CAPÍTULO 16 - Perseguições na Inglaterra durante o reinado da Rainha Maria 

A prematura morte do célebre e jovem monarca Eduardo IV causou acontecimentos do mais extraordinários e terríveis que jamais tiveram lugar desde os tempos da encarnação de nosso bendito Senhor e Salvador em forma humana. Este triste acontecimento se converteu logo em tema de geral lamentação. A sucessão ao trono britânico chegou a ser objeto de disputa, e as cenas que se sucederam foram uma demonstração da séria aflição na que estava envolvido o reino. Conforme foram desenvolvendo-se mais e mais as conseqüências desta perda para a nação, a lembrança de seu governo veio a ser mais e mais um motivo de gratidão generalizada. A terrível expectativa que em seguida se apresentou aos amigos da administração de Eduardo, sob a direção de seus conselheiros e servos, veio a ser algo que as mentes reflexivas se viram obrigadas a contemplar com a mais alarmada apreensão. A rápida aproximação que se fez a uma total inversão das atuações do reinado do jovem rei mostrava os avanços que deste modo iam rumo a uma resolução total na direção das questões públicas tanto na Igreja como no estado.

Alarmados pela condição na que provavelmente ficaria implicado o reino pela morte do rei, a tentativa por impedir as conseqüências, que se viam sobrevir com muita claridade, produziu os mais sérios e fatais efeitos. O rei, em sua longa e prolongada doença, foi induzido a fazer testamento, no qual outorgava a coroa inglesa a Lady Jane, filha do duque de Suffolk, quem estava casada com LordeGuilford, filho do duque de Northumberland, e que era neta da segunda irmã do rei Henrique, casada com Carlos, duque de Suffolk. Por este testamento se passou por alto a sucessão de Maria e Elizabete, suas duas irmãs, pelo temor à volta ao sistema do papado; e o conselho do rei, com os chefes da nobreza, o alcaide maior da cidade de Londres, e quase todos os juízes e os principais legisladores do reino, assinaram seus nomes neste documento, como sanção a esta medida. O Lordeprincipal da Justiça, embora um verdadeiro protestante e reto juiz, foi o único em negar-se a colocar seu nome em favor de Lady Jane, porque já havia expressado sua opinião de que Maria tinha direito de tomar as rédeas do governo. Outros objetavam que Maria fosse colocada no trono, pelos temores que tinham de que pudesse casar com um estrangeiro, e com isso pôr a coroa em considerável perigo. Também a parcialidade que ela demonstrava em favor do papismo deixava bem poucas dúvidas nas mentes de muitos de que seria induzida a reavivar os interesses do Papa e a mudar a religião que tinha sido usada nos dias de seu pai, o rei Henrique, como nos de seu irmão Eduardo; porque durante todo este tempo tinha ela manifestado uma grande teimosia e inflexibilidade, como será evidente em base à carta que enviou aos lorde s do conselho, pela qual apresentou seus direitos à coroa após a morte de seu irmão.

Quando esta teve lugar, os nobres, que se haviam associado para impedir a sucessão de Maria, e que tinham sido instrumentos em promover e talvez aconselhar as medidas de Eduardo, passaram rapidamente a proclamar a Lady Jane Gray como rainha da Inglaterra, na cidade de Londres e em várias outras cidades populosas do reino. Embora era jovem, possuía talentos de natureza superior, e seu aproveitamento sob um mui excelente tutor tinha-lhe dado grandes vantagens.

Seu reinado durou somente cinco dias, porque Maria, conseguindo a coroa por meio de falsas promessas, empreendeu rapidamente a execução de suas expressas intenções de extirpar e queimar a cada protestante. Foi coroada em Westminster da maneira usual, e sua ascensão foi o sinal para o início da sangrenta perseguição que teve lugar.

Tendo obtido a espada da autoridade, não foi remissa a empregá-la. Os partidários de lady Jane Gray estavam destinados a sentir sua força. O duque de Northumberland foi o primeiro em experimentar seu selvagem ressentimento. Depois de um mês de encerro na Torre foi condenado, e levado ao cadafalso para sofrer como traidor. Devido à variedade de seus crimes provocados por uma sórdida e desmesurada ambição, morreu sem que ninguém se compadecesse dele nem o lamentasse.

As mudanças que se sucederam com toda celeridade declararam de maneira inequívoca que a rainha era pouco afeiçoada ao atual estado da religião. O doutor Poynet foi afastado para dar lugar a Gardiner como bispo de Winchester, o qual recebeu também o importante posto de LordeChanceler. O doutor Ridley foi expulso da sede de Londres, e Bonne colocado em seu lugar. J. Story foi banido do bispado de Chichester, para pôr ali o doutor Day. J. Hooper foi enviado predo a Fleet, e o doutor Heath instalado na sede de Worcester. Miles Coverdale foi também efastado de Exeter, e o doutor Vesie tomou seu lugar naquela diocese. O doutor Tonstail foi também ascendido à sede de Durham. Ao observar-se e indicar-se estas modificações, foram oprimindo-se e turbando-se mais e mais os corações dos bons homens; mas os malvados se regozijavam. Aos mentirosos tanto dava como fosse a questão; mas àqueles cujas consciências estavam ligadas à verdade perceberam como se acendiam as fogueiras que depois deveriam servir para destruição de tantos verdadeiros cristãos.

 

As palavras e a conduta de lady Jane Gray no cadafalso

A seguinte vítima foi a gentil lady Jane Gray, que, por sua aceitação da coroa ante as insistentes petições de seus amigos, incorreu no implacável ressentimento de Maria. Ao subir no cadafalso, se dirigiu com estas palavras aos espectadores: "Boa gente, vim aqui para morrer, e por uma lei tenho sido condenada a isso. O fato contra a majestade da rainha era ilegítimo, e que eu acedesse a isso; porém acerca da tomada de decisão e o desejo do mesmo por minha parte ou em meu favor, me lavou neste dias as mãos em minha inocência diante de Deus e diante de vós, boa gente cristã". E fez então o movimento de esfregar-se as mãos, nas que tinha seu livro. Depois disse: "Peço-vos a todos, boa gente cristã, que me sejais testemunhas de que morro como boa cristã, e que espero ser salva somente pela misericórdia de Deus no sangue de seu único Filho Jesus Cristo, e não por nenhum outro médio; e confesso que quando conheci a Palavra de Deus a descuidei, amando-me a mim mesma e ao mundo, e por isso felizmente e com merecimento me sobreveio esta praga e castigo; porém dou graças a Deus que em sua bondade me deu desta maneira tempo e descanso para arrepender-me. E agora, boa gente, enquanto estou viva, rogo-vos que me auxilieis com vossas orações". Depois, ajoelhando-se, se dirigiu a Feckenham, dizendo-lhe: "Direi este Salmo?", e ele disse: "SIM". Então pronunciou o Salmo Miserere meu Deus em ingles, da forma mais devota até o final; depois se levantou, e deu a sua dama, a senhora Ellen, suas luvas e seu lenço, e seu livro ao senhor Bruges; depois desamarrou seu vestido, e o carrasco se aproximou para ajudá-la a tirá-lo; mas ela, pedindo-lhe que a deixasse sozinha, se voltou para suas duas damas, que a ajudaram a tirá-lo, e também lhe deram um bonito lenço com o qual vendar seus olhos.

Depois o carrasco se ajoelhou, e lhe pediu perdão, dando-o ela bem disposta. Depois pediu-lhe que ficasse de pé sobre a palha, e ao fazê-lo viu o talho. Então disse: "Rogo-te que acabes comigo rapidamente". Depois se ajoelhou, dizendo: "Me decapitarás antes que a estique?" E o verdugo disse: "Não, senhora". Então se vendou os olhos, e tateando para achar o talho, disse: "Que vou fazer? Onde está, onde está?". Um dos que ali estavam a conduziu, e ela pus a cabeça sobre o talho, e depois disse: "Senhor, em tuas mãos encomendo meu espírito". Assim acabou sua vida, no ano do Senhor de 1554, o 12 de fevereiro, tendo por volta de dezessete anos.

Assim morreu lady Jane; e naquele mesmo dia foi decapitado lorde Guilford, seu marido, um dos filhos do duque de Northumberland; eram dois inocentes em comparação com aqueles que estavam sobre eles. Porque eram muito jovens, e aceitaram ignorantemente aquilo que outros haviam tramado, consentindo que por proclamação pública fosse arrebatado para outros o que lhes fora dado a eles.

Acerca da condenação desta piedosa dama, deve lembrar-se que o juiz Morgan, que pronunciou sentença contra ela, caiu louco depois de tê-la condenado, e em seus delírios clamava continuamente que tiraram a lady Jane de diante dele, e assim acabou sua vida.

O 21 do mesmo mês, Henrique, duque de Suffolk, foi decapitado na Torre, o quarto dia depois de sua condena; naquele mesmo tempo muitos cavalheiros e fidalgos foram condenados, dos quais alguns foram executados em Londres, e outros em outros condados. Entre eles se encontrava lorde Tomás Gray, irmão do duque de Suffolk, que foi apresado não muito tempo depois no norte de Gales, e executado pela mesma causa. Sir Nicolas Throgmorton escapou muito apressadamente.

 

John Rogers, vicário do Santo Sepulcro, e leitor de são Paulo em Londres

John Rogers se educou em Cambridge, e foi depois muitos anos capelão dos mercadores empurrados a Amberes, em Brabante. Ali conheceu o célebre mártir William Tyndale, e a Miles Coverdale, ambos voluntariamente exilados de seu país por sua aversão à superstição e idolatria papal. Eles foram os instrumentos de sua conversão, e se uniu com eles na produção daquela tradução da Bíblia ao inglês conhecida como a "Tradução de Tomás Mathew". Pelas Escrituras soube que os votos ilegítimos podiam ser legitimamente quebrantados; por isso se casou e se dirigiu a Wittenberg, na Saxônia, para aumentar seus conhecimentos; ali aprendeu a língua alemã, e recebeu o encargo de uma congregação, cargo que desempenhou fielmente durante muitos anos. ao aceder o rei Eduardo ao trono, se foi a Saxônia para impulsionar a obra da Reforma na Inglaterra. Após um tempo, Nicolas Ridley, que era então o bispo de Londres, o fez canônigo da catedral de são Paulo, e o decano e o capítulo o designaram leitor da lição de teologia. Ali continuou até o Ascenso ao trono da rainha Maria, quando foram desterrados o Evangelho e a verdadeira religião, e introduzido o Anticristo de Roma, com sua superstição e idolatria.

A circunstância pela qual o senhor Rogers predicou em Paul's Cross depois que a rainha Maria chegasse à Torre, já foi relatada. Confirmou ele em seus sermões a doutrina ensinada na época do rei Eduardo, exortando o povo a guardar-se da abominação do papismo, da idolatria e da superstição. Por esta razão foi chamado a dar conta, mas se defendeu de maneira tão capaz que foi pelo momento libertado. Mas a proclamação da rainha proibindo a verdadeira predicação deu a seus inimigos um novo pretexto contra ele. Por isso, foi chamado de novo ante o conselho, e se ordenou seu arresto domiciliário. Ficou então em sua casa, embora houvesse podido escapar e foi quando viu que o estado da verdadeira religião era desesperado. Sabia que não lhe faltaria um salário na Alemanha; e não podia esquecer sua mulher nem seus dez filhos, nem deixar de tentar obter os meios para suprir suas necessidades. Mas todas estas coisas foram insuficientes para induzi-lo a ir embora, e, quando foi chamado a responder a causa de Cristo, a defendeu firmemente, e pus sua vida em perigo por esta causa.

Depois de um longo encarceramento em sua própria casa, o agitado Bonner, bispo de Londres, o fez encerrar em Newgate, lançando-o em companhia de ladrões e assassinos.

Depois que o senhor Rogers tiver sofrido um estrito encarceramento durante um longo tempo, entre ladrões, e tendo sofrido muitos interrogatórios e um tratamento muito pouco caritativo, foi finalmente condenado da forma mais injusta e cruel por Stephen Gardiner, bispo de Winchester, o 4 de fevereiro de 1555. Uma segunda-feira pela manhã, foi repentinamente advertido pelo guarda de Newgate que se preparasse para a fogueira. Estava profundamente dormido, e lhes deu muito trabalho acordá-lo. ao final, desperto e levantado, ao ser apressado, disse: "Se é assim, não há necessidade de amarrar-me os sapatos". Assim o levaram, primeiro ao bispo Bonner, para que o degradasse. Feito isto, lhe fez um único pedido ao bispo Bonner, e este lhe perguntou de que se tratava. O senhor Rogers lhe pediu para falar um breve tempo com sua mulher antes de ser queimado; porém o bispo se negou.

Quando chegou o momento de ser levado de Newgate a Smithfield, onde seria executado, um xerife chamado Woodroofe se aproximou do senhor Rogers e lhe perguntou se queria desdizer-se de sua abominável doutrina e da má opinião acerca do Sacramento do altar. O senhor Rogers respondeu: "O que tenho predicado o selarei com meu sangue". Então Woodroofe lhe disse: "Tu és um herege". "Isto se saberá", replicou o senhor Rogers "no Dia do Juízo". "Bem", disse Woodroofe, "nunca orarei por ti". "Porém eu sim orarei por ti", disse-lhe o senhor Rogers; assim foi tirado naquele mesmo dia, o 4 de fevereiro, e levado pelos xerifes até Smithfield, dizendo pelo caminho o Salmo Miserere, e deixando o povo surpreendido com sua inteireza, dando louvores a Deus e gratidão por tudo. Ali, em presença do senhor Rochester, controlador da Casa da Rainha, de Sir Richard Sothwell, ambos xerifes e uma grande multidão, foi reduzido a cinzas, lavando-se as mãos na chama enquanto ardia. Pouco antes de ser queimado lhe trouxeram o indulto, caso se desdissesse; mas negou-se de forma total. Ele foi o primeiro mártir de toda a bendita companhia que sofreu em tempos da Rainha Maria. Sua mulher e filhos, onze em total, dez que podiam caminho e um bebê de peito, foram vê-lo no caminho, enquanto se dirigia a Smithfield. O triste espetáculo de ver sua própria carne e sangue não o moveu, contudo, a debilidade, senão que aceitou sua morte com constância e ânimo, em defesa e na batalha do Evangelho de Cristo.

 

O reverendo Lawrence Saunders

O senhor Saunders, depois de passar algum tempo na escola de Eaton, foi escolhido para ir ao King's College, em Cambridge, onde permaneceu durante três anos, crescendo em conhecimentos e aprendendo muito por aquele breve espaço de tempo. Pouco depois saiu da universidade e voltou à casa de seus pais, mas logo voltou a Cambridge para seguir estudando, e começou a agregar ao conhecimento do latim o estudo das línguas gregas e hebraica, e se deu ao estudo das Sagradas Escrituras, para capacitar-se melhor para o ofício de predicador.

A começo do reinado de Eduardo, quando foi introduzida a verdadeira religião de Deus, depois de obter licença começou a predicar, e foi tão do agrado dos que então tinham autoridade, que o designaram para ler um conferencia de teologia no College de Fothringham. Ao dissolver-se o College de Fothringham, foi designado como leitor da catedral em Litchfield. Depois de um certo tempo, saiu daí com uma prebenda em Leicestershire chamada Church-Langton, onde teve residência, ensinou com diligência, e manteve casa aberta. Dali foi chamado a tomar uma prebenda na cidade de Londres chamada Todos Santos, em Bread Street. Depois disso predicou em Northhampton, nunca misturando-se com o estado, más pronunciando-se abertamente sua consciência contra os papistas que podiam logo voltar a levantar cabeça na Inglaterra, como uma justa peste pelo escasso amor que mostrava a nação inglesa então pela bendita Palavra de Deus, que tinha-lhes sido oferecida de forma tão abundante.

O partido da rainha se encontrava ali, e ao ouvi-lo se sentiram ofendidos por seu sermão por isso o levaram preso. Mas em parte por seu amor a seus irmão e amigos, que eram os principais agentes da rainha entre eles, e em parte porque não tinha quebrantado lei alguma com sua predicação, o deixaram ir.

Alguns de seus amigos, ao ver aquelas terríveis ameaças, lhe aconselharam que fugisse do reino, o que ele recusar a fazer. Mas ao ver que seria privado por meios violentos de fazer o bem naquele lugar, voltou a Londres a visitar sua grei.

Na tarde do domingo 15 de outubro de 1554, enquanto lia em sua igreja para exortar a seu povo, o bispo de Londres o interrompeu, enviando um xerife para levá-lo.

Disse o bispo que em sua caridade se comprazia em deixar passar sua traição e sedição por enquanto, mas que estava disposto a demonstrar que era herege ele e todos os que ensinavam que a administração dos Sacramentos e todas as ordens da Igreja são mais puros quanto mais se aproximam à ordem da Igreja primitiva.

Depois de uma longa conversação acerca desta questão, o bispo lhe pediu que escrevesse o que acreditava acerca da transubstanciação. Lawrence Saunders o fez, dizendo: "Meu senhor, vós buscais meu sangue, e o tereis; rogo a Deus que sejais batizado nele de modo tal que desde então abomineis o derramamento de sangue e vireis um homem melhor". Acusado de contumácia, as severas réplicas do senhor Saunders ao bispo (que em épocas passadas, para obter o favor de Henrique VIII havia escrito e feito imprimir um livro de verdadeira obediência, no qual havia declarado abertamente que Maria era uma bastarda), o irritaram de tal modo que exclamou: "Levai este frenético insensato à prisão".

Depois deste bom e fiel mártir passou encarcerado um ano e três meses, os bispos finalmente o chamaram, a ele e a seus companheiros de prisão, para serem interrogados ante o conselho da rainha.

Acabado seu interrogatório, os oficiais o tiraram do lugar, e ficaram fora até que o resto de seus companheiros fossem igualmente interrogados, para levá-los a todos junto de novo ao cárcere.

Depois de sua excomunhão e entrega ao braço secular, foi levado pelo xerife de Londres ao Compter, um cárcere em sua própria paróquia de Bread Stree, com o qual se regozijou grandemente, porque ali encontrou um companheiro de cárcere, o senhor Cardmaker, com quem teve muitas consoladoras conversações cristãs; e porque quando saísse daquela prisão, como antes em seu púlpito, poderia ter a oportunidade de predicar a seus fiéis. O 4 de fevereiro, Bonner, bispo de Londres, acudiu à cela para degradá-lo; no dia seguinte, pela manhã, o xerife de Londres o entregou a certos membros da guarda da rainha, que tinham ordem de levá-lo à cidade de Coventry, para ali ser queimado.

Quando houveram chegado em Coventry, um coitado sapateiro que costumava servi-lo com sapatos, acudiu a ele e lhe disse: "Oh, meu bom senhor, que Deus lhe fortaleça e console". "bom sapateiro", lhe respondeu o senhor Saunders, "te peço que orem por mim, porque sou o homem mais inapropriado que jamais tenha sido designado para esta elevada missão; porém meu Deus e Pai amante e cheio de graça é suficiente para fazer-me forte como seja necessário". No dia seguinte, o 8 de fevereiro de 1555 foi levado ao lugar da execução, no parque fora da cidade. Foi numa túnica velha e camisa, descalço, e amiúde se prostrava em terra para orar. Quando chegaram perto do lugar, o oficial designado para cuidar da execução disse ao senhor Saunders que ele era um dos que faziam mal ao reino da rainha, porém que se retratasse haveria perdão para ele. "Não serei eu", respondeu o santo mártir, "senão vós outros os que fazeis dano ao reino. O que eu sustento é o bendito Evangelho de Cristo; acredito nele, o ensinei, e jamais o revogarei". Depois o senhor Saunders se dirigiu lentamente para o fogo, se ajoelhou em terra e orou. Depois se levantou, abraçou a estaca e disse várias vezes: "Bem-vinda, cruz de Cristo! Bem-vinda, vida eterna!". Aplicaram então fogo á pira, e ele, abrumado pelas terríveis labaredas, caiu dormido em braços do Senhor Jesus.

 

A história, encarceramento e interrogatório do senhor John Hooper, bispo de Worcester e Gloucester

John Hooper, estudante e graduado da Universidade de Oxford, sentiu-se tão movido com tão fervoroso desejo de amar e conhecer as Escrituras que se viu obrigado a ir embora dali, e ficou em casa de Sir Tomás Arundel como mordomo, até que Sir Tomás soube de suas opiniões e religião, que ele não favorecia de modo algum, ainda que favorecesse cordialmente sua pessoa e condição e anelasse ser seu amigo. O senhor Hooper teve agora a prudência de abandonar a casa de Sir Tomás e foi a Paris, porém pouco tempo depois voltou para Inglaterra, e foi acolhido pelo senhor Sentlow, até o momento em que de novo foi fustigado e perseguido, com o que voltou a passar para a França, e às terras altas da Alemanha; ali, entrando em contato com homens eruditos, recebeu deles livre e afetuosa hospitalidade, tanto na Basiléia como especialmente em Zurique, pelo senhor Bullinger, que foi especialmente amigo dele; ali também casou com sua mulher, que era de Borgonha, e se aplicou diligentemente ao estudo da língua hebraica.

No final, quando Deus teve o beneplácito de dar fim ao sangrento tempo dos seis artigos e dar-nos o rei Eduardo para reinar sobre este reino, com alguma paz e repouso para a Igreja, entre os muitos outros exilados que voltaram à pátria se encontrava também o senhor Hooper, quem voltou conscientemente, não para ausentar-se de novo, senão buscando o momento e a oportunidade, oferecendo-se para impulsionar a obra do Senhor até os limites de sua capacidade.

Quando o senhor Hooper se despediu do senhor Billinger e de seus amigos em Zurique, se dirigiu de volta à Inglaterra no reinado do rei Eduardo VI, e chegando a Londres, começou a predicar, a maioria dos dias duas vezes, ou pelo menos uma vez por dia.

Em seus sermões, conforme seu costume, corrigia o pecado e falava severamente Cintra a iniqüidade do mundo e os abusos corrompidos da Igreja. O povo comparecia em grandes multidões e grupos a ouvir sua voz a diário, como se fosse o som mais melodioso e a música da harpa de Orfeu, de modo que às vezes, quando predicava, a igreja estava tão lotada que não cabia nem uma agulha. Era fervoroso em seu ensino, eloqüente em sua palavra, perfeito nas Escrituras, infatigável em sua tarefa, exemplar em sua vida.

Tendo predicado ante a majestade real, logo foi designado bispo de Gloucester. Prosseguiu dois anos naquele cargo, e se comportou tão bem que seus inimigos não puderam achar ocasião contra ele, e depois foi feito bispo de Worcester.

O doutor Hooper cumpriu a função do mais solícito e vigilante pastor por espaço de dois anos e algo a mais, enquanto o estado da religião, no reinado do rei Eduardo, foi sadio e florescente.

Depois de ser sido citado a comparecer ante Bonner e o doutor Heath, foi levado ao Conselho, acusado em falso de dever dinheiro à rainha, e no ano seguinte, 1554, escreveu relato dos duros tratos recebidos durante um confinamento de dezoito meses no Fleet, e depois de seu terceiro interrogatório, o 28 de janeiro de 1555, em St. Mary Overy's, ele e o reverendo Rogers foram levados ao Compter em Southwark, onde foram deixados até o dia seguinte às nove da manhã, para ver se voltavam para trás. "Venha, irmão Rogers", lhe disse o doutor Hooper, "devemos tomar esta questão por nós, e começar a sermos assados nestas fogueiras?" "Sim, doutor", disse o senhor Rogers, "pela graça de Deus". "Não tenha dúvida alguma", respondeu o doutor Hooper "de que Deus nos dará forças"; e o povo apludia tanto sua tenacidade que apenas se podiam passar.

O 29 de janeiro, o bispo Hooper foi degradado e condenado, e o reverendo senhor Rogers foi tratado de forma similar. Ao escurecer, o doutor Hooper foi levado a Newgate pelo meio da cidade; ao passar muitas pessoas saíram a suas portas com luzes, saudando-o e dando graças a Deus pela sua constância. Durante os poucos dias que esteve em Newgate foi freqüentemente visitado por Bonner e outros, mas sem êxito algum. Tal como Cristo foi tentado, assim o tentaram a ele, e depois informaram maliciosamente que se havia retratado. O lugar de seu martírio foi fixado em Gloucester, com o que se regozijou muito, levantando ao olhos ao céu, e louvando a Deus que o enviava entre aquela gente da qual era pastor, para confirmar ali com sua morte a verdade que antes tinha-lhes ensinado.

O 7 de fevereiro chegou a Gloucester, por volta das cinco da tarde, e se alojou na casa de um chamado Ingram. Depois de dormir um pouco, se manteve em oração até a manhã; e o resto do dia o dedicou do mesmo modo à oração, exceto um pouco de tempo nas comidas e quando conversava com aqueles que o guarda gentilmente lhe permitia.

Sir Anthony Kingston, que antes tinha sido um bom amigo do doutor Hooper, foi designado por uma carta da rainha para que presidisse a execução. Tão logo como viu o bispo prorrompeu em lágrimas. Com entranháveis rogos o exortou a viver. Certo é que a morte é amarga, e que a vida é doce", lhe disse o bispo, "porém, ay! Considera que a morte vindoura é mais amarga, e que a vida vindoura é mais doce".

Aquele mesmo dia um menino cego recebeu permissão para ser conduzido à presença do doutor Hooper. Aquele mesmo menino tinha sofrido prisão em Gloucester, não muito tempo antes, por confessar a verdade. "Ah, pobre menino!", disse o bispo, "embora Deus tenha tirado a visão externa, pela razão que Ele saberá melhor, contudo tem dotado tua alma com a visão do conhecimento e da fé. Que Deus te dê graça para que ores a Ele continuamente, para que não percas a visão, porque então estarias certamente cego de corpo e alma".

Enquanto o alcaide esperava que se preparasse para a execução, ele expressou sua total obediência, e somente pediu que fosse um fogo rápido que desse fim a seus tormentos. Depois de levantar-se pela manhã, pediu que não deixassem entrar ninguém em sua câmara, para poder ficas a sós até a hora da execução.

Por volta das 8 da manhã do dia 9 de fevereiro de 1555 foi tirado, e havia milhares de pessoas congregadas, porque era dia de mercado. A todo o longo do caminho, tendo ordens estritas de não falar, e vendo o povo, que se lamentava amargamente por ele, levantava seus olhos ao céu, e olhava alegremente aos que conhecia; nunca o viram, durante todo o tempo que estivera entre eles antes, com um semblante tão alegre e iluminado como naquela ocasião. Quando chegou no lugar designado para a execução, contemplou sorridente a estaca e os preparativos feitos para ele, perto do grande olmo diante do colégio de sacerdotes, onde costumava predicar antes.

Agora, depois de ter entrado em oração, trouxeram uma caixa e a colocaram sobre um banquinho. Na caixa estava o perdão da rainha se ele voltava atrás. Ao vê-lo, exclamou: "Se amais minha alma, tirai isso dali!" Ao ser tirada a caixa, disse lorde Chandois: Já vedes que não há remédio; acabai com ele rapidamente".

Agora deram ordem para que se acendesse o fogo. Porém devido a que não havia mais lenha verde que a que podiam trazer dois cavalos, não acendeu rapidamente, e também se passou bastante tempo antes que acendessem as canas sobre a lenha. No final acendeu o fogo em sua volta, mas havendo muito vento naquele lugar, e sendo uma manhã glacial, afastava a chama a seu redor, pelo que apenas foi tocado pelo fogo.

Após um tempo trouxeram lenha seca, e se acendeu um novo foco com brasas (porque não havia já mais canas), e somente queimou a parte de baixo, mas não tinha muita chama por acima, devido ao vento, embora lhe queimou o cabelo e lhe abrasou um pouco a pele. Durante o tempo deste fogo, já desde a primeira labareda, orou, dizendo mansamente, e não muito forte, como algum sem dor: "Oh, Jesus, Filho de Davi, tem misericórdia de mim e recebe minha alma!" Quando se houve apagado o segundo fogo, se esfregou ambos olhos com as mãos, e olhando as pessoas, disse-lhe com voz calma e forte: "Pelo amor de Deus, boa gente, colocai mais fogo!". Enquanto isso seus membros inferiores ardiam, mais as brasas eram tão poucas que a chama somente chamuscava suas partes superiores.

Acenderam o terceiro fogo após um tempo, que era mais intenso que os outros dois. Neste fogo ele orou em alta voz: "Senhor Jesus, tem misericórdia de mim! Senhor Jesus, recebe meu espírito!" E estas foram as últimas vozes que se ouviram. Mas quando tinha a boca escurecida e sua língua estava tão inchada que não podia falar, catacumba se moveram seus lábios até ficarem encolhidos sobre as gengivas, e se batia no peito com suas mãos até que um de seus braços se desprendeu, e depois continuou batendo com a outra,mas enquanto saia gordura, sangue e água dos extremos dos dedos; finalmente, ao renovar-se o fogo, desapareceram suas energias, e sua mão ficou fixa após bater na corrente sobre seu peito. Depois, inclinando-se para a frente, entregou seu espírito.

Assim permaneceu três quartos de hora ou mais no fogo. Como um cordeiro, paciente, suportou esta atroz tortura, não mexendo-se nem para atrás nem para nenhum lado, senão que morreu tão aprazivelmente como um bebê em seu berço. E agora reina, não tenho dúvida, como bendito mártir nos gozos do céu, preparados para os fiéis em Cristo desde antes da fundação do mundo, e pela constância dos quais todos os cristãos devem louvar a Deus.

 

A vida e conduta do doutor Rowland Taylor de Hadley

O doutor Rowland Taylor, vigário de Hadley, em Suffolk, era homem de eminente erudição, e tinha sido admitido ao grau de doutor de lei civil e canônica.

Sua adesão aos princípios puros e incorruptos do cristianismo o recomendaram ao favor e à amizade do doutor Cranmer, arcebispo de Canterbury, com quem viveu muito tempo, até que por meio de seu interesse obteve o vicariato de Hadley.

