CAPÍTULO 18 - O surgimento, progresso, perseguições e sofrimentos dos quáqueros 

Ao tratar acerca destas pessoas desde uma perspectiva histórica, nos vemos obrigados a falar com muita gentileza. Não se pode negar que diferem da generalidade dos protestantes em certos pontos capitais de religião, e, contudo, como conformistas protestantes, ficam incluídos sob a descrição da lei da tolerância. Não é aqui assunto nosso indagar acerca de se houve pessoas de crenças similares nos tempos da cristandade primitiva; talvez não, em certos aspectos, porém devemos escrever acerca deles não em quanto a como eram, senão em quanto ao que agora são. Certo é que têm sido tratados por vários escritores de forma muito depreciativa; também é certo que não mereciam este tratamento.

O apelativo de Quáquero foi-lhes dado como termo de vitupério, como conseqüência das evidentes convulsões que sofriam quando davam seus discursos, porque imaginavam que eram efeito da inspiração divina.

Não nos toca a nós agora indagar se as crenças destas pessoas concordam com o Evangelho, mas o que sim é verdade é que o primeiro de seus líderes como grupo separado foi um homem de escuro berço, que primeiro viveu em Leicesterchire, por volta de 1624. ao referir-nos a este homem expressaremos nossos próprios sentimentos de uma forma histórica, e unindo a estes o que disseram os próprios Amigos, trataremos de dar uma narração completa.

George Fox descendia de pais honrados e respeitados, que o criaram na religião nacional; porém de criança parecia religioso, calado, firme e manifestando, além de seus anos, um conhecimento não comum das coisas divinas. Foi educado para a agricultura e outras atividades do campo, e estava inclinado de maneira particular à ocupação solitária de pastor, emprego este bem apropriado para sua mente em vários aspectos, tanto por sua inocência como por seu afã de solidão; e foi um justo emblema de seu ministério e de seus serviços posteriores. No ano 1646 deixou totalmente a Igreja nacional, em cujos princípios tinha sido criado e até então, observado; em 1647 se dirigiu a Derbyshire e Nortinghamshire, sem nenhum propósito determinado de visitar nenhum lugar particular, senão que andou solitário por várias cidades e povoados, ali onde o levava a mente. "Jejuava muito", diz Sewell, "e freqüentemente caminhava a lugares retirados, sem outra companhia que sua Bíblia". "Visitou à gente mais retirada e religiosa daqueles lugares", diz Penn, "e alguns havia, bem poucos, besta nação, que esperavam a consolação de Israel dia e noite; como Zacarias, Ana e Simeão a esperavam em tempos antigos. A estes foi enviado, e a estes buscou nos condados limítrofes, e entre eles ficou até que lhe foi dado um ministério mais amplo. Neste tempo ensinou, e foi um exemplo de silêncio, tratando de tirá-los de uma atuação artificial, testemunhando-lhes acerca da luz de Cristo dentro deles, e voltando-ao a ela, e alentando-os a esperar pacientemente, e a sentir seu poder agitando-se em seus corações, para que seu conhecimento e culto a Deus pudesse consistir no poder de uma vida incorruptível que devia ser achada na luz, por quanto era obedecida na manifestação da mesma no homem: porque no Verbo estava a vida, e a vida era a luz dos homens. Vida na palavra, luz nos homens; e vida também nos homens, assim como a luz é obedecida; vivendo os filhos da luz pela via da Palavra, pela qual a Palavra os gera de novo para Deus, o qual é a geração e o novo nascimento, sem o qual não há entrada no Reino de Deus, no qual todo aquele que entra é maior que João, isto é, que a dispensação de João, que não era a do Reino, senão que foi a consumação da legal, e precursor dos tempos do Evangelho, do tempo do Reino. Por isso, começaram a realizar-se várias reuniões naquelas partes, e assim dedicou seu tempo durante alguns anos".

No ano 1652 "teve uma grande visitação da grande obra de Deus na terra, e da forma em que devia sair, para iniciar seu ministério público". Empreendeu rumo ao norte, "e em todos os lugares aos que chegava, se não antes de chegar a eles, lhe era mostrado de forma particular seu exercício e serviço, de modo que o Senhor era verdadeiramente seu condutor". Converteu a muitos a suas opiniões, e muitos homens piedosos e bons se uniram a seu ministério. Estes foram escolhidos especialmente para visitar as assembléias públicas para repreender, reformar e exortar os ouvintes. Às vezes em mercados, férias, pelas ruas e pelos caminhos, "chamando os homens ao arrependimento e a voltar para o Senhor, com todo o coração, assim como com suas bocas; dirigindo-os à luz de Cristo dentro deles, para que vissem, examinassem e considerassem seus caminhos, e a evitar o mal e a fazer a boa e agradável vontade de Deus".

Não se encontraram sem oposição na tarefa para a qual imaginavam ter sido chamados, sendo freqüentemente colocados em cepos, apedrejados, espancados, açoitados e encarcerados, embora fossem homens honrados e de boa reputação que haviam deixado mulheres, filhos, casas e terras para visitá-los com um vivo chamamento ao arrependimento. Mas estes métodos coercitivos antes acenderam que diminuíram seu zelo, e naquelas zonas lhes ganharam muitos prosélitos, e entre eles vários magistrados e outros das classes altas. Entenderam que o Senhor tinha-lhes proibido descobrir a cabeça diante de ninguém, alto ou baixo, e que lhes demandava se dirigissem a todos, sem distinção, tratando-os de "tu". Tinham escrúpulos acerca de desejar bons dias ou boas noites às pessoas, e não podiam dobrar joelho diante de ninguém, nem sequer da suprema autoridade. Tanto homens como mulheres levavam uma vestimenta simples, diferente da moda dos tempos. Não davam nem aceitavam títulos de respeito ou honra, e a ninguém na terra estavam dispostos a chamar de mestre. Citavam vários textos da Escritura para defender estas peculiaridades, como "Não jureis", "Como podeis vós crer, recebendo honra uns dos outros, e não buscando a honra que vem só de Deus?, etc. etc. baseavam a religião numa luz interior, e num impulso extraordinário do Espírito Santo.

Em 1654 celebraram sua primeira reunião separada de Londres, em casa de Robert Dring, em Warling Street, porque para aquele então tinham-se estendido por todas partes do reino, e em muitos lugares haviam aparecido reuniões ou assembléias, particularmente em Lancashire e régios adjacentes, porém continuavam expostos a grandes perseguições e provações de todo tipo. Um deles, numa carta ao protetor, Oliveiro Cromwell, lhe diz que embora não há leis penais que obriguem ninguém a se submeter à religião estabelecida, contudo os quáqueros são denunciados por outras causas; são multados e encarcerados por recusar prestar juramento; por não pagar dízimos; por perturbar as assembléias públicas e reunir-se nas ruas e lugares públicos; a alguns deles os haviam chicotado como a vagabundos, e por falar com fraqueza aos magistrados.

Sob o favor da tolerância então existente abriram suas reuniões em Bull e Mouth, em Aldersgate Street, onde suas mulheres, igual que os homens, eram estimuladas a falarem. Seu zelo os levou a algumas extravagâncias, o que os expus mais ao açoite de seus inimigos, que agiram duramente contra eles no seguinte reinado. Ao ser suprimida a insensata insurreição de Venner, o governo publicou uma proclama proibindo os anabatistas, quáqueros e Homens da Quinta Mocarquia que celebrassem assembléias ou reuniões sob pretexto de dar culto a Deus, exceto se o faziam em alguma igreja paroquial, ou em casas privadas, com o consentimento do dono da casa, declarando-se ilegais e sediciosas todas as reuniões em quaisquer outros lugares, etc., etc. Então os quáqueros consideraram conveniente enviar a seguinte carta ao rei, com as seguintes palavras:

 

Oh, rei Carlos!

É nosso desejo que vivas sempre no temor de Deus, e também teu Conselho. Te rogamos a ti e a teu Conselho que leais as seguintes linhas com piedade e compaixão para nossas almas, e para teu bem.

E considera isto, que estamos encarcerados uns quatrocentos em e em volta da cidade, homens e mulheres, arrebatados a suas famílias, e além uns mil nos cárceres dos condados; desejamos que nossas reuniões possam não ser dispersas, senão que tudo venha a justo juízo, para que seja manifesta nossa inocência.

Londres, dia 16, mês décimo primeiro, 1660.

O 28 daquele mesmo mês publicaram a declaração a que faziam referência e seu discurso, intitulada "Uma declaração da inocente gente de Deus chamada os Quáqueros, contra toda sedição, maquinações e briguentos do mundo, para eliminar as bases de ciúmes e suspeitas, tanto dos magistrados como do povo no reino, acerca de guerras e lutas". Foi apresentada ao rei no dia 21 de novembro de 1660, e lhes prometeu, por sua real palavra, que não sofreriam por suas opiniões sempre e quando vivessem pacificamente; porém suas promessas foram depois bem pouco levadas em conta.

Em 1661 cobraram suficiente valor para pedir à Câmara dos lorde s que houvesse tolerância para sua religião, e para serem isentos de prestar juramento, que consideravam ilegítimo não por desafeição alguma ao governo, nem por crer que ficariam menos obrigados sob uma asseveração, senão por estarem persuadidos de que todos os juramentos eram ilegítimos; e que jurar estava proibido, até nas ocasiões mais solenes, no Novo Testamento. Sua petição foi rejeitada, e em vez de dar-lhes tolerância, se promulgou uma lei contra eles, cujo preâmbulo dizia: "Que por quanto várias pessoas adotaram a opinião de que um juramento é ilegítimo e contrário à lei de Deus, inclusive quando se realiza diante de um magistrado; e por quanto, sob a pretensão de culto religioso, as mencionadas pessoas se reúnem em grandes números em diversos lugares do reino, separando-se do resto dos súbditos de sua majestade e das congregações públicas e lugares usuais de culto divino, se promulga por isso que se tais pessoas, depois do 4 de março de 1661-62, recusam prestar juramento quando seja ministrado legalmente, ou persuadem a outros a recusá-los, ou mantêm por escrito ou de qualquer outra forma a ilegitimidade de prestar juramento; ou se se reúnem para u culto religioso em número de cinco, de uma idade de quinze anos para acima, pagarão pela primeira ofensa cinco libras; pela segunda, dez libras; pela terceira serão desterrados do reino, ou transportados às plantações; os juízes de paz poderão ouvir e decidir suas causas". Esta lei teve o mais terrível efeito sobre os quáqueros, embora bem se sabia que estas pessoas de boa consciência estavam longe de toda sedição ou rebelião contra o governo. George Fox, em suas palavras ao rei, lhe comunica que três mil sessenta e oito de seus amigos tinham sido encarcerados desde a restauração de sua majestade; que suas reuniões eram diariamente dispersadas por homens com paus e armas, e que seus amigos eram lançados na água e pisoteados até que manava sangue, o que fazia que se reunissem nas ruas. Imprimiu-se um documento, assinado por doze testemunhas, no que se comunica que havia mais de quatro mil duzentos quáqueros encarcerados; deles, quinhentos em Londres e seus subúrbios, e vários deles tinham morrido nos cárceres.

Contudo, se gloriavam em seus padecimentos, que aumentavam a cada dia, de maneira que em 1665 e nos anos de interinidade foram fustigados de forma inacreditável. Como persistiam resolutamente em reunir-se abertamente em Bull e Mouth, lugar já mencionado, os soldados e outros oficiais os levaram dali à prisão, até que Newgate ficou lotada deles, e multidões morreram pelo estreito confinamento, naquele e noutros cárceres.

Seiscentos deles, diz um relato publicado naquele tempo, estavam encarcerados, simplesmente por causa de sua religião, dos que vários foram levados às plantações. Em resumo, os quáqueros deram tanto trabalho aos informantes, que estes tiveram menos tempo para assistir às reuniões de outros inconformados.

Não obstante, sob todas estas calamidades se comportavam pacientemente e com gentileza ante o governo, e quando teve lugar o complô de Ryehouse em 1682 consideraram conveniente proclamar sua inocência acerca daquele falso complô, num documento enviado ao rei, no qual, "apelando ao Esquadrinhador de todos os corações", dizem que "seus princípios não lhes permitem tomar armas em defesa própria, e muito menos vingar-se pelos danos recebidos de outrem; que continuamente oram pela segurança e preservação do rei; e que por isso aproveitam esta oportunidade para rogar humildemente a sua majestade que tenha compaixão de seus sofredores amigos, que lotam tanto seus cárceres que têm carência de ar, com evidente perigo para suas vidas e com perigo de infecções em diversos lugares. Além disso, muitas casas, oficinas, celeiros e campos são saqueados, e seus bens, trigo e gados são arrebatados, com o que se desanima o trabalho e a agricultura, empobrecendo-se muita quantidade de gente pacifica e trabalhadora; e isto por nenhum outro motivo que pelo exercício de uma consciência sensível no culto do Deus Todo Poderoso, que é soberano Senhor e Rei das consciências dos homens.

Ao ascender Tiago ao trono, se dirigiram àquele monarca de maneira honrada e simples, dizendo-lhe: "Viemos para testemunhar nossa dor pela more de nosso bom amigo Carlos, e nosso gozo porque tenhas sido feito nosso governante. Se nos diz que não pertences à persuasão da Igreja de Inglaterra, como tampouco nós o somos; por isso, esperamos que nos concedas a mesma liberdade que tu te permites, fazendo o qual desejamos todo tipo de bênçãos".

Quando Tiago, pelo poder do qual estava investido, concedeu liberdade aos não conformados, começaram eles a gozar de algum descanso de suas angústias; e certamente já era o momento para isso, porque haviam crescido em grande número. O ano anterior a este, que para eles foi de feliz liberação, numa petição que expuseram a Tiago para que se pusesse fim a seus sofrimentos, estabeleceram "que nos últimos tempos mil e quinhentos de seus amigos, tanto homens como mulheres, dos que agora restavam mil trezentos e oitenta e três; dos quais duzentos são mulheres, muitas com sentença de desacato à autoridade regia; e mais de cem delas, por recusarem realizar juramento de lealdade, porque não podem jurar. Trezentos e cinqüenta morreram em prisão desde o ano 1680; em Londres, o cárcere de Newgate tem ficado lotado até arrebentar, havendo nos últimos dois anos até quase vinte pessoas por cela, pelo qual várias pessoas morreram asfixiadas e outros, que saíram doentes, morreram de febres malignas após alguns dias. Grandes violências, destroços enormes, terríveis perturbações e saqueios tremendos têm sido aplicados aos bens e possessões da gente, por um grupo de informantes ociosos, insólitos e implacáveis, por perseguições baseadas na lei de conspirações, e outras, também em escritos qui tam, e em outros processo por vinte libras por mês, e duas terceiras partes de suas possessões confiscadas para o rei. Alguns não tinham uma cama na qual jazer, outros não tinham animais para lavrar o solo, nem trigo para alimento ou pão, nem ferramentas de trabalho; os tais informadores e xerifes penetravam violentamente em casas em alguns lugares, com o pretexto de servir o rei e à Igreja. Nossas assembléias religiosas têm sido acusadas ante a lei comum de ser sediciosas e perturbadoras da paz pública, pelo que grandes números foram encerrados em prisão sem consideração alguma pela idade, e muitos lançados em buracos e masmorras. Os aprisionamentos por vinte libras por mês tinham levado a milhares de pessoas encarceradas, e vários que haviam empregado a pessoas pobres em manufaturas não podem já mais fazê-lo, por seu prolongado confinamento. Não perdoam viúvas nem órfãos, e tampouco têm nem sequer cama onde dormir. Os informantes são ao mesmo tempo testemunhas e fiscais, para ruína de grande número de famílias frugais; e juízes de paz foram ameaçados com multas de 100 libras se não emitem ordens de prisão com base em suas denúncias". Com esta petição apresentaram uma lista de seus amigos encarcerados, nos vários condados, que ascendia a quatrocentos e sessenta.

Durante o reinado do rei Tiago II, esta gente foi, pela intercessão de seu amigo senhor Penn, tratada com maior tolerância do que jamais o havia sido. Tinham-se tornado muito numerosos agora em muitos lugares do país, e ao ter lugar, pouco depois, o estabelecimento de Pensilvânia, muitos foram para a América. Ali gozaram das bênçãos de um governo pacifico, e cultivaram as artes do trabalho honrado.

Como toda a colônia era propriedade do senhor Penn, convidou a gentes de todas as denominações a ir e assentar-se ali. Teve lugar uma liberdade de consciência universal; e nesta nova colônia se estabeleceram pela primeira vez os direitos naturais da humanidade.

Estes Amigos são, em tempo presente, um grupo bem inocente e inofensivo; mas já falaremos disso numa seção posterior. Por suas sábias leis, não somente se honram a si mesmos, senão que são de grande serviço para a comunidade.

Pode ser necessário observar aqui que por quanto os Amigos, comumente chamados quáqueros, não prestam juramento num tribunal, se permite sua afirmação em todas as questões civis; porém não podem perseguir um criminoso, porque nos tribunais ingleses toda evidência deve ser sobre juramento.

 

Relato das perseguições aos Amigos, comumente chamados quáqueros, nos Estados Unidos

Por volta de meados do século dezessete se infligiu muita perseguição e sofrimento a uma seita de inconformados protestantes, comumente chamados quáqueros; gente que surgiu naquele tempo na Inglaterra, e alguns dos quais selaram seu testemunho vida seu sangue.

Para uma história destas pessoas, veja a história de Sewell, ou a de Gouth, acerca deles.

Os principais motivos pelos que seu inconformismo de consciência os fez susceptíveis às penas da lei foram:

• Sua resolução cristã de reunir-se publicamente para o culto de Deus da forma mais conforme a sua consciência.

• Sua rejeição a pagar dízimos, que consideravam uma cerimônia judaica, ab-rogada pela vinda de Cristo.

• Seu testemunho em contra das guerras e das lutas, cuja prática consideravam inconseqüente com o mandamento de Cristo: "Amai vossos inimigos" (Mt 5.44).

• Sua constante obediência ao mandamento de Cristo: "Não jureis de nenhum modo" (Mt 5:34).

• Sua rejeição a pagar taxas ou valorações para edificar e reparar casas de culto com as que eles não estejam de acordo.

• Seu uso da linguajem apropriada e escrituraria, "tu" e "ti" para uma pessoa individual; e seu afastamento do costume de descobrir-se a cabeça como homenagem a um homem.

• A necessidade em que se encontraram muitos de publicar o que acreditavam ser a doutrina da verdade, e isso às vezes nos lugares designados para o culto nacional público.

Sua consciente inconformidade nos anteriores pontos os expus a muita perseguição e sofrimento, consentindo em procedimentos judiciais, multas, cruéis espancamentos, açoites e outros castigados corporais; encarceramentos, desterros e inclusive a morte.

Dar um relato detalhado de suas perseguições e sofrimentos iria além dos limites desta obra; portanto remitimos, para esta informação, às histórias já citadas, e mais em particular à Coleção de Besse acerca de seus sofrimentos; e limitaremos nosso relato aqui maiormente aos que sacrificaram suas vidas, que evidenciaram, por sua disposição de mente, constância, paciência e fiel perseverança, que estavam influenciados por um sentimento de dever religioso.

Numerosas e repetidas foram as perseguições contra eles; e às vezes por transgressões ou ofensas que a lei nem contemplava nem abrangia.

Muitas das multas e penalidade que lhes foram impostas não somente eram irrazoáveis e exorbitantes, de modo que não podiam pagá-las e se viam aumentadas várias vezes o valor da demanda; por isso muitas famílias pobres ficavam enormemente angustiadas, e se viam obrigadas a depender da ajuda de seus amigos.

Não só grandes números foram cruelmente açoitados a chicotadas em público, como criminosos, senão que alguns foram marcados com ferros candentes, e a outros lhes cortaram as orelhas.

Muitíssimos foram encerrados longo tempo em imundas masmorras, nas que alguns terminaram suas vidas, como conseqüência do encerro.

Muitos foram sentenciados ao desterro, e muitos foram deportados. Alguns foram desterrados sob pena de morte, e quatro foram finalmente executados pelo carