; C. Browne, de Maidstone; J. Herst,
de Ashford; Alice Snoth y Catherine Knight, uma anciã mulher
É com prazer que observamos que estes cinco mártires foram os
últimos em padecer no reinado de Maria pela causa protestante; porém a malícia
dos papistas se manifestou no apressamento do martírio dos mesmos, que poderia
ter sido retardado até ter o desfecho da enfermidade da rainha. Se informa que
o arcebispo de Canterbury, pensando que a repentina morte da rna suspenderia a
execução, viajou pela costa desde Londres, para ter a satisfação de agregar
mais uma página à lista negra dos sacrifícios papistas.
As acusações contra eles eram, como geralmente, os elementos
sacramentais e a idolatria de inclinar-se ante imagens. Eles citavam as
palavras de são João: "Guardai-vos dos ídolos", e a respeito da
presença real, apuravam segundo são Paulo, que "as coisas que se
veementemente são temporárias". Quando estava para ler-se a sentença
contra eles, e ter lugar a excomunhão na forma regular, John Corneford,
iluminado pelo Espírito Santo, voltou terrivelmente este procedimento contra
eles, e de uma forma solene e impressionante, recriminou sua excomunhão com as
seguintes palavras: "Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho do Deus
Onipotente, e pelo poder de seu Espírito Santo, e a autoridade de sua Santa
Igreja Católica e Apostólica, entregamos aqui em mãos de Satanás para sua
destruição, os corpos de todos estes blasfemos e hereges que mantenham erro
sangue contra sua santíssima Palavra, ou que condenem sua santíssima verdade
como heresia, para manter qualquer falsa ou estranha religião, para que por
este teu santo juízo, oh poderosíssimo Deus, contra teus adversários, tua
verdadeira religião possa ser conhecida para tua grande glória e nossa
consolação e a edificação de toda nossa nação. Bom Senhor, que assim seja.
Amém".
Esta sentença foi pronunciada em público e registrada, e,
como se a Providência tiver decretado que não fosse dada em vão, após seis dias
morreu a rainha Maria, detestada por todos os homens bons, e amaldiçoada por
Deus.
Embora familiarizado com estas circunstâncias, a
implacabilidade do arcebispo excedeu à de seu grande exemplo, Bonner, quem,
ainda que tinha a várias pessoas naquele tempo em seu poder, não pressionou
para que fossem mortas com apressamento, dando-lhes com este retardo a
oportunidade de escapar. Ao morrer a rainha, muitos estavam encarcerados;
outros tinham sido acabados de arrestar; alguns, interrogados, e outros, já
condenados. O certo é que havia ordens emitidas para várias queimas, mas pela
morte dos três instigadores dos assassinatos de protestantes —o chanceler, o
bispo e a rainha—, que morreram quase ao mesmo tempo, as ovelhas condenadas
foram liberadas e viveram muitos anos para louvar o Senhor por sua feliz
liberação.
Estes cinco mártires, na estaca, oraram fervorosamente que
seu sangue fosse o último derramado, e não foi vã sua oração. Morreram
gloriosamente, e consumaram o número que Deus tinha selecionado para dar
testemunho da verdade naquele terrível reinado, e seus nomes estão escritos no
Livro da Vida. Embora foram os últimos, não estiveram entre os menores dos
santos feitos aptos para a imortalidade por meio do sangue redentor do
Cordeiro.
Catharine Finlay, apelidada Knight, foi convertido por seu
filho, quem lhe expus as Escrituras, o que obrou nela uma grande obra que se
consumou com seu martírio. Alice Snoth, na estaca, enviou buscar a sua avó e a
seu padrinho, e lhes proclamou os artigos de sua fé e os mandamentos de Deus,
convencendo assim ao mundo de que conhecia seu dever. Morreu clamando aos
espectadores que fossem testemunhas de que era cristã, e padeceu gozosa pelo
testemunho do Evangelho de Cristo.
William Fetty, acoitado até morrer
Entre as inúmeras atrocidades cometidas pelo desalmado e
insensível Bonner, se pode colocar o assassinato deste inocente menino como o
mais horrendo. Seu pai, John Fetty, da paróquia de Clerkenwell, alfaiate de
profissão, tinha somente 24 anos, e havia feito uma bem-aventurada eleição;
tinha-se afixado de maneira segura numa esperança eterna, e se confiou nAquele
que edifica de tal modo sua Igreja que as portas do inferno não prevalecerão
contra ela. Mas, ay!, a própria esposa de seu seio, cujo coração tinha-se
endurecido contra a verdade, e cuja mente estava influenciada pelos mestres da
falsa doutrina, se tornou sua acusadora. Brokenbery, papista e pároco daquela
paróquia, recebeu a informação destra traidora Dalila, e como resultado disso o
pobre homem foi apresado. Mas então caiu o terrível juízo de um Deus sempre
justo, que é "muito limpo de alhos... para ver o mal" caiu sobre esta
endurecida e pérfida mulher, porque tão logo foi arrestado seu traído marido
pela sua malvada ação, que repentinamente caiu num ataque de demência, exibindo
um exemplo terrível e despertador do poder de Deus para castigar os malvados.
Esta terrível circunstância teve algum efeito sobre os corações dos ímpios
caçadores que haviam buscado anelantes sua presa; num momento de alívio lhe
permitiram ficar com sua indigna mulher, devolve-lhe bem por mal, e sustentar a
dois filhos que, se ele tiver sido enviado no cárcere, teriam ficado sem
protetor, ou teriam chegado a ser uma carga para a paróquia. Como os maus
homens agem por motivos mesquinhos, podemos atribuir a indulgência mostrada a
esta última razão.
Vimos na primeira parte de nossa narração acerca dos mártires
a algumas mulheres cujo afeto para com seus maridos as levou inclusive a
sacrificar suas próprias vidas para preservar as deles; porém aqui, em
conformidade com a linguajem das Escrituras, uma mãe resulta ser em verdade um
monstro da natureza. Nem o afeto conjugal nem o materno podia exercer efeito
algum no coração desta indigna mulher.
Embora nosso aflito cristão tinha experimentado tal crueldade
e falsidade de parte daquele mulher que lhe estava sujeita por todos os
vínculos humanos e divinos, contudo, com um espírito manso e paciente lhe
suportou suas más ações, tratando durante sua calamidade de aliviar sua doença,
e acalmando-a com todas as possíveis expressões de ternura. Assim, em poucas
semanas ficou quase restaurada a seu são juízo. Mas, ay!, voltou de novo a seu
pecado, "como um cão volta a seu vômito". A malignidade contra os
santos do Altíssimo estava arraigada em seu coração demasiado fortemente para
poder ser eliminada; e ao voltarem suas forças, também com elas voltou sua
inclinação a cometer maldade. Seu coração estava endurecido pelo príncipe das
trevas, e a ela se podem aplicar as palavras tão entristecedoras e desalentadoras:
"Porventura
pode o etíope mudar a sua pele, ou o leopardo as suas manchas? Então podereis
vós fazer o bem, sendo ensinados a fazer o mal. Ponderando este texto de maneira
devida com outro: "terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia", como
pretenderemos desvirtuar a soberania de Deus chamando a Jeová ante o tribunal
da razão humana, que, em questões religiosas, está demasiado amiúde oposto pela
sabedoria infinita? "Larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à
perdição, e muitos são os que entram por ela; e porque estreita é a porta, e
apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem". Os
caminhos do céu são infinitamente inescrutáveis, e é nosso dever inescusável
caminhar sempre em dependência de Deus, olhando-o em humilde confiança,
esperando em Sua bondade, e confessando sempre Sua justiça; e ali onde
"não possamos compreender, ali aprendamos a confiar". Esta desgraçada
mulher, seguindo os horrendos ditados de um coração endurecido e depravado, apenas
se ficou confirmada em sua recuperação que, afogando os ditados da honra, da
gratidão e de todo afeto natural, de novo voltou a denunciar a seu marido, que
uma vez mais foi apresado, e ante Sir John Mordant, cavalheiro e um dos
comissionados da Rainha Maria.
Após seu interrogatório,
encontrando-o seu juiz firme em suas opiniões, que militavam contra as
abrigadas pela superstição e sustentadas pela crueldade, o sentenciou ao
encerro e tortura da Torre dos Lolardos. Ali o colocaram num doloroso cepo, e
junto dele colocaram um prato de água com uma pedra dentro, só Deus sabendo com
que propósito, a não ser que fosse para mostrar que não devia esperar outro
alimento, coisa bem acreditável se considerarmos suas práticas semelhantes
contra outros antes mencionados nesta narração; como, entre eles, contra
Richard Smith, que morreu em seu cruel encarceramento; entre outros detalhes de
crueldade se dá que quando uma mulher piedosa foi a pedir ao doutor Story
permissão para enterrá-lo, este lhe perguntou à mulher se havia alguma palha ou
sangue no cadáver de Smith; mas deixou a juízo dos sábios que foi o que quis
dizer com isto.
O primeiro dia da terceira semana
dos sofrimentos de nosso mártir, se lhe apresentou algo ante sua vista que lhe
fez certamente sentir seus tormentos com toda sua intensidade, e execrar com
amargura, detendo-se justo para não amaldiçoar a autora de sua desgraça.
Observar e castigar os procedimentos de seus atormentadores fica para o
Altíssimo, que vê a queda do passarinho, e em cuja santa Palavra está escrito:
"Minha é a vingança, eu retribuirei. O que
viu foi seu próprio filho, um menino da tenra idade de oito anos. durante
quinze dias seu impotente pai tinha permanecido suspendido por seu atormentador
pelo braço direito e a perna esquerda, e às vezes por ambos membros,
mudando-lhe de posição com o propósito de dar-lhe forças para suportar e
alongar seus sofrimentos. Quando o inocente menino, desejoso de ver seu pai e
de falar com ele, pediu ver a Bonner para pedir-lhe permissão, ao perguntá-lhe
o capelão do bispo qual era o propósito de sua visita, disse que desejava ver
seu pai. "Quem é teu pai?" perguntou o capelão. "John
Fetty", respondeu o menino, indicando ao mesmo tempo o lugar onde estava
encerrado. "Mas teu pai é um herege!". Este pequeno, com grande
coragem respondeu, com uma energia suficiente ok despertar admiração em
qualquer peito, exceto naquele deste miserável insensível e carente de
princípios, e tão bem disposto a executar os caprichos de uma rainha sem
consciência: "Meu pai não é um herege; tu tens a marca de Balaão".
Irritado pela recriminação tão corretamente aplicada, o
indigno e mortificado sacerdote ocultou seu ressentimento por um momento, e
levou o atrevido moleque à casa, onde, segurando-o, o entregou a outros que,
tão baixos e cruéis como ele, o despiram e o acoitaram com seus chicotes com
tanta violência que, desmaiando ele sob os açoites infligidos a seu terno
corpinho, e coberto do sangue que manava de suas feridas, estava a ponto de
expirar vítima deste duro e imerecido castigo.
Neste estado, sangrando e desmaiado, foi levado diante de seu
pai este sofredor menino, coberto só com uma comprida camisa, por um dos atores
da horrenda tragédia, o qual, enquanto exibia aquele espetáculo que partia o
coração, empregava os mais vis escárnios, e se gozava no que tinha feito. O
leal pequeno, como recuperando força ante a visão de seu pai, lhe implorou de
joelhos a bênção. "Ah, Will", lhe disse o o afligido pai, tremendo de
horror, "Quem te fez isto?!". O inocente menino lhe contou as circunstâncias
que o conduziram ao implacável corretivo que tinha-lhe sido aplicado com tanta
baixeza; mas quando repetiu a repreensão que tinha dito ao capelão, e que tinha
sido ocasionada por seu indômito espírito, foi arrancado de seu pai, que estava
desfeito em choro, e levado de volta a sua casa, onde permaneceu trancado e
estreitamente vigiado.
Bonner, sentindo um certo temor de que o que tinha feito
pudesse não ser justificado nem entre os mais sanguinários mastins de sua voraz
manada, concluiu em sua tenebrosa e malvada mente libertar a John Fetty, pelo
menos durante um tempo, dos rigores que estava sofrendo na gloriosa causa da
eterna verdade. sim, sua brilhante recompensa está fixada além dos limites do
tempo, dentro dos confins da eternidade, ali onde a seta do malvado não pode
ferir, ali "onde não haverá mais dores pol os bem-aventurados, que, na
mansão de glória eterna, ao Cordeiro sempre glorificarão". Por isso, foi
liberado por ordem de Bonner (que desgraça para toda dignidade, chamá-lo de
bispo!) de suas dolorosas correntes, e levado da Torre dos Lolardos à estância
daquele ímpio e infame carniceiro, onde encontrou o bispo esquentando-se diante
de um grande fogo. Ao entrar na estância, Fetty disse: "Deus seja aqui e
paz!". "'Deus seja aqui e paz' (repetiu Bonner), isto não é nem 'Deus
vos guarde', nem 'bom dia'!". "Se dais coices contra esta paz (disse
Fetty), não é este o lugar que procuro".
Um capelão do bispo, que estava junto dele, deu uma virada ao
coitado, e pensando escarnecê-lo, disse com tom burlão: "Que temos aqui:
um bufão!". Estando assim Fetty na estância do bispo observou, pendurado
perto da cama do bispo, um par de grandes rosários de miçangas pretas, pelo que
disse: "Senhor, creio que o carrasco não está muito longe, porque a corda
(disse, apontando os rosários) já está aqui". Ao ouvir estas palavras, o
bispo se enfureceu de forma inexpressável. De imediato observou também, de pé
na estância do bispo, um pequeno crucifixo. Perguntou ao bispo que era, e ele
lhe respondeu que era Cristo. "E foi maltratado tão cruelmente como
aparece aqui", perguntou Fetty. "Sim, assim foi", disse-lhe o
bispo. "E assim de cruelmente vós tratareis os que caírem em vossas mãos,
porque vós sois para o povo de Deus como Caifás foi para Cristo!" O bispo,
encolerizando-se, lhe disse: "Tu és um vil herege e te queimarei, ou
perderei tudo quanto tenho, até minha veste sacerdotal!". "Não,
senhor, (disse Fetty), melhor faríeis em dá-la a algum pobre, para que ore por
vós". Bonner, apesar da ira que sentia, que foi tanto mais intensificada
pela calma e as agudas observações deste sagaz cristão, considerou mais
prudente despedir o pai, por causa do menino quase assassinado. Sua covarde
alma tremia pelas conseqüências que pudessem desprender-se dessa ação; o médio
é inseparável das mentes mesquinhas, e este sacerdote roliço e covarde
experimentou os efeitos deste meio até tal ponto que o induziu a assumir a
aparência daquilo ao que era totalmente alheio: a MISERICÓRDIA.
O pai, despedido pelo tirano Bonner, foi a sua casa com o
coração oprimido, com seu filho moribundo, que não sobreviveu muitos dias aos
cruéis maus-tratos recebidos.
Quão contrária à vontade do grande Rei e Profeta, que ensinou
com mansidão a seus seguidores, era a conduta deste mestre falso e sanguinário,
deste vil apóstata de seu Deus a Satanás! Mas o diabo tinha-se apoderado de seu
coração, e conduzia cada ação daquele pecador a quem havia endurecido; este,
entregado a uma terrível destruição, corria a carreira dos malvados, marcando
seus passos com o sangue dos santos, como se anelasse alcançar a meta da morte
eterna.
A liberação do doutor Sands
Este eminente prelado, vice-chanceler de Cambridge, aceitou
predicar, com mui poucas horas de aviso, diante do duque e da universidade, a
petição do duque de Northumberland, quando este veio a Cambridge em apoio da
pretensão de lady Jane Gray. O texto que tomou foi o que se lhe apresentou ao
abrir a Bíblia, e não poderia ter escolhido um mais apropriado: os três últimos
versículos de Josué. Assim como Deus lhe deu o texto, assim também lhe deu tal
ordem e poder de palavra que suscitou as mais vivas emoções em seus ouvintes. O
sermão estava a ponto de ser enviado a Londres para ser impresso, quando
chegaram notícias de que o duque tinha voltado e que tinha sido proclamada a
Rainha Maria.
O duque foi imediatamente arrestado, e o doutor Sands foi
obrigado pela universidade a demitir-se de seu cargo. Foi arrestado por ordem
da rainha, e quando o senhor Mildmay se perguntou como um homem tão erudito se
atrevia a colocar-se voluntariamente em perigo e falar contra uma princesa tão
boa como Maria, o doutor respondeu: "Se eu for fazer como fez o senhor
Mildmay, não deveria temer nenhum cárcere. Ele veio armado contra a Rainha
Maria; antes, um traidor, agora, um grande amigo dela. Não posso eu com a mesma
boca assoprar frio e quente deste jeito". Seguiu um saqueio geral das
propriedades do doutor Sand, e foi levado logo a Londres montado num pangaré.
Teve de suportar muitos insultos pelo caminho, provenientes de católicos fanáticos,
e ao passar pela rua de Bishopsgate, caiu no chão por uma pedrada que lhe
lançaram. Foi o primeiro prisioneiro a entrar na Torre, naqueles tempos, por
motivos religiosos. Lhe permitiram entrar com sua Bíblia, mas lhe tiraram suas
camisas e outros artigos.
O dia da coroação de Maria, as portas do cárcere estavam tão
mal guardadas que era fácil escapar. Um verdadeiro amigo, o senhor Mitchell,
foi vê-lo, lhe deu seus próprios vestidos como disfarce, e se mostrou disposto
a permanecer em seu lugar. Este era um exemplo extraordinário de amizade; mas
ele recusou a oferta, dizendo-lhe: "Não tenho conhecimento de nenhuma
causa pela que deva estar em prisão. Fazer isto me faria duplamente culpado.
Esperarei o beneplácito de Deus, mas me considero um grande devedor
vosso"; assim se foi o senhor Mitchell.
Com o doutor Sands estava encarcerado o senhor Bradford;
foram custodiados no cárcere, estreitamente, durante dezenove semanas. O
guardião, John Fowler, era um perverso papista e, contudo, tanto o persuadiram,
que no final começou a favorecer o Evangelho, e ficou tão persuadido da
verdadeira religião que um domingo, quando celebravam a missa na capela, o
doutor Sands ministrou a Comunhão a Bradford e a Fowler. Assim, Fowler deveio
filho deles, gerado em prisões. Para fazer lugar a Wyat e seus cúmplices, o
doutor Sands e outros nove predicadores foram enviados a Marshalsea.
O guarda de Marshalsea designou um homem para cada
predicador, para que o conduzisse pela rua; os fez andar na frente, e ele e o
doutor Sands seguiram, conversando juntamente. Para esta época, o papismo
começava a ser impopular. Depois de ter passado a ponte, o guarda disse ao
doutor Sands: "Vejo que pessoas vãs quiseram lançar-vos ao fogo. Vós sois
tão vão como eles se, sendo jovem, vos mantendes em vossa própria arrogância, e
preferis vossa opinião à de tantos dignos prelados, ancião, eruditos e sérios
homens como há neste reino. Se é assim, vereis que sou um guarda severo, e que
meu conhecimento é pequeno; me basta com conhecer a Cristo crucificado, e nada
tem aprendido quem não vê a blasfêmia que há no papismo. A Deus me renderei, e
não aos homens; nas Escrituras tenho lido acerca de muitos guardas piedosos e
corteses: que Deus me faça um deles! E se não, espero que Ele me dê força e
paciência para suportar vossos maus-tratos". Depois agregou: "Estais
resolvido a manter-vos em vossa religião?". "Sim", disse o
doutor, "pela graça de Deus!". "A verdade", disse o guarda,
"gosto de você tanto mais por isto; somente vos provava, contai com todo
favor de que possa fazer-vos objeto; e me considerarei feliz se posso morrer na
estaca convosco".
E cumpriu com sua palavra, porque confiou no doutor,
deixando-o passear sozinho pelos campos, onde se encontrou com o senhor
Bradford, que também estava preso a disposição do tribunal real, e que tinha
conseguido o mesmo favor de seu guarda. Por sua petição, pus o senhor junto com
ele, para ser seu companheiro de cela, e a Comunhão foi ministrada a um grande
número de comungantes.
Quando Wyat chegou com seu exército a Southwark, ofereceu
libertar todos os protestantes encarcerados, mas o doutor Sands e o resto dos
predicadores recusaram aceitar a liberdade sob essas condições.
Depois que o doutor Sands permanecera preso nove meses no
cárcere de Marshalsea, foi colocado em liberdade por mediação de Sir Tomás
Holcroft, cavalheiro marechal. Embora o senhor Holcroft tinha a ordem da
rainha, o bispo tinha-lhe ordenado que não deixasse em liberdade o doutor Sands
até ter recebido fiança de dois cavalheiros com ele, obrigando-se cada um deles
por 500 libras esterlinas, de que o doutor Sands não se ausentaria do reino sem
permissão para isso. O senhor Holcroft se viu de imediato com dois cavalheiros
do norte, amigos e primos do doutor Sands, que ofereceram-se a pagar a fiança.
Depois de comer, aquele mesmo dia, Sir Tomás Holcroft mandou
que trouxessem o doutor Sands a sua casa de Westminster, para dizê-lhe tudo o
que tinha feito, o doutor Sands lhe respondeu: "Dou graças a Deus, que tem
movido vosso coração para ter-me tal consideração, pelo que me considero
obrigado convosco. Deus vo-lo pagará, e eu mesmo não vos serei ingrato. Mas
como me tendes tratado amistosamente, eu também vou ser-vos franco. Vim
livremente ao cárcere; não sairei ligado. como não posso ser de benefício algum
para meus amigos, tampouco lhes serei para dano. E se sou colocado em
liberdade, não permanecerei seis dias neste reino, se posso ir embora.
Portanto, se não posso sair livre, enviai-me de novo a Marshalsea, e ali
ficareis seguro de mim".
Esta resposta desgostou muito ao senhor Holcroft; mas lhe
respondeu como um verdadeiro amigo: "Sendo que não podeis ser mudado de
posição, eu mudarei meu propósito, e cederei ante vós. Aconteça o que
acontecer, vou deixar-vos em liberdade, e vendo como tendes desejo de
atravessar o mar, ide tão rápido como possais. Um coisa vos peço, que enquanto
estiverdes lá, não me escrevais nada, pois isso poderia ser minha
destruição".
O doutor Sands, despedindo-se afetuosamente dele e de seus
outros amigos encarcerados, foi embora. Foi pela casa de Winchester, e dali
tomou uma barca e se dirigiu à casa de um amigo em Londres, chamado William
Banks, ficando ali por uma noite. Na noite seguinte foi à casa de outro amigo,
e ali soube que estava sendo intensamente procurado, por ordem expressa de
Gardiner.
O doutor Sands se dirigiu então, de noite, à casa de um homem
chamado Berty, um estranho que esteve com ele no cárcere de Marshalsea por um
tempo. Era um bom protestante, e vivia em Maik-lane. Ale permaneceu seis dias,
e depois foi à casa de um de seus conhecidos em Com-hill. Fez que este
conhecido, Quinton, lhe subministrasse dois cavalos, tendo decidido ir-se,
nessa manhã, a Essex, a casa de seu sogro, o senhor Sands, onde estava sua
mulher, o que executou após ter escapado com dificuldade de ser apresado. Não
tinha permanecido ali duas horas antes de ser avisado que dois guardas o
arrestariam naquela mesma noite.
Aquela noite o durante Sands foi levado à granja de um
honrado camponês, perto do mar, onde permaneceu dois dias e duas noites numa
estância, sem companhia alguma. Depois de ter passado pela casa de um tal James
Mower, patrão de barco que morava em Milton-Shore, esperou um vento favorável
para ir a Flandes. Enquanto estava ali, James Mower lhe trouxe quarenta ou
cinqüenta marinheiros, aos que lhes deu uma exortação; tomaram-lhe tanto
aprecio, que prometeram morrer antes de permitir que fosse apreendido.
O 6 de maio, domingo, o vento foi favorável. Ao despedir-se
de sua hospedeira, que tinha estado casado oito anos sem ter nenhuma criança,
lhe deu um bonito lenço e um velho real de ouro, e lhe disse: "Consola-te;
antes de ter passado um ano inteiro, Deus te dará um filho, um menino". E
isto se cumpriu, porque doze meses menos um diz depois, Deus lhe deu um filho.
Apenas se tinha chegado a Amberes que soube que o rei Felipe
tinha dado ordem de ser apreendido. Fugiu então a Augsburgo, em Cleveland, onde
o doutor Sands permaneceu quatorze dias, viajando a continuação a Estrasburgo,
onde, após ter vivido ali um ano, sua mulher chegou para estar com ele. Esteve
doente de um fluxo durante nove meses, e teve um filho que morreu de peste. Sua
amante esposa finalmente caiu doente de uma febre, e morreu em seus braços.
Quando sua mulher esteve morta, foi a Zurique, e esteve em casa de Peter Martyr
por espaço de cinco semanas.
Sentados um dia comendo, lhes levaram de repente a notícia de
que a rainha Maria tinha morrido, e o doutor Sands foi chamado por seus amigos
em Estrasburgo, onde predicou. O senhor Grindal e ele se dirigiram a Inglaterra,
e chegaram a Londres o mesmo dia da coroação da rainha Elizabete. Este fiel
servo de Cristo ascendeu, sob a rainha Elizabete, à mais elevada distinção da
Igreja, sendo sucessivamente bispo de Worcester, bispo de Londres e arcebispo
de York.
O tratamento dispensado pela Rainha Maria a sua irmã, a
princesa Elizabete
A preservação da princesa Elizabete pode ser considerada como
um exemplo notável do vigilante olhar de Cristo sobre sua Igreja. O fanatismo
de Maria não tinha consideração para com os laços de consangüinidade, dos
afetos naturais nem da sucessão nacional. Sua mente, fisicamente lenta, estava
sob o domínio de homens que não possuíam bondade humana, e cujos princípios
estavam sancionados e mandados pelos dogmas idolátricos do romano pontífice. Se
tivessem podido prever a curta duração do reinado de Maria, teriam tingido suas
mãos com o sangue protestante de Elizabete, e, como sine qua non da
salvação da rainha, a teriam obrigado a ceder o reino a algum príncipe
católico. A resistência ante tal coisa teria sido acompanhada de todos horrores
de uma guerra civil religiosa, e sem teriam sentido na Inglaterra calamidades
similares às da França sob Henrique o Grande, a quem a rainha Elizabete ajudou
em sua oposição a seus súbditos católicos dominados pelos sacerdotes. Como se a
Providência tivesse em vista o estabelecimento perpétuo da fé protestante, deve
observar-se a diferença da duração dos dois reinados. Maria poderia ter reinado
muitos anos no curso da natureza, porém o curso da graça o dispus de forma
distinta. Cinco anos e quatro meses foi o tempo dado a este débil e desgraçado
reinado, enquanto que o reinado de Elizabete está entre os mais duradouros de
todos que jamais tenha visto o trono inglês: quase nove vezes o de sua
desalmada irmã.
Antes que Maria chegasse à coroa, tratou a Elizabete com
bondade fraternal, porém desde aquele momento se alterou sua conduta, e se
estabeleceu a distância mais imperiosa. Ainda que Elizabete não teve parte
alguma da rebelião de Sir Tomás Wyat, foi contudo apreendido e tratada como
culpável daquele rebelião. A forma em que teve lugar seu arresto foi semelhante
à mente que a havia ditado; os três ministros do gabinete aos que ela designou
para que tivessem cuidado do arresto entraram sem nenhuma cortesia em seu dormitório
às dez da noite e, ainda estivesse sumamente doente, a duras penas pôde
convencê-los para que a deixassem repousar até a manhã seguinte. Seu debilitado
estado lhe permitiu ser levada somente em curtas etapas em sua longa viagem a
Londres, mas a princesa, ainda que afligida em sua pessoa, teve o consolo que
sua irmã jamais poderia comprar: as pessoas pelas quais passava no caminho se
compadeciam dela, e oravam por sua preservação.
Ao chegar à corte, foi constituída presa durante duas
semanas, estreitamente vigiada, sem saber quem era seu acusador, nem ver a
ninguém que pudesse consolá-la ou aconselhá-la. Contudo, a acusação foi
finalmente desvelada por Gardiner, que, com dezenove membros do Conselho, a
acusou de instigar a conspiração de Wyat, o que ela afirmou religiosamente ser
falso. Ao fracassar nisto, apresentaram contra ela seus tratos com Sir Peter
Carew no oeste, no qual tampouco tiveram êxito. A rainha interveio agora
manifestando que era sua vontade que fosse encerrada na Torre, passo este que
abrumou a princesa com o maior temor e inquietude. Em vão abrigou a esperança
de que sua majestade a rainha não a enviasse a tal lugar; mas não podia esperar
indulgência alguma. O número de seus assistentes foi limitado, e se designaram
cem soldados nortistas para guardá-la dia e noite.
O Domingo de Ramos foi levada z Torre. Quando chegou a jardim
do palácio, olhou acima para as janelas, esperando ver os da rainha, mas se
desenganou. Se deu estrita ordem de que todos fossem à igreja e levassem
palmas, para que pudesse ser conduzida a sua prisão sem protestos nem mostras
de compaixão.
Ao passar pela Ponte de Londres, a descida da maré fez muito
perigosa a travessia, e a barcaça se travou durante um tempo com um espigão da
ponte. Para mortificá-la ainda mais, a fizeram desembarcar na Escada dos
Traidores. Como chovia intensamente, e se via obrigada a colocar os pés na água
para chegar à ribeira, vacilou; mas isso não suscitou nenhuma cortesia no
cavalheiro que a atendia. Quando pus seus pés nos degraus, exclamou:
"Aqui, embora presa, desembarco como a mais leal súbdita que jamais chegou
a estes degraus; e o digo perante Ti, oh, Deus, não tendo outro amigo senão
Tu!"
Um grande número de guardas e servos da Torre foram dispostos
em ordem, para que a princesa passasse entre eles. Ao perguntar para que era
aquela parada, lhe informaram que era o costume. Ela disse: "Se eles estão
aqui por mim, rogo-vos que sejam escusados". Ao ouvir isto, os pobres
homens se ajoelharam e oraram a Deus que preservasse sua Graça, pelo qual foram
expulsos de seus cargos no dia seguinte. Esta trágica cena deve ter sido
profundamente interessante: ver uma princesa amável e irrepreensível enviada
como um cordeiro, para enlanguescer na expectativa de cruéis tratamentos e
morte, e contra a que não havia outros motivos que sua superioridade de
virtudes cristãs e capacidades adquiridas. Seus acompanhantes choravam
abertamente enquanto ela se dirigia com um andar digno rumo as trágicos merlões
de seu destino. "Que quereis dizer-me com estas lágrimas", disse
Elizabete; "Vos trouxe para consolar-me, não para desalentar-me; porque
minha verdade é tal que ninguém terá motivos para chorar por mim".
O seguinte passo de seus inimigos foi procurar-se evidências
por meios que em nossos dias se consideram execráveis. Muitos coitados
prisioneiros foram submetidos ao potro do tormento para extrai-lhes, se for
possível, qualquer tipo de acusação que pudesse ser susceptível de condená-la a
morte, e com isso satisfazer a sanguinária disposição de Gardiner. Ele mesmo
foi a interrogá-la, acerca de sua mudança desde sua casa de Ashbridge ao
castelo de Dunnington, fazia já muito tempo. A princesa tinha esquecido
totalmente este insignificante acontecimento, e lorde Arundel, depois do
interrogatório, ajoelhando-se, se escusou por tê-la incomodado numa questão tão
trivial. "Me colocais estreitamente a prova", respondeu a princesa,
"porém disto estou segura: que Deus tem colocado limite a vossos
procedimentos; que Deus vos perdoe a todos".
Seus próprios cavalheiros, que deveriam ter sido seus
administradores e tê-la provido das coisas necessárias, foram obrigados a ceder
seus postos aos soldados comuns, às ordens do alcaide da Torre, que era em
todos os aspectos um servil instrumento de Gardiner; contudo, os amigos de sua
Graça obtiveram uma ordem do Conselho que regulou esta mesquinha tirania mais a
satisfação dela.
Depois de ter passado um mês inteiro em prisão estrita,
enviou uma comunicação ao lorde ajudante de câmara e ao lorde Chandois, aos
quais informou do mal estado de sua saúde por falta de ar livre e de exercício.
Feita a solicitude ao Conselho, lhe foi permitido, de má vontade, poder
passear-se pelas estâncias da rainha, e depois no jardim, momento em que os
prisioneiros daquele lado da Torre eram acompanhados pelos seus guardas, que
lhes impediam de contemplá-la. Também se excitaram seus ciúmes por um menino de
quatro anos, que a diário levava flores à princesa. O menino foi ameaçado com
receber açoites, e se ordenou ao pai que o mantivesse afastado das estâncias da
princesa.
O dia cinco de maio, o alcaide foi deposto de seu cargo, e
Sir Henry Benifield foi designado em seu lugar, acompanhado de cem soldados
vestidos de azul, de torva aparência. Esta medida suscitou grande alarme na
mente da princesa, que imaginou que estes eram preparativos conducentes a
sofrer a mesma sorte que lady Jane Gary e no mesmo corte. Recebendo seguridades
de que não havia um tal projeto em andamento, lhe veio à mente o pensamento que
o novo alcaide da Torre estava encarregado de acabar com ela secretamente, por
quanto seu caráter equívoco harmonizava com a feroz inclinação daqueles pelos
que tinha sido designado.
Depois correu o rumor que sua Graça seria levada fora dali
pelo alcaide e seus soldados, o que finalmente resultou ser certo. Veio uma
ordem do Conselho para que fosse trasladada à casa senhorial Woodstock, o que
teve lugar no Domingo de Trindade, 13 de maio, sob a autoridade de Sir Henn
Benifield e de Lorde Tame. A causa ostensível de seu traslado foi dar lugar a
outros prisioneiros. Richmond foi o primeiro lugar onde se detiveram, e aqui
durmiu a princesa, embora não sem muito temor no princípio, porque seus
princípios criados foram substituídos pelos soldados, que foram colocados como
guardas na porta de sua estância. Pelas queixas apresentadas, lorde Tame anulou
este indecoroso abuso de autoridade, e lhe concedeu perfeita segurança enquanto
esteve sob sua custódia.
Ao passar por Windsor viu a vários de seus coitados e
abatidos servos que esperavam vê-la. "Vai a eles", lhe disse a um de
seus assistentes, "e di-lhes de minha parte estas palavras: tanquim
ovis, isto é, como ovelha para o matadouro".
Na manhã seguinte, sua Graça se alojou em casa de um homem
chamado Dormer, e encaminhando-se a ela, a gente deu tais mostras de leal
afeição que Sir Henry se sentiu indignado, e os tratou abertamente de rebeldes
e traidores. Em alguns povoados faziam soar os sinos, imaginando que a chegada
da princesa entre eles era por causas muito distintas; mas esta inocente
demonstração de alegria foi suficiente para que o perseguidor Benifield
ordenasse a seus soldados que apreendessem estas humildes pessoas e as
colocassem no cepo.
No dia seguinte, sua Graça chegou à casa de lorde Tame, onde
permaneceu toda a noite, e foi muito nobremente agasalhada. Isto excitou a
indignação de Sir Henry, e o levou a advertir a lorde Tame que considerasse bem
sua forma de agir; mas a humanidade de lorde Tame não era das que se deixavam
atemorizar, e lhe deu a réplica adequada. Em outra ocasião, este oficial pródigo,
para mostrar sua má classe e seu menosprezo pela cortesia, foi a uma estância
que tinha sido preparada para sua Graça com uma cadeira, duas almofadas e um
tapete, sentando-se ali presunçosamente, e chamando a um de seus homens para
que lhe tirassem as botas. Tão logo como o souberam as damas e os cavalheiros
da princesa, o ridicularizaram escarnecendo-o. quando acabou a cena, ele chamou
o senhor da casa, e ordenou que todos os cavalheiros e as damas fossem para
suas casas, assombrando-se muito de que permitisse uma tão grande companhia,
considerando o grave encargo que lhe tinha sido encomendado. "Sir
Henry", disse sua senhoria, "dai-vos por satisfeito;evitaremos tanta
companhia, incluindo a de vossos homens". "não", disse Sir
Henry, "senão que meus soldados vigiarão toda a noite". Lorde Tame
replicou: "Não há necessidade". "Bom", disse o outro,
"haja necessidade ou não, o farão".
No dia seguinte, sua Graça empreendeu viagem dali a
Woodstock, onde foi encerrada, como antes na Torre de Londres, guardando-a os
soldados dentro e fora das muralhas, cada dia, em número de sessenta; e durante
as noites houve quarenta durante todo o tempo de seu encarceramento.
No final lhe foi permitido passear pelos jardins, mas sempre
sob as mais severas restrições, guardando as chaves o próprio Sir Henry,
guardando-a sempre baixo muitas fechaduras e ferrolhos, o que a induziu a
chamá-lo de carcereiro, pelo qual sentiu-se ele ofendido, e lhe rogou que
utilizasse a palavra oficial. Depois de muitos rogos do Conselho, obteve permissão
para escrever à rainha; mas o carcereiro que lhe trouxe pluma, tinta e papel
permaneceu junto dela enquanto escrevia e, ao sair, voltou levar esses artigos
até que tornassem a ser necessários. Também insistiu em levar a carta ele mesmo
a rainha, mas Elizabete não admitiu que ele fosse o portador, e foi apresentada
por um de seus cavalheiros.
Depois da carta, os doutores Owen e Wendy visitaram a
princesa, porque seu estado de saúde fazia precisa a assistência médica.
Permaneceram com ela cinco ou seis dias, tempo em que ela melhorou muito;
quando voltaram à rainha, e falaram aduladoramente da submissão e humildade da
princesa, a rainha pareceu comover-se; porém os bispos exigiam uma admissão de
que havia ofendido a sua majestade. Elizabete rejeitou esta forma indireta de
reconhecer-se culpável. "Se tenho delinqüido", disse ela, "e sou
culpada, não peço misericórdia, senão a lei, que estou segura já teria sofrido
faz tempo, caso qualquer coisa pudesse ter sido provada em minha contra; desejaria
estar igual de livre do perigo de meus inimigos; então não estaria encerrada e
cheia de ferrolhos, trás muralhas e portas".
Naquele tempo se falou muito da idoneidade de unir a princesa
com algum estrangeiro, para que pudesse ir embora do reino com uma porção apropriada.
Um dos do Conselho teve a brutalidade de propor a necessidade de decapitá-la se
era que o rei Felipe queria ter o reino em paz; porém os espanhóis, aborrecendo
uma idéia tão mesquinha, responderam: "Deus não queira que nosso rei e
senhor consinta a tão infame proceder!". Estimulados por um princípio de
nobreza, os espanhóis pressionaram desde então o rei no sentido de que seria
para maior honra dele liberar a lady Elizabete, e o rei não foi insensível a
tal petição. A tirou da prisão, e pouco depois foi enviada a Hampton Court. Se
pode observar aqui, de passagem, que a falácia dos arrazoamentos humanos se
evidência a cada passo. O bárbaro que propus a ação política de decapitar a
Elizabete pouco se esperava a mudança de condição que suas palavras iriam
propiciá-lhe. Em sua viagem desde Woodstock, Benifielf a tratou com a mesma
dureza que antes, fazendo-a viajar num dia de tempestade, e não permitindo que
sua velha criada, que tinha vindo a Colnbrook, onde dormiu uma noite, pudesse
falar com ela.
Permaneceu guardada e vigiada durante duas semanas de maneira
estrita antes que ninguém ousasse falar com ela; no final, o vil Gardiner
acudiu, com três mais do Conselho, com grande submissão. Elizabete o
cumprimentou com a observação de que tinha permanecido mantida durante muito
tempo em prisão isolada, e lhe rogou que intercedesse diante do rei e da rainha
para que a liberassem deste encerro. A visita de Gardiner tinha o propósito de
obter da princesa uma confissão de culpabilidade; porém ela se guardou contra
suas sutilezas, agregando que antes de admitir ter feito nada errado
permaneceria em prisão pelo resto de sua vida. Gardiner voltou a visitá-la, e
ajoelhando-se, declarou que a rainha se sentia atônita de que persistisse em
afirmar que era sem culpa, só que se inferiria que a rainha tinha encarcerado
injustamente sem sua Graça. Gardiner a informou, além disso, de que a rainha
tinha declarado que deveria falar de forma diferente antes de poder ser deixada
em liberdade. "Então", replicou a nobre Elizabete, "prefiro
estar em prisão com honra e verdade antes de ter minha liberdade e estar sob as
suspeitas de suas majestade. E me manterei no que tenho falado: não vou
mentir!" Então, o bispo e seus amigos partiram, deixando-a encerrada como
antes.
Sete dias depois a rainha enviou buscar Elizabete às dez da
noite; dois anos tinham-se passado desde que se haviam visto pela última vez.
Isso criou terror na mente da princesa, que, ao sair, pediu a seus cavalheiros
e damas que orassem por ela, porque não era seguro que pudesse voltar a vê-los.
Conduzida ao dormitório da rainha, ao entrar a princesa se
enfeitou, e tendo rogado a Deus que guardasse sua majestade, lhe deu seguranças
de que sua majestade não tinha um súbdito mais leal em todo o reino, fossem
quais forem os rumores que fizessem circular em sentido contrário. Com um
altaneiro desdém, a imperiosa rainha respondeu: "Não vais confessar teu
delito, senão que te manténs férrea em tua verdade. Peço a Deus que assim
seja".
"Se não for assim", disse Elizabete, "não peço
nem favor nem perdão de mãos de vossa majestade". "Bom", disse a
rainha, "continuas perseverando teimosa em tua verdade. Além disso, não
queres confessar que não foste castigada injustamente".
"Não devo dizê-lo, se assim apraz a vossa
majestade".
"Então o dirás a outros", disse a rainha.
"Não, se sua majestade não quer; tenho levado minha
carga, e devo levá-la. Rogo humildemente a vossa majestade que tenha boa
opinião de mim e me considere sua súbdita, não só desde o começo até agora,
senão para sempre, enquanto tenha vida".
Despediram-se sem nenhuma satisfação cordial por parte de
nenhuma; e não podemos dizer que a conduta de Elizabete exibisse aquela
independência e fortaleza que acompanha à da perfeita inocência. A admissão de
Elizabete de que não diria, nem a rainha nem a outros, que tinha sido castigada
injustamente, estava em total contradição com o que tinha falado a Gardiner, e
deve ter surgido de algum motivo por agora inexplicável. Se supõe que o Rei
Felipe estava escondido durante aquela entrevista, e que tinha-se mostrado
favorável à princesa.
Após sete dias do regresso da princesa a seu encarceramento,
seu severo carcereiro e seus homens foram demitidos, e foi deixada em
liberdade, sob a limitação de estar sempre acompanhada e vigiada por algum do
Conselho da rainha. Quatro de seus cavalheiros foram enviados à Torre sem outra
acusação contra eles que a de terem sido zelosos servos de sua senhora. Este
acontecimento foi logo seguido pela feliz notícia da morte de Gardiner, pela
que todos os homens bons e clementes glorificaram a Deus, por ter eliminado o
principal tigre da guarida, e ter assegurado mais a vida da sucessora
protestante de Maria.
Este infame, enquanto a princesa estava encarcerada na Torre,
enviou um documento secreto, assinado por alguns do Conselho, ordenando sua
execução privada, e se o senhor Bridges, tenente da Torre, tiver sido tão pouco
escrupuloso ante um tenebroso assassinato como este ímpio prelado, teria sido
morta. Ao não haver assinatura da rainha no documento, o senhor Bridges se
dirigiu apressadamente a sua majestade para informá-la e para saber seu
parecer. Esta tinha sido uma treta de Gardiner, que tentando demonstrá-la
culpável de atividades traiçoeiras tinha feito torturar a vários presos. Também
ofereceu grandes sumas em suborno ao senhor Edmund Tremaine e Smithwicke para
que acusassem à inocente princesa.
Sua vida esteve várias vezes em perigo. Enquanto estava em
Woodstock, se pegou fogo, aparentemente de forma intencionada, entre as vigas e
o teto sob o qual dormia. Também corre o intenso rumor de que um tal Paul
Penny, guarda de Woodstock, e notório bandido, foi designado para assassiná-la,
mas, fosse como for, Deus contrapôs neste ponto os desígnios dos inimigos da
Reforma. James Basset tinha sido outro designado para executar a mesma ação;
era um peculiar favorito de Gardiner, e tinha chegado a uma milha de Woodstock,
querendo falar com Benifield acerca disto. Quis Deus em sua bondade que
enquanto Bassey se dirigia a Woodstock, Benifield, por ordem do Conselho, se
dirigisse a Londres; devido a isto, deixou ordem firme a seu irmão de que
ninguém fosse admitido em presença da princesa.
Quando Elizabete saiu de Woodstock, deixou estas linhas
escritas com um diamante na janela: "Muitas suspeitas pode haver, nada demonstrado
pode ser. Disse Elizabete, presa".
Ao acabar a vida de Winchester, acabou o extremo perigo filha
princesa, porque muitos de seus secretos inimigos pronto o seguiram e,
finalmente, sua cruel irmã, que sobreviveu a Gardiner somente três anos.
A morte de Maria tem sido atribuída a várias causas. Os
membros do Conselho trataram de consolá-la em seus últimos momentos, pensando
que era a ausência de seu marido o que tanto lhe pesava no coração, mas embora
isto teve uma certa influência, a verdadeira razão de sua dor era a perda de
Calais, a última fortaleza possuída pelos ingleses na França. "Abri meu
coração", disse Maria, "quando estiver morta, e achareis ali escrita
a palavra Calais". A religião não lhe causava temores; os sacerdotes
tinham adormecido nela toda inquietude de consciência que puder ter existido
por causa dos espíritos acusadores dos mártires assassinados. Não era o sangue
que tinha derramado, senão a perda de uma cidade, o que moveu suas emoções ao
morrer, e este último golpe pareceu ser infligido para que suas fanáticas
perseguições pudessem ser colocadas em paralelo com sua insensatez política.
Rogamos fervorosamente que nos anais de nenhum país, católico
ou pagão, voltem a serem jamais maculados com tal repetição de sacrifícios
humanos o poder papal, e que o aborrecimento que se tem contra o caráter de
Maria possa ser um faro para os posteriores monarcas, a fim de evitares os
arrecifes do fanatismo!
O castigo de Deus contra alguns dos perseguidores de Seu povo
no reinado de Maria
Depois da morte daquele super-perseguidor, Gardiner, outros
seguiram, entre os que deve destacar-se o doutor Morgan, bispo de St. Davi's,
quem tinha sucedido o bispo Farrar. Não muito tempo depois de ter sido
designado para este bispado, caiu baixo a visitação de Deus: seus alimento, uma
vez descidos pela garganta, retrocediam com grande violência. Deste modo acabou
sua existência, literalmente morto de fome.
O bispo Thomton, sufragâne de Dover, foi
um infatigável perseguidor da verdadeira Igreja. Um dia, depois de ter exercido
sua cruel tirania sobre um número de piedosas pessoas em Canterbury, se dirigiu
da casa capitular a Borne, onde, enquanto estava um domingo contemplando a seus
homens jogando bolos, caiu sob um ataque de paralisia, e não sobreviveu muito
tempo.
Depois o sucedeu um outro bispo ou sufragâneo, ordenado por
Gardiner, que não muito depois de ter sido elevado à sede de Dover, caiu por
umas escadas na estância do cardeal de Greenwich, quebrando-se o pescoço.
Acabava de receber a bênção do cardeal; não poderia ter recebido nada pior.
John Cooper, de Watsam, Suffolk, sofreu a causa de um
perjúrio; por malignidade privada foi perseguido por um tal Fenning, que
subornou a outros dois para que jurasse que o tinham ouvido dizer "Se Deus
não tirar daqui a Rainha Maria, o diabo o fará". Cooper negou ter falado
semelhante coisa, porém era protestante e herege, pelo que foi enforcado,
arrastado e esquartejado, seus bens foram confiscados, e sua mulher e seus nove
filhos reduzidos à mendicidade. Porém durante a seguinte colheita, Grimwood de
Hitcham, uma das testemunhas antes mencionada, foi visitado por sua infâmia;
enquanto trabalhava, empilhando trigo, suas entranhas arrebentaram
repentinamente, e morreu antes de poder conseguir ajuda alguma. Assim foi retribuído
um perjúrio deliberado com uma morte súbita!
Já observamos a baixeza do xerife maior de Woodroffe no caso
do mártir Bradford. Se regozijava aquele xerife na morte dos santos, e na
execução do senhor Roger lhe partiu a cabeça do vaqueiro, porque deteve a carreta
para permitir que os filhos do mártir lhe dessem um último adeus. Apenas se
fazia uma semana que o senhor Woodroffe tinha deixado de ser xerife maior, foi
abatido por uma paralisia, e enlanguesceu vários dias numa condição mais que
lastimosa e impotente, apresentando um grande contraste com sua anterior
atividade naquele sanguinária causa.
Se crê que Ralph Lardyn, que entregou o mártir George Eagles,
foi posteriormente julgado e enforcado como conseqüência de uma auto-acusação.
Ante o tribunal, se acusou com estas palavras: "Isto me sobreveio com toda
justiça por entregar sangue inocente daquele homem bom e justo, George Eagle,
que foi aqui condenado em tempos da Rainha Maria por minha ação, quando vendi
seu sangue por um pouco de dinheiro".
Enquanto James Abbes se dirigia à execução, exortando os
apenados espectadores a manter-se firmes na verdade, e que como ele selassem a
causa de Cristo com seu sangue, um servo do xerife maior o interrompeu,
chamando blasfemamente heresia a sua religião, e ao bom homem de lunático. Mas
apenas se as chamas tinham alcançado o mártir, o terrível açoite de Deus caiu
sobre aquele endurecido miserável, na presença de quem tinha ridicularizado tão
cruelmente. Aquele homem se viu repentinamente atacado de loucura e, demente
perdido, se despojou das roupas e tirou os sapatos diante de todos (assim como
Abbes tinha acabado de fazer, para distribuí-los entre algumas pessoas pobres),
gritando ao mesmo tempo: "Assim o fez James Abbes, o verdadeiro servo de
Deus, que está salvo, porém eu condenado!". Repetindo isto várias vezes, o
xerife o fez segurar e mandou que o vestissem com sua roupa, mas logo que ficou
sozinho voltou arrancá-la, gritando como antes. Amarrado a uma carreta, foi
levado à casa de seu amo, e após seis meses morreu. Justo antes disso, veio
assisti-lo um sacerdote com um crucifixo, mas o desgraçado homem lhe disse que
saísse dali com seus enganos, e que ele e outros sacerdotes eram a causa de sua
condenação, mas que Abbes estava salvo.
Um tal Clark, inimigo juramentado dos protestantes no reinado
do rei Eduardo, se enforcou na Torre de Londres.
Froling, sacerdote muito célebre, caiu na rua e morreu no
instante.
Dale, um infatigável informante, morreu comido pelos vermes,
constituindo um horrendo espetáculo.
Alexandre, o severo guarda de Newgate, morreu miserável,
inchando-se até um tamanho prodigioso, e apodreceu por dentro de modo tal que
ninguém queria aproximar-se dele. Este cruel ministro da lei costumava acudir a
Bormer, a Story e a outros pedindo-lhes que esvaziassem sua prisão, sentia-se
demasiado acossado pelos hereges! O filho deste guarda, três anos depois da
morte de seu pai, dissipou suas grandes propriedades, e morreu repentinamente
no mercado de Newgate. "Os pecados do pai", diz o decálogo
"serão visitados sobre os filhos". John Peter, genro de Alexandre, um
horroroso blasfemador e perseguidor, morreu miseravelmente. Quando afirmava
qualquer coisa, dizia: "Se não for verdade, que apodreça antes de
morrer". E esta terrível condição o visitou em todo seu horror.
Sir Ralph Ellerker tinha estado ansiosamente desejoso de que
a Adam Damlip, executado tão injustamente, lhe fosse arrancado o coração. Pouco
depois, Sir Ralph foi morto pelos franceses, que o mutilaram cruelmente, lhe
cortaram os membros, e lhe arrancaram o coração.
Quando Gardiner soube do mísero final do juiz Hales, chamou a
profissão do Evangelho de "doutrina do desespero", mas esqueceu que o
desespero do juiz surgiu depois de ter consentido com o papismo. Com mais razão
se pode dizer isto dos princípios católicos, se consideramos o mísero fim do
doutor Pendleton, de Gardiner e da maioria dos perseguidores principais. Um
bispo lhe recordou a Gardiner, quando este estava em seu leito de morte, a
Pedro negando a seu mestre. "Ah!", disse Gardiner, "tenho negado
como Pedro, mas nunca me arrependi como ele".
Após a ascensão de Elizabete, a maioria dos prelados
católicos foram encarcerados na Torre ou no fleet. Bonner foi encerrado em
Marshalsea.
Dos blasfemadores da Palavra de Deus, detalharemos, entre
muitos outros, o seguinte acontecimento. Um tal William Maldon, que vivia em
Greenwich como criado, estava num anoitecer instruindo-se proveitosamente,
lendo um livro de leitura elementar. Outro criado, chamado John Powell, estava
sentado perto dele, e ridicularizava tudo quanto dizia Maldon, que o advertiu
de não escarnecer da Palavra de Deus. Porém Powell prosseguiu, até que Maldon
chegou a certas orações inglesas, e leu em voz alta: "Senhor, tem piedade
de nós; Cristo, tem piedade de nós", etc. de repente, o escarnecedor se
sobressaltou e exclamou: "Senhor, tem misericórdia de todos nós!".
Sentiu-se surpreendido do mais atroz terror em sua mente, disse que o espírito
mau não podia permitir que Cristo tivesse misericórdia alguma dele, e afundou
na loucura. Foi enviado a Bedlam, e se converteu num terrível exemplo de que
Deus nem sempre será ultrajado impunemente.
Henry Smith, estudante de leis, tinha um piedoso pai
protestante, de Camdem, em Gloucestershire, e foi piedosamente educado por ele.
Enquanto estudava leis no Temple, foi induzido a professar o catolicismo, e
dirigindo-se à Lovaina, na França, voltou carregado de perdoes, crucifixos, e
outros brinquedos papistas. Não satisfeito com isto, começou a injuriar
publicamente a religião evangélica na qual tinha sido criado, mas uma noite a
consciência o repreendeu com tal violência que num arrebato de desespero se
enforcou com suas próprias ligas. Foi sepultado no caminho, sem que fosse lido
o serviço cristão.
O doutor Story, cujo nome tem sido mencionado tantas vezes
nas páginas anteriores, foi reservado para ser cortado mediante execução
pública, prática na qual tanto tinha-se deleitado quando estava no poder. Se
supõe que interveio na maioria das ações dos tempos de Maria e que estendeu seu
engenho inventando novas formas de infligir torturas. Quando Elizabete acedeu
ao trono, foi encarcerado, porém inexplicavelmente fugiu ao continente, para
levar o fogo e a espada ali contra os irmãos protestantes. Do duque de Alba
recebeu em Amberes uma especial comissão para registrar todos os barcos em
busca de contrabando, especialmente de livro heréticos ingleses.
O doutor Story se gloriava em seu encargo que foi ordenado
pela Providência para obrar sua ruína, e para preservar os fiéis de sua
sanguinária crueldade. Se decidiu que um mercador chamado Parker navegasse a
Amberes, e que se informasse ao doutor Story que tinha uma carga de livros
heréticos a bordo. Apenas ouviu isso, este se apressou a chegar-se à barca,
buscou por todas partes em coberta, e depois embaixo na adega, e ali o
encerraram. Um oportuna tormenta levou a nave a Inglaterra, e este traidor e
perseguidor rebelde foi enviado em prisão, onde esteve um tempo considerável,
negando-se obstinadamente a renunciar a seu espírito anti-cristão, e a admitir
a supremacia da Rainha Elizabete. Aduzia que era súbdito do rei da Espanha, a
cujo serviço estava o famoso Duque de Alba, embora de nascimento e por educação
era inglês. Condenado, o doutor foi colocado sobre um reboque de grades e
arrastado desde a Torre a Tyburn, onde depois de ter sido enforcado durante
meia hora, foi cortado, despedaçado, e o carrasco exibiu o coração de um
traidor.
Assim terminou a existência deste Ninrode da Inglaterra.
JOSÉ MATEUS
zemateus@msn.com