Não só sua palavra lhes predicava, senão que toda sua vida e conversação era um exemplo de vida cristã não fingida e de verdadeira santidade. Estava isento ed soberba; era humilde e gentil como uma criança, de modo que ninguém era tão pobre que não pudesse recorrer a ele como a um pai, com toda liberdade; e sua humildade não era infantil ou cobarde, senão que, quando a ocasião o demandava e o lugar o requeria, era firme em repreender o pecado e os pecadores. Ninguém era demasiado rico para que ele não fosse a repreendê-lo claramente por suas faltas, com recriminações tão solenes e graves como convinham a um bom clérigo e pastor. Era um homem disposto a fazer o bem a todos; perdoava bem disposto a seus inimigos, e nunca tentou fazer dano algum e ninguém.

Era, para os pobres que eram cegos, coxos, que estavam doentes, deitados no leito da dor, ou que tinham muitos filhos, um verdadeiro padre, um protetor solícito, e um provedor diligente, de forma que fez que os fiéis fizessem um fundo geral para eles; e ele mesmo (além do alívio contínuo que sempre encontravam em sua casa) dava uma porção digna a cada ano às oferendas comuns. Sua mulher era também uma matrona honrada, discreta e sóbria, e seus filhos, e seus filhos estavam bem educados, criados no temor de Deus e numa boa instrução.

Era boa sal da terra, com um sadio mordente para as formas corrompidas dos malvados; luz na casa de Deus, colocada num candeeiro para que o imitassem e continuassem todos os homens bons.

Assim continuou este bom pastor entre sua grei, governando-os e conduzindo-os através do deserto deste malvado mundo, todos os dias daquele santo e inocente rei de abençoada memória, Eduardo VI. Porém a sua morte, e com a ascensão da Rainha Maria ao trono, não escapou à negra nuvem que se abateu também sobre os santos; porque dois membros de sua paróquia, um advogado chamado Foster e um comerciante chamado Clark, guiados pelo cego zelo, decidiram que se celebrasse a missa com todas suas formas de superstição, na igreja paroquial de Hadley, na segunda-feira antes da Páscoa. O doutor Taylor, entrando na igreja, o proibiu estritamente; porém Clarck expulsou o doutor fora da igreja, celebrou a missa e imediatamente informou ao lorde chanceler, bispo de Winchester, de sua conduta, o qual o chamou a comparecer e a dar resposta das acusações que se faziam contra ele.

O doutor, ao receber o chamamento, se preparou bem disposto para obedecê-lo, rejeitando o conselho de seus amigos para fugir ao outro lado do mar. Quando Gardiner viu o doutor Taylor, o injuriou, segundo era seu costume. O doutor Taylor escutou os insultos com paciência, e quando o bispo lhe disse: "Como te atreves a olhar-me na cara? Não sabes quem sou eu?", o doutor Taylor respondeu: "Vós sois Stephen Gardiner, bispo de Winchester e lorde chanceler, mas somente sois um homem mortal. Contudo, se eu devesse temer vossa senhoril aparência, por que não temeis vós a Deus, o Senhor de todos nós? Com que rosto aparecereis ante o tribunal de Cristo, e respondereis do juramento que fizestes primeiro ao rei Henrique VIII, e depois a seu filho o rei Eduardo VI?"

Continuou sua longa conversação, na que o doutor Taylor falou tão mesurada e severamente a seu antagonista que este exclamou: "Tu és um blasfemo herege! Em verdade blasfemas contra o bendito Sacramento (e aqui tirou o chapéu) e falas em contra da santa missa, que é constituída sacrifício pelos vivos e os mortos!". Depois, o bispo o entregou ao tribunal real.

Quando o doutor Taylor chegou ali, encontrou o virtuoso e diligente predicador da Palavra de Deus que era o senhor Bradford, o qual igualmente deu graças a Deus por dar-lhe tão bom companheiro de prisão; e ambos juntos louvaram a Deus, e persistiram em oração, em leitura, e em exortar-se mutuamente.

Depois que o doutor Taylor esteve um tempo em cárcere, foi citado para comparecer sob as arcadas da igreja de Bow.

Condenado, o doutor Taylor foi enviado a Clink, e os guardas daquele cárcere receberam ordens de tratá-lo mal. Pela noite foi levado a Poultry Compter.

Quando o doutor Taylor houve permanecido em Compter por volta de uma semana, o 4 de fevereiro chegou Bonner para degradá-lo, levando consigo ornamentos pertencentes à comédia da missa; porém o doutor recusou aqueles disfarces, que finalmente lhe foram colocados pela força.

A noite depois de ser degradado, sua mulher o visitou com seu servo John Hull e com seu filho Tomás, e pela bondade dos carcereiros puderam jantar com ele.

Depois de jantar, andando adiante e atrás, deu graça a Deus por sua graça, que lhe tinha dado a fortaleza para manter-se em sua santa Palavra. Com lágrimas oraram juntos, e se beijaram. A seu filho Tomás lhe deu um livro latino que continha os ditados notáveis dos antigos mártires, e no final do mesmo escreveu seu testamento: "Digo a minha esposa e a meus filhos: o Senhor me deu a vós outros, e o Senhor me tira de vós e a vós de mim. Bendito seja o nome do Senhor! Acredito que são bem-aventurados os que morrem pelo Senhor. Deus se cuida dos passarinhos, e conta os cabelos de nossas cabeças. O encontrei a Ele mais fiel e favorável do que possa sê-lo nenhum pai ou marido. Portanto, confiai nEle por meio dos méritos de nosso amado Senhor Jesus Cristo; crede nEle, amai-o, temei-o e obedecei-o. orar a Ele, porque Ele tem prometido ajudar. Não me considereis morto, porque certamente viverei e nunca morrerei. Vou na frente, e vós me seguireis depois a nosso eterno lar".

Pela manhã, o xerife de Londres e seus oficiais foram a Compter às duas da madrugada, e levaram o doutor Taylor, e sem luz alguma o conduziram a Woolsalk, uma pousada fora das muralhas, perto de Aldgate. A mulher do doutor Taylor, que suspeitava que naquela noite levariam seu marido, tinha ficado vigiando na entrada da igreja de St. Botolph, junto de Aldgate, tendo suas duas filhas consigo, Elizabete, de treze anos (a qual, órfã de pai e mãe tinha sido adotada pelo doutor Taylor desde os três anos de idade) e outra, Maria, filha carnal do doutor Taylor.

Agora, quando o xerife e seu grupo chegaram frente à igreja de St. Botolph, Elizabete gritou: "Pai querido! Mãe, mãe, ali estão levando meu pai!" Então, a mulher gritou: "Rowland, Rowland, onde estás?", porque era uma manhã sumamente escura, e não podiam ver-se bem uns a outros. O doutor Taylor respondeu: "Querida esposa, estou aqui", e se deteve. Os homens do xerife o teriam empurrado para obrigá-lo a prosseguir o caminho, porém o xerife disse: "Detende-vos um pouco, senhores, rogo-vos, e deixai-o falar com sua mulher". Então se detiveram.

E ela se aproximou dele, e ele tomou sua filha Maria em seus braços; ele, sua mulher e Elizabete se ajoelharam e oraram a Oração do Senhor, ante o qual o xerife chorou abertamente, como também vários outros da companhia. Depois de ter orado, se levantou e beijou a sua mulher, e lhe deu a mão, dizendo-lhe: "Adeus, minha querida esposa; encoraja-te, porque tenho a consciência em paz. Deus suscitará um pai para minhas filhas".

A todo o longo do caminho, o doutor Taylor esteve gozoso e feliz, como dispondo-se para ir ao banquete ou festa de bodas mais esplendoroso. Disse muitas coisas notáveis ao xerife e aos cavalheiros da guarda que o levavam, e freqüentemente os moveu às lágrimas, com seus fervorosos chamamentos a arrepender-se e a emendar suas vidas malvadas e perversas. Outras várias vezes os assombrou e alegrou, ao vê-lo tão constante e firme, carente de temor, gozoso de coração, e feliz de morrer.

Quando chegou a Aldham Common, o lugar onde devia sofrer, ao ver tanta multidão reunida, perguntou: "Qual é este lugar, e para que se tem reunido tanta gente aqui?" Lhe responderam: "Este lugar se chama Aldham Common, o lugar de teu sofrimento; e esta gente tem vindo a contemplar-te". Então ele disse: "Graças a Deus, já quase estou em casa!", e desmontou de seu cavalo e com ambas as mãos se arrancou o capuz da cabeça.

Seu cabelo tinha sido raspado e cortado como se cortava cabelo aos loucos, e o custo disto o havia sufragado o bom bispo Bonner de seu próprio bolso. Mas quando o povo viu seu reverendo e ancião rosto, com uma longa barba branca, prorromperam todos em lágrimas, chorando e clamando: "Deus te salve, bem doutor Taylor! Que Jesus Cristo te fortaleça e te ajude! Que o Espírito Santo te conforte!" e outros bons desejos parecidos.

Depois de orar foi até a estaca e a beijou, e entrou num barril de breu que tinham colocado para que entrasse nele, e ficou de pé dando-lhe as costas à estaca, com as mãos pregadas juntas, e os olhos no céu, e orando de contínuo.

Depois o amarraram com correntes, e tendo colocado a lenha, um chamado Warwick lhe lançou cruelmente um feixe de lenha acima, que o bateu na cabeça e lhe cortou o rosto, de modo que manou sangue. Então o doutor Taylor lhe disse: "Amigo, já tenho suficiente dano, para que isto?"

Sir John Shelton estava perto enquanto o doutor Taylor falava, e ao dizer o Salmo Miserere em inglês, lhe bateu nos lábios: "Velhaco", lhe disse, "fala em latim: te obrigarei". Afinal acenderam o fogo, e o doutor Taylor, alçando ambas mãos e clamando a Deus, disse: "Misericordioso Pai do céu! Por causa de Jesus Cristo, meu Salvador, recebe minha alma em tuas mãos!". Assim permaneceu então sem gritar nem mexer-se, com as mãos juntas, até que Soyce o feriu na cabeça com uma lança até derramar-se-lhe os miolos, e o cadáver caiu dentro do fogo.

Assim entregou este homem de Deus sua bendita alma em mãos de seu misericordioso Pai, e a seu armadíssimo Salvador Jesus Cristo, a quem amou tão completamente, e tinha predicado tão fiel e fervorosamente seguindo-o com obediência em sua vida, e glorificando-o constantemente em sua morte.

 

O martírio de William Hunter

William Hunter tinha sido instruído nas doutrinas da Reforma desde sua mais tenra infância, descendendo de pais religiosos que o instruíram com solicitude nos princípios da verdadeira religião.

Hunter, que tinha então dezenove anos, recusou receber a comunhão na missa, e foi ameaçado com ser levado diante do bispo, ante quem este valoroso jovem mártir foi conduzido por um policia.

Bonner fez levar a William a uma sala, e ali começou a arrazoar com ele, prometendo-lhe seguridade e perdão se se desdizia. Inclusive se teria contentando com que somente recebesse a comunhão e a confissão, porém William não estava disposto a isso nem por nada do mundo.

Portanto, o bispo ordenou a seus homens que colocassem a William no cepo em sua casa, na porta, onde ficou dois dias e duas noites, com somente a casca de um pão negro e um copo de água, que ele nem tocou.

Ao finalizar estes dois dias, o bispo foi até ele e, achando-o firme em sua fé, o enviou à prisão dos convictos, ordenando ao carcereiro que o carregasse com tantas correntes como pudesse levar. Ficou em prisão por nove meses, durante os quais compareceu cinco vezes ante o bispo, além de uma ocasião na que foi condenado no consistório de são Paulo, o 9 de fevereiro, ocasião na que esteve presente seu irmão Robert Hunter.

Então o bispo chamou a William, e lhe perguntou se estava disposto a retratar-se, e ao ver que permanecia inabalável, pronunciou sentença contra ele de que devia ir desde aquele lugar a Newgate por um tempo, e depois a Brentwood, para ser ali queimado.

Após um mês, William foi enviado a Brentwood, onde seria executado. Ao chegar à estaca, se ajoelhou e leu o Salmo 51, até que chegou a estas palavras: "Os sacrifícios de Deus são o espírito quebrantado: ao coração contrito e humilhado não desprezarás Tu, oh, Deus". Firme em recusar o perdão da rainha se apostatava, finalmente um xerife chamado Richard Ponde acudiu e o amarrou com uma corrente em sua volta.

William lançou agora seu saltério em mãos de seu irmão, quem lhe disse: "William medita na santa paixão de Cristo, e não temas a morte". "Eis aqui", respondeu William, "não tenho medo". Depois alçou suas mãos ao céu, e disse: "Senhor, Senhor, Senhor, recebe meu espírito!", e inclinando a cabeça para a asfixiante fumaça, entregou sua vida, selando-a com seu sangue para louvor de Deus.

 

O doutor Robert Farrar

Este digno e erudito prelado, bispo de St. David's em Gales, tinha-se mostrado muito zeloso no anterior reino, como também desde a ascensão de Maria, em impulsionas as doutrinas reformadas e em denunciar os erros da idolatria papista, e foi chamado, entre outros, para comparecer ante o perseguidor bispo de Winchester e outros comissionados designados para esta abominável obra de devastação e matança.

Seus principais acusadores e perseguidores, sobre uma acusação de traição à coroa durante o reinado de Eduardo VI, foram seu criado George Constantine Walter, Tomás Youg, dignitário da catedral e depois bispo de Bangor, etc. O doutor Farrar respondeu idoneamente às cópias da denuncia que lhe deram, consistente em cinqüenta e seis artigos. Todo o processo judicial foi longo e tedioso. Houve retraso após retraso, e depois que o doutor Farrar tivesse sido injustamente detido em custódia, sob o reinado do rei Eduardo, porque tinha sido ascendido pelo duque de Somerset, pelo que depois de sua queda encontrou menos amigos para apoiá-lo contra os que queriam seu bispado ao chegar a rainha Maria, foi acusado e interrogado não por questão alguma de traição, senão por sua fé e doutrina; por este motivo foi feito comparecer ante o bispo de Winchester com o bispo Hooper, e os senhores Rogers, Bradford, Saunders e outros, o 4 de fevereiro de 1555; aquele mesmo dia também fora condenado com eles, mas sua condena foi aprazada, e foi enviado de novo à prisão, onde continuou até o 14 de fevereiro, sendo depois enviado a Gales a receber a sentença. Foi seis vezes obrigado a comparecer diante de Henry Morgan, bispo de St. David's, quem lhe pediu que abjurasse; isto o rejeitou cheio de zelo, apelando ao cardeal Pole; apesar disto o bispo, cheio de ira, o declarou herege isolado, e o entregou ao braço secular.

O doutor Farrar, condenado e degradado, foi não muito tempo depois levado ao lugar de execução na cidade de Carmathen, em cujo mercado, ao sul da cruz do mercado, sofreu com grande inteireza os tormentos do fogo o 30 de março de 1555, que era o sábado antes do Domingo da Paixão.

Acerca de sua constância, se diz que um tal Richard Jones, filho de um cavalheiro do rei, se aproximou do doutor Farrar pouco antes de sua morte, parecendo lamentar a dor da morte que iria sofrer; o bispo lhe respondeu que se o visse uma vez agitar-se nas dores de seu suplicio, poderia então não dar crédito a sua doutrina; e o que disse o manteve, permanecendo imperturbável, até que um tal Richard Graveil o abateu com um cacetete.

 

O martírio de Rawlins White

Rawlins White era pescador de vocação e ocupação, e viveu e se manteve desta profissão por espaço de vinte anos pelo menos, na cidade de Cardiff, onde tinha boa reputação entre seus vizinhos.

Embora este bom homem carecia de instrução, e era além disso muito simples, aprouve a Deus tirá-lo do erro da idolatria e levá-lo ao conhecimento da verdade, por meio da bendita Reforma no reinado de Eduardo. Fez que ensinassem a seu filho a ler em inglês, e depois que o pequeno pôde ler bastante bem, seu pai o fazia ler a cada dia uma porção das Sagradas Escrituras, e de vez em quando alguma parte de um bom livro.

Após ter-se mantido nesta confissão por cinco anos, morreu o rei Eduardo, e a sua morte ascendeu a Rainha Maria, e com ela se introduziram toda classe de superstições. White foi apreendido pelos oficiais da cidade como suspeito de heresia, levado ante o bispo Llandaff e encarcerado em Chepstow, e no final levado ao castelo de Cardiff, onde esteve por espaço de um ano inteiro. Conduzido ante o bispo em sua capela, lhe aconselhou que abjurasse, combinando promessas e ameaças. Mas como Rawlins não estava disposto a retratar-se de suas crenças, o bispo lhe disse diretamente que deveria proceder contra ele pela lei, e condená-lo como herege.

Antes de passar a este extremo, o bispo propus que se realizasse uma oração por sua conversão. "Esta é", disse White, "uma atuação digna de um bispo digno, e se vossa petição é piedosa e reta, e orais como deveis, sem dúvida Deus vai ouvir você; orai, pois, ao vosso Deus, e eu orarei ao meu Deus". Quando o bispo e seu grupo terminaram suas orações, perguntou agora a Rawlins se estava disposto a abjurar. "Vereis", disse ele, "que vossa oração não tem sido concedida, porque eu permaneci igual que antes; e Deus me fortalecerá em apoio de sua verdade". Depois o bispo provou como iria dizendo missa, mas Rawlins chamou a todos como testemunhas de que ele não se inclinava ante a hóstia. Terminada a missa, Rawlins foi chamado de novo, e o bispo utilizou muitas persuasões, mas o bem-aventurado homem se manteve tão firme em sua anterior confissão que de nada serviram os arrazoamentos do bispo. Então este fez que se lesse sua sentença definitiva, e ao acabar a leitura Rawlins foi levado de novo a Cardiff, a um abominável cárcere da cidade chamado Cockmarel, onde passou o tempo em oração e cantando salmos. Após umas três semanas chegou que ordem desde a cidade para que fosse executado.

Quando chegou ao lugar, onde sua coitada mulher e filhos estavam em pé chorando, a súbita contemplação deles traspassou de tal modo seu coração que as lágrimas banharam seu rosto. Chegando até o altar de seu sacrifício, indo até a estaca se ajoelhou, e beijou a terra; levantando-se de novo restou algo de terra grudada em sua face, e disse estas palavras: "Terra à terra, e pó ao pó; tu és minha mãe, e ti voltarei".

Quando todas as coisas estiveram dispostas levantaram uma plataforma frente a Rawlins White, diretamente diante da estaca, na qual subiu um sacerdote, que se dirigiu ao povo; porém, enquanto falava da doutrina romanista dos Sacramentos, Rawlins gritou: "Ah, hipócrita branqueado! Tu presumes de demonstrar tua falsa doutrina pela Escritura? olha o que diz o texto que segue: Acaso não disse Cristo 'Fazei isto em memória de mim'?"

Então alguns dos que estavam perto dele gritaram: "Acendei o fogo, acendei o fogo!". Feito isto, a palha e as canas deram uma grande e subida labareda. Nesta chama este bom homem banhou durante longo tempo sua mão, até que os tendões se encolheram e a gordura se desfez, exceto por um momento em que fez como se enxugasse o rosto com uma delas. Todo este tempo, que se prolongou bastante, clamou com forte voz: "Oh, Senhor, recebe meu espírito!", até que já não pôde mais abrir a boca. Finalmente, a violência do fogo foi tal contra suas pernas que ficaram consumidas quase antes que o resto do corpo fosse danificado, o que fez com que o corpo caísse sobre as correntes até o fogo antes do que teria sido normal. Assim morreu este bom homem por seu testemunho da vida de Deus, e agora está indubitavelmente recompensado com a coroa da vida eterna.

 

O reverendo George Marsh

George March nasceu na paróquia de Deane, no condado de Lancaster, recebendo uma boa educação e ofício de seus pais; aos vinte e cinco anos casou e viveu numa granja, com a bênção de vários filhos, até que sua mulher morreu. Depois foi a estudar a Cambridge, e veio ser capelão do reverendo Lawrence Saunders, e neste posto expus de maneira constante e cheia de zelo a verdade da Palavra de Deus e as falsas doutrinas do moderno Anticristo.

Encerrado pelo doutor Coles, bispo de Chester, sob arresto domiciliário, ficou impedido da relação com seus amigos durante quatro meses. Seus amigos e sua mãe lhe rogavam insistentemente que fugisse "da ira vindoura"; porém o senhor March pensava que um passo assim não seria coerente com a profissão de fé que tinha mantido abertamente durante nove anos. Contudo, no final fugiu ocultando-se, mas teve muitas lutas, e em oração secreta rogou que Deus o conduzisse, por meio do conselho de seus melhores amigos, para Sua própria glória e para fazer o que melhor fosse. No final, decidido por uma carta que recebera a confessar abertamente a fé em Cristo, se despediu de sua sogra e outros amigos, encomendando seus filhos aos cuidados deles, e se dirigiu a Smethehills, desde onde foi levado, junto com outros, a Latburn, para sofrer um interrogatório ante o conde de Derby, Sir William Nores, o senhor Sherbum, o pároco de Grapnal e outros. Respondeu com boa consciência as várias perguntas que lhe fizeram, mas quando o se Shepburn o interrogou acerca de sua crença no Sacramento do altar, o senhor March respondeu como um verdadeiro protestante que a essência do pão e do vinho não mudava em absoluto; assim, depois de receber terríveis ameaças de parte de uns e boas palavras de parte de outros pelas suas opiniões, foi levado sob custódia, dormindo duas noites sem cama alguma.

O Domingo de Ramos sofreu um segundo interrogatório, e o senhor March lamentou muito que seu temor o tivesse induzido a prevaricar e a buscar sua segurança enquanto não negasse abertamente a Cristo; e outra vez clamou com mais fervor a Deus pedindo-lhe forças para não ser abrumado pelas sutilezas daqueles que tratavam de derrubar a pureza de sua fé. Sofreu três interrogatórios diante do doutor Coles, quem, achando-o firme na fé protestante, começou a ler sua sentença; porém foi interrompido pelo chanceler, quem rogou ao bispo que se detivesse antes que fosse demasiado tarde. O sacerdote orou então pelo senhor March, mas este, ao ser-lhe pedido outra vez que voltasse atrás, disse que não ousava negar a seu Salvador Cristo, para não perder Sua misericórdia eterna e sofrer assim a morte sempiterna. Então o bispo passou a ler a sentença. Foi enviado a uma tenebrosa masmorra, e se viu privado de toda consolação (porque todos temiam aliviá-lo ou comunicar-se com ele) até o dia marcado no qual devia sofrer. Os xerifes da cidade, Amry e Couper, com seus oficiais, acudiram à porta norte, e levaram o senhor George March, quem andou todo o caminho com o Livro em sua mão, olhando para o mesmo, pelo que a gente dizia: "Este homem não vai a sua morte como ladrão, nem como alguém que mereça morrer".

Quando chegou no lugar da execução, fora da cidade, perto de Spittal­ Boughton, o senhor Cawdry, assistente deputado de Chester, mostrou ao senhor March um escrito sob um grande selo, dizendo-lhe que era um indulto para ele se voltasse atrás. Ele respondeu que o aceitaria gostoso se não era sua intenção afastá-lo de Deus.

Depois disto começou a falar às pessoas, mostrando qual era a causa de sua morte, e teria desejado exortá-los a aderirem a Cristo, mas um dos xerifes o impediu. Ajoelhando-se então, disse suas orações, tirou as roupas até ficar em camisa, e foi acorrentado ao poste, tendo vários feixes de lenha embaixo dele, e algo feito a modo de pipa, com breu e alcatrão para lançar sobre sua cabeça. Ao ter sido mal preparada a fogueira, e assoprando o vento em círculos, sofreu atrozmente, mas o suportou com inteireza cristã.

Depois de ter permanecido longo tempo atormentado no fogo sem mexer-se, com sua carne tão assada e inchada que os que estavam perto dele não conseguir ver a corrente com que tinha sido amarrado, achando por isso que estava morto, de repente estendeu os braços, dizendo: "Pai celestial, tem misericórdia de mim!", e assim entregou seu espírito em mãos do Senhor. Com isto, muitos dentre o público diziam que era um mártir e que tinha morrido com uma gloriosa paciência. Isto levou pouco tempo depois ao bispo a dar um sermão na catedral, no qual afirmava que o tal "March era um herege, queimado como tal, e é uma brasa no inferno". O senhor March sofreu o 24 de abril de 1555.

 

William Flower

William Flower, também conhecido como Branco, nasceu em Show-hill, no condado de Cambridge, onde foi à escola durante alguns anos, e depois foi à abadia de Ely. Depois de ter permanecido ali durante um tempo, professou como monge, foi feito sacerdote na mesma casa, e ali celebrou e cantou a missa. Depois disso, por ação de uma visitação, e por certas ordens emanadas da autoridade de Henrique VIII, adotou o hábito de um sacerdote secular, e voltou a Snow-hill, onde tinha nascido, e ensinou a crianças durante meio ano.

Depois foi a Ludgate, em Suffolk, onde serviu como sacerdote secular durante uns três meses; dali se dirigiu a Stoniland, depois a Tewksbury, onde casou, continuando sempre de modo fiel e honesta com aquela mulher. Do de casar-se permaneceu em Tewksbury uns dois anos, e dali foi a Brosley, onde praticou a medicina e a cirurgia; mas afastando-se daqueles lugares foi a Londres, e finalmente se instalou em Lambeth, onde ele e sua mulher conviveram. Contudo, estava geralmente fora, exceto uma ou duas vezes por mês para visitar e ver a sua mulher. Estando em sua casa um domingo de Páscoa pela manhã, passou o rio desde Lambeth à Igreja de St. Margaret em Westminster; ao ver ali um sacerdote chamado John Celtham que ministrava e dava o Sacramento do altar ao povo, e sentindo-se gravemente ofendido em sua consciência contra o sacerdote por aquilo, bateu nele e o feriu na cabeça, e também no braço e na mão, com uma faca para madeira, tendo naquele momento o sacerdote o cálice com a hóstia consagrada nele, que ficou borrifada de sangue.

Por seu abobalhado zelo, o senhor Flower foi pesadamente acorrentado e colocado na casa da porta de Westminster, e depois feito comparecer ante o bispo Bonner, e seu ordinário; o bispo, após fazê-lo jurar sobre um Livro, o submeteu a acusações e interrogatório.

Depois do interrogatório, o bispo começou a exortá-lo a voltar à unidade de sua mãe a Igreja católica, com muitas boas promessas. Mas ao rejeitá-las firmemente o senhor Flower, o bispo lhe ordenou que se apresentasse naquele mesmo lugar pela tarde, e que entretanto meditasse bem em sua anterior resposta; mas ao não escusar-se ele por ter batido no sacerdote nem vacilar em sua fé, o bispo o assinou o dia seguinte, 20 de abril, para receber a sentença se não se desdizia. Na manhã seguinte, o bispo passou então a lê-lhe a sentença, condenando-o e excomungando-o como herege, e depois de pronunciá-lo degradado, o entregou ao braço secular.

0 24 de abril, na véspera de são Marcos, foi levado ao lugar de seu martírio, no pátio da igreja de St. Margaret, em Westminster, onde tinha sido cometido o ato; chegando à estaca, orou ao Deus Onipotente, fez confissão de sua fé, e perdoou todo o mundo.

Feito isto, sujeitaram sua mão contra a estaca, e foi cortada de um golpe, e lhe amarraram a mão esquerda atrás. Depois lhe pegaram fogo, e queimando-se nele, clamou com voz forte: "Oh, Tu, Filho de Deus, recebe minha alma!", três vezes. Ficando sem voz, deixou de falar, mas levantou seu braço mutilado com o outro todo o tempo que pôde.

Assim suportou o tormento do fogo, sendo cruelmente torturado, porque tinham colocado poucos feixes, e sendo insuficientes para queimá-lo, precisaram abatê-lo tendendo-o no fogo, onde, deitado em terra, sua parte inferior foi consumida pelo fogo, enquanto sua parte superior ficava pouco danificada, e sua língua se mexeu em sua boca durante um tempo considerável.

 

O reverendo John Cardmaker e John Warne

O 30 de maio de 1555, o reverendo John Cardmaker, também chamado Taylor, prebendado da Igreja de Wells, e John Warne, tapeceiro, de St. John's, Walbrook, padeceram juntos em Smithfield. O senhor Cardmaker, que foi um frade observante antes da dissolução das abadias, foi depois um ministro casado, e no tempo do rei Eduardo foi designado leitor em são Paulo; apreendido a começos do reinado da Rainha Maria, junto com o doutor Barlow, bispo de Bath, foi levado a Londres e lançado no cárcere de Fleet, estando ainda em vigor as leis do rei Eduardo. No reinado de Maria, quando foi feito comparecer ante o bispo de Winchester, este lhe ofereceu a misericórdia da rainha se se desdizia.

Tendo-se apresentado artigos de acusação contra o senhor John Warne, foi interrogado por Bonner, que o exortou ardentemente para que se retratasse de suas opiniões, porém este lhe respondeu: "Estou persuadido de que estou na reta opinião, e não vejo causa alguma para retratar-me; porque toda a imundícia e idolatria se encontram na Igreja de Roma".

Então, o bispo, ao ver que não podia prevalecer com todas suas boas promessas e suas terríveis ameaças, pronunciou a sentença definitiva de condenação, e ordenou o 30 de maio de 1555 para a execução de John Cardmaker e John Warne, que foram levados pelos xerifes a Smithfield. Chegados à estaca, os xerifes chamaram aparte o senhor Cardmaker, e falaram com ele em segredo, enquanto o senhor Warnes orou, foi acorrentado à estaca, e colocaram lenha e canas em sua volta.

Os espectadores estavam muito afligidos pensando que o senhor Cardmaker voltaria atrás ante a queima do senhor Warne. No final, o senhor Cardmaker se afastou dos xerifes, se dirigiu à estaca, ajoelhou-se e fez uma longa oração em silêncio. Depois se levantou, tirou as roupas até a camisa, e foi com valentia ao poste, beijando-o; e tomando da mão o senhor Warnes, o consolou cordialmente, e foi amarrado ao poste, regozijando-se. A gente, ao ver como isto acontecia tão rapidamente e em contra de suas anteriores expectativas, clamou: "Deus seja louvado! Deus te fortaleça, Cardmaker! Que o senhor Jesus receba teu espírito!". E isto prosseguiu enquanto o carrasco acendia o fogo e até que ambos passaram através dele a seu bendito repouso e paz entre os santos e mártires de Deus, para gozar da coroa do triunfo e da vitória preparada para os soldados e guerreiros escolhidos de Cristo Jesus em seu bendito Reino, a quem seja a glória e a majestade para sempre. Amém.

 

John Simpson e John Ardeley

Estes dois mártires foram condenados o mesmo dia que o senhor Cardmaker e John Warne, que era o 25 de maio. Foram pouco depois enviados desde Londres a Essex, onde foram queimados o mesmo dia, John Simpson em Rochford, e John Ardeley em Railey, glorificando a Deus em seu amado Filho, e regozijando-se de serem considerados dignos de padecer por Ele.

 

Tomás Haukes, Tomás Watts e Anne Askew

Tomás Haukes foi condenado, junto com outros seis, o 9 de fevereiro de 1555. Era erudito em sua educação, e galhardo de presença pessoal, e alto; em suas maneiras era um cavalheiro, e um cristão sincero. Pouco antes de sua morte, vários dos amigos do senhor Haukes, aterrorizados ante a dureza do castigo que devia sofrer, pediram-lhe em privado que em meio das chamas lhes mostrasse de alguma maneira se as dores do fogo eram demasiado grandes que não pudessem ser sofridas com compostura. Isto ele o prometeu, e se concordou que se a atrocidade da dor podia ser sofrida, que elevasse as mãos sobre sua cabeça até o céu, antes de expirar.

Não muito depois, o Senhor Haukes foi conduzido ao lugar indicado para sua morte pelo lorde Rich, e chegando à estaca, se preparou mansa e pacientemente para o fogo; lhe colocaram uma pesada corrente na cintura, rodeando-o uma multidão de espectadores, e depois de ter-lhes falado largamente, e derramado sua alma a Deus, se acendeu o fogo.

Quando houve permanecido muito tempo no fogo, e ficou sem já poder falar, com a pele encolhida e os dedos consumidos pelo fogo, de modo que se pensava e já havia morrido, subitamente e em contra de todas as expectativas, este bom homem, lembrando sua promessa, alçou suas mãos, que estavam queimadas nas chamas, e as levantou para o Deus vivo, e com grande regozijo, pelo que parece, as bateu ou palmeou três vezes seguidas. Seguiu um grande clamor ante esta maravilha circunstância, e depois este bendito mártir de Cristo, caindo sobre o fogo, entregou seu espírito, o 10 de junho de 1555.

Tomás Watts, de Billericay, Essex, da diocese de Londres, era um tecelão de linho. Esperava a diário ser tomado pelos adversários de Deus, e isto lhe aconteceu o 5 de abril de 1555, quando foi levado diante do lorde Rich e os outros comissionados de Chelmsford, acusado de não acudir à igreja.

Entregue ao sanguinário adversário, que o chamou para vários interrogatórios, e como era usual, muitos argumentos, com muitos rogos para que se tornasse discípulo do Anticristo, porém suas predicas de ns serviram, e recorreu então a sua última vingança, a da condenação.

Na estaca, após tê-la beijado, falou ao lorde Rich, exortando-o a arrepender-se, porque o Senhor vingaria sua morte. Assim ofereceu este bom mártir seu corpo ao fogo, em defesa do verdadeiro Evangelho do Salvador.

Tomás Osmond, William Bamford e Nicolas Chamberlain, todos da cidade de Coxhall, foram enviados a um interrogatório, e Bonner, após várias audiências, os declarou hereges obstinados, e os entregou aos xerifes, permanecendo em custódia deles até que fossem entregues ao xerife do condado de Essex, sendo executados por ele; Chamberlain em Colchester, o 14 de junho; Tomás Osmond em Maningtree, e William Bamford, apelidado Buller, em Harwich, o 15 de junho de 1555; todos eles morreram plenos da esperança gloriosa da imortalidade.

Depois Wriotheseley, lorde chanceler, ofereceu a Anne Askew o perdão do rei se se desdizia; ela lhe deu esta resposta: que não tinha ido lá para negar a seu Senhor e Mestre. E assim a boa Anne Askew, rodeada de labaredas como bendito sacrifício para Deus, dormiu no Senhor em 1546, deixando trás de sim um singular exemplo de constância cristã para seguimento de todos os homens.

 

Reverendo John Bradford e John Leaf, um aprendiz

O reverendo John Bradford nasceu em Manchester, Lancashire; chegou a ser um grande erudito em latim, e depois veio a ser servo Deus Sir John Harrington, cavalheiro do rei.

Continuou por vários anos de uma maneira honrada e proveitosa, mas o Senhor o havia escolhido para melhores funções. Portanto, se afastou de seu patrão, abandonando o Templo, em Londres, dirigindo-se à Universidade de Cambridge, para aprender, mediante a Lei de Deus, como impulsionar a edificação do templo do Senhor. Poucos anos depois, a universidade lhe concedeu o grau de mestre em artes, e foi escolhido companheiro de Pembroke Hall.

Martinho Bucero o pressionou a que predicasse, e quando com modéstia pus em dúvida sua capacidade, Bucero replicou: "Se não tens um fino pão de farinha de trigo, dá então aos pobres pão de centeio, ou o que o Senhor te tenha encomendado". O doutor Ridley, aquele digno bispo de Londres e glorioso mártir de Cristo, o chamou primeiro para dá-lhe o grau de diácono e uma prebenda em sua igreja catedral de são Paulo.

Neste ofício de predicação, o senhor Bradford se dedicou a uma diligente atividade por espaço de três anos. Repreendeu severamente o pecado, predicou docemente a Cristo crucificado, refutou com grande capacidade os erros e as heresias, persuadindo fervorosamente a viver piedosamente. Depois da morte do bem-aventurado rei Eduardo VI, o senhor Bradford continuou predicando diligentemente, até que foi suprimido pela Rainha Maria.

Seguiu agora uma ação da mais negra ingratidão, ante a qual coraria até um pagão. Tem-se falado que o senhor Bourne (então bispo de Bath) suscitou um tumulto predicando em St. Paul's Cross; a indignação da gente pôs sua vida em iminente perigo; inclusive lhe lançaram uma adaga. Nesta situação, rogou ao senhor Bradford, que estava detrás dele, para que falasse em seu lugar e acalmasse os ânimos. A gente acolheu bem o senhor Bradford, e este se manteve desde então perto de Bourne, para com sua presença impedir que a plebe renovasse seus ataques.

O mesmo domingo, pela tarde, o senhor Bradford predicava na igreja de Bow em Cheapside, e reprovou duramente o povo por sua conduta sediciosa. Apesar de sua ação, após três dias foi enviado à Torre de Londres, onde estava então a rainha, para comparecer ante o Conselho. Ali foi acusado por este ato de salvar o senhor Bourne, que foi considerado como sedicioso, e também objetaram contra ele por sua predicação. Foi então enviado primeiro à Torre, depois a outras prisões, e, depois de sua condena, a Poultry Compter, onde predicou duas vezes ao dia de maneira contínua, até que foi impedido por uma doença. Tal era seu crédito para com o guarda do cárcere real que lhe permitiu uma noite visitar a uma pessoa pobre e doente perto do deposito de aço, sob a promessa de voltar a tempo; e nisto não falhou.

A noite antes de ser enviado a Newgate, viu-se turbado em seu descanso por sonos pressagiadores, no sentido de que na seguinte segunda-feira seria queimado em Smithfield. Pela tarde, a mulher do guarda foi vê-lo, e lhe anunciou a terrível notícia, mas nele somente suscitou agradecimento a Deus. pela noite foram a visitá-lo meia dúzia de amigos, com os que passou toda a véspera em oração e piedosas atividades.

Quando foi levado a Newgate, o acompanhou uma multidão que chorava, e tendo-se estendido o rumor de que iria sofrer o suplício às quatro do dia seguinte, apareceu uma imensa multidão. Às 9 da manhã o senhor Bradford foi levado a Smithfield. A crueldade do xerife merece ser destacada; porque o cunhado do senhor Bradford, Roger Beswick, lhe deu a mão ao passar, e Woodroffe, o xerife, lhe abriu a cabeça com seu cacetete.

Tendo chegado o senhor Bradford ao lugar, caiu prostrado no chão. Depois, tirando-se a roupa até ficar em camisa, foi até a estaca, e ali padeceu junto a um jovem de vinte anos de idade, chamado John Leaf, um aprendiz do senhor Humphrey Gaudy, um fabricante de velas de Christ Church, em Londres. Tinha sido apresado na sexta-feira antes do Domingo de Ramos, e encerrado no Compter em Bread Street, e depois interrogado e condenado pelo sanguinário bispo.

Se informa acerca dele que quando se leu sua ata de confissão, em lugar de uma pluma, tomou uma agulha e, furando-se um dedo, borrifou com seu sangue sobre a mencionada ata, dizendo ao leitor da mesma que mostrasse ao bispo que já tinha selado o documento com seu sangue.

Ambos terminaram suas vidas mortais o 12 de julho de 1555 como dois cordeiros, sem alteração alguma em seus rostos, esperando obter aquele prêmio pelo que tinham corrido tanto. Queira conduzir-nos ao mesmo o Deus Onipotente, pelos méritos de Cristo nosso Senhor!

Concluiremos este artigo mencionando que o senhor xerife Woodroffe caiu seis meses depois paralítico do lado direito, e que por espaço de oito anos (até o dia de sua morte) não pôde voltar-se na cama por si mesmo; assim chegou a ser, afinal, um espetáculo terrível.

O dia depois que o senhor Bradford e John Leaf sofreram em Smithfield, William Minge, um sacerdote, morreu no cárcere de Maidstone. Com uma constância e valor iguais de grandes que se tivesse aprazido a Deus chamá-lo a sofrer no fogo (como muitos outros bons homens tinham sofrido antes na estaca, e como ele mesmo estava disposto a sofrer, se Deus tivesse querido chamá-lo a esta prova), entregou sua vida no cárcere.

 

O reverendo John Bland, o reverendo John Frankesh, Nicolas Shetterden Humphrey Middleton

Estes cristãos foram todos queimados em Canterbury pela mesma causa. Frankesh e Bland eram ministros e predicadores da Palavra de Deus, sendo um pároco de Adesham, e o outro vigário de Rolvenden. O senhor Bland foi citado a responder por sua oposição ao anti-cristianismo, e sofreu vários interrogatórios ente o doutor Harpsfield, prelado de Canterbury, e finalmente foi condenado o 25 de junho de 1555, por opor-se ao poder do Papa, e entregue ao braço secular. O mesmo dia foram condenados John Frankesh, Nicolas Shetterden, Humphrey Middleton, Thacker e Crocker, dos quais somente Thacker voltou atrás.

Entregue ao braço secular, o senhor Bland e os três anteriores foram queimados em Canterbury o 12 de julho de 1555, em duas distintas estacas mas num mesmo fogo, onde eles, à vista de Deus e de seus anjos, e diante dos homens, deram, como verdadeiro soldados de Jesus Cristo, um testemunho firme da verdade de seu santo Evangelho.

 

John Lomas, Agnes Snoth, Anne Wright, Joan Sole e Joan Catmer

Estes cinco mártires sofreram juntos o 31 de janeiro de 1556. John Limas era um jovem de Tenteren. Foi citado a comparecer em Canterbury, e interrogado o 17 de janeiro. Ao serem suas respostas adversas à idolatria papista, foi condenado no dia seguinte, e sofreu o 31 de janeiro.

Agnes Snoth, viúva, da paróquia de Smarden, foi feita comparecer várias vezes diante dos farisaicos católicos, e ao rejeitar a absolvição, as indulgências, a transubstanciação e a confissão auricular, foi considerada digna de morte, e suportou o martírio o 31 de janeiro, com Anne Wright e Joan Sole, que se encontravam nas mesmas circunstâncias e que morreram ao mesmo tempo e com idêntica resignação. Joan Catmer, a última desta celestial companhia, da paróquia de Hithe, era esposa do mártir George Catmer.

Poucas vezes tem-se dado mas país algum que por controvérsias políticas quatro mulheres tenham sido levadas a execução, ainda quando suas vidas foram irrepreensíveis, vidas as quais a compaixão dos sacrilégios teria perdoado. Não podemos deixar de observar aqui que quando o poder protestante alcançou no princípio o domínio sobre a superstição católica, q foi necessário algum grau de força nas leis para impor uniformidade, pelas que algumas poucas pessoas tenazes sofreram privações de suas pessoas e bens, lemos de poucas fogueiras, crueldades selvagens ou de coitadas mulheres levadas à estaca; mas está na natureza do erro recorrer à força em lugar de a argumentação, e silenciar a verdade arrebatando a vida, e o caso do próprio Redentor é um exemplo disso.

As anteriores cinco pessoas foram queimadas em duas estacas numa mesma fogueira, cantando hosana ao glorificado Salvador, até que foi extinguido o alento de vida. Sir John Norton, que estava presente, chorou amargamente ante seus desmerecidos sofrimentos.

 

O arcebispo Cranmer

O doutor Tomás Cranmer descendia de uma antiga família, e nasceu no povo de Arselacton, no condado de Northampton. Depois da usual educação escolar, foi enviado a Cambridge, e escolhido companheiro do Jesus College. Ali casou com a filha de um cavalheiro, pelo que perdeu sua condição de companheiro, e passou a ser leitor em Buckingham College, instalando a sua mulher em Dolphin Inn, sendo a patroa uma parenta dela, de onde se suscitou o falso rumor de que ele era um moço de cavalariça. Ao morrer sua mulher pouco depois, de parto, foi escolhido, para seu crédito, de novo como companheiro do colégio antes mencionado. Poucos anos depois foi elevado a professor de Teologia, e designado como um dos examinadores daqueles que estavam já prontos para ser Bachareles ou Doutores em Divindade. Era princípio seu julgar as qualificações com base mais no conhecimento que possuíam das Escrituras, que no que conheciam dos antigos padres, e por isto muitos sacerdotes papistas foram rejeitados, e outros obtiveram grandes vantagens.

Foi intensamente solicitado pelo doutor Capon para que fosse um dos companheiros na fundação do colégio do cardeal Wolsey, em Oxford, cargo que aventurou recusar. Enquanto continuou em Cambridge, se suscitou a questão do divórcio de Henrique VIII com Catarina. Naquele tempo, por causa da peste, o doutor Cranmer foi morar à casa de um tal senhor Cressy, em Waltham Abbey, cujos dois filhos foram então educados sob sua supervisão. A questão do divórcio, em contra da aprovação do rei, tinha ficado indecisa por mais de dois ou três anos, devido às intrigas dos canônigos e civis, e embora os cardeais Campeius e Wolsey foram comissionados por Roma para decidir acerca desta questão, retardaram a sentença a propósito.

Aconteceu que o doutor Gardiner (secretário) e o doutor Fox, defensores do rei neste pleito, foram à casa do senhor Cressy para alojar-se ali, enquanto o rei se alojava em Greenwich. Durante o jantar, se manteve uma conversação com o doutor Cranmer, que sugeriu que a questão de se um homem podia casar com a mulher de seu irmão ou não, podia resolver-se de forma rápida recorrendo à Palavra de Deus, e isto tanto nos tribunais ingleses como nos de qualquer nação estrangeira. O rei, inquieto ante esta demora, enviou a buscar o doutor Gardiner e o doutor Fox para consultá-los, lamentando ter que enviar outra comissão a Roma e que a questão continuasse assim dilatada sem fim. Ao contar ao rei da conversação mantida na noite anterior com o doutor Cranmer, sua majestade mandou buscá-lo, e lhe comunicou os escrúpulos de consciência acerca de seu próximo parentesco com a rainha. O doutor Cranmer aconselhou que a questão fosse remitida aos mais eruditos teólogos de Cambridge e Oxford, porquanto se sentia remisso a misturar-se com uma questão tão importante; porém o rei lhe ordenou que lhe desse seu parecer por escrito, e dirigir-se para isso ao conde de Wiltshire, que o proveria de livros e de tudo o necessário.

O senhor Cranmer obedeceu de imediato, e em sua declaração citou não só a autoridade das Escrituras, dos Concílios gerais, e dos antigos escritores, senão que manteve que o bispo de Roma não tinha autoridade alguma para deixar de lado a Palavra de Deus. O rei lhe perguntou se manter-se-ia nesta atrevida declaração, e ao responder ele em sentido afirmativo, foi enviado como embaixador a Roma, junto com o duque de Wiltshire, o doutor Stokesley, o doutor Bennet e outros, antes do qual se tratou acerca daquele matrimônio na maior parte das universidades da cristandade e dentro do reino.

Quando o Papa apresentou o polegar de seu pé para ser beijado, segundo era o costume, o conde de Wiltshire e sua companhia recusaram fazê-lo. inclusive se afirma que o cachorro spaniel do conde, atraído pelo brilho do polegar do Papa, o mordeu, com o qual sua Santidade retirou seu sagrado pé, dando um chute ao ofensor com o outro.

Ao demandar o Papa a causa desta embaixada, o conde apresentou o livro do doutor Cranmer, declarando que seus eruditos amigos tinham vindo a defendê-lo. o Papa tratou honrosamente a embaixada e marcou um dia para a discussão, que depois retrasou, como temendo o resultado da pesquisa. O conde voltou, e o doutor Cranmer, por desejo do rei, visitou o imperador, e logrou atraí-lo a sua opinião. Ao voltar o doutor a Inglaterra e morrer o doutor Warham, arcebispo de Canterbury, o doutor Cranmer foi merecidamente elevado, por desejo do doutor Warham mesmo, àquela iminente posição.

Nesta função pode dizer-se que cumpriu diligentemente o encargo de são Paulo. Diligente no cumprimento de seus deveres, acordava às cinco da manhã e prosseguia no estudo e oração até as nove; entre então e a comida se dedicava às questões temporais. Depois da comida, se alguém solicitava uma audiência, decidia suas questões com tal afabilidade que inclusive os que recebiam decisões contrárias não se sentiam totalmente frustrados. Depois jogava xadrez por uma hora, ou contemplava como outros jogavam, a às cinco ouvia a Oração Comum, e desde então até o jantar se recreava passeando. Durante seu jantar sua conversação era vivaz e entretida; de novo passeava ou se entretinha até as nove, e depois se dirigia a seu escritório.

Teve a mais alta estima e favor do rei Henrique, e sempre teve dentro de seu coração a pureza e os interesses da Igreja de Inglaterra. Seu temperamento manso e perdoador se registra com o seguinte exemplo: um sacerdote ignorante, no campo, tinha chamado a Cranmer de moço de cavalariça, e se havia referido de forma muito depreciativa à sua cultura. Ao sabê-lo lorde Cromwell, aquele homem foi enviado ao cárcere do fleet, e seu caso foi apresentado diante do arcebispo por um tal senhor Chertsey, um mercador, parente do sacerdote. Sua graça, fazendo chamar o ofensor, arrazoou com ele e pediu ao sacerdote que lhe perguntasse sobre qualquer assunto de erudição. A isto se negou o homem, vencido pela cordialidade do arcebispo e sabendo de sua própria e patente incapacidade, e lhe pediu perdão, que lhe foi concedido de imediato, com a ordem de que empregasse melhor seu tempo quando voltasse a sua paróquia. Cromwell sentiu-se muito ofendido pela indulgência mostrada, mas o bispo estava mais disposto a receber insultos que a vingar-se de qualquer outra maneira que com bons conselhos e bons ofícios.

Para o tempo em que Cranmer foi ascendido a arcebispo, era capelão do rei e arquidiácono de Taunton; foi também constituído pelo Papa penitenciário geral da Inglaterra. O rei considerou que Cranmer seria obsequioso, e por isso este casou o rei com Ana Bolena, celebrou a coroação dela, foi padrinho de Elizabete, o primeiro fruto do matrimônio, e divorciou o rei de Catarina. Embora Cranmer fosse confirmado em sua dignidade pelo Papa, sempre protestou contra reconhecer qualquer outra autoridade que a do rei, e persistiu nos mesmos sentimentos de independência quando foi feito comparecer ante os comissionados de Maria em 1555.

Um dos primeiros passos após o divórcio foi impedir a predicação em toda sua diocese, mas esta estreita medida tinha uma finalidade mais política que religiosa, porquanto havia muitos que denegriam a conduta do rei. Em sua nova dignidade, Cranmer suscitou a questão da supremacia, e com seus argumentos poderosos e justos induziu o parlamento a "dar ao César o que é do César". Durante a residência de Cranmer na Alemanha em 1531 conheceu a Osiandro em Nuremberg, e casou com sua sobrinha, mas a deixou com ele ao voltar a Inglaterra. Depois de um tempo a fez vir privadamente, e ficou com ele até o ano 1539, quando os Seis Artigos o obrigaram a devolvê-la a seus amigos por um tempo.

Deveríamos lembrar que Osiandro, tendo logrado a aprovação de seu amigo Cranmer, publicou a laboriosa obra da Harmonia dos Evangelhos em 1537. Em 1534, o arcebispo alcançou o mais querido objetivo de seu coração, a eliminação de todos os obstáculos para a consumação da Reforma, mediante a subscrição por parte dos nobres e dos bispos à única supremacia do rei. Somente se opuseram o bispo Fisher e Sir Tomás More. Cranmer estava disposto a considerar suficiente o acordo deles a não opor-se à sucessão, mas o monarca queria uma concessão total.

Não muito tempo depois, Gardiner, numa conversação privada com o rei, falou mal de Cranmer (a quem odiava malignamente), por ter aceitado o título de primado de toda a Inglaterra, como depreciativo da supremacia do rei. Isto suscitou fortes ciúmes contra Cranmer, e sua tradução da Bíblia foi fortemente oposta por Stokesley, bispo de Londres. Se diz que ao ser despedida a Rainha Catarina, sua sucessora Ana Bolena se gozou. Isto é uma lição de quão superficial é o juízo humano, porquanto a execução desta última teve lugar na primavera do ano seguinte, e o rei, no dia seguinte da decapitação desta dama sacrificada, casou com a bela Jane Seymour, dama de honra da defunta rainha. Cranmer foi sempre amigo de Ana Bolena, mas era perigoso opor-se à vontade daquele tirânico e carnal monarca.

Em 1538 se expuseram publicamente as Sagradas Escrituras para a venda, e os lugares de culto se enchiam de multidões para escutar a exposição de suas santas doutrinas. Ao passar o rei como lei os famosos Seis Artigos, que voltavam de novo quase a estabelecer os artigos essenciais do credo romanista, Cranmer resplandeceu com todo o brilho de um patriota cristão, resistindo as doutrinas contidas neles, no que foi apoiado pelos bispos de Sarum, Woreester, Ely e Rochester, demitindo os dois primeiros de seus bispados. O rei, embora agora oposto a Cranmer, continuava reverenciando a sinceridade que marcava sua conduta. A morte do bom amigo de Cranmer, lorde Cromwell, na Torre em 1540, foi um forte golpe para a vacilante causa protestante, porém inclusive agora, ainda vendo a maré contrária total à causa de verdade, Cranmer se apresentou pessoalmente ante o rei e conseguiu, com seus varonis e cordiais argumentos, que o Livro dos Artigos fosse deixado de lado, para confusão de seus inimigos, que tinham considerado sua queda como inevitável.

Cranmer viveu agora de um modo tão escuro como lhe foi possível, até que o rancor de Winchester o levou à apresentação de umas denúncias contra ele,a respeito das perigosas opiniões ensinadas em sua família, junto com outras acusações de traição. Estas as apresentou o Pai rei a Cranmer, e acreditando firmemente na fidelidade e nos protestos de inocência do acusado prelado, fez investigar a fundo a questão, e se descobriu que Winchester o doutor Lenden, junto com Thompton e Barber, dois domésticos do bispo, resultaram, por papéis obtidos, ser os verdadeiros conspiradores. O gentil e perdoador Cranmer teria gostado de interceder por toda remissão de castigo se Henrique, comprazido com o subsídio votado pelo Parlamento, não os tivesse deixado livres. Mas estes nefastos homens voltaram iniciar suas tramas contra Cranmer, caindo vítimas do ressentimento do rei, e Gardiner perdeu para sempre sua confiança. Sir G. Gostwick apresentou pouco depois acusações contra o arcebispo, que Henrique esmagou, e que o primado esteve disposto a perdoar.

Em 1544 foi queimado o palácio arzobispal de Canterbury, e seu cunhado e outros morreram no incêndio. Estas várias aflições podem servir-nos para reconciliar-nos com um humilde estado, porque, de que felicidade podia vangloriar-se este homem, porquanto sua vida estava sendo constantemente carregada, bem com cruzes políticas, religiosas ou naturais? Outra vez o implacável Gardiner apresentou graves acusações contra o manso arcebispo, e teria desejado mandá-lo à Torre; porém o rei era seu amigo, lhe deu seu selo para defender-se, e no Conselho não somente declarou que o bispo era um dos homens de melhor caráter de seu reino, senão que repreendeu azedamente os acusadores por sua calúnia.

Tendo-se assinado a paz, Henrique e o rei francês Henrique o Grande mostraram unanimidade na abolição da missa em seus reinos, e Cranmer se lançou nesta grande tarefa; porém a morte do monarca inglês em 1546 levou à suspensão desta ação, e o rei Eduardo VI, seu sucessor, confirmou a Cranmer nas mesmas funções; em sua coroação lhe encomendou uma tarefa que sempre honrará sua memória, por sua pureza, liberdade e verdade. Durante este reinado continuou efetuando a gloriosa Reforma com um zelo incansável, até no ano 1552, quando se viu açoitado por umas severas febres, aflição da qual aprouve a Deus restaurá-lo, para que pudesse testemunhar com sua morte da verdade daquela semente que havia plantado tão diligentemente.

A morte de Eduardo, em 1553, expus a Cranmer a toda a fúria de seus inimigos. Embora o arcebispo estava entre os que haviam apoiado a ascensão de Maria, foi arrestado ao reunir-se o parlamento, e em novembro foi declarado culpável de alta traição em Guildhall, e degradado de suas dignidades. Enviou uma humilde carta a Maria, explicando a causa de sua assinatura do testamento em favor de Eduardo, e em 1554 escreveu ao Conselho, a quem pressionou a pedir perdão à rainha, mediante uma carta entregada ao doutor Weston, mas este a abriu e, ao ler seu conteúdo, cometeu a baixeza de devolvê-la.

A traição era uma acusação totalmente inaplicável contra Cranmer, quem havia apoiado o direito da rainha, enquanto outros, que haviam favorecido a lady Jane foram liberados mediante o pagamento de uma pequena multa. Agora se espalhou contra Cranmer uma calúnia de que havia acedido a certas cerimônias papistas para congraçar-se com a rainha, o que ousou negar em público, justificando seus artigos de fé. A ativa parte que o prelado tivera no divórcio da mãe de Maria sempre tinha ficado profundamente encravada no coração da rainha, e a vingança foi um rasgo destacado na morte de Cranmer.

Nesta obra temos mencionado as disputas públicas em Oxford, nas que os talentos de Cranmer, Ridley e Latimer se mostraram de maneira tão patente, e que levaram à sua condena. A primeira sentença foi ilegal, porquanto o poder usurpado do Papa não tinha sido restabelecido de forma legal.

Deixados no cárcere até que isto esteve em último lugar, se enviou uma comissão desde Roma, designando o doutor Brooks como representante de Sua Santidade, e os doutores Story e Martin como os da rainha. Cranmer estava disposto a submeter-se à autoridade dos doutores Story e Martin, mas objetou a do doutor Brooks. Tais foram as observações e contestações de Cranmer, após um longo interrogatório, que o doutor Brooks comentou: "Viemos interrogar-vos a vós, e para que sois vós que nos interroga".

Enviado de novo a seu encerro, recebeu uma citação para comparecer em Roma após dezoito dias; mas isto lhe era impossível, porquanto estava encarcerado na Inglaterra, e como disse, ainda que tivesse estado livre, era demasiado pobre para pagar um advogado. Por absurdo que pareça, Cranmer foi condenado em Roma, e o 14 de fevereiro de 1556 se designou uma nova comissão pela qual foram estabelecidos Thirlby, bispo de Ely, e Bonner, de Londres, para agir em juízo em Christ Church, Oxford. Em virtude deste tribunal, Cranmer foi degradado gradualmente, colocando-lhe uns míseros farrapos para representar as vestes de um arcebispo. Tirando-lhe depois estas roupas, lhe arrancaram a própria toga, e lhe colocaram acima uma velha; isto o suportou imperturbável, e seus inimigos, ao ver que a severidade somente o deixava mais decidido, tentaram o caminho oposto, e o alojaram em casa do arquidiácono do Christ Church, onde foi tratado com todas as contemplações.

Isto constituiu tal contraste com os três anos de duro encerro que havia sofrido que lhe fez baixar a guarda. Seu natural aberto e generoso era mais susceptível a ser seduzido por uma conduta liberal que por ameaças e correntes. Quando Satanás vê a um cristão a prova contra todo ataque, tento outro. E que forma há mais sedutora que os sorrisos, as recompensas e o poder, depois de um encarceramento longo e penoso? Assim aconteceu com Cranmer; seus inimigos lhe prometeram sua anterior grandeza se se desdizia, e também o favor da rainha, e isto quando já sabiam que sua morte tinha sido decidida no Conselho. Para suavizar o caminho para a apostasia, o primeiro documento que lhe apresentaram para assinar estava redigido em termos gerais; uma vez assinado, outros cinco lhe foram sucessivamente apresentados como explicativos do primeiro, até que no final assinou este detestável documento: "Eu, Tomás Cranmer, anterior arcebispo de Canterbury, renuncio, aborreço e detesto toda forma de heresias e erros de Lutero e Zuínglio, e todos os outros ensinos contrários com a sã e verdadeira doutrinária. E creio com toda constância em meu coração, e confesso com minha boca, uma igreja santa e católica visível, fora da qual não há salvação; e por isso reconheço o bispo de Roma como o supremo cabeça na terra, a quem reconheço como o mais elevado bispo e Papa, e vicário de Cristo, a quem deveriam sujeitar-se todas as pessoas cristãs".

"No que respeita aos sacramentos, creio e adoro no sacramento do altar o corpo e o sangue de Cristo, contidos bem verdadeiramente sob as forma de pão e vinho; sendo o pão, pelo infinito poder de Deus, transformado no corpo de nosso Salvador Jesus Cristo, e o vinho em seu sangue".

"E nos outros seis sacramentos também (como neste) creio e mantenho como o mantém a Igreja universal, e como o julga e determina a Igreja de Roma".

"Creio também que há um lugar de purgação, onde as almas dos defuntos são desterradas por um tempo, pelas quais a Igreja ora piedosa e sadiamente, como também honra os santos e faz orações aos mesmos".

"Finalmente, em todas as coisas professo que não creio de outra forma que o que mantém e ensina a Igreja Católica e a Igreja de Roma. Sinto ter jamais mantido ou pensado coisa diferente. E rogo ao Deus Onipotente que em sua misericórdia me outorgue o perdão por tudo o que tenho ofendido contra Deus ou sua Igreja, e também desejo e rogo a todos os cristãos que orem por mim".

"E que todos os que têm sido enganados já por meu exemplo, já pela minha doutrina, lhes demando, pelo sangue de Jesus Cristo, que voltem à unidade da Igreja, para que todos sejamos de um pensar, sem cismas nem divisões".

"E para concluir, tal como me submeto à Católica Igreja de Cristo, e a sua suprema cabeça, do mesmo modo me submeto a suas mais excelentes majestades Felipe e Maria, rei e rainha deste reino de Inglaterra, etc., e a todas suas outras leis e decretos, estando sempre como fiel súbdito presto a obedecê-lhes. E Deus é testemunha que tenho feito isto não pelo favor ou temor de ninguém, senão voluntariamente, e por minha própria consciência, em quando a instruções de outros".

"O que pensa estar firme, olhe que não caia", disse o apóstolo, e esta foi certamente uma queda! Os papistas tinham agora triunfado de vez, obtendo dele tudo o que queriam aparte de sua vida. Sua retratação foi imediatamente impressa e dispersada, para que surtisse seu efeito sobre os atônitos protestantes. Mas Deus predominou sobre todos os desígnios dos católicos pela sanha com a que executaram implacáveis a perseguição de sua presa. É indubitável que o amor à vida foi o que induziu a Cranmer a assinar a anterior declaração; porém pode-se dizer que a morte teria sido preferível para ele que a vida, estando sob o aguilhão de uma consciência violada e do menosprezo de cada cristão evangélico; e esta ação a sentiu com toda sua força e angústia.

A vingança da rainha somente podia ser satisfeita com o sangue de Cranmer, e portanto ela escreveu uma ordem ao doutor Pole para que preparasse um sermão que devia ser predicado o 21 de março, diretamente antes do martírio, em St. Mary's, Oxford. O doutor Pole o visitou uns dias antes, e o induziu a acreditar que proclamaria publicamente suas crenças como confirmação dos artigos que tinha assinado. Por volta das 9 da manhã do dia da imolação, os comissionados da rainha, acompanhados pelos magistrados, levaram o gentil e infortunado homem à Igreja de St. Mary's. Seu hábito esfarrapado e sujo, o mesmo com o qual o vestiram quando o degradaram, excitou a compaixão da gente. Na igreja encontrou uma pobre e mísera plataforma, levantada justo diante do púlpito, onde o deixaram, e ali voltou o rosto e orou fervorosamente a Deus.

A igreja estava repleta de pessoas de ambas convicções, esperando ouvir uma justificação de sua recente apostasia; os católicos regozijando-se, e os protestantes profundamente feridos em seu espírito ante o engano do coração humano. O doutor Pole denunciou em seu sermão a Cranmer como culpável dos mais atrozes crimes; alentou o enganado sofredor a não temer a morte, nem a duvidar do apoio de Deus em seus tormentos, nem de que se diriam missas por ele em todas as igrejas de Oxford para o descanso de sua alma. Depois o doutor observou sua conversão, a qual atribuiu à evidente operação do poder do Onipotente, e a fim de que a gente se convencesse de sua realidade, pediu ao prisioneiro que lhes desse um sinal. E Cranmer o fez, rogando a congregação que orassem por ele, porque tinha cometido muitos e graves pecados; porém de todos eles havia um que gravitava pesadamente sobre ele, do qual falaria em breve.

Durante o sermão, Cranmer chorou amargas lágrimas, levantando as mãos e o olhar ao céu e deixando-as cair, como se indigno de viver; sua dor encontrou agora seu alívio nas palavras; antes de sua confissão caiu de joelhos, e com as seguintes palavras desvelou a profunda convicção e agitação que moviam sua alma.

"Oh, Pai do céu! Oh, Filho de Deus, Redentor do mundo! Oh, Espírito Santo, três pessoas num Deus! tem misericórdia de mim, o mais miserável dos covardes e pecadores. Pequei tanto contra o céu como contra a terra, mais do que minha língua possa expressar. Aonde posso ir, ou aonde posso fugir? Ao céu posso estar envergonhado de levantar meus olhos, e na terra não acho lugar onde refugiar-me nem quem me socorra. A ti, pois, corro, Senhor; ante ti me humilho, dizendo: oh, Senhor, meu Deus, meus pecados são grandes, mas tem misericórdia Tu de mim por tua grande misericórdia. O grande mistério de que Deus se fizesse homem não teve lugar por pequenas ou poucas ofensas. Tu não nos deste a teu Filho, ó Pai celestial, à morte somente por pequenos pecados, senão pelos maiores pecados do mundo, para que o pecador possa voltar a ti de todo coração, como eu o faço agora. Por isso, tem misericórdia de mim, oh, Deus, cuja qualidade é sempre ter misericórdia, tem misericórdia de mim, oh, Senhor, por tua grande misericórdia. Nada anelo por meus próprios méritos, senão por causa de teu nome, para que seja por isso santificado, e por causa de teu amado Filho, Jesus Cristo. E agora, pois, Pai nosso que estás no céu, santificado seja teu nome..." etc.

Depois, levantando-se disse que desejava antes de sua morte fazer algumas piedosas observações pelas que Deus pudesse ser glorificado, e eles mesmos edificados. Depois falou acerca do perigo do amor pelo mundo, do dever da obediência a suas majestades, do amor de uns pelos outros, e da necessidade de que os ricos ministrassem para as necessidades dos pobres. Citou os três versículos do quinto capítulo de Tiago, e então prosseguiu: "Que os ricos ponderem bem estas três sentenças: porque se jamais tiveram ocasião de mostrar sua caridade, a têm agora neste tempo presente, havendo tantos pobres, e sendo tão caros os alimentos".

"E agora, porquanto tem chegado o fim de minha vida, no qual pende toda minha vida passada e a minha vida vindoura, bem para viver com meu Senhor Cristo para sempre com gozo, ou bem para estar em penas sempiternas com os malvados no inferno, e enxergo agora com meus olhos, neste momento, o céu pronto para receber-me, ou o inferno prestes a engolir-me; por isso vos exporei minha própria fé que acredito, sem cores nem engano algum, porque não é agora o momento de enganar, seja o que for que tenha escrito em tempos passados".

"Primeiro, creio em Deus o Pai Onipotente, Criador dos céus e da terra, etc. e creio cada um dos artigos da fé católica, cada palavra e frase ensinada por nosso Salvador Jesus Cristo, seus apóstolos e profetas, no Novo e Antigo Testamento".

"E agora chego ao que tanto perturba minha consciência, mais que nada do que tenha feito ou falado em toda minha vida, e é a difusão de um escrito contrário à verdade que aqui agora renuncio e recuso como coisas escritas por minha mão em contra da verdade que pensava em meu coração, e escritas por temor à morte, e para salvar minha vida se isso for possível; e se trata de todos aqueles documentos e papéis escritos ou assinados por minha mão desde minha degradação nos que tenho escrito muitas coisas falsas. E porquanto minha mão tem ofendido, escrevendo em contra de meu coração, por isso minha mão será a primeira em ser castigada; porque quando chegue ao fogo será o primeiro em ser queimado".

"Em quanto ao Papa, o rejeito como inimigo de Cristo e Anticristo, com todas suas falsas doutrinas".

Ao concluir esta inesperada declaração, se respirava assombro e indignação em todos os cantos da igreja. Os católicos estavam totalmente confundidos, frustrados totalmente em seu intento, tendo Cranmer, a semelhança de Sansão, causado uma maior ruína sobre seus inimigos na hora da morte que em sua vida.

Cranmer teria desejado prosseguir em sua denuncia das doutrinas papistas, porém os murmúrios dos idólatras afogaram sua voz, e o predicador deu ordem de "Levai este herege!". A selvagem ordem foi obedecida diretamente, e o cordeiro a pastor de sofrer foi arrancado de sua plataforma para ser levado ao matadouro, xingado a todo o longo do caminho, injuriado e escarnecido por aquela praga de monges e frades.

Com os pensamentos centrados num objeto muito mais elevado que as vãs ameaças dos homens, chegou ao lugar maculado com o sangue de Ridley e Latimer. Ali se ajoelhou para um breve tempo de fervorosa devoção, e depois se levantou, para tirar a roupa e preparar-se para o fogo. Dois frades que tinham participado da operação de lograr sua abjuração trataram agora de voltar a afastá-lo da verdade, mas ele se mostrou firme e inamovível no que acabava de professar e de ensinar em público. Lhe colocaram uma corrente para amarrá-lo à estaca, e depois de tê-lo rodeado ferreamente com ela, acenderam a fogueira, e as labaredas começaram a subir.

Então se fizeram manifestos os gloriosos sentimentos do mártir, quem, estendendo sua mão direita, a manteve tenazmente sobre o fogo até ficar reduzida a cinzas, incluso antes que seu corpo fosse danificado, exclamando com freqüência: "Esta indigna mão direita!"

Seu corpo suportou a queima com tal firmeza que pareceu não mexer-se mais que a estaca a qual estava sujeito. Seus olhos estavam fixos no céu, enquanto repetia: "Esta indigna mão direita" durante o tempo que sua voz lhe permitiu, e empregando muitas vezes as palavras de Estevão, "Senhor Jesus, recebe meu espírito", entregou o espírito em meio de uma grande flama.

 

A visão das três escadas de mão

Quando Robert Samuel foi conduzido para ser queimado, vários dos que estavam perto dele o ouviram contar estranhas coisas que lhe tinham acontecido durante o tempo de seu encarceramento; como que depois de ter estado quase morrendo ed fome por dois ou três dias, caiu logo num sono como médio adormecido, no qual lhe pareceu ver a um todo vestido de branco diante dele, que o confortou com estas palavras: "Samuel, Samuel, tem ânimo, e alenta teu coração; porque depois deste dia não estarás nem faminto nem sedento".

Não menos memoráveis nem menos dignas de menção são as três escadas que narrou a vários que viu em seu sono, que subiam ao céu; uma delas era um tanto mais compridas que as outras duas, porém no final se transformaram numa só, unindo-se as três numa única.

Enquanto este piedoso mártir ia para o fogo, se aproximou dele certa donzela, que o abraçou e o beijou; esta, observada pelos que estavam perto, foi buscada no dia seguinte para lançá-la no cárcere e queimá-la, como a mesma moça me informou; contudo, tal como Deus o ordenou em sua bondade, ela fugiu de suas mãos ferozes, e se manteve oculta na cidade durante bastante tempo depois.

Mas assim como esta moça, chamada Rose Nottingham, foi maravilhosamente preservada pela providência de Deus, houve não obstante duas honradas mulheres que caíram sob a fúria desatada daqueles tempos. A primeira era a mulher de um cervejeiro, e a outra a mulher de um sapateiro, porém ambas estavam agora desposadas a um novo marido, a Cristo.

Com estas duas tinha esta moça já mencionada uma grande amizade; ao aconselhar ela a uma das casadas, dizendo-lhe que devia ocultar-se enquanto tivesse tempo e oportunidade, recebeu esta resposta: "Sei muito bem que para ti é legítimo fugir; este é um remédio que podes utilizar se desejas. Meu caso é distinto. Estou ligada a meu marido, e além disso tenho crianças pequenas em casa; por isso, estou decidida, por amor a Cristo, a manter-me firme até o fim".

Assim, no dia seguinte que padecera Samuel, estas piedosas mulheres, uma chamada Anne Ponen e a outra Joan Trunchfield, esposa de Michael Trunchfield, sapateiro de Ipswich, foram encarceradas e lançadas juntas na prisão. Como eram ambas, por seu sexo e constituição, mais bem fracas, foram portanto menos capazes no princípio de resistir a dureza da prisão; e de forma especial a mulher do cervejeiro se viu lançada numas agonias e angústias de mente por isso. Porém Cristo, contemplando a debilidade de sua serva, não deixou de ajudá-la nesta necessidade; e assim as duas sofreram depois de Samuel, o 19 de fevereiro de 1556. e elas eram indubitavelmente as duas escadas que, unidas à terceira, viu Samuel subindo para o céu. Este bem-aventurado Samuel, servo de Cristo, tinha sofrido o 31 de agosto de 1555.

Conta-se entre os que estiveram presentes e que o viram ser queimado, que ao queimar seu corpo resplandeceu nos olhos dos que estavam perto dele, tão brilhante e branco como a prata de lei.

Quando Agnes Bongeor se viu separada se seus companheiros de prisão se lamentou e se pus a gemer de tal modo, lhe sobrevieram tais estranhos pensamentos à cabeça, se viu tão falta de assistência e desolada e afundou em tal profundeza de desespero e de angústia, que foi um espetáculo lastimoso e penoso; tudo porque ela não pôde ir com eles a dar sua vida em defesa de seu Cristo; porque a vida era o que menos valorava de todas as coisas deste mundo.

Isso se devia a que aquela manhã na que não foi levada à fogueira tinha-se colocado um vestido que havia preparado só para aquele propósito. Tinha também um filho pequeno, de peito, a quem tinha guardado docemente todo o tempo que estava no cárcere, até aquele dia em que também o entregou a uma aia, preparando-se ela para entregar-se para o testemunho do glorioso Evangelho Deus Jesus Cristo. Tão pouco desejava a vida, e tão grandemente operavam nela os dons de Deus por sobre a natureza, que a morte lhe parecia muito mais bem-aventurada que a vida. Depois disto começou a estabilizar-se e a exercitar-se na leitura e na oração, o que lhe deu não pouco consolo.

Pouco tempo depois chegou a ordem de Londres para que fosse queimada, ordem que foi executada.

 

Hugh Laverick e John Aprice

Aqui vemos que nem a impotência da idade nem a aflição da cegueira podiam desviar as garras assassinas destes monstros babilônicos. O primeiro destes desafortunados era da paróquia de Barking, de sessenta e oito anos de idade, pintor e paralítico. O outro era cego, escurecido certamente em quanto a suas faculdades visuais, porém intelectualmente iluminado com a luz do Evangelho eterno da verdade. Pessoas inofensivas que eram, foram denunciadas por alguns filhos do fanatismo, e arrastados ente o sanguinário prelado de Londres, onde sofreram um interrogatório, e replicaram os artigos que lhes propuseram, como já tinham feito outros mártires cristãos. O 9 de maio, no consistório de são Paulo, foram cominados a desdizer-se, e ao recusarem foram enviados a Fulham, onde Bonner, depois de ter comido, como sobremesa os condenou às agonias do fogo. Entregues ao braço secular o 15 de maio de 1556, foram levados em carreta desde Newgate a Stratford-le-Bow, onde foram amarrados à estaca. Quando Hugh Laverick ficou amarrado com a corrente, sem precisar já de sua muleta, a lançou longe, dizendo-lhe a seu companheiro de martírio, enquanto o consolava: "Alegra-te, meu irmão, porque o lorde de Londres é um bom médico; pronto nos curará, a ti de tua cegueira, e a mi de minha paralisia". E foram alimento das chamas, para levantar-se na imortalidade.

O dia depois dos anteriores martírios, Catherine Hut, de Bocking, uma viúva, Joan Homs, solteira, de Billericay, e Elizabeth Thackwel, solteira, de Great Burstead, sofreram a morte em Smithfield.

Tomás Dowry. Outra vez temos que registrar um ato de crueldade implacável, cometido contra este rapaz, a quem o bispo Hooper tinha confirmado no Senhor e no conhecimento da Palavra.

Não se sabe com certeza quanto tempo esteve este coitado sofrente no cárcere. Pelo testemunho de John Paylor, atuador de Gloucester, sabemos que quando Dowry foi feito comparecer ante o doutor Williams, então chanceler de Gloucester, lhe foram apresentados os artigos usuais para que os assinasse; ao dissentir dos mesmos, e ao exigi-lhe o doutor que lhe dissesse quem e onde tinha aprendido suas heresias, o jovem respondeu: "Senhor chanceler, as aprendi de vossa parte naquele mesmo púlpito. Em tal dia (citando uma data) vós dissestes, ao predicar sobre o Sacramento, que devia ser exercido espiritualmente pela fé, e não carnalmente, como o ensinam os papistas". Então o doutor Williams o convidou a que se desdissesse, como ele mesmo tinha feito; porém Dowry não tinha aprendido as coisas desta forma. "Embora vós podais zombar tão facilmente de Deus, do mundo e de vossa própria consciência, eu não agirei assim".

 

A preservação de George Crow e de seu Novo Testamento

Este coitado, de Malden, zarpou um 26 de maio de 1556 para carregar em Lent terra, porém o barco encalhou num banco de areia, se encheu de água, e perdeu toda a carga; contudo, Crow salvou seu Novo Testamento, e não cobiçava nada mais. Com Crow estavam um homem e um rapaz, e sua terrível situação se fez mais e mais alarmante com o passar dos minutos, e a embarcação era inútil. Estavam a dez milhas de terra, esperando que a maré começasse logo a subir sobre eles. Depois de orar a Deus, subiram ao mastro, e se aferraram a ele por espaço de dez horas, até que o coitado rapaz, vencido pelo frio e o esgotamento, caiu e se afogou. Ao descer a maré, Crow propus baixar os mastros e flutuar sobre eles, e assim o fizeram; e às dez da noite se entregaram às ondas. Na quarta-feira pela noite, o companheiro de Crow morreu de fadiga e fome, e ele ficou sozinho, clamando a Deus que o socorresse. Afinal foi recolhido pelo capitão Morse, rumo de Amberes, que quase tinham passado por ele, tomando-o por uma bóia de pescador flutuando no mar. Tão logo como Crow esteve a bordo, pus a mão em seu bolso e tirou seu Novo Testamento, que estava desde logo molhado, porém sem maiores danos. Em Amberes foi bem recebido, e o dinheiro que tinha perdido lhe foi mais que compensado.

 

Execuções em Stratford-le-Bow

Neste sacrifício que vamos detalhar, não menos de treze foram condenados à fogueira.

Ao recusar cada um deles afirmar coisas contrárias a suas consciências, foram condenados, e o 27 de junho de 1556 foi marcado como o dia de sua execução em Stratford-le-Bow. Sua constância e fé glorificaram a seu Redentor, o mesmo em vida que na morte,

 

O reverendo Julius Palmer

A vida deste cavalheiro mostra um singular exemplo de erro e de conversão. Em tempos de Eduardo foi um rígido papista, tão adverso à piedosa e sincera predicação que incluso era menosprezado por seu próprio partido; que sua mentalidade mudasse, e sofresse perseguição em tempos da Rainha Maria, constitui um daqueles acontecimentos da onipotência ante os que nos maravilhamos e ficamos enchidos de admiração.

O senhor Palmer nasceu em Coventry, onde seu pai tinha sido alcaide. Ao trasladar-se posteriormente a Oxford, chegou a ser, sob o senhor Hartey, do Magdalen College, um elegante erudito de latim e grego. Adorava as conversações interessantes, possuis um grande engenho e uma poderosa memória. Infatigável no estudo privado, levantava-se às quatro da manhã, e com esta prática se qualificou para chegar a ser o leitor de lógica no Magdalen College. Mas ao favorecer a Reforma o reinado de Eduardo, viu-se freqüentemente castigado por seu menosprezo à oração e à conduta ordenada, e foi finalmente expulsado da instituição.

Depois abraçou as doutrinas da Reforma, o qual o levou a seu arresto e final condena.

Um certo nobre lhe ofereceu a vida se abjurava. "Se assim fizeres", lhe disse, "viverás comigo. E se pensas casar, te conseguirei uma esposa e uma granja, e vos ajudarei a equipá-la. Que dizes a isto?"

Palmer lhe agradeceu com muita cortesia, mas de forma muito modesta e respeitosa lhe observou que já havia renunciado a viver em dois lugares por causa de Cristo, pelo que pela graça de Deus estaria disposto também a dar sua vida pela mesma causa, quando Deus o dispuser.

Quando Sir Richard viu que seu interlocutor não estava disposto a ceder em absoluto, lhe disse: "Bem, Palmer, vejo que um de nós dois vai condenar-se; porque somos de duas fés distintas, e estou bem certo de que existe uma única fé que leva à vida e à salvação".

Palmer: "Bem, senhor, eu espero que ambos nos salvemos".

Sir Richard: "E como poderá ser isto?"

Palmer: "De forma muito clara. Porque a nosso misericordioso Deus lhe aprouve chamar-me, em conformidade com a parábola do Evangelho, na terceira hora do dia, em meu florescimento, à idade de vinte e quatro anos, assim como espero que vos tenha chamado, e vos chamará, na hora undécima desta vossa velhice, para dar-vos vida eterna como vossa porção".

Sir Richard: "Isto dizes? Bem, Palmer, bem, gostaria ter você um só mês em minha casa; não duvido que eu te converteria, ou que tu me converterias".

Então disse o Master Winchcomb: "Apieda-te destes anos dourados, e das prazerosas flores da frondosa juventude, antes que seja demasiado tarde".

Palmer: "Senhor, anelo aquelas flores primaverais que jamais murcharão".

Foi julgado o 15 de julho de 1556, junto com um companheiro de prisão chamado Tomás Askin. Askin e um tal John Guin tinham sido sentenciados o dia anterior, e o senhor Palmer foi levado o 15 para ouvir sua sentença definida. Foi ordenado que a execução seguisse à sentença, e às 5 daquela mesma tarde estes mártires foram amarrados ao poste num lugar chamado Sand-pits. Depois de ter orado devotamente juntos, cantaram o Salmo 31.

Quando foi aceso o fogo e pegou seus corpos, continuaram clamando, sem dar aparência alguma de sofrer dor: "Senhor Jesus, fortalece-nos! Senhor Jesus, recebe nossas almas!", até que ficou suspendida sua vida e desapareceu o sofrimento humano. Deve destacar-se que quando suas cabeças tiveram caído juntas como numa massa pela força das chamas, e os espectadores achavam que Palmer estava já sem vida, de novo se mexeram sua língua e lábios, e o ouviram pronunciar o nome de Jesus, a quem seja a glória e a honra para sempre.

 

Joan Waste e outros

Esta pobre e honrada mulher, cega de nascimento e solteira, de vinte e dois anos de idade, pertencia à paróquia de Todos os Santos, Derby. Seu pai era barbeiro, e também fabricava cordas para melhor ganhar-se o sustento. Nesta tarefa ela o ajudava, e também aprendeu a tecer vários artigos de vestir. Recusando comunicar-se com aqueles que mantinham doutrinas contrárias às que ela tinha aprendido nos dias do piedoso Eduardo, foi feita comparecer ante o doutor Draicot, o chanceler do bispo Blaine, e ante Peter Finch, oficial de Derby.

Tentaram confundir esta coitada moça com sofismas e ameaças, mas ela ofereceu ceder à doutrina do bispo se este estiver disposto a responder como no Dia do Juízo (como o havia feito o piedoso doutor Taylor em seus sermões) de que sua crença na presença real do Sacramento era verdadeira. A princípio, o bispo respondeu que o faria, mas ao lembrá-lo o doutor Draicot que não podia de jeito nenhum responder por um herege, retirou sua confirmação de suas próprias crenças; ela então lhes respondeu que se suas consciências não lhes permitiam responder ante o tribunal de Deus pela verdade que eles queriam que ela aceitasse, que ela não contestaria nenhuma outra de suas perguntas. Então se pronunciou sentença, e o doutor Draicot foi encomendado para predicar o sermão da condena da moça, o que teve lugar o 1 de agosto de 1556, o dia de seu martírio. Ao terminar seu fulminante discurso, a coitada cega foi logo conduzida a um lugar chamado Windmill Pit, perto da cidade, onde por um tempo susteve a mão de seu irmão, e depois se separou para o fogo, pedindo à compadecida multidão que orasse por ela, e a Cristo que tivesse misericórdia dela, até que a gloriosa luz do eterno Sol de justiça resplandeceu sobre seu espírito fora do corpo.

Em novembro, quinze mártires foram aprisionados no castelo de Canterbury, os quais foram todos ou queimados ou deixados morrer de fome. Entre estes últimos estavam J. Clark, D. Chittenden, W. Foster de Stonc, Mice Potkins, y J. Archer, de Cranbrooke, tecelão. Os dois primeiros não tinham sido condenados, mas os outros tinham sido sentenciados ao fogo. Foster, em seu interrogatório, comentou acerca da utilidade de levar círios acesos no dia da Candelária, que igual valeria levar uma forca, e que um patíbulo teria tanto efeito como uma cruz.

Temos agora levado a seu fim as sanguinárias atuações da impiedosa Maria, no ano 1556, cujo número se elevou acima de OITENTA E QUATRO.

O começo do ano 1557 foi notável pela visita do cardeal Pole à Universidade de Cambridge, que parecia ter grande necessidade de ser limpada de predicadores hereges e de doutrinas reformadas. Um objetivo era também executar a farsa papista de julgar a Martinho Bucero e a Paulus Phagius, que tinham estado enterrados já durante três ou quatro anos. Com este propósito, as igrejas de Santa Maria e de são Miguel foram colocadas sob interdito como lugares vis e ímpios, indignos do culto de Deus, até que fossem perfumadas e lavadas com água benta papista, etc. o torpe ato de citar a comparecer a estes defuntos reformadores não teve o mais mínimo efeito sobre eles, e o 26 de janeiro se pronunciou sentença de condenação, parte da qual rezava assim, e pode servir como amostra dos processos desta natureza: "Por isso pronunciamos ao dito Martinho Bucero e a Paulus Phagius excomungados e anatematizados, tanto pelas leis comuns como por cartas processais; e para que sua memória seja condenada, condenamos também seus corpos e ossos (que no malvado tempo do cisma, e florescendo outras heresias neste reino, foram precipitadamente sepultados em terra sagrada) sejam exumados e lançados longe dos corpos e ossos dos fiei, segundo os cânones santos, e mandamos que eles e seus escritos, se encontram-se aqui quaisquer deles, sejam publicamente queimados; e proibimos a todas as pessoas desta universidade, cidade ou lugares limítrofes, que leiam ou escondam seus heréticos livros, tanto pela lei comum como por nossas cartas processais".

Depois que a sentença fosse lida, o bispo mandou que seus corpos foram exumados de seus sepulcros e, degradados de seus sagradas ordens, entregues em mãos do braço secular; porque não lhes era legítimo a pessoas tão inocentes, e odiando todo derramamento de sangue e detestando todo ânimo de homicídio, dar morte a ninguém.

O 6 de fevereiro, seus corpo, dentro de seus ataúdes, foram levados ao meio da praça do mercado em Cambridge, acompanhados por uma vasta multidão. Se afincou um posto no chão, ao qual se amarraram os ataúdes com grandes correntes, fixadas pelo centro, como se os conversão tivessem estado vivos. Quando o fogo começou ascender e pegou nos ataúdes, foram lançados às chamas também alguns livros dos condenados, para queimá-los. Contudo, no reinado de Elizabete se fez justiça à memória destes piedosos e eruditos homens, quando o senhor Ackworth, orador da universidade, e o senhor J. Pilkington pronunciaram discursos em honra de sua memória, reprovando seus perseguidores católicos.

O cardeal Pole infligiu também sua impotente fúria contra o cadáver da mulher de Peter Martyr que, por ordem sua, foi exumado da sepultura, e enterrado num distante estercoleiro, em parte porque seus ossos estavam muito perto das relíquias de são Fridewide, que tinha sido anteriormente muito estimado naquele colégio, e em parte porque queria purificar Oxford de restos heréticos, igual que Cambridge. Porém no reinado que se seguiu, seus restos foram restaurados a seu anterior cemitério, e inclusive misturados com os do santo católico, para assombro e mortificação absolutos dos discípulos de Sua Santidade o Papa.

O cardeal Pole publicou uma lista de cinqüenta e quatro artigos contendo instruções para o clero de sua diocese de Canterbury, alguns dos quais são demasiado ridículos e pueris para excitar em nossos dias outra coisa senão o riso.

 

Perseguições na diocese de Canterbury

No mês de fevereiro foram encerradas em prisão as seguintes pessoas: R. Coleman, de Waldon, um operário; Joan Winseley, mulher solteira de Horsley Magna; S. Glover, de Rayley; R. Clerk, de Much Holland, marinheiro; W. Munt, de Much Bendey, serrador; Margaret Field, de Ramsey, mulher solteira; R. Bongeor, curtidor; R. Jolley, marinheiro; Allen Simpson, Helen Ewire, C. Pepper, viúva; Alice Walley (que se desdisse); W. Bongeor, vidraceiro, todos eles de Colchester; R. Atkin, de Halstead, tecelão; R. Barbock, de Wilton, marceneiro; R. George, de Westbarhonlt, operário; R. Debnam de Debenham, tecelão; C. Wanen, de Cocksall, solteira; Agnes Whitlock, de Dover-court, solteira; Rose Allen, solteira; y T. Feresannes, menor; ambos de Colchester.

Estas pessoas foram feitas comparecer ante Bonner, que as teria feito executar imediatamente, mas o cardeal Pole era partidário de medidas muito mais misericordiosas, e Bonner, numa de suas cartas ao cardeal, parece estar consciente de que o havia desagradado, porque utiliza esta expressão: "Pensei em mandá-los a todos a Fulham, e pronunciar ali sentença contra eles; contudo, percebendo que em minha última atuação vossa graça se ofendeu, achei meu dever, antes de prosseguir, informar a vossa graça". Esta circunstância confirma o relato de que o cardeal era uma pessoa com humanidade; e embora um católico zeloso, nós, como protestantes, estamos dispostos a rendê-lhe a honra que merece seu caráter misericordioso. Alguns dos acerbos perseguidores o denunciaram ante o Papa como favorecedor de hereges, e foi chamado a Roma, porém a Rainha Maria, por um rogo particular, logrou sua permanência na Inglaterra. Contudo, antes do final de sua vida, e pouco antes de sua última viagem de Roma a Inglaterra, esteve sob graves suspeitas de favorecer a doutrina de Lutero.

Assim como no último sacrifício quatro mulheres honraram a verdade, igualmente no seguinte auto de fé temos um número semelhante de mulheres e varões que sofreram, o 30 de junho de 1557, em Canterbury, e que se chamavam J. Fishcock, F. White, N. Pardue, Barbary Final, que era viúva, a viúva de Barbridge, a esposa de Wilson e a esposa de Benden.

Deste grupo observaremos mais particularmente a Alice Benden, mulher de Edward Benden, de Staplehurst, em Kent. Tinha sido arrestada em outubro de 1556 por não assistência, e liberada com estritas ordens de emendar sua conduta. Seu marido era um fanático católico, e ao falar em público da contumácia de sua mulher, foi enviada ao castelo de Canterbury, onde sabendo quando fosse enviada ao cárcere do bispo seria matada de fome com uma misérrima quantidade de alimentos ao dia, começou a preparar-se para este sofrimento tomando uma mínima refeição diária.

O 22 de janeiro de 1557, se marido escreveu ao bispo que caso se impedisse que o irmão de sua mulher, Roger Hall, a continuasse confortando e ajudando, talvez ela voltaria atrás; por isso foi trasladada à prisão chamada Monday's Hole. Seu irmão a buscou com diligência, e depois de cinco semanas, de forma providencial, ouviu sua vos numa masmorra, mas não pôde dar-lhe outro alívio que pôr algo de dinheiro num pedaço de pão, e alcançá-lo com a ajuda de uma longa vara. Deve ter sido terrível a situação desta pobre vítima, jazendo na palha, entre paredes de pedra, sem trocar de vestido nem com os mais mínimos requisitos de limpeza durante nove semanas!

O 25 de março foi chamada diante do bispo, que lhe ofereceu a liberdade e recompensas se voltava a sua casa e se submetia. Mas a senhora Benden tinha-se acostumado ao sofrimento, e mostrando-lhe os braços contraídos e seu rosto famélico, recusou afastar-se da verdade. Sem embargo, foi tirada deste buraco escuro e levada a West Gate, de onde foi tirada no final de abril para ser condenada e depois lançada na prisão do castelo até o 19 de junho, dia em que deveria ser queimada. Na estaca deu seu lenço a um homem chamado John Banns como memória, e do cinto tirou uma renda branca, pedindo-lhe que a entregasse a sua irmã, dizendo-lhe que era a última atadura que tinha levado, a exceção da corrente; e a seu pai devolveu um xelim que tinha-lhe enviado.

Estes sete mártires tiraram as roupas com presteza, e já preparados se ajoelharam, e oraram com tal fervor e espírito cristão que até os inimigos da cruz se sentiram afetados. Depois de ter feito uma invocação conjunta, foram amarrados à estaca e, rodeados de implacáveis labaredas, entregaram suas almas em mãos do Senhor vivo.

Matthew Plaise, um tecelão e cristão sincero e agudo, foi levado diante de Tomás, bispo de Dover, e de outros inquisidores, aos que embromou engenhosamente com suas respostas indiretas, das que se segue uma amostra:

Doutor Harpsfield: Cristo chamou ao pão Seu corpo; que dizes tu que é?

Plaise: Creio que é o que lhes deu.

Dr. H.: E que era?

P: O que Ele partiu.

Dr. H.: E que partiu?

P: O que tomou.

Dr. H.: Que tomou?

P: Digo eu que o que lhes deu, o que certamente comeram.

Dr. H.: Bem, então tu dizes que era somente pão o que os discípulos comeram.

P: Eu digo que o que Ele lhes deu é o que eles verdadeiramente comeram.

Seguiu-se uma discussão muito prolongada, na qual pediram a Plaise que se humilhasse ante o bispo; mas a isto ele recusou. Não se sabe se este valoroso homem morreu no cárcere, se foi executado ou liberado.

 

O reverendo John Hullier

O reverendo John Hullier se educou no Eton College, e com o tempo veio ser vigário de Babram, a três milhas de Cambridge, e depois foi a Lynn, onde, ao opor-se à superstição dos papistas, foi levado ante o doutor Thirlby, bispo de Ely, e enviado ao castelo de Cambridge; aqui esteve um tempo, e depois foi enviado à prisão de Tolbooth onde, depois de três meses, foi conduzido à Igreja de Santa Maria, e ali condenado pelo doutor Fuller. Na Quinta-Feira Santa foi levado à fogueira; enquanto tirava as roupas, disse as pessoas que estava a ponto de sofrer por uma causa justa, e os exortou a acreditar que não havia outra rocha senão Jesus Cristo sobre a qual edificar. Um sacerdote chamado Boyes pediu então ao alcaide que o silenciasse. Depois de orar, foi mansamente à fogueira, e amarrado então com uma corrente e metido num barril de alcatrão, pegaram fogo às canas e à lenha. Mas o vento arrastou o fogo diretamente detrás dele, o que o fez orar tanto mais fervorosamente sob uma severa agonia. Seus amigos pediram ao verdugo que acendesse os feixes com o vento em sua cara, o que foi feito de imediato.

Lançaram agora uma quantidade de livros ao fogo, um dos quais (o Serviço de Comunhão) ele pegou, o abriu, e gozosamente ficou lendo-o, até que o fogo e a fumaça o privaram da visão; mas incluso então, em fervorosa oração, apertou o livro contra seu coração, dando graças a Deus por dar-lhe, em seus últimos momentos, este dom tão precioso.

Sendo cálido o dia, o fogo ardeu violentamente; num momento determinado, quando os espectadores pensavam que já tinha deixado de existir, exclamou repentinamente: "Senhor Jesus, recebe meu espírito!", e com mansidão entregou sua vida. Foi queimado em Jesus Greden, não longe do Jesus College. Tinham-lhe colocado pólvora, porém morreu antes que se acendesse. Este piedoso mártir constituiu um singular espetáculo, porque sua carne ficou tão queimada desde os ossos, que continuaram erguidos, que apresentou a idéia de uma figura esquelética acorrentada numa estaca. Seus restos foram ansiosamente tomados pela multidão, e venerados por todos os que admiraram sua piedade ou detestavam o desumano fanatismo.

 

Simão Miller e Elizabete Cooper

No seguinte mês de julho estes dois receberam a coroa do martírio. Miller vivia em Lynn, e acudiu a Norwich, onde, colocando-se à porta de uma das igrejas, enquanto a gente saia, pediu saber onde poderia ir para receber a Comunhão. Por esta causa, o sacerdote o fez levar diante do doutor Dunning, que o fez encerrar; porém depois o deixaram voltar a sua casa para arranjar seus assuntos; após isso voltou à casa do bispo, e a seu cárcere, onde permaneceu até o 13 de julho, dia em que foi queimado.

Elizabete Cooper, mulher de um artesão de metais de St. Andrews, Norwich, tinha-se retratado; porém, atormentada pelo que tinha feito pelo verme que nunca morre, pouco depois se dirigiu voluntariamente a sua igreja paroquial durante o momento do culto papista, e, em pé, proclamou de forma audível que revogava sua anterior retratação, e advertiu a gente que evitasse seu indigno exemplo. Foi tirada de sua casa pelo senhor Sunon, o xerife maior, que muito contra sua vontade cumpriu com a letra da lei, porquanto tinham sido servos e amigos no passado. Na estaca, a coitada mulher, sentindo o fogo, gritou, ao qual o senhor Miller, passando a mão por detrás dele para ela, a animou, "porque (disse), boa irmã, teremos um gozoso e feliz jantar". Alentada por este exemplo e exortação, se manteve inamovível na terrível prova e demonstrou, junto com ele, o poder da fé sobre a carne.

 

Execuções em Colchester

Já mencionamos antes que vinte e duas pessoas tinham sido enviadas desde Colchester, as quais, com uma ligeira submissão, foram depois liberadas. Delas, William Munt, de Much Bentley, granjeiro, com sua mulher Alice e Rose Allin, sua filha, após voltar a casa, se abstiveram de ir à igreja, o que induziu o fanático sacerdote a escrever secretamente a Bonner. Durante um certo tempo se ocultaram, mas ao voltar o 7 de março, um tal Edmund Tyrrel (parente do Tyrrel que deu morte ao rei Eduardo V e a seu irmão) entrou com oficiais na casa enquanto Munt e sua mulher estavam na cama, informando-lhes que deviam ir ao castelo de Colchester. A senhora Munt estava então muito doente, e pediu que sua filha lhe desse algo para beber. Rose recebeu permissão para isso, e pegou uma vela e uma jarra; ao voltar a casa se encontrou com Tyrrel, que lhe ordenou que aconselhasse seus pais que se tornassem bons católicos. Rose lhe informou em poucas palavras que tinham o Espírito Santo como conselheiro, e que ela estava disposta a dar sua vida pela mesma causa. Voltando-se para a companhia, lhes declarou que estava pronta para ser queimada; então um deles lhe disse que a provasse, para ver de que seria ela capaz no futuro. O insensível desalmado executou no instante esta proposta; tomando a moça por uma munheca, manteve a vela acendido sob sua mãe, queimando-a transversal-mente no dorso, até que os tendões se separaram da carne, durante o qual a insultou com muitos qualificativos insultantes. Ela suportou imperturbável esta fúria, e depois, quando ele houve terminado a tortura, ela lhe disse que começasse por seus pés ou por sua cabeça, pois não tinha medo que seu cruel patrão fosse algum dia castigá-lo por isso. Depois levou a bebida a sua mãe.

Este cruel ato de tortura não está isolado. Bonner tinha tratado a um coitado harpista de uma maneira muito semelhante, por ter mantido firmemente a esperança de que ainda que lhe queimassem todas as articulações, não se afastaria de sua fé. Com isto, Bonner, fez um sinal em secreto aos homens para que trouxessem brasas acesas, que colocaram na mão daquele coitado, fechando-a pela força, até que queimou profundamente na carne.

George Eagles, um alfaiate, foi acusado de ter orado que "Deus mudará o coração da Rainha Maria, ou a arrebatará"; a causa ostensível de sua morte foi sua religião, porque dificilmente poderia ter sido acusado de traição por ter orado pela reforma de uma alma tão execrável como a de Maria. Condenado por este crime, foi arrastado sobre um trenó até o lugar da execução, junto com dois bandidos, que foram executados com ele. Depois que Eagles subisse a escadinha e tivesse permanecido pendurado durante um certo tempo, foi despedaçado antes de ter ficado por completo inconsciente; um xerife chamado William Swallow o arrastou então ao trenó, e com um machado velho cortou-lhe torpemente a cabeça, e com vários golpes; de uma forma igual de torpe e cruel abriu-lhe o corpo em canal e lhe desgarrou o coração.

Em meio de todos estes sofrimentos, o pobre mártir não se queixou, senão que clamou a seu Salvador. A fúria destes fanáticos não acabou aqui. Seus intestinos foram queimados e o corpo despedaçado, enviando-se os quatro quartos a Colchester, Harwich, Chelmsford e St. Rouse's. Chelmsford teve a honra de reter sua cabeça, que foi encravada numa estaca na praça do mercado. Após um tempo foi deitada pelo vento, e ficou vários dias na rua, até que foi sepultada uma noite no pátio da igreja. O juízo de Deus caiu pouco depois sobre Swallow, que em sua velhice ficou reduzido á mendicância, e foi flagelado por uma lepra que o tornou horroroso até para os animais; e tampouco escapou da mão vingadora de Deus Richard Potts, que angustiou Eagles em seus momentos finais.

 

A senhora Lewes

Esta senhora era a mulher do senhor T. Lewes, de Manchester. Tinha recebido como verdadeira a religião romanista, até a queima daquele piedoso mártir que tinha sido o senhor Saunders de Coventry. Ao saber que sua morte surgia de uma rejeição de receber a missa, começou a inquirir pela base desta rejeição, e sua consciência, ao começar a ser iluminada, começou a agitar-se e alarmar-se. Nesta inquietude, recorreu ao senhor John Glover, quem vivia perto, e lhe pediu que lhe desvendasse aquelas ricas fontes que possuía de conhecimento dos Evangelhos, particularmente acerca da questão da transubstanciação. Conseguiu convencê-la facilmente de que a mascarada do papado e da missa estavam em contra da santíssima Palavra de Deus, e a repreendeu fielmente por seguir excessivamente as vaidades de um mundo malvado. Para ela foi em vida futura uma palavra oportuna, porque logo cansou de sua anterior vida de pecado, e resolveu abandonar a missa e o culto idolátrico. Embora obrigada à força pelo marido a ir à igreja, seu menosprezo pela água benta e por outras cerimônias era tão evidente que foi acusada ante o bispo por desprezo dos sacramentos.

De imediato seguiu-se uma citação, dirigida a ela, que foi dada ao senhor Lewes, que, num arrebato de paixão, pus uma adaga no pescoço do oficial e o fez comê-la, e depois o obrigou a beber água para fazê-la descer, e então o fez sair. Por esta ação o bispo citou o senhor Lewes ante ele, igual que sua mulher; este se submeteu com presteza, porém ela afirmou com resolução que ao recusar a água benta nem ofendia a Deus nem quebrantava nenhuma de Suas leis. Foi enviada a sua casa durante um mês, sendo seu marido fiador pecuniário pelo comparecimento dela; durante este tempo o senhor Glover a convenceu da necessidade de fazer o que fazia não por vaidade, senão pela honra e glória de Deus.

O senhor Glover e outros exortaram seriamente a Lewes a perder o dinheiro que tinha pagado de fiança antes de entregar a sua mulher a uma morte certa, mas ficou surdo à voz da humanidade, e a entregou ao bispo, que logo achou causa suficiente para enviá-la a uma imunda prisão, de onde foi algumas vezes tirada para ser submetida a interrogatórios. No final, o bispo arrazoou com ela acerca do justo que era para ela ir à missa e receber como sagrado o Sacramento e os outros sacramentos do Espírito Santo. "Se estas coisas estivessem na Palavra de Deus", disse-lhe a senhora Lewes, "as receberia de todo coração, acreditando nelas e apreciando-as". O bispo lhe respondeu com a mais ignorante e ímpia insolência: "Se não queres crer mais que o que está justificado pelas Escrituras, estás em estado de condenação!". Atônita ante esta declaração, esta digna sofredora replicou com razão que suas palavras eram tão impuras quanto blasfemas.

Depois de ser sentenciada, permaneceu doze meses encarcerada, não estando disposto o xerife maior a executá-la durante o exercício de seu cargo, ainda que o acabavam de escolher para o mesmo. Quando chegou a ordem para sua execução desde Londres, ela enviou buscar uns amigos, aos que consultou acerca de em que forma poderia sua morte ser gloriosa para o nome de Deus, e prejudicial para a causa dos inimigos. Sorrindo, disse: "Em quanto a minha morte, me é pouca coisa. Quando sei que contemplarei a amante face de Cristo, meu amado salvador, o feio rosto da morte não me preocupa demasiado". A véspera antes de sofrer, dois sacerdotes desejavam vivamente visitá-la, mas ela recusou tanto confessar-se como receber a absolvição, porquanto podia manter melhor comunicação com o Sumo Sacerdote das almas. Por volta das três da madrugada, Satanás começou a lançar seus dardos acesos, colocando dúvidas em sua mente acerca de se teria sido escolhida para a vida eterna, e se Cristo teria morrido por ela. Seus amigos lhe indicaram com presteza aquelas passagens consoladoras da Escritura que confortam o coração fatigado, e que tratam do Redentor que tira os pecados do mundo.

Por volta das 8, o xerife maior lhe anunciou que tinha só uma hora de vida; no princípio sentiu-se abatida, porém logo se repus, e deu graças a Deus de que sua vida seria logo dedicada a Ser serviço. O xerife deu permissão a dois amigos para que a acompanhassem à estaca, indulgência esta pela qual foi depois severamente tratado; ao ir para o lugar quase desmaiou, devido à grande distância, sua grande debilidade e a multidão que se aglomerava. Três vezes orou fervorosamente a Deus para que livrasse a terra do papismo e da idolátrica missa; e a maioria da gente, assim como o xerife maior, disseram amém.

Quando houve orado, tomou aquele cálice (que tinha sido enchido de água para refrescá-la) e disse "Bebo para todos aqueles que sem fingimento amam o Evangelho de Cristo, e brindo pela abolição do papado". Seus amigos, e muitas mulheres do lugar, beberam com ela, pelo que à maioria delas foram depois impostas penitências.

Quando foi acorrentada à estacam seu rosto estava alegre, e o rubor de suas faces não esvaeceu. Suas mãos estiveram estendidas para o céu até que o fogo a deixou sem forças, quando sua alma foi recebida nos braços do Criador. A duração de sua agonia foi breve, porque o xerife, a petição de seus amigos, tinha preparado uma lenha tão boa que em poucos minutos ficou abrumada pela fumaça e as chamas. O caso desta mulher fez brotar lágrimas de compaixão em todos aqueles cujo coração não estava endurecido.

 

Execuções em Islington

Por volta do 17 de setembro sofreram em Islington os quatro seguintes confessores de Cristo: Ralph Allerton, James Austoo, Margery Austoo, e Richard Roth.

James Austoo e sua mulher, de A'lhallows, em Baiking, Londres, foram sentenciados por não crer na presença. Richard Roth rejeitou os sete sacramentos, e foi acusado de ajudar os hereges pela seguinte carta, escrita com seu próprio sangue, e que tinha tratado de enviar a seus amigos de Colchester:

 

Queridos irmãos e irmãs:

Quanto maior razão tendes para regozijar-vos em Deus por ter-vos dado tal fé para sobrepor-vos até agora a este sanguinário tirano! E é indubitável que Aquele que tem começado a boa obra em vós outros, a consumará até o fim. Oh, queridos corações em Cristo, que coroa de glória recebereis com Cristo no Reino de Deus! Queira Deus que tivesse estado pronto para ir convosco; porque estou de dia no incômodo, subministrada pelo xerife, e de noite jazo na carvoeira, afastado de Ralph Allerton ou de qualquer outro; e esperamos cada dia quando seremos condenados; porque ele disse que seria queimado no período de dez dias antes da Páscoa; continuo estando à borda do estanque, e cada um entra antes que eu; porém esperamos pacientemente a vontade do Senhor, com muitas correntes, com ferros e cepos, pelos que temos recebido grande gozo de Deus. e agora que vos vá bem, queridos irmãos e irmãs, neste mundo, pois espero vê-los no céu face a face".

Oh, irmão Munt, com tua mulher e tua irmã Rose, quão bem-aventurados sois no Senhor, que vos tem achado dignos de padecer por Sua causa!, e isso com todo o resto de meus queridos irmãos e irmãs, conhecidos ou desconhecidos. Gozai-vos até a morte. Não temais, disse Cristo, porque eu venci a morte. Oh, querido coração, vendo que Jesus Cristo será nossa ajuda, espera até que Ele o deseje. Sede fortes, que se alentem vossos corações, e esperai quietos no Senhor. Ele está perto. Sim, o anjo do Senhor coloca sua tenda em volta dos que o temem, e os livra da forma que melhor lhe parece. Porque nossas vidas estão em mãos do Senhor; e não nos podem fazer nada se o Senhor não lhes permitir. Por isso, dai todos graças a Deus.

Oh, queridos corações, serei revestidos de longas vestes brancas no monte Sião, com a multidão dos santos, e com Jesus Cristo nosso Salvador, que jamais nos desamparará. Oh, bem-aventuradas virgens, tendes jogado o papel de virgens prudentes ao ter tomado azeite em vossas lâmpadas, para poder entrar com o Esposo, quando venha, para o gozo eterno com Ele. Porém, quanto às insensatas, ser-lhes-á fechada a porta, pois não se dispuseram a sofrer com Cristo, nem a levar sua cruz. Oh, queridos corações, quão preciosa será vossa morte aos olhos do Senhor!, porque preciosa lhe é a morte de Seus santos. Que vos vá bem, e continuai orando. Seja convosco a graça de nosso Senhor Jesus Cristo. Amém, amém. Orai, orai, orai!"

Escrito por mim, com meu próprio sangue,

RICHARD ROTH"

 

Esta carta, na que se denomina com tanta justiça a Bonner como "sanguinário tirano" não era provável que excitasse sua compaixão. Roth o acusou de levá-lo a interrogar secretamente e de noite, porque tinha medo de dia à gente. Resistindo-se a todas as tentações de abjurar, foi condenado, e o 17 de setembro de 1557 estes quatro mártires morreram em Islington, pelo testemunho do Cordeiro, que foi imolado para que eles pudessem ser os remidos de Deus.

John Noyes, um sapateiro de Laxfield, Suffolk, foi levado a Eye, e na meia-noite do 21 de setembro de 1557 o levaram de novo de Eye para Laxfield, para ser queimado. Na manhã seguinte foi conduzido ao poste, preparado para o horrendo sacrifício. O senhor Noyes, ao chegar no lugar fatal, e ajoelhou, orou e recitou o Salmo 50. Quando a corrente o rodeou, disse: "Não temais os que matam o corpo, mas temei Àquele que pode matar corpo e alma, e lançá-los no fogo eterno!". Enquanto um tal Cadman lhe colocava um feixe de lenha sobre ele, bendisse a hora em que havia nascido para morrer pela verdade; e enquanto se confiava somente aos méritos todo-suficientes do Redentor, pegaram fogo à pira, e em pouco tempo o fogo devorador apagou suas últimas palavras: "Senhor, tem misericórdia de mim! Cristo, tem misericórdia de mim!". As cinzas de seu corpo foram sepultadas num fosso, e com elas um de seus pés, inteiro até o tornozelo, com a meia colocada.

 

A senhora Cicely Ormes

Esta jovem mártir, de vinte e dois anos de idade, estava casada com o senhor Edmund Ormes, tecelão de estame de St. Lawrence, Norwich. Ao morrer Miller e Elizabete Cooper, antes mencionados, ela disse que desejava partilhar do mesmo cálice que eles haviam bebido. Por estas palavras foi levada até o chanceler, que a teria liberado sob sua promessa de assistis à igreja e de guardar-se suas crenças para si mesma. Como ela não estava disposta a consentir nisto, o chanceler a pressionou dizendo que tinha-lhe mostrado mais indulgência a ela que a ninguém porque era uma mulher ignorante e insensata; a estas palavras respondeu ela (quiçá com maior agudeza da que ele esperava) que por grande que fosse o desejo dele de dar perdão a sua pecaminosa carne, não poderia igualar-se ao desejo dela de oferecê-la numa briga de tanta importância. O chanceler pronunciou então a sentença condenatória, e o 23 de setembro de 1557 foi levada à estaca, às 8 da manhã.

Depois de proclamar sua fé ante a gente, pus sua mão sobre a estaca, e disse: "Bem-vinda, cruz de Cristo". Sua mão ficou cheia de fuligem ao fazer isto porque era a mesma estaca em que tinham sido queimados Miller e Cooper; no princípio ela a limpou, porém de imediato voltou sujá-la e se abraçou a ela como à "doce cruz de Cristo". Depois que os carrascos tivessem acendido o fogo, disse: "Engrandece minha alma o Senhor, e meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador". Depois, cruzando suas mãos sobre seu peito, e olhando para acima com a maior serenidade, suportou o ardente fogo. Suas mãos continuaram levantando-se gradualmente até que ficaram secos os tendões, e depois caíram. Não pronunciou exclamação alguma de dor, senão que entregou sua vida, um emblema daquele paraíso celestial no qual está a presença de Deus, bendito pelos séculos.

Poderia-se dizer que esta mártir buscou voluntariamente sua própria morte, porquanto o chanceler apenas se lhe exigiu outra penitencia que a de guardar para si mesma duas crenças; mas parece neste caso como se Deus a tiver escolhido como luz resplandecente, porque doze meses antes de ser apresada tinha-se retratado; porém se sentiu muito desgraçada até que o chanceler foi informado, por meio de uma carta, que se arrependia de sua retratação desde o mais fundo de seu coração. Como que para compensar por sua anterior apostasia e para convencer os católicos de que não tinha já mais intenções de entrar em acordos por sua seguridade pessoal, recusou abertamente seu amistoso oferecimento de permiti-lhe contemporizar. Seu valor em tal causa merece elogio; era a causa dAquele que disse: "Aquele que se envergonhar de mim na terra, dele me envergonharei eu no céu.

 

O reverendo John Rough

Este piedoso mártir era escocês. Aos dezessete anos entrou a formar parte da ordem dos frade pretos em Stirling, na Escócia. Tinha sido excluído de uma herança por seus amigos, e deu este passo como vingança pela conduta deles. Depois de ter permanecido lá dezesseis anos, sentido simpatia por ele lorde Hamilton, conde de Arran, o arcebispo de St. Andrews induziu o provincial da casa a que dispensasse seu hábito e ordem; e assim veio ser chapelão do conde. Permaneceu neste emprego espiritual durante um ano, e naquele tempo Deus o levou ao conhecimento salvador da verdade; por esta razão o conde o enviou a predicar na liberdade de Ayr, onde permaneceu durante quatro anos; porém ao ver que se abatia o perigo devido às características religiosas da época, e sabendo que havia muita liberdade para o Evangelho na Inglaterra, se dirigiu ao duque de Somerset, então lorde Protetor da Inglaterra, quem lhe concedeu um salário anual de vinte libras, e o autorizou a predicar em Carlisle, Berwick e Newcastle, onde casou. Foi depois enviado a uma reitoria em Hull, onde permaneceu até a morte de Eduardo VI.

Como conseqüência da maré de perseguição que então começou, fugiu com sua mulher à Frísia, e a Nordon, onde se ocuparam em tecer meias, bonés, etc., para ganhar a vida. Incomodados nesta atividade por falta de materiais, foi à Inglaterra para procurar-se uma quantidade, e o 10 de novembro chegou a Londres, onde logo soube de uma sociedade secreta de fiéis, a qual se uniu, e da qual logo foi escolhido ministro, ocupação na que os fortaleceu com toda boa resolução.

O 12 de dezembro, por denúncia de um chamado Taylor, membro da sociedade, foi apresado um membro dela, chamado Rough, com Cuthbert Symson e outros, em Saracen's Head, Islington, onde celebravam seus serviços religiosos sob a coberta de presenciar uma função teatral. O secretário do ajudante de câmara da rainha levou a Rough e a Symson ante o Conselho, em presença do qual foram acusados de reunir-se para celebrar a Comunhão. O Conselho escreveu a Bonner, e este não perdeu tempo neste sanguinário assunto. Em três dias o teve diante dele, e no seguinte (o 20) decidiu condená-lo. as acusações contra ele eram que sendo sacerdote estava casado, e que havia rejeitado o serviço em língua latina. Rough não carecia de argumentos para contestar estas fraquíssimas acusações. Em resumo, foi degradado e condenado.

Deveria observar-se que o senhor Rough, quando estava no norte, tinha salvado a vida do doutor Watson durante o reinado de Eduardo, e este estava sentado junto ao bispo Bonner no tribunal. Este ingrato prelado, como recompensa pela bondade recebida, o acusou abertamente de ser o mais pernicioso herege do país. O piedoso ministro o repreendeu por mostrar um espírito tão malicioso; afirmou que durante seus trinta anos de vida nunca havia dobrado seu joelho ante Baal; e que duas vezes em Roma tinha visto o Papa levado em ombros de homens com o falsamente chamado Sacramento diante dele, apresentando uma verdadeira imagem do mesmíssimo Anticristo; e que contudo lhe mostravam mais reverência a ele que à imagem da hóstia, que eles consideravam seu Deus. "Ah", disse Bonner, levantando-se e dirigindo-se a ele, como se desejasse desgarrar suas vestes. "Tens estado em Roma, e visto nosso santo pai o Papa, e blasfemas dele deste modo?". Dito isto, se lançou sobre ele, lhe arrancou um pedaço da barba, e para que o dia começasse com satisfação sua, ordenou que o objeto de sua ira fosse queimado às cinco e meia da manhã seguinte.

 

Cuthbert Symson

Poucos confessores de Cristo exibiram mais atividade e zelo que esta excelente pessoa. Não só trabalhou para preservar seus amigos do contágio do papismo, senão que também se esforçou por guardá-los dos terrores da perseguição. Era diácono da pequena congregação sobre a que presidia como ministro o senhor Rough.

O senhor Symson escreveu uma narração de seus próprios sofrimentos, que não pode descrever melhor o que padeceu:

"O 13 de dezembro de 1557 fui enviado pelo Conselho à Torre de Londres. Na quinta-feira seguinte fui chamado ao corpo de guarda diante do alcaide da Torre e do chefe do arquivo de Londres, o senhor Cholmly, que me mandaram lhes desse os nomes dos que acudiam ao serviço em inglês. Respondi que não diria nada, e como conseqüência de minha rejeição me colocaram sobre um potro de tormento de ferro, eu acho que por espaço de três horas".

"Depois me perguntaram se estava disposto a confessar; respondi igual que antes. Depois de desamarrar-me, me devolveram a minha cela. O domingo seguinte foi levado de novo ao mesmo lugar, ante o tenente e o chefe do arquivo de Londres, e me submeteram a interrogatório. E lhes respondi agora como antes. Então o tenente jurou por Deus que eu confessaria; depois disso me amarraram juntos meus dois dedos índices, e colocaram entre eles uma pequena seta, e a arrancaram tão rapidamente que manou sangue, e se quebrou a seta".

"Depois de agüentar duas vezes mais o potro do tormento, fui devolvido a minha cela, e dez dias depois o tenente me perguntou se estava agora disposto a confessar o que já me haviam perguntado. Respondi que já tinha falado tudo quanto diria. Três semanas depois fui enviado ao sacerdote, onde fui gravemente assaltado, e de mãos de quem recebi a maldição do Papa, por dar testemunho da ressurreição de Cristo. E assim os encomendo a Deus e à Palavra de Sua graça, com todos aqueles que invocam sem fingimentos o nome de Jesus; pedindo a Deus por Sua misericórdia infinita, pelos méritos de seu amado Filho Jesus Cristo, que nos dê entrada em seu Reino eterno. Amém. Louvo a Deus por Sua grande misericórdia que nos tem mostrado. Cantai Hosana ao Altíssimo junto a mim, Cuthbert Symson. Que Deus perdoe meus pecados! Peço perdão a todo mundo e a todo mundo perdôo, e assim abandono o mundo, na esperança de uma gozosa ressurreição!"

Se considerar atentamente esta narração, que imagem temos de repetidas torturas! Porém incluso a crueldade da narração e excedida pela paciente mansidão com a que foram suportadas. Não aparecem expressões maliciosas, nem invocações sequer à justiça retributiva de Deus, nem uma queixa por sofrer sem causa. Ao contrário, o que dá fim a esta narração é o louvor a Deus, perdão do pecado, e um perdão para todo mundo.

A firme frialdade deste mártir levou a Bonner à admiração. Falando de Symson no consistório, disse: "Vedes que pessoa mais aprazível é, e depois, falando de sua paciência, eu diria, se não fosse um herege, que é a pessoa de maior paciência que jamais tive diante de mim. Três vezes num dia foi colocado na Torre no potro do tormento; também tem sofrido em minha casa, e ainda não vi quebrantada sua paciência".

O dia antes de ser condenado este piedoso diácono, encontrando-se no cepo na carvoeira do bispo, teve uma visão de uma forma glorificada, que lhe foi de grande alento. Disto testemunhou a sua mulher, à senhora Austen, e a outros, antes de sua morte.

Junto a este adorno da Reforma Cristã foram apreendidos o senhor Hugh Foxe e John Devinish; os três foram trazidos ante Bonner o 19 de março de 1558, e lhes colocaram diante deles os artigos papistas. Os rejeitaram, e foram por isso condenados. Assim como adoravam juntos na mesma sociedade, em Islington, assim sofreram juntos em Smithfield, o 28 de março; na morte deles foi glorificado o Deus da Graça, e confirmados os verdadeiros crentes.

 

Tomás Hiason, Tomás Carman e William Seamen

Estes foram condenados por um fanático vigário de Aylesbury chamado Berry. O lugar da execução se chamava Lollard's Pit, fora de Bishopsgate, em Norwich. Depois de unir-se em humilde rogo ante o trono da graça, se levantaram, foram até a estaca, e foram rodeados com suas correntes. Para grande surpresa dos espectadores, Hudson se deslizou por debaixo de suas correntes e foi à frente. Prevaleceu a idéia entre a multidão de que estava a ponto de abjurar; outros acharam que queria pedir mais tempo. Enquanto isso, seus companheiros na estaca o incitaram com todas as promessas de Deus e com exortações para sustentá-lo. Mas as esperanças dos inimigos da cruz se viram frustradas; aquele bem homem, longe de temer o mais pequeno terror entre as garras cada vez mais próximas da morte, estava somente alarmado pelo fato de que parecia que a face de seu Senhor se lhe ocultava. Caindo sobre seus joelhos, seu espírito lutou com Deus, e Deus verificou as palavras de seu Filho: "Pedi, e recebereis". O mártir se levantou com um gozo extasiado e exclamou: "Agora, graças dou a Deus, estou forte; e não temo o que me faça o homem!" Com um rosto sereno voltou colocar-se embaixo da corrente, unindo-se a seus companheiros de suplício, e com eles sofreu a morte, para consolação dos piedosos e confusão do Anticristo.

Berry, sem sentir-se saciado por sua diabólica ação, convocou a duzentas pessoas na cidade de Aylesham, as que obrigou a ajoelhar-se em Pentecoste ante a cruz, e infligiu outros castigos. Bateu num pobre homem por uma palavra sem importância, com um golpe que foi fatal. Também deu um soco tal numa mulher chamada Mice Oxes, ao vê-la entrar no vestíbulo num momento em que ele estava irritado, que a matou. Este sacerdote era rico, e tinha grande autoridade. Era um réprobo, e como sacerdote se abstinha do matrimônio, para gozar-se tanto mais de uma vida corrompida e licenciosa. O domingo depois da morte da Rainha Maria estava de orgia com uma de suas concubinas, antes das vésperas; depois foi à igreja, ministrou um batismo, e se dirigia de volta a seu lascivo passatempo, quando foi abatido pela mão de Deus. sem ter um momento de oportunidade para arrepender-se, caiu no chão, e somente lhe foi permitido exalar uma queixa. Nele podemos ver a diferença entre o fim de um mártir e o de um perseguidor.

 

A história de Roger Holland

Num cercado retirado perto de um campo de Islington tinham-se reunido um grupo de umas quarenta pessoas honradas. Enquanto se dedicavam religiosamente à leitura e exposição das Escrituras, vinte e sete delas foram levadas ante Sir Roger Cholmly. Algumas das mulheres escaparam, e vinte e dois foram levados a Newgate, ficando em cárcere durante sete semanas. Antes de serem interrogados foram informados pelo guarda, Alexandre, que o único que precisavam para ser liberados era ouvir missa. Por fácil que possa parecer esta condição, estes mártires valorizavam mais a pureza de suas consciências que a perda da vida ou de suas propriedades; por isso, treze foram queimados, sete em Smithfield e seis em Brentwood; dois morreram em prisão, e outros sete foram providencialmente preservados. Os nomes dos sete que sofreram em Smithfield eram: H. Pond, R. Estland, R. Southain, M. Ricarby, J. Floyd, J. Holiday, e Roger Holland. Foram enviados a Newgate o 16 de julho de 1558, e executados o 27.

Este Roger Holland, um mercador e alfaiate de Londres, foi primeiro aprendiz de um mestre Kempton, em Black Boy, Watling St., dando-se à dança, esgrima, o jogo e às más companhias. Uma vez recebeu de seu patrão uma certa quantia de dinheiro, trinta libras, e perdeu tudo jogando aos dados. Por isso se propus fugir ao outro lado do mar, para a França ou a Flandes.

Com esta decisão, chamou cedo pela manhã a uma discreta criada da casa, chamada Elizabete, que professava o Evangelho, e que vivia uma vida digna desta profissão. A ela revelou a perda que tinha sofrido por sua insensatez, lamentando não ter seguido seus conselhos, e rogando-lhe que lhe entregasse a seu amo uma nota autógrafa na qual reconhecia a dívida, que pagaria se alguma vez lhe era possível; também lhe rogava que mantivesse secreta sua vergonhosa conduta, para não levar os cabelos brancos de seu pai com dor a uma sepultura prematura.

A criada, com uma generosidade e uns princípios cristãos raramente ultrapassados, consciente de que sua imprudência poderia ser sua ruína, lhe deu trinta libra, que eram parte de uma suma que recentemente tinha recebido por um testamento. "Aqui tens o dinheiro que necessitam; toma-o, eu fico com a nota, porém com esta expressa condição: que abandones tua vida lasciva e cheia de vício; que nem jures nem fales obscenamente, e que deixes de jogar; porque se fizerdes tal coisa, mostrarei de imediato esta nota a teu patrão. Também queiro que me prometas assistir à prédica diária em Todos os Santos, e ao sermão em são Paulo cada domingo; que jogues fora todos teus livros papistas, e que em lugar deles coloque o Novo Testamento e o Livro de Culto, e que leias as Escrituras com revelação e temor, pedindo a Deus Sua graça para que te dirija em sua verdade. ora também fervorosamente a Deus que perdoe teus anteriores pecados, e que não se lembre dos pecados de tua juventude; e que de Seu favor recebas o temor de quebrantar Suas leis ou de ofender Sua majestade. Assim te guardará Deus e te concederá o desejo de teu coração". Temos que honrar a memória desta excelente criada, cujos piedosos esforços estavam igualmente dirigidos a beneficiar o irreflexivo jovem nesta vida e na vindoura. Deus não permitiu que o desejo desta excelente criada se perdesse em solo estéril; apos meio ano o licencioso Holland se transformou num zeloso confessor do Evangelho, e foi instrumento para a conversão de seu pai e de outros aos que visitou em Lancashire, para consolo espiritual deles e reforma e saída do papismo.

Seu pai, comprazido com a mudança de sua conduta, lhe deu quarenta libras para que começasse seu negócio em Londres.

Logo Roger voltou a Londres, e foi à criada que havia-lhe emprestado o dinheiro para pagar a seu patrão, e lhe disse: "Elizabete, aqui está o dinheiro que me emprestas-te; e pela amizade, boa vontade e bom conselho que recebi de ti não posso pagar-te mais que fazendo de ti minha esposa". E pouco depois se casaram, por que teve lugar no primeiro ano da Rainha Maria.

Depois disto permaneceu nas congregações dos fiéis, até ser apresado, junto com os outros seis mencionados.

E depois de Roger Holland, ninguém mais sofreu em Smithfield pelo testemunho do Evangelho; graças sejam dadas a Deus.

 

Flagelações ministradas por Bonner

Quando este cruel católico viu que nem as perseguições, nem as ameaças nem a prisão podia produzir alteração alguma na mente de um jovem chamado Tomás Hinshaw, o mandou a Fullham, e durante a primeira noite o colocou no cepo, sem outro alimento que pão e água. Na manhã seguinte foi ver se este castigo tinha executado alguma mudança em sua mente, porém ao ver que não, enviou seu arquidiácono, o doutor Harpsfielf, para que conversasse com ele. O doutor logo perdeu o humor ante suas respostas, o acusou de briguento, e lhe perguntou se percebia que com tal atitude condenaria sua alma. "Do que estou certo", disse-lhe Tomás, "é de que vos dedicais a promover o tenebroso reino do mal, não o amor pela verdade". Estas palavras foram transmitidas pelo doutor ao bispo, que com uma paixão que quase lhe impedia articular as palavras, lhe disse: "Assim respondes tu a meu arquidiácono, moleque perverso? Pois sabe que vou humilhar-te!" Lhe trouxeram então dois galhos de salgueiro, e fazendo que o jovem, que não opus resistência alguma, se ajoelhasse frente a um longo banco numa enramada de seu jardim, o acoitou até que se viu obrigado a cessar por falta-lhe o alento e estar exausto uma das varas ficou totalmente destroçada.

Muitos outros sofrimentos parecidos padeceu Hinshaw em mãos do bispo; este, ao final, para eliminá-lo, se conseguiu falsas testemunhas que apresentassem falsas acusações contra ele, todas as quais o jovem negou, e, em resumo, se negou a responder a nenhum interrogatório que lhe fizeram. Quinze dias depois disto, o jovem foi atacado por umas febres ardentes, e a petição de seu patrão, o senhor Pugston, do pátio da igreja de são Paulo, foi tirado, não duvidando o bispo que o havia procurado a morte de forma natural; contudo, permaneceu doente durante mais de um ano, e durante este tempo morreu a Rainha Maria, ato da Providência pelo qual escapou da fúria de Bonner.

John Willes foi outra fiel pessoa sobre a qual caíram os açoites de Bonner. Era irmão de Richard Willes, já mencionado, que foi amo em Brentford. Hinshaw e Willes foram encerrados juntos na carvoeira de Bonner, e depois levados a Fulham, onde ele e Hinshaw permaneceram durante oito ou dez dias em cepos. O espírito perseguidor de Bonner se manifestou no tratamento que aplicou a Willes durante seus interrogatórios, batendo-lhe freqüentemente na cabeça com uma vara, puxando-o das orelhas e batendo-lhe embaixo do queixo, dizendo que baixava a cabeça como um bandido. Ao não conseguir com isto nenhum indício de abjuração, o levou ao arvoredo, e ali, sob uma enramada, o acoitou até que ficou exausto. Esta cruel ferocidade a suscitou uma resposta do coitado jovem, que ao perguntar-se-lhe quanto tempo fazia que não tinha acudido de joelhos ante um crucifixo, disse que "não o tenho feito desde a idade da razão, nem o farei ainda que me despedacem com cavalos indômitos". Bonner então o mandou fazer o sinal da cruz sobre a testa, o qual ele recusou, e então o levou ao arvoredo.

Um dia, enquanto Willes estava no cepo, Bonner lhe perguntou se estava gostando de seu alojamento e comida. "Bom seria", repus ele, "ter algo de palha sobre a qual sentar-me ou deitar-me". Justo nesse momento entrou a mulher de Willer, então num avançado estado de gravidez, rogando-lhe ao bispo por seu marido, e dizendo-lhe valorosamente que pariria ali se não lhe permitia a seu marido acompanhá-la a sua própria casa. Para livrar-se da importunidade da boa mulher, e dos problemas de uma parturiente na casa, disse a Willes que fizesse o sinal da cruz e que dissesse: "In nomine Patris, et Filli, et Spriritus Sancti, Amém". Willes omitiu o sinal, e repetiu as palavras: "Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, Amém". Bonner quis que repetisse as palavras em latim, ao que Willes não fez objeção, ao conhecer o significado das palavras. Depois lhe permitiu que fosse a sua casa com sua mulher, sendo encarregado seu parente Robert Rouze de levá-lo a são Paulo no dia seguinte, aonde foi por si mesmo, e assinando um banal documento latino, foi deixado em liberdade. Ele foi o último dos vinte e dois apreendidos em Islington.

 

O reverendo Richard Yeoman

Este devoto ancião era vigário do doutor Taylor, em Hadley, e estava sumamente qualificado para sua sagrada função. O doutor Taylor lhe deixou o vicariato ao ir embora, mas tão logo como o senhor Newall recebeu o cargo depus o senhor Yeoman, colocando em seu lugar a um sacerdote romanista. Depois disto, o senhor Yeoman foi de lugar em lugar, exortando a todos os homens a manter-se firmes na Palavra de Deus, a dar-se fervorosamente à oração, com paciência para suportar a cruz que agora se colocava sobre eles para sua provação, com valor para confessar a vida futura diante de seus adversários, e com uma esperança firme para esperar a coroa e a recompensa da felicidade eterna. Mas quando viu que seus adversários estavam perseguindo-o, se dirigiu a Kent, e com um pequeno pacote de rendas, agulhas, botões e outras mercadorias foi de povoado em povoado, vendendo estes artigos, e subsistindo desta maneira e mantendo a sua mulher e seus filhos.

Finalmente, o juiz Moile, de Kent, apreendeu o senhor Yeoman, e o colocou no cepo um dia e uma noite; mas, não tendo nada concreto de que acusá-lo, o deixou livre. Voltando ele em secreto a Hadley, ficou com sua coitada mulher, que o ocultou numa câmera do ajuntamento, chamado o Guildhall, durante mais de um ano. Durante este tempo o bom e ancião pai estava encerrado numa estância todo o dia, passando o tempo em devota oração, na leitura das Escrituras e em cardar a lã que sua mulher tecia. Sua mulher também pedia pão para ela e seus filhos, e com estes precários meios se sustentavam. Assim, os santos de Deus padeciam fome e miséria, enquanto os profetas de Baal viviam em banquetes e eram custosamente obsequiados na mesa de Jezabel.

Ao ser Newall finalmente informado de que Yeoman estava sendo escondido por sua mulher, este acudiu, assistido com soldados, e violentou a estância onde estava o objeto de sua busca, em cama com sua mulher. Censurou a pobre mulher de ser uma prostituta, e teria arrancado as roupas da cama de forma indecente, mas Yeoman resistiu tanto este ato de violência como o ataque contra o bom caráter de sua mulher, agregando que desafiava o Papa e o papismo. Foi logo tirado para fora e colocado num cepo até se fazer de dia.

Na gaiola na qual foi colocado estava também um ancião chamado John Dale, que tinha estado ali três ou quatro dias, por ter exortado o povo durante o tempo em que Newall e seu vigário estavam celebrando a liturgia. Suas palavras foram: "Oh, guias cegos e miseráveis"! Sereis por sempre cegos guias de cegos? Não ireis corrigir-vos nunca? Não querereis ver a verdade da Palavra de Deus? Não entrarão em vossos corações nem as ameaças nem as promessas de Deus? Não suavizará o sangue dos mártires vossas pétreas entranhas? Ah, geração endurecida, de duro coração, perversa e torcida, a qual nada pode fazê-lhe bem!"

Estas palavras as pronunciou no fervor de seu espírito contra a supersticiosa religião de Roma; por isso, Newall o fez apreender de imediato e colocar o cepo numa gaiola, onde foi guardado até que chegou o juiz Sir Henry Dolle a Hadley.

Quando Yeoman foi tomado, o pároco pediu persistentemente a Sir Henry Doile que enviasse ambos à prisão. Sir Henry Doile pediu-lhe, igual de insistentemente, que considerasse a idade dos homens, e sua mísera condição; não eram nem pessoas destacadas, nem predicadores; por isso propus deixá-los castigados um ou dois dias, e soltá-los, pelo menos a John Dale, que não era sacerdote, e que por isso, como tinha estado já tanto tempo na gaiola, considerava fosse um castigo suficiente para sua idade. Quando o pároco ouviu isto, montou em cólera, e fora de si de raiva os acusou de hereges fedorentos, indignos de viver num estado cristão.

Temendo Sir Henry mostrar-se demasiado misericordioso, Yeoman e Dale foram maniatados, amarrados como bandidos com suas pernas sob os ventres de cavalos, e levados ao cárcere de Bury, onde foram carregados de ferros; e devido a que de contínuo repreendiam o papismo, foram metidos na masmorra mais profunda, onde John Dale, pela doença carcerária e os maus-tratos, morreu pouco tempo depois. Seu cadáver foi jogado fora e sepultado nos campos. Morreu aos sessenta e seis anos. sua profissão era tecelão, e era bom conhecedor sas Sagradas Escrituras, e firme em sua confissão das verdadeiras doutrinas de Cristo tal como tinham sido expostas em tempos do rei Eduardo. Por elas padeceu prisão e correntes, e desde este cárcere terreno partiu para estar com Cristo na glória eterna, e o bendito paraíso da felicidade que não conhece fim.

Depois da morte de Dale, Yeoman foi levado ao cárcere de Norwich, onde, após sofrer um tratamento muito duro, foi interrogado acerca de sua fé, e se exigiu que se submetesse ao santo padre, o Papa. "O reto (disse ele), e desafio todas suas detestáveis abominações; não terei nada a ver com ele em absoluto". As principais acusações de que foi objeto foram seu matrimônio e sua rejeição do sacrifício da missa. Ao vê-lo que continuava firme na verdade, foi condenado, degradado e não somente queimado, senão também muito cruelmente atormentado no fogo. Assim terminou ele esta pobre e miserável vida, e entrou no bem-aventurado seio de Abraão, gozando com Lázaro daquele repouso que Deus dispus para Seus escolhidos.

 

Tomás Bendridge

O senhor Bendridge era um cavalheiro solteiro, na diocese de Winchester. Teria podido viver uma vida desassossegada, nas ricas possessões deste mundo; mas preferiu antes entrar pela estreita porta da perseguição na possessão celestial da vida do Reino do Senhor, que gozar dos prazeres presentes com a consciência agitada. Mantendo-se valorosamente frente aos papistas pela defesa da sincera doutrina do Evangelho de Cristo, foi apreendido como adversário da religião romanista, e levado para ser interrogado ante o bispo de Winchester, onde sofreu vários conflitos pela verdade contra o bispo e seu colega. Foi por isso condenado, e algum tempo depois conduzido ao lugar de seu martírio por Sir Richard Pecksal, xerife maior.

Quando chegou à estaca começou a desamarrar as laçadas de suas roupas e a preparar-se; depois deu sua capa ao guarda, a modo de pagamento. Seu colete tinha renda de ouro, e o deu a Sir Richard Pecksal, o xerife maior. Tirou o boné de veludo da cabeça, e o lançou longe. Depois, elevando sua mente ao Senhor, se dedicou à oração.

Quando foi acorrentado ao poste, o doutor Seaton lhe rogou que se desdissesse, e que teria o perdão; mas quando viu que nada o comovia, disse as pessoas que não orassem por ele a não ser que quisesse voltar atrás, assim como também não orariam por um cão.

Estando o senhor Bendridge de pé junto à estaca e com as mãos junta da forma em que os sacerdotes as sustêm durante o Memento, voltou a dirigir-se a lê, exortando-o para desdizer-se, e este respondeu: "Fora, fora, Babilônia!" Um que estava perto disse: "Senhor, cortai sua língua!" Outro, um secular, o amaldiçoou pior do que o havia feito o doutor Seaton.

Quando viram que não estava disposto a ceder, mandaram os atormentadores que acendessem a pira, antes que ficasse coberta por completo com feixes de lenha. O fogo prendeu primeiro num pedaço de sua barba, ante o qual não se alterou. Depois passou ao outro lado, e pegou suas pernas e, sendo de couro as meias interiores, fizeram com que sentisse o fogo tanto mais intensamente, com o que a intolerável dor lhe fez exclamar: "Me desdigo!", e empurrou repentinamente o fogo fora dele. Dois ou três amigos dele, que estavam perto, queriam salvá-lo; se lançaram no fogo para ajudar a apagá-lo, e por esta bondade foram encarcerados. O xerife, também, com sua autoridade o tirou da estaca e mandou levá-lo ao cárcere, pelo que foi enviado ao fleet e ali permaneceu um tempo. Contudo, antes de ser tirado da estaca, o doutor Seaton escreveu uns artigos para que os assinasse. Mas o senhor Bendridge fez tais objeções que o doutor Seaton ordenou que voltassem a pôr fogo na pira. Então, com muita dor e tristeza de coração, assinou os mesmos sobre as costas de um homem.

Feito isto, lhe devolveram sua capa, e foi enviado de volta à prisão. Enquanto estava ali, escreveu uma carta ao doutor Seaton, desdizendo-se daquelas palavras que havia dito na estaca e dos artigos que tinha assinado, porque estava apenado de tê-los assinado jamais. Que o Senhor lhe dê arrependimento a seus inimigos!

 

A senhora Prest

Pela quantidade de pessoas condenadas neste fanático reinado, é quase impossível obter o nome de cada mártir, nem detalhar a história de cada um dele com anedotas e exemplos de sua conduta cristã. Graças sejam dadas à Providência, nossa cruel tarefa começa a chegar a seu fim, com a finalização deste reinado de terror papal e de derramamento de sangue. Os monarcas que sentam em tronos possuídos por direito hereditário deveriam, mais que ninguém, considerar que as leis da natureza são as leis de Deus, e que por isso a primeira lei da natureza é a preservação de seus súbditos. As táticas de perseguição, de tortura e de morte deviam deixá-las àqueles que alcançaram a soberania pelo fraude ou a espada; porém, onde exceto entre uns poucos loucos imperadores de Roma e os pontífices romanos, encontraremos a ninguém cuja memória esteja tão "maldita a uma fama eterna" como a da Rainha Maria? As nações choram a hora que as separa para sempre de um governante amado, porém, no que diz respeito à Maria, foi a hora mais bendita de todo seu reinado. O céu tem ordenado três grandes açoites por pecados nacionais: a praga, a pestilência e a fome. Foi vontade de Deus no reinado de Maria lançar um quarto açoite sobre este reino, sob a forma de perseguições papistas. Foi um tempo angustioso, porém glorioso; o fogo que consumiu os mártires minou o papado; e os estados católicos, atualmente os mais fanáticos e cheios de trevas, são os que se encontram mais baixos na escala da dignidade moral e da relevância política. Que assim permaneçam, até que a pura luz do Evangelho dissipe as trevas do fanatismo e da superstição! Mas voltemos a nosso relato.

A senhora Prest viveu durante um tempo em Cornualles, onde tinha um marido e filhos, cujo fanatismo a obrigava a freqüentar as abominações da Igreja de Roma. Resolvendo agir conforme lhe ditava sua consciência, os abandoou e começou a ganhar-se a vida fiando. Depois de um tempo, voltando a sua casa, foi denunciada por seus vizinhos, e levada a Exeter, para ser interrogada ante o doutor Troubleville e por seu chanceler Blackston. Porquanto esta mártir era considerada de inteligência inferior, a colocaremos em competição com o bispo, para ver quem tinha um melhor conhecimento conducente à vida eterna. Ao levar o bispo o interrogatório a seu desfecho acerca do pão e do vinho, que ele afirmava eram carne e sangue, a senhora Prest disse: "Eu vos perguntarei se podeis negar vosso credo, que diz que Cristo está perpetuamente sentado à destra do Pai, em companheiro e alma, até Ele voltar; ou que Ele está no céu como nosso Advogado, para interceder por nós ante Deus seu Pai. Se for assim, Ele não está na terra num pedaço de pão. Se Ele não está aqui, e se não mora em templos feitos por mãos, senão no céu, quê? O buscaremos aqui? Se Ele não ofereceu Seu corpo de uma vez para sempre, por que fazes outra nova oferta? Se com uma oferta o fez tudo na perfeição, por que você outros com uma falsa oferenda tornais tudo imperfeito? Se Ele deve ser adorado em espírito e em verdade, por que vós adorais um pedaço de pão? Se Ele for comido e bebido em fé e em verdade; se Seu carne não é proveitoso para estar entre nós, por que dizeis que fazeis que Seu carne e sangue, dizendo que é proveitosa tanto para o corpo como para a alma? Ay! Eu sou uma pobre mulher, mas antes de fazer o que dizeis, prefiro não viver mais. Acabei, senhor".

Bispo: Devo dizer que é uma protestante a carta cabal. Posso perguntar em que escola te educaste?

Senhora Prest: Os domingos atendi os sermões, e neles aprendi as coisas que estão tão dentro de meu peito que a morte não as afastará de mim.

Bispo: Ah, mulher insensata! Quem desperdiçará o hálito contigo, e com as que são como tu? Mas, porque te afastas-te de teu marido. Se fosses uma mulher honrada, não terias deixado teu marido e teus filhos, para perambular assim pelo país como uma fugitiva.

Senhora Prest: Senhor, trabalhei para viver; e meu Senhor, Cristo, me aconselha que quando me persigam numa cidade, fuja a outra.

Bispo: Quem te perseguia?

Senhora Prest: Meu marido e meus filhos. Porque quando eu teria desejado que abandoassem a idolatria e adorassem o Deus do céu, não me quiseram ouvir, senão que ele e meus filhos me repreenderam e me angustiaram. Não fugi para fazer de prostituta, nem para roubar, senão porque não queria ter parte com ele e os seus do abominável ídolo da missa; e lá aonde eu ia, e tão freqüentemente como pude, em domingos e festividades, dava escusas para não ir à igreja papista.

Bispo: Pois boa mulher eras, fugindo de teu marido e de tua Igreja.

Senhora Prest: Quiçá não seja uma excelente ama de casa; porém Deus me deu a graça de ir à verdadeira Igreja.

Bispo: A verdadeira Igreja; que queres dizer com isso?

Senhora Prest: Não tua Igreja papista, cheia de ídolos e abominações, senão ali onde há dois ou três reunidos em nome de Deus, a esta Igreja irei eu enquanto viver.

Bispo: Parece que quisesses ter tua própria igreja. Bem, que esta mulher seja colocada em prisão até que chamemos a seu marido.

Senhora Prest: Não, eu só tenho um marido, que já está no cárcere e no cárcere comigo, e de quem nunca me separarei.

Algumas pessoas trataram de convencer o bispo de que ela não estava em seus cabales, e lhe permitiram ir-se. O guarda dos cárceres do bispo a acolheu em sua casa, onde ou bem fiava, trabalhando como criada, ou bem deambulava pelas ruas, falando acerca do sacramento do altar. Enviaram a buscar a seu marido para que a levasse a sua casa, mas ela recusou enquanto pudesse servir à causa da religião. Era demasiado ativa para estar mão sobre mão, e sua conversação, que eles achavam simplória, atraiu a atenção de vários sacerdotes e frades católicos. A acossavam com perguntas, até que alguns enviados pelo bispo e outros pela própria vontade, a interpelaram. Ela lhes respondeu com ira, e isto os moveu a riso, ante sua seriedade.

"Não", disse ela, "tendes mais necessidade de chorar que de rir, e de sentir-vos triste de terdes nascido, para ser-vos capelães desta prostituta que é Babilônia. A desafio a ela e a todas suas falsidades; e afastai-vos de mim, que somente fazes para turbar minha consciência. Quereríeis que seguisse vossas ações; antes perderei a vida. Rogo-vos que partais".

"Por que, insensata?", disseram eles. "Viemos para teu proveito e para a saúde de tua alma".

Ela respondeu: "Que proveito dás vós outros, que não ensinais ns além de mentiras por verdades? Como salvais vossas almas, quando não ensinais nada senão mentiras e destruís almas?"

"Como demonstras tu isto?", disseram eles.

"Acaso não destruís vós outros as almas quando ensinas as pessoas a darem culto a ídolos, paus e pedras, as obras das mãos dos homens? E a adorar um deus falso de vossa feitura, feito de um pedaço de pão, ensinando e o Papa é vigário de Cristo, e que tem poder para perdoar pecados? E que há um purgatório, quando o Filho de Deus o purificou tudo mediante Seu sacrifício de uma vez e para sempre? Não ensinais à gente a contar seus pecados em vossos ouvidos, e dizeis que se condenarão se não os confessam todos, quando a Palavra de Deus diz: Quem pode contar vossos pecados? Não lhes prometeis trintenas, e réquiens, e missas por suas almas, e vendeis vossas orações por dinheiro, e fazeis com que comprem perdões, e confiais nestes insensatos inventos de vossas imaginações? Não agis totalmente contra Deus? não nos ensinais a orar com rosários, e a orar a santos, e a dizer que eles podem orar por nós? Não fazeis água benta e pão bento para afugentar os demônios? E não fazeis milhares mais de abominações? E ainda dizeis que vindes em proveito meu, para salvar minha alma. Não, não, há um que me salvou. Adeus, vós outros e vossa salvação".

Durante a liberdade que lhe havia concedido o já mencionado bispo, foi à Igreja de são Pedro, e ali viu um perito holandês que estava fazendo narizes novos a certas belas imagens que tinham sido desfiguradas durante o reinado do rei Eduardo. Então lhe disse: "Que louco estas, para fazer narizes novos, quando dentro de poucos dias todas perderão a cabeça!". O holandês a amaldiçoou, e a maltratou duramente com palavras. E ela replicou: "Tu és maldito, e assim também tuas imagens". Ele a chamou de prostituta. "Não", disse ela, "senão que tuas imagens são prostitutas, e tu estás na luxuria; porque não diz Deus "vós outros vos prostituis após deuses estranhos, figuras de vossas próprias mãos"?, e tu és um deles". Depois disto se deu ordem que fosse encerrada, e não pôde mais gozar de liberdade.

Durante o tempo de seu encarceramento, muitos a visitaram, alguns enviados pelo bispo, e outros por sua própria vontade. Entre estes estava um tal Daniel, um grande predicador do Evangelho, que andara, nos tempos do rei Eduardo, pelos lugares de Cornualles e Devonshire, mas que, pela dura perseguição sofrida, tinha recaído. Ela o exortou com urgência a arrepender-se como Pedro, e que ficar mais firme em sua confissão de fé.

A senhora Walter Rauley e os senhores William e John Kede, pessoas muito respeitáveis, deram abundante testemunho de sua piedosa conversação, dizendo que a não ser que Deus tivesse estado com ela, seria impossível que pudesse defender com tanta capacidade a causa de Cristo. A verdade é que, para recapitular o caráter desta mulher, unia a serpente com a pomba, abundando na mais elevada sabedoria com a maior simplicidade. Suportou encarceramentos, ameaças, escárnios, e os mais vis insultos, mas nada pôde induzi-la a desviar-se; seu coração estava fixo; tinha lançado sua âncora, e não podiam todas as feridas da perseguição tirá-la da rocha na que estavam erigidas toas suas esperanças de felicidade.

Tal era sua memória que, sem ter feito estudos, podia dizer em que capítulo estava qualquer texto da Escritura; devido a esta singular capacidade, um tal Gregório Basset, extremo papista, disse que estava louca, e que falava como um papagaio, sem sentido algum. No final, após ter provado sem exterior todos os meios para fazê-la nominalmente católica, a condenaram. Depois disso, algum a exortou a abandonar suas opiniões e voltar a sua casa, a sua família, porquanto era pobre e analfabeta. "Verdade é (disse ela), e embora não tenho cultura estou feliz de setembro testemunha da morte de Cristo, e espero que não vos retardeis já mais comigo, porque meu coração está afixado, e nunca direi algo distinto, nem me voltarei a vossos caminhos de superstição".

Para opróbrio do senhor Blackston, tesoureiro da Igreja, este homem costumava mandar buscar do cárcere com freqüência a esta coitada mártir, para divertir-se com ela tanto ele como uma mulher a qual mantinha; lhe fazia perguntas religiosas, e ridicularizava suas respostas. Feito isto, a voltava a mandar a sua mísera masmorra, enquanto ele se recriava a as coisas boas deste mundo.

Talvez havia algo simplesmente ridículo na forma da senhora Prest, porque era baixa, grossa e de uns cinqüenta e quatro anos de idade; mas seu rosto era alegre e vivaz, como se preparada para o dia de seu matrimônio com o Cordeiro. Zombar de sua forma era uma acusação indireta contra seu Criador, que lhe deu a forma que Ele considerou mais idônea, e que lhe deu uma mente muito transcendente às dotes fugazes da carne que perece. Quando lhe ofereceram dinheiro, o rejeitou, dizendo: vou para uma cidade onde o dinheiro não tem poder, e enquanto estiver aqui, Deus tem prometido alimentar-me".

Quando se leu a sentença condenando-a às chamas, ela levantou sua voz e louvou a Deus, agregando: "Este dia tenho achado aquilo que por tanto tempo procurei". Quando a tentaram para que abjurasse, disse: "Não o farei; Deus não queira que eu perca a vida eterna por esta vida carnal e breve. Nunca me afastarei de meu espoco celestial para meu esposo terreno; da comunhão dos anjos para a dos filhos mortais; e se meu marido e filhos são fiéis, então eu o sou deles. Deus é meu pai, Deus é minha mãe, Deus é minha irmã, meu irmão, meu parente; Deus é meu amigo, o mais fiel".

Entregue ao xerife maior, foi levada pelo oficial ao lugar da execução, fora das muralhas de Exeter, chamado Sothenhey, onde de novo os supersticiosos sacerdotes a assaltaram. Enquanto estavam amarrando-a à estaca, ela exclamava de contínuo: "Deus, PT piedade de mim, pecadora!". Suportando pacientemente o fogo devorador, ficou reduzida a cinzas, e assim acabou uma vida que não foi superada em quanto a uma imutável fidelidade à causa de Cristo por nenhum mártir precedente.

 

Richard Sharpe, Tomás Banion e Tomás Hale 

O senhor Sharpe, tecelão, foi levado o 9 de março de 1556 diante do doutor Dalby, chanceler da cidade de Briston, e depois de um interrogatório referente ao Sacramento do altar, foi persuadido para que se desdissesse; e no 29 se ordenou que pronunciasse sua retratação na igreja paroquial. Mas apenas se havia começado a abjurar em público que começou a sentir em sua consciência tal tormento que não se sentiu capaz de trabalhar em sua profissão; por isso, pouco tempo depois, um domingo, entrou na igreja paroquial, chamada Temple, e depois da missa maior se colocou na porta do coro, e disse em alta voz: "Vizinhos, sede testemunhas de que este ídolo aqui (indicando o altar) é o maior e mais abominável que tenha jamais existido; e sinto ter jamais negado a meu Senhor e Deus!". apesar de que a policia recebeu ordem de detê-lo, lhe foi permitido sair da Igreja; mas pela noite foi apreendido e levado a Newgate. Pouco depois, negando frente ao chanceler que o Sacramento do altar fosse o corpo e o sangue de Cristo, foi condenado pelo senhor Darby a ser queimado. E queimado foi o 7 de maio de 1558, morrendo piedosa e pacientemente, firme em sua confissão dos artigos de fé protestante.

Com ele sofreu Tomás Hale, um sapateiro de Bristol, que foi condenado pelo chanceler Darby. Estes mártires foram amarrados de costas. Tomás Banion, tecelão, foi queimado o 27 de agosto daquele mesmo ano, morrendo pela causa evangélica de seu Salvador.

 

J. Corneford, de Wortham; C. Browne, de Maidstone; J. Herst, de Ashford; Alice Snoth y Catherine Knight, uma anciã mulher

É com prazer que observamos que estes cinco mártires foram os últimos em padecer no reinado de Maria pela causa protestante; porém a malícia dos papistas se manifestou no apressamento do martírio dos mesmos, que poderia ter sido retardado até ter o desfecho da enfermidade da rainha. Se informa que o arcebispo de Canterbury, pensando que a repentina morte da rna suspenderia a execução, viajou pela costa desde Londres, para ter a satisfação de agregar mais uma página à lista negra dos sacrifícios papistas.

As acusações contra eles eram, como geralmente, os elementos sacramentais e a idolatria de inclinar-se ante imagens. Eles citavam as palavras de são João: "Guardai-vos dos ídolos", e a respeito da presença real, apuravam segundo são Paulo, que "as coisas que se veementemente são temporárias". Quando estava para ler-se a sentença contra eles, e ter lugar a excomunhão na forma regular, John Corneford, iluminado pelo Espírito Santo, voltou terrivelmente este procedimento contra eles, e de uma forma solene e impressionante, recriminou sua excomunhão com as seguintes palavras: "Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho do Deus Onipotente, e pelo poder de seu Espírito Santo, e a autoridade de sua Santa Igreja Católica e Apostólica, entregamos aqui em mãos de Satanás para sua destruição, os corpos de todos estes blasfemos e hereges que mantenham erro sangue contra sua santíssima Palavra, ou que condenem sua santíssima verdade como heresia, para manter qualquer falsa ou estranha religião, para que por este teu santo juízo, oh poderosíssimo Deus, contra teus adversários, tua verdadeira religião possa ser conhecida para tua grande glória e nossa consolação e a edificação de toda nossa nação. Bom Senhor, que assim seja. Amém".

Esta sentença foi pronunciada em público e registrada, e, como se a Providência tiver decretado que não fosse dada em vão, após seis dias morreu a rainha Maria, detestada por todos os homens bons, e amaldiçoada por Deus.

Embora familiarizado com estas circunstâncias, a implacabilidade do arcebispo excedeu à de seu grande exemplo, Bonner, quem, ainda que tinha a várias pessoas naquele tempo em seu poder, não pressionou para que fossem mortas com apressamento, dando-lhes com este retardo a oportunidade de escapar. Ao morrer a rainha, muitos estavam encarcerados; outros tinham sido acabados de arrestar; alguns, interrogados, e outros, já condenados. O certo é que havia ordens emitidas para várias queimas, mas pela morte dos três instigadores dos assassinatos de protestantes —o chanceler, o bispo e a rainha—, que morreram quase ao mesmo tempo, as ovelhas condenadas foram liberadas e viveram muitos anos para louvar o Senhor por sua feliz liberação.

Estes cinco mártires, na estaca, oraram fervorosamente que seu sangue fosse o último derramado, e não foi vã sua oração. Morreram gloriosamente, e consumaram o número que Deus tinha selecionado para dar testemunho da verdade naquele terrível reinado, e seus nomes estão escritos no Livro da Vida. Embora foram os últimos, não estiveram entre os menores dos santos feitos aptos para a imortalidade por meio do sangue redentor do Cordeiro.

Catharine Finlay, apelidada Knight, foi convertido por seu filho, quem lhe expus as Escrituras, o que obrou nela uma grande obra que se consumou com seu martírio. Alice Snoth, na estaca, enviou buscar a sua avó e a seu padrinho, e lhes proclamou os artigos de sua fé e os mandamentos de Deus, convencendo assim ao mundo de que conhecia seu dever. Morreu clamando aos espectadores que fossem testemunhas de que era cristã, e padeceu gozosa pelo testemunho do Evangelho de Cristo.

 

William Fetty, acoitado até morrer

Entre as inúmeras atrocidades cometidas pelo desalmado e insensível Bonner, se pode colocar o assassinato deste inocente menino como o mais horrendo. Seu pai, John Fetty, da paróquia de Clerkenwell, alfaiate de profissão, tinha somente 24 anos, e havia feito uma bem-aventurada eleição; tinha-se afixado de maneira segura numa esperança eterna, e se confiou nAquele que edifica de tal modo sua Igreja que as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Mas, ay!, a própria esposa de seu seio, cujo coração tinha-se endurecido contra a verdade, e cuja mente estava influenciada pelos mestres da falsa doutrina, se tornou sua acusadora. Brokenbery, papista e pároco daquela paróquia, recebeu a informação destra traidora Dalila, e como resultado disso o pobre homem foi apresado. Mas então caiu o terrível juízo de um Deus sempre justo, que é "muito limpo de alhos... para ver o mal" caiu sobre esta endurecida e pérfida mulher, porque tão logo foi arrestado seu traído marido pela sua malvada ação, que repentinamente caiu num ataque de demência, exibindo um exemplo terrível e despertador do poder de Deus para castigar os malvados. Esta terrível circunstância teve algum efeito sobre os corações dos ímpios caçadores que haviam buscado anelantes sua presa; num momento de alívio lhe permitiram ficar com sua indigna mulher, devolve-lhe bem por mal, e sustentar a dois filhos que, se ele tiver sido enviado no cárcere, teriam ficado sem protetor, ou teriam chegado a ser uma carga para a paróquia. Como os maus homens agem por motivos mesquinhos, podemos atribuir a indulgência mostrada a esta última razão.

Vimos na primeira parte de nossa narração acerca dos mártires a algumas mulheres cujo afeto para com seus maridos as levou inclusive a sacrificar suas próprias vidas para preservar as deles; porém aqui, em conformidade com a linguajem das Escrituras, uma mãe resulta ser em verdade um monstro da natureza. Nem o afeto conjugal nem o materno podia exercer efeito algum no coração desta indigna mulher.

Embora nosso aflito cristão tinha experimentado tal crueldade e falsidade de parte daquele mulher que lhe estava sujeita por todos os vínculos humanos e divinos, contudo, com um espírito manso e paciente lhe suportou suas más ações, tratando durante sua calamidade de aliviar sua doença, e acalmando-a com todas as possíveis expressões de ternura. Assim, em poucas semanas ficou quase restaurada a seu são juízo. Mas, ay!, voltou de novo a seu pecado, "como um cão volta a seu vômito". A malignidade contra os santos do Altíssimo estava arraigada em seu coração demasiado fortemente para poder ser eliminada; e ao voltarem suas forças, também com elas voltou sua inclinação a cometer maldade. Seu coração estava endurecido pelo príncipe das trevas, e a ela se podem aplicar as palavras tão entristecedoras e desalentadoras: "Porventura pode o etíope mudar a sua pele, ou o leopardo as suas manchas? Então podereis vós fazer o bem, sendo ensinados a fazer o mal. Ponderando este texto de maneira devida com outro: "terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia", como pretenderemos desvirtuar a soberania de Deus chamando a Jeová ante o tribunal da razão humana, que, em questões religiosas, está demasiado amiúde oposto pela sabedoria infinita? "Larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela; e porque estreita é a porta, e apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem". Os caminhos do céu são infinitamente inescrutáveis, e é nosso dever inescusável caminhar sempre em dependência de Deus, olhando-o em humilde confiança, esperando em Sua bondade, e confessando sempre Sua justiça; e ali onde "não possamos compreender, ali aprendamos a confiar". Esta desgraçada mulher, seguindo os horrendos ditados de um coração endurecido e depravado, apenas se ficou confirmada em sua recuperação que, afogando os ditados da honra, da gratidão e de todo afeto natural, de novo voltou a denunciar a seu marido, que uma vez mais foi apresado, e ante Sir John Mordant, cavalheiro e um dos comissionados da Rainha Maria.

Após seu interrogatório, encontrando-o seu juiz firme em suas opiniões, que militavam contra as abrigadas pela superstição e sustentadas pela crueldade, o sentenciou ao encerro e tortura da Torre dos Lolardos. Ali o colocaram num doloroso cepo, e junto dele colocaram um prato de água com uma pedra dentro, só Deus sabendo com que propósito, a não ser que fosse para mostrar que não devia esperar outro alimento, coisa bem acreditável se considerarmos suas práticas semelhantes contra outros antes mencionados nesta narração; como, entre eles, contra Richard Smith, que morreu em seu cruel encarceramento; entre outros detalhes de crueldade se dá que quando uma mulher piedosa foi a pedir ao doutor Story permissão para enterrá-lo, este lhe perguntou à mulher se havia alguma palha ou sangue no cadáver de Smith; mas deixou a juízo dos sábios que foi o que quis dizer com isto.

O primeiro dia da terceira semana dos sofrimentos de nosso mártir, se lhe apresentou algo ante sua vista que lhe fez certamente sentir seus tormentos com toda sua intensidade, e execrar com amargura, detendo-se justo para não amaldiçoar a autora de sua desgraça. Observar e castigar os procedimentos de seus atormentadores fica para o Altíssimo, que vê a queda do passarinho, e em cuja santa Palavra está escrito: "Minha é a vingança, eu retribuirei. O que viu foi seu próprio filho, um menino da tenra idade de oito anos. durante quinze dias seu impotente pai tinha permanecido suspendido por seu atormentador pelo braço direito e a perna esquerda, e às vezes por ambos membros, mudando-lhe de posição com o propósito de dar-lhe forças para suportar e alongar seus sofrimentos. Quando o inocente menino, desejoso de ver seu pai e de falar com ele, pediu ver a Bonner para pedir-lhe permissão, ao perguntá-lhe o capelão do bispo qual era o propósito de sua visita, disse que desejava ver seu pai. "Quem é teu pai?" perguntou o capelão. "John Fetty", respondeu o menino, indicando ao mesmo tempo o lugar onde estava encerrado. "Mas teu pai é um herege!". Este pequeno, com grande coragem respondeu, com uma energia suficiente ok despertar admiração em qualquer peito, exceto naquele deste miserável insensível e carente de princípios, e tão bem disposto a executar os caprichos de uma rainha sem consciência: "Meu pai não é um herege; tu tens a marca de Balaão".

Irritado pela recriminação tão corretamente aplicada, o indigno e mortificado sacerdote ocultou seu ressentimento por um momento, e levou o atrevido moleque à casa, onde, segurando-o, o entregou a outros que, tão baixos e cruéis como ele, o despiram e o acoitaram com seus chicotes com tanta violência que, desmaiando ele sob os açoites infligidos a seu terno corpinho, e coberto do sangue que manava de suas feridas, estava a ponto de expirar vítima deste duro e imerecido castigo.

Neste estado, sangrando e desmaiado, foi levado diante de seu pai este sofredor menino, coberto só com uma comprida camisa, por um dos atores da horrenda tragédia, o qual, enquanto exibia aquele espetáculo que partia o coração, empregava os mais vis escárnios, e se gozava no que tinha feito. O leal pequeno, como recuperando força ante a visão de seu pai, lhe implorou de joelhos a bênção. "Ah, Will", lhe disse o o afligido pai, tremendo de horror, "Quem te fez isto?!". O inocente menino lhe contou as circunstâncias que o conduziram ao implacável corretivo que tinha-lhe sido aplicado com tanta baixeza; mas quando repetiu a repreensão que tinha dito ao capelão, e que tinha sido ocasionada por seu indômito espírito, foi arrancado de seu pai, que estava desfeito em choro, e levado de volta a sua casa, onde permaneceu trancado e estreitamente vigiado.

Bonner, sentindo um certo temor de que o que tinha feito pudesse não ser justificado nem entre os mais sanguinários mastins de sua voraz manada, concluiu em sua tenebrosa e malvada mente libertar a John Fetty, pelo menos durante um tempo, dos rigores que estava sofrendo na gloriosa causa da eterna verdade. sim, sua brilhante recompensa está fixada além dos limites do tempo, dentro dos confins da eternidade, ali onde a seta do malvado não pode ferir, ali "onde não haverá mais dores pol os bem-aventurados, que, na mansão de glória eterna, ao Cordeiro sempre glorificarão". Por isso, foi liberado por ordem de Bonner (que desgraça para toda dignidade, chamá-lo de bispo!) de suas dolorosas correntes, e levado da Torre dos Lolardos à estância daquele ímpio e infame carniceiro, onde encontrou o bispo esquentando-se diante de um grande fogo. Ao entrar na estância, Fetty disse: "Deus seja aqui e paz!". "'Deus seja aqui e paz' (repetiu Bonner), isto não é nem 'Deus vos guarde', nem 'bom dia'!". "Se dais coices contra esta paz (disse Fetty), não é este o lugar que procuro".

Um capelão do bispo, que estava junto dele, deu uma virada ao coitado, e pensando escarnecê-lo, disse com tom burlão: "Que temos aqui: um bufão!". Estando assim Fetty na estância do bispo observou, pendurado perto da cama do bispo, um par de grandes rosários de miçangas pretas, pelo que disse: "Senhor, creio que o carrasco não está muito longe, porque a corda (disse, apontando os rosários) já está aqui". Ao ouvir estas palavras, o bispo se enfureceu de forma inexpressável. De imediato observou também, de pé na estância do bispo, um pequeno crucifixo. Perguntou ao bispo que era, e ele lhe respondeu que era Cristo. "E foi maltratado tão cruelmente como aparece aqui", perguntou Fetty. "Sim, assim foi", disse-lhe o bispo. "E assim de cruelmente vós tratareis os que caírem em vossas mãos, porque vós sois para o povo de Deus como Caifás foi para Cristo!" O bispo, encolerizando-se, lhe disse: "Tu és um vil herege e te queimarei, ou perderei tudo quanto tenho, até minha veste sacerdotal!". "Não, senhor, (disse Fetty), melhor faríeis em dá-la a algum pobre, para que ore por vós". Bonner, apesar da ira que sentia, que foi tanto mais intensificada pela calma e as agudas observações deste sagaz cristão, considerou mais prudente despedir o pai, por causa do menino quase assassinado. Sua covarde alma tremia pelas conseqüências que pudessem desprender-se dessa ação; o médio é inseparável das mentes mesquinhas, e este sacerdote roliço e covarde experimentou os efeitos deste meio até tal ponto que o induziu a assumir a aparência daquilo ao que era totalmente alheio: a MISERICÓRDIA.

O pai, despedido pelo tirano Bonner, foi a sua casa com o coração oprimido, com seu filho moribundo, que não sobreviveu muitos dias aos cruéis maus-tratos recebidos.

Quão contrária à vontade do grande Rei e Profeta, que ensinou com mansidão a seus seguidores, era a conduta deste mestre falso e sanguinário, deste vil apóstata de seu Deus a Satanás! Mas o diabo tinha-se apoderado de seu coração, e conduzia cada ação daquele pecador a quem havia endurecido; este, entregado a uma terrível destruição, corria a carreira dos malvados, marcando seus passos com o sangue dos santos, como se anelasse alcançar a meta da morte eterna.

 

A liberação do doutor Sands

Este eminente prelado, vice-chanceler de Cambridge, aceitou predicar, com mui poucas horas de aviso, diante do duque e da universidade, a petição do duque de Northumberland, quando este veio a Cambridge em apoio da pretensão de lady Jane Gray. O texto que tomou foi o que se lhe apresentou ao abrir a Bíblia, e não poderia ter escolhido um mais apropriado: os três últimos versículos de Josué. Assim como Deus lhe deu o texto, assim também lhe deu tal ordem e poder de palavra que suscitou as mais vivas emoções em seus ouvintes. O sermão estava a ponto de ser enviado a Londres para ser impresso, quando chegaram notícias de que o duque tinha voltado e que tinha sido proclamada a Rainha Maria.

O duque foi imediatamente arrestado, e o doutor Sands foi obrigado pela universidade a demitir-se de seu cargo. Foi arrestado por ordem da rainha, e quando o senhor Mildmay se perguntou como um homem tão erudito se atrevia a colocar-se voluntariamente em perigo e falar contra uma princesa tão boa como Maria, o doutor respondeu: "Se eu for fazer como fez o senhor Mildmay, não deveria temer nenhum cárcere. Ele veio armado contra a Rainha Maria; antes, um traidor, agora, um grande amigo dela. Não posso eu com a mesma boca assoprar frio e quente deste jeito". Seguiu um saqueio geral das propriedades do doutor Sand, e foi levado logo a Londres montado num pangaré. Teve de suportar muitos insultos pelo caminho, provenientes de católicos fanáticos, e ao passar pela rua de Bishopsgate, caiu no chão por uma pedrada que lhe lançaram. Foi o primeiro prisioneiro a entrar na Torre, naqueles tempos, por motivos religiosos. Lhe permitiram entrar com sua Bíblia, mas lhe tiraram suas camisas e outros artigos.

O dia da coroação de Maria, as portas do cárcere estavam tão mal guardadas que era fácil escapar. Um verdadeiro amigo, o senhor Mitchell, foi vê-lo, lhe deu seus próprios vestidos como disfarce, e se mostrou disposto a permanecer em seu lugar. Este era um exemplo extraordinário de amizade; mas ele recusou a oferta, dizendo-lhe: "Não tenho conhecimento de nenhuma causa pela que deva estar em prisão. Fazer isto me faria duplamente culpado. Esperarei o beneplácito de Deus, mas me considero um grande devedor vosso"; assim se foi o senhor Mitchell.

Com o doutor Sands estava encarcerado o senhor Bradford; foram custodiados no cárcere, estreitamente, durante dezenove semanas. O guardião, John Fowler, era um perverso papista e, contudo, tanto o persuadiram, que no final começou a favorecer o Evangelho, e ficou tão persuadido da verdadeira religião que um domingo, quando celebravam a missa na capela, o doutor Sands ministrou a Comunhão a Bradford e a Fowler. Assim, Fowler deveio filho deles, gerado em prisões. Para fazer lugar a Wyat e seus cúmplices, o doutor Sands e outros nove predicadores foram enviados a Marshalsea.

O guarda de Marshalsea designou um homem para cada predicador, para que o conduzisse pela rua; os fez andar na frente, e ele e o doutor Sands seguiram, conversando juntamente. Para esta época, o papismo começava a ser impopular. Depois de ter passado a ponte, o guarda disse ao doutor Sands: "Vejo que pessoas vãs quiseram lançar-vos ao fogo. Vós sois tão vão como eles se, sendo jovem, vos mantendes em vossa própria arrogância, e preferis vossa opinião à de tantos dignos prelados, ancião, eruditos e sérios homens como há neste reino. Se é assim, vereis que sou um guarda severo, e que meu conhecimento é pequeno; me basta com conhecer a Cristo crucificado, e nada tem aprendido quem não vê a blasfêmia que há no papismo. A Deus me renderei, e não aos homens; nas Escrituras tenho lido acerca de muitos guardas piedosos e corteses: que Deus me faça um deles! E se não, espero que Ele me dê força e paciência para suportar vossos maus-tratos". Depois agregou: "Estais resolvido a manter-vos em vossa religião?". "Sim", disse o doutor, "pela graça de Deus!". "A verdade", disse o guarda, "gosto de você tanto mais por isto; somente vos provava, contai com todo favor de que possa fazer-vos objeto; e me considerarei feliz se posso morrer na estaca convosco".

E cumpriu com sua palavra, porque confiou no doutor, deixando-o passear sozinho pelos campos, onde se encontrou com o senhor Bradford, que também estava preso a disposição do tribunal real, e que tinha conseguido o mesmo favor de seu guarda. Por sua petição, pus o senhor junto com ele, para ser seu companheiro de cela, e a Comunhão foi ministrada a um grande número de comungantes.

Quando Wyat chegou com seu exército a Southwark, ofereceu libertar todos os protestantes encarcerados, mas o doutor Sands e o resto dos predicadores recusaram aceitar a liberdade sob essas condições.

Depois que o doutor Sands permanecera preso nove meses no cárcere de Marshalsea, foi colocado em liberdade por mediação de Sir Tomás Holcroft, cavalheiro marechal. Embora o senhor Holcroft tinha a ordem da rainha, o bispo tinha-lhe ordenado que não deixasse em liberdade o doutor Sands até ter recebido fiança de dois cavalheiros com ele, obrigando-se cada um deles por 500 libras esterlinas, de que o doutor Sands não se ausentaria do reino sem permissão para isso. O senhor Holcroft se viu de imediato com dois cavalheiros do norte, amigos e primos do doutor Sands, que ofereceram-se a pagar a fiança.

Depois de comer, aquele mesmo dia, Sir Tomás Holcroft mandou que trouxessem o doutor Sands a sua casa de Westminster, para dizê-lhe tudo o que tinha feito, o doutor Sands lhe respondeu: "Dou graças a Deus, que tem movido vosso coração para ter-me tal consideração, pelo que me considero obrigado convosco. Deus vo-lo pagará, e eu mesmo não vos serei ingrato. Mas como me tendes tratado amistosamente, eu também vou ser-vos franco. Vim livremente ao cárcere; não sairei ligado. como não posso ser de benefício algum para meus amigos, tampouco lhes serei para dano. E se sou colocado em liberdade, não permanecerei seis dias neste reino, se posso ir embora. Portanto, se não posso sair livre, enviai-me de novo a Marshalsea, e ali ficareis seguro de mim".

Esta resposta desgostou muito ao senhor Holcroft; mas lhe respondeu como um verdadeiro amigo: "Sendo que não podeis ser mudado de posição, eu mudarei meu propósito, e cederei ante vós. Aconteça o que acontecer, vou deixar-vos em liberdade, e vendo como tendes desejo de atravessar o mar, ide tão rápido como possais. Um coisa vos peço, que enquanto estiverdes lá, não me escrevais nada, pois isso poderia ser minha destruição".

O doutor Sands, despedindo-se afetuosamente dele e de seus outros amigos encarcerados, foi embora. Foi pela casa de Winchester, e dali tomou uma barca e se dirigiu à casa de um amigo em Londres, chamado William Banks, ficando ali por uma noite. Na noite seguinte foi à casa de outro amigo, e ali soube que estava sendo intensamente procurado, por ordem expressa de Gardiner.

O doutor Sands se dirigiu então, de noite, à casa de um homem chamado Berty, um estranho que esteve com ele no cárcere de Marshalsea por um tempo. Era um bom protestante, e vivia em Maik-lane. Ale permaneceu seis dias, e depois foi à casa de um de seus conhecidos em Com-hill. Fez que este conhecido, Quinton, lhe subministrasse dois cavalos, tendo decidido ir-se, nessa manhã, a Essex, a casa de seu sogro, o senhor Sands, onde estava sua mulher, o que executou após ter escapado com dificuldade de ser apresado. Não tinha permanecido ali duas horas antes de ser avisado que dois guardas o arrestariam naquela mesma noite.

Aquela noite o durante Sands foi levado à granja de um honrado camponês, perto do mar, onde permaneceu dois dias e duas noites numa estância, sem companhia alguma. Depois de ter passado pela casa de um tal James Mower, patrão de barco que morava em Milton-Shore, esperou um vento favorável para ir a Flandes. Enquanto estava ali, James Mower lhe trouxe quarenta ou cinqüenta marinheiros, aos que lhes deu uma exortação; tomaram-lhe tanto aprecio, que prometeram morrer antes de permitir que fosse apreendido.

O 6 de maio, domingo, o vento foi favorável. Ao despedir-se de sua hospedeira, que tinha estado casado oito anos sem ter nenhuma criança, lhe deu um bonito lenço e um velho real de ouro, e lhe disse: "Consola-te; antes de ter passado um ano inteiro, Deus te dará um filho, um menino". E isto se cumpriu, porque doze meses menos um diz depois, Deus lhe deu um filho.

Apenas se tinha chegado a Amberes que soube que o rei Felipe tinha dado ordem de ser apreendido. Fugiu então a Augsburgo, em Cleveland, onde o doutor Sands permaneceu quatorze dias, viajando a continuação a Estrasburgo, onde, após ter vivido ali um ano, sua mulher chegou para estar com ele. Esteve doente de um fluxo durante nove meses, e teve um filho que morreu de peste. Sua amante esposa finalmente caiu doente de uma febre, e morreu em seus braços. Quando sua mulher esteve morta, foi a Zurique, e esteve em casa de Peter Martyr por espaço de cinco semanas.

Sentados um dia comendo, lhes levaram de repente a notícia de que a rainha Maria tinha morrido, e o doutor Sands foi chamado por seus amigos em Estrasburgo, onde predicou. O senhor Grindal e ele se dirigiram a Inglaterra, e chegaram a Londres o mesmo dia da coroação da rainha Elizabete. Este fiel servo de Cristo ascendeu, sob a rainha Elizabete, à mais elevada distinção da Igreja, sendo sucessivamente bispo de Worcester, bispo de Londres e arcebispo de York.

 

O tratamento dispensado pela Rainha Maria a sua irmã, a princesa Elizabete

A preservação da princesa Elizabete pode ser considerada como um exemplo notável do vigilante olhar de Cristo sobre sua Igreja. O fanatismo de Maria não tinha consideração para com os laços de consangüinidade, dos afetos naturais nem da sucessão nacional. Sua mente, fisicamente lenta, estava sob o domínio de homens que não possuíam bondade humana, e cujos princípios estavam sancionados e mandados pelos dogmas idolátricos do romano pontífice. Se tivessem podido prever a curta duração do reinado de Maria, teriam tingido suas mãos com o sangue protestante de Elizabete, e, como sine qua non da salvação da rainha, a teriam obrigado a ceder o reino a algum príncipe católico. A resistência ante tal coisa teria sido acompanhada de todos horrores de uma guerra civil religiosa, e sem teriam sentido na Inglaterra calamidades similares às da França sob Henrique o Grande, a quem a rainha Elizabete ajudou em sua oposição a seus súbditos católicos dominados pelos sacerdotes. Como se a Providência tivesse em vista o estabelecimento perpétuo da fé protestante, deve observar-se a diferença da duração dos dois reinados. Maria poderia ter reinado muitos anos no curso da natureza, porém o curso da graça o dispus de forma distinta. Cinco anos e quatro meses foi o tempo dado a este débil e desgraçado reinado, enquanto que o reinado de Elizabete está entre os mais duradouros de todos que jamais tenha visto o trono inglês: quase nove vezes o de sua desalmada irmã.

Antes que Maria chegasse à coroa, tratou a Elizabete com bondade fraternal, porém desde aquele momento se alterou sua conduta, e se estabeleceu a distância mais imperiosa. Ainda que Elizabete não teve parte alguma da rebelião de Sir Tomás Wyat, foi contudo apreendido e tratada como culpável daquele rebelião. A forma em que teve lugar seu arresto foi semelhante à mente que a havia ditado; os três ministros do gabinete aos que ela designou para que tivessem cuidado do arresto entraram sem nenhuma cortesia em seu dormitório às dez da noite e, ainda estivesse sumamente doente, a duras penas pôde convencê-los para que a deixassem repousar até a manhã seguinte. Seu debilitado estado lhe permitiu ser levada somente em curtas etapas em sua longa viagem a Londres, mas a princesa, ainda que afligida em sua pessoa, teve o consolo que sua irmã jamais poderia comprar: as pessoas pelas quais passava no caminho se compadeciam dela, e oravam por sua preservação.

Ao chegar à corte, foi constituída presa durante duas semanas, estreitamente vigiada, sem saber quem era seu acusador, nem ver a ninguém que pudesse consolá-la ou aconselhá-la. Contudo, a acusação foi finalmente desvelada por Gardiner, que, com dezenove membros do Conselho, a acusou de instigar a conspiração de Wyat, o que ela afirmou religiosamente ser falso. Ao fracassar nisto, apresentaram contra ela seus tratos com Sir Peter Carew no oeste, no qual tampouco tiveram êxito. A rainha interveio agora manifestando que era sua vontade que fosse encerrada na Torre, passo este que abrumou a princesa com o maior temor e inquietude. Em vão abrigou a esperança de que sua majestade a rainha não a enviasse a tal lugar; mas não podia esperar indulgência alguma. O número de seus assistentes foi limitado, e se designaram cem soldados nortistas para guardá-la dia e noite.

O Domingo de Ramos foi levada z Torre. Quando chegou a jardim do palácio, olhou acima para as janelas, esperando ver os da rainha, mas se desenganou. Se deu estrita ordem de que todos fossem à igreja e levassem palmas, para que pudesse ser conduzida a sua prisão sem protestos nem mostras de compaixão.

Ao passar pela Ponte de Londres, a descida da maré fez muito perigosa a travessia, e a barcaça se travou durante um tempo com um espigão da ponte. Para mortificá-la ainda mais, a fizeram desembarcar na Escada dos Traidores. Como chovia intensamente, e se via obrigada a colocar os pés na água para chegar à ribeira, vacilou; mas isso não suscitou nenhuma cortesia no cavalheiro que a atendia. Quando pus seus pés nos degraus, exclamou: "Aqui, embora presa, desembarco como a mais leal súbdita que jamais chegou a estes degraus; e o digo perante Ti, oh, Deus, não tendo outro amigo senão Tu!"

Um grande número de guardas e servos da Torre foram dispostos em ordem, para que a princesa passasse entre eles. Ao perguntar para que era aquela parada, lhe informaram que era o costume. Ela disse: "Se eles estão aqui por mim, rogo-vos que sejam escusados". Ao ouvir isto, os pobres homens se ajoelharam e oraram a Deus que preservasse sua Graça, pelo qual foram expulsos de seus cargos no dia seguinte. Esta trágica cena deve ter sido profundamente interessante: ver uma princesa amável e irrepreensível enviada como um cordeiro, para enlanguescer na expectativa de cruéis tratamentos e morte, e contra a que não havia outros motivos que sua superioridade de virtudes cristãs e capacidades adquiridas. Seus acompanhantes choravam abertamente enquanto ela se dirigia com um andar digno rumo as trágicos merlões de seu destino. "Que quereis dizer-me com estas lágrimas", disse Elizabete; "Vos trouxe para consolar-me, não para desalentar-me; porque minha verdade é tal que ninguém terá motivos para chorar por mim".

O seguinte passo de seus inimigos foi procurar-se evidências por meios que em nossos dias se consideram execráveis. Muitos coitados prisioneiros foram submetidos ao potro do tormento para extrai-lhes, se for possível, qualquer tipo de acusação que pudesse ser susceptível de condená-la a morte, e com isso satisfazer a sanguinária disposição de Gardiner. Ele mesmo foi a interrogá-la, acerca de sua mudança desde sua casa de Ashbridge ao castelo de Dunnington, fazia já muito tempo. A princesa tinha esquecido totalmente este insignificante acontecimento, e lorde Arundel, depois do interrogatório, ajoelhando-se, se escusou por tê-la incomodado numa questão tão trivial. "Me colocais estreitamente a prova", respondeu a princesa, "porém disto estou segura: que Deus tem colocado limite a vossos procedimentos; que Deus vos perdoe a todos".

Seus próprios cavalheiros, que deveriam ter sido seus administradores e tê-la provido das coisas necessárias, foram obrigados a ceder seus postos aos soldados comuns, às ordens do alcaide da Torre, que era em todos os aspectos um servil instrumento de Gardiner; contudo, os amigos de sua Graça obtiveram uma ordem do Conselho que regulou esta mesquinha tirania mais a satisfação dela.

Depois de ter passado um mês inteiro em prisão estrita, enviou uma comunicação ao lorde ajudante de câmara e ao lorde Chandois, aos quais informou do mal estado de sua saúde por falta de ar livre e de exercício. Feita a solicitude ao Conselho, lhe foi permitido, de má vontade, poder passear-se pelas estâncias da rainha, e depois no jardim, momento em que os prisioneiros daquele lado da Torre eram acompanhados pelos seus guardas, que lhes impediam de contemplá-la. Também se excitaram seus ciúmes por um menino de quatro anos, que a diário levava flores à princesa. O menino foi ameaçado com receber açoites, e se ordenou ao pai que o mantivesse afastado das estâncias da princesa.

O dia cinco de maio, o alcaide foi deposto de seu cargo, e Sir Henry Benifield foi designado em seu lugar, acompanhado de cem soldados vestidos de azul, de torva aparência. Esta medida suscitou grande alarme na mente da princesa, que imaginou que estes eram preparativos conducentes a sofrer a mesma sorte que lady Jane Gary e no mesmo corte. Recebendo seguridades de que não havia um tal projeto em andamento, lhe veio à mente o pensamento que o novo alcaide da Torre estava encarregado de acabar com ela secretamente, por quanto seu caráter equívoco harmonizava com a feroz inclinação daqueles pelos que tinha sido designado.

Depois correu o rumor que sua Graça seria levada fora dali pelo alcaide e seus soldados, o que finalmente resultou ser certo. Veio uma ordem do Conselho para que fosse trasladada à casa senhorial Woodstock, o que teve lugar no Domingo de Trindade, 13 de maio, sob a autoridade de Sir Henn Benifield e de Lorde Tame. A causa ostensível de seu traslado foi dar lugar a outros prisioneiros. Richmond foi o primeiro lugar onde se detiveram, e aqui durmiu a princesa, embora não sem muito temor no princípio, porque seus princípios criados foram substituídos pelos soldados, que foram colocados como guardas na porta de sua estância. Pelas queixas apresentadas, lorde Tame anulou este indecoroso abuso de autoridade, e lhe concedeu perfeita segurança enquanto esteve sob sua custódia.

Ao passar por Windsor viu a vários de seus coitados e abatidos servos que esperavam vê-la. "Vai a eles", lhe disse a um de seus assistentes, "e di-lhes de minha parte estas palavras: tanquim ovis, isto é, como ovelha para o matadouro".

Na manhã seguinte, sua Graça se alojou em casa de um homem chamado Dormer, e encaminhando-se a ela, a gente deu tais mostras de leal afeição que Sir Henry se sentiu indignado, e os tratou abertamente de rebeldes e traidores. Em alguns povoados faziam soar os sinos, imaginando que a chegada da princesa entre eles era por causas muito distintas; mas esta inocente demonstração de alegria foi suficiente para que o perseguidor Benifield ordenasse a seus soldados que apreendessem estas humildes pessoas e as colocassem no cepo.

No dia seguinte, sua Graça chegou à casa de lorde Tame, onde permaneceu toda a noite, e foi muito nobremente agasalhada. Isto excitou a indignação de Sir Henry, e o levou a advertir a lorde Tame que considerasse bem sua forma de agir; mas a humanidade de lorde Tame não era das que se deixavam atemorizar, e lhe deu a réplica adequada. Em outra ocasião, este oficial pródigo, para mostrar sua má classe e seu menosprezo pela cortesia, foi a uma estância que tinha sido preparada para sua Graça com uma cadeira, duas almofadas e um tapete, sentando-se ali presunçosamente, e chamando a um de seus homens para que lhe tirassem as botas. Tão logo como o souberam as damas e os cavalheiros da princesa, o ridicularizaram escarnecendo-o. quando acabou a cena, ele chamou o senhor da casa, e ordenou que todos os cavalheiros e as damas fossem para suas casas, assombrando-se muito de que permitisse uma tão grande companhia, considerando o grave encargo que lhe tinha sido encomendado. "Sir Henry", disse sua senhoria, "dai-vos por satisfeito;evitaremos tanta companhia, incluindo a de vossos homens". "não", disse Sir Henry, "senão que meus soldados vigiarão toda a noite". Lorde Tame replicou: "Não há necessidade". "Bom", disse o outro, "haja necessidade ou não, o farão".

No dia seguinte, sua Graça empreendeu viagem dali a Woodstock, onde foi encerrada, como antes na Torre de Londres, guardando-a os soldados dentro e fora das muralhas, cada dia, em número de sessenta; e durante as noites houve quarenta durante todo o tempo de seu encarceramento.

No final lhe foi permitido passear pelos jardins, mas sempre sob as mais severas restrições, guardando as chaves o próprio Sir Henry, guardando-a sempre baixo muitas fechaduras e ferrolhos, o que a induziu a chamá-lo de carcereiro, pelo qual sentiu-se ele ofendido, e lhe rogou que utilizasse a palavra oficial. Depois de muitos rogos do Conselho, obteve permissão para escrever à rainha; mas o carcereiro que lhe trouxe pluma, tinta e papel permaneceu junto dela enquanto escrevia e, ao sair, voltou levar esses artigos até que tornassem a ser necessários. Também insistiu em levar a carta ele mesmo a rainha, mas Elizabete não admitiu que ele fosse o portador, e foi apresentada por um de seus cavalheiros.

Depois da carta, os doutores Owen e Wendy visitaram a princesa, porque seu estado de saúde fazia precisa a assistência médica. Permaneceram com ela cinco ou seis dias, tempo em que ela melhorou muito; quando voltaram à rainha, e falaram aduladoramente da submissão e humildade da princesa, a rainha pareceu comover-se; porém os bispos exigiam uma admissão de que havia ofendido a sua majestade. Elizabete rejeitou esta forma indireta de reconhecer-se culpável. "Se tenho delinqüido", disse ela, "e sou culpada, não peço misericórdia, senão a lei, que estou segura já teria sofrido faz tempo, caso qualquer coisa pudesse ter sido provada em minha contra; desejaria estar igual de livre do perigo de meus inimigos; então não estaria encerrada e cheia de ferrolhos, trás muralhas e portas".

Naquele tempo se falou muito da idoneidade de unir a princesa com algum estrangeiro, para que pudesse ir embora do reino com uma porção apropriada. Um dos do Conselho teve a brutalidade de propor a necessidade de decapitá-la se era que o rei Felipe queria ter o reino em paz; porém os espanhóis, aborrecendo uma idéia tão mesquinha, responderam: "Deus não queira que nosso rei e senhor consinta a tão infame proceder!". Estimulados por um princípio de nobreza, os espanhóis pressionaram desde então o rei no sentido de que seria para maior honra dele liberar a lady Elizabete, e o rei não foi insensível a tal petição. A tirou da prisão, e pouco depois foi enviada a Hampton Court. Se pode observar aqui, de passagem, que a falácia dos arrazoamentos humanos se evidência a cada passo. O bárbaro que propus a ação política de decapitar a Elizabete pouco se esperava a mudança de condição que suas palavras iriam propiciá-lhe. Em sua viagem desde Woodstock, Benifielf a tratou com a mesma dureza que antes, fazendo-a viajar num dia de tempestade, e não permitindo que sua velha criada, que tinha vindo a Colnbrook, onde dormiu uma noite, pudesse falar com ela.

Permaneceu guardada e vigiada durante duas semanas de maneira estrita antes que ninguém ousasse falar com ela; no final, o vil Gardiner acudiu, com três mais do Conselho, com grande submissão. Elizabete o cumprimentou com a observação de que tinha permanecido mantida durante muito tempo em prisão isolada, e lhe rogou que intercedesse diante do rei e da rainha para que a liberassem deste encerro. A visita de Gardiner tinha o propósito de obter da princesa uma confissão de culpabilidade; porém ela se guardou contra suas sutilezas, agregando que antes de admitir ter feito nada errado permaneceria em prisão pelo resto de sua vida. Gardiner voltou a visitá-la, e ajoelhando-se, declarou que a rainha se sentia atônita de que persistisse em afirmar que era sem culpa, só que se inferiria que a rainha tinha encarcerado injustamente sem sua Graça. Gardiner a informou, além disso, de que a rainha tinha declarado que deveria falar de forma diferente antes de poder ser deixada em liberdade. "Então", replicou a nobre Elizabete, "prefiro estar em prisão com honra e verdade antes de ter minha liberdade e estar sob as suspeitas de suas majestade. E me manterei no que tenho falado: não vou mentir!" Então, o bispo e seus amigos partiram, deixando-a encerrada como antes.

Sete dias depois a rainha enviou buscar Elizabete às dez da noite; dois anos tinham-se passado desde que se haviam visto pela última vez. Isso criou terror na mente da princesa, que, ao sair, pediu a seus cavalheiros e damas que orassem por ela, porque não era seguro que pudesse voltar a vê-los.

Conduzida ao dormitório da rainha, ao entrar a princesa se enfeitou, e tendo rogado a Deus que guardasse sua majestade, lhe deu seguranças de que sua majestade não tinha um súbdito mais leal em todo o reino, fossem quais forem os rumores que fizessem circular em sentido contrário. Com um altaneiro desdém, a imperiosa rainha respondeu: "Não vais confessar teu delito, senão que te manténs férrea em tua verdade. Peço a Deus que assim seja".

"Se não for assim", disse Elizabete, "não peço nem favor nem perdão de mãos de vossa majestade". "Bom", disse a rainha, "continuas perseverando teimosa em tua verdade. Além disso, não queres confessar que não foste castigada injustamente".

"Não devo dizê-lo, se assim apraz a vossa majestade".

"Então o dirás a outros", disse a rainha.

"Não, se sua majestade não quer; tenho levado minha carga, e devo levá-la. Rogo humildemente a vossa majestade que tenha boa opinião de mim e me considere sua súbdita, não só desde o começo até agora, senão para sempre, enquanto tenha vida".

Despediram-se sem nenhuma satisfação cordial por parte de nenhuma; e não podemos dizer que a conduta de Elizabete exibisse aquela independência e fortaleza que acompanha à da perfeita inocência. A admissão de Elizabete de que não diria, nem a rainha nem a outros, que tinha sido castigada injustamente, estava em total contradição com o que tinha falado a Gardiner, e deve ter surgido de algum motivo por agora inexplicável. Se supõe que o Rei Felipe estava escondido durante aquela entrevista, e que tinha-se mostrado favorável à princesa.

Após sete dias do regresso da princesa a seu encarceramento, seu severo carcereiro e seus homens foram demitidos, e foi deixada em liberdade, sob a limitação de estar sempre acompanhada e vigiada por algum do Conselho da rainha. Quatro de seus cavalheiros foram enviados à Torre sem outra acusação contra eles que a de terem sido zelosos servos de sua senhora. Este acontecimento foi logo seguido pela feliz notícia da morte de Gardiner, pela que todos os homens bons e clementes glorificaram a Deus, por ter eliminado o principal tigre da guarida, e ter assegurado mais a vida da sucessora protestante de Maria.

Este infame, enquanto a princesa estava encarcerada na Torre, enviou um documento secreto, assinado por alguns do Conselho, ordenando sua execução privada, e se o senhor Bridges, tenente da Torre, tiver sido tão pouco escrupuloso ante um tenebroso assassinato como este ímpio prelado, teria sido morta. Ao não haver assinatura da rainha no documento, o senhor Bridges se dirigiu apressadamente a sua majestade para informá-la e para saber seu parecer. Esta tinha sido uma treta de Gardiner, que tentando demonstrá-la culpável de atividades traiçoeiras tinha feito torturar a vários presos. Também ofereceu grandes sumas em suborno ao senhor Edmund Tremaine e Smithwicke para que acusassem à inocente princesa.

Sua vida esteve várias vezes em perigo. Enquanto estava em Woodstock, se pegou fogo, aparentemente de forma intencionada, entre as vigas e o teto sob o qual dormia. Também corre o intenso rumor de que um tal Paul Penny, guarda de Woodstock, e notório bandido, foi designado para assassiná-la, mas, fosse como for, Deus contrapôs neste ponto os desígnios dos inimigos da Reforma. James Basset tinha sido outro designado para executar a mesma ação; era um peculiar favorito de Gardiner, e tinha chegado a uma milha de Woodstock, querendo falar com Benifield acerca disto. Quis Deus em sua bondade que enquanto Bassey se dirigia a Woodstock, Benifield, por ordem do Conselho, se dirigisse a Londres; devido a isto, deixou ordem firme a seu irmão de que ninguém fosse admitido em presença da princesa.

Quando Elizabete saiu de Woodstock, deixou estas linhas escritas com um diamante na janela: "Muitas suspeitas pode haver, nada demonstrado pode ser. Disse Elizabete, presa".

Ao acabar a vida de Winchester, acabou o extremo perigo filha princesa, porque muitos de seus secretos inimigos pronto o seguiram e, finalmente, sua cruel irmã, que sobreviveu a Gardiner somente três anos.

A morte de Maria tem sido atribuída a várias causas. Os membros do Conselho trataram de consolá-la em seus últimos momentos, pensando que era a ausência de seu marido o que tanto lhe pesava no coração, mas embora isto teve uma certa influência, a verdadeira razão de sua dor era a perda de Calais, a última fortaleza possuída pelos ingleses na França. "Abri meu coração", disse Maria, "quando estiver morta, e achareis ali escrita a palavra Calais". A religião não lhe causava temores; os sacerdotes tinham adormecido nela toda inquietude de consciência que puder ter existido por causa dos espíritos acusadores dos mártires assassinados. Não era o sangue que tinha derramado, senão a perda de uma cidade, o que moveu suas emoções ao morrer, e este último golpe pareceu ser infligido para que suas fanáticas perseguições pudessem ser colocadas em paralelo com sua insensatez política.

Rogamos fervorosamente que nos anais de nenhum país, católico ou pagão, voltem a serem jamais maculados com tal repetição de sacrifícios humanos o poder papal, e que o aborrecimento que se tem contra o caráter de Maria possa ser um faro para os posteriores monarcas, a fim de evitares os arrecifes do fanatismo!

O castigo de Deus contra alguns dos perseguidores de Seu povo no reinado de Maria

Depois da morte daquele super-perseguidor, Gardiner, outros seguiram, entre os que deve destacar-se o doutor Morgan, bispo de St. Davi's, quem tinha sucedido o bispo Farrar. Não muito tempo depois de ter sido designado para este bispado, caiu baixo a visitação de Deus: seus alimento, uma vez descidos pela garganta, retrocediam com grande violência. Deste modo acabou sua existência, literalmente morto de fome.

O bispo Thomton, sufragâne de Dover, foi um infatigável perseguidor da verdadeira Igreja. Um dia, depois de ter exercido sua cruel tirania sobre um número de piedosas pessoas em Canterbury, se dirigiu da casa capitular a Borne, onde, enquanto estava um domingo contemplando a seus homens jogando bolos, caiu sob um ataque de paralisia, e não sobreviveu muito tempo.

Depois o sucedeu um outro bispo ou sufragâneo, ordenado por Gardiner, que não muito depois de ter sido elevado à sede de Dover, caiu por umas escadas na estância do cardeal de Greenwich, quebrando-se o pescoço. Acabava de receber a bênção do cardeal; não poderia ter recebido nada pior.

John Cooper, de Watsam, Suffolk, sofreu a causa de um perjúrio; por malignidade privada foi perseguido por um tal Fenning, que subornou a outros dois para que jurasse que o tinham ouvido dizer "Se Deus não tirar daqui a Rainha Maria, o diabo o fará". Cooper negou ter falado semelhante coisa, porém era protestante e herege, pelo que foi enforcado, arrastado e esquartejado, seus bens foram confiscados, e sua mulher e seus nove filhos reduzidos à mendicidade. Porém durante a seguinte colheita, Grimwood de Hitcham, uma das testemunhas antes mencionada, foi visitado por sua infâmia; enquanto trabalhava, empilhando trigo, suas entranhas arrebentaram repentinamente, e morreu antes de poder conseguir ajuda alguma. Assim foi retribuído um perjúrio deliberado com uma morte súbita!

Já observamos a baixeza do xerife maior de Woodroffe no caso do mártir Bradford. Se regozijava aquele xerife na morte dos santos, e na execução do senhor Roger lhe partiu a cabeça do vaqueiro, porque deteve a carreta para permitir que os filhos do mártir lhe dessem um último adeus. Apenas se fazia uma semana que o senhor Woodroffe tinha deixado de ser xerife maior, foi abatido por uma paralisia, e enlanguesceu vários dias numa condição mais que lastimosa e impotente, apresentando um grande contraste com sua anterior atividade naquele sanguinária causa.

Se crê que Ralph Lardyn, que entregou o mártir George Eagles, foi posteriormente julgado e enforcado como conseqüência de uma auto-acusação. Ante o tribunal, se acusou com estas palavras: "Isto me sobreveio com toda justiça por entregar sangue inocente daquele homem bom e justo, George Eagle, que foi aqui condenado em tempos da Rainha Maria por minha ação, quando vendi seu sangue por um pouco de dinheiro".

Enquanto James Abbes se dirigia à execução, exortando os apenados espectadores a manter-se firmes na verdade, e que como ele selassem a causa de Cristo com seu sangue, um servo do xerife maior o interrompeu, chamando blasfemamente heresia a sua religião, e ao bom homem de lunático. Mas apenas se as chamas tinham alcançado o mártir, o terrível açoite de Deus caiu sobre aquele endurecido miserável, na presença de quem tinha ridicularizado tão cruelmente. Aquele homem se viu repentinamente atacado de loucura e, demente perdido, se despojou das roupas e tirou os sapatos diante de todos (assim como Abbes tinha acabado de fazer, para distribuí-los entre algumas pessoas pobres), gritando ao mesmo tempo: "Assim o fez James Abbes, o verdadeiro servo de Deus, que está salvo, porém eu condenado!". Repetindo isto várias vezes, o xerife o fez segurar e mandou que o vestissem com sua roupa, mas logo que ficou sozinho voltou arrancá-la, gritando como antes. Amarrado a uma carreta, foi levado à casa de seu amo, e após seis meses morreu. Justo antes disso, veio assisti-lo um sacerdote com um crucifixo, mas o desgraçado homem lhe disse que saísse dali com seus enganos, e que ele e outros sacerdotes eram a causa de sua condenação, mas que Abbes estava salvo.

Um tal Clark, inimigo juramentado dos protestantes no reinado do rei Eduardo, se enforcou na Torre de Londres.

Froling, sacerdote muito célebre, caiu na rua e morreu no instante.

Dale, um infatigável informante, morreu comido pelos vermes, constituindo um horrendo espetáculo.

Alexandre, o severo guarda de Newgate, morreu miserável, inchando-se até um tamanho prodigioso, e apodreceu por dentro de modo tal que ninguém queria aproximar-se dele. Este cruel ministro da lei costumava acudir a Bormer, a Story e a outros pedindo-lhes que esvaziassem sua prisão, sentia-se demasiado acossado pelos hereges! O filho deste guarda, três anos depois da morte de seu pai, dissipou suas grandes propriedades, e morreu repentinamente no mercado de Newgate. "Os pecados do pai", diz o decálogo "serão visitados sobre os filhos". John Peter, genro de Alexandre, um horroroso blasfemador e perseguidor, morreu miseravelmente. Quando afirmava qualquer coisa, dizia: "Se não for verdade, que apodreça antes de morrer". E esta terrível condição o visitou em todo seu horror.

Sir Ralph Ellerker tinha estado ansiosamente desejoso de que a Adam Damlip, executado tão injustamente, lhe fosse arrancado o coração. Pouco depois, Sir Ralph foi morto pelos franceses, que o mutilaram cruelmente, lhe cortaram os membros, e lhe arrancaram o coração.

Quando Gardiner soube do mísero final do juiz Hales, chamou a profissão do Evangelho de "doutrina do desespero", mas esqueceu que o desespero do juiz surgiu depois de ter consentido com o papismo. Com mais razão se pode dizer isto dos princípios católicos, se consideramos o mísero fim do doutor Pendleton, de Gardiner e da maioria dos perseguidores principais. Um bispo lhe recordou a Gardiner, quando este estava em seu leito de morte, a Pedro negando a seu mestre. "Ah!", disse Gardiner, "tenho negado como Pedro, mas nunca me arrependi como ele".

Após a ascensão de Elizabete, a maioria dos prelados católicos foram encarcerados na Torre ou no fleet. Bonner foi encerrado em Marshalsea.

Dos blasfemadores da Palavra de Deus, detalharemos, entre muitos outros, o seguinte acontecimento. Um tal William Maldon, que vivia em Greenwich como criado, estava num anoitecer instruindo-se proveitosamente, lendo um livro de leitura elementar. Outro criado, chamado John Powell, estava sentado perto dele, e ridicularizava tudo quanto dizia Maldon, que o advertiu de não escarnecer da Palavra de Deus. Porém Powell prosseguiu, até que Maldon chegou a certas orações inglesas, e leu em voz alta: "Senhor, tem piedade de nós; Cristo, tem piedade de nós", etc. de repente, o escarnecedor se sobressaltou e exclamou: "Senhor, tem misericórdia de todos nós!". Sentiu-se surpreendido do mais atroz terror em sua mente, disse que o espírito mau não podia permitir que Cristo tivesse misericórdia alguma dele, e afundou na loucura. Foi enviado a Bedlam, e se converteu num terrível exemplo de que Deus nem sempre será ultrajado impunemente.

Henry Smith, estudante de leis, tinha um piedoso pai protestante, de Camdem, em Gloucestershire, e foi piedosamente educado por ele. Enquanto estudava leis no Temple, foi induzido a professar o catolicismo, e dirigindo-se à Lovaina, na França, voltou carregado de perdoes, crucifixos, e outros brinquedos papistas. Não satisfeito com isto, começou a injuriar publicamente a religião evangélica na qual tinha sido criado, mas uma noite a consciência o repreendeu com tal violência que num arrebato de desespero se enforcou com suas próprias ligas. Foi sepultado no caminho, sem que fosse lido o serviço cristão.

O doutor Story, cujo nome tem sido mencionado tantas vezes nas páginas anteriores, foi reservado para ser cortado mediante execução pública, prática na qual tanto tinha-se deleitado quando estava no poder. Se supõe que interveio na maioria das ações dos tempos de Maria e que estendeu seu engenho inventando novas formas de infligir torturas. Quando Elizabete acedeu ao trono, foi encarcerado, porém inexplicavelmente fugiu ao continente, para levar o fogo e a espada ali contra os irmãos protestantes. Do duque de Alba recebeu em Amberes uma especial comissão para registrar todos os barcos em busca de contrabando, especialmente de livro heréticos ingleses.

O doutor Story se gloriava em seu encargo que foi ordenado pela Providência para obrar sua ruína, e para preservar os fiéis de sua sanguinária crueldade. Se decidiu que um mercador chamado Parker navegasse a Amberes, e que se informasse ao doutor Story que tinha uma carga de livros heréticos a bordo. Apenas ouviu isso, este se apressou a chegar-se à barca, buscou por todas partes em coberta, e depois embaixo na adega, e ali o encerraram. Um oportuna tormenta levou a nave a Inglaterra, e este traidor e perseguidor rebelde foi enviado em prisão, onde esteve um tempo considerável, negando-se obstinadamente a renunciar a seu espírito anti-cristão, e a admitir a supremacia da Rainha Elizabete. Aduzia que era súbdito do rei da Espanha, a cujo serviço estava o famoso Duque de Alba, embora de nascimento e por educação era inglês. Condenado, o doutor foi colocado sobre um reboque de grades e arrastado desde a Torre a Tyburn, onde depois de ter sido enforcado durante meia hora, foi cortado, despedaçado, e o carrasco exibiu o coração de um traidor.

Assim terminou a existência deste Ninrode da Inglaterra.

JOSÉ MATEUS
zemateus@msn.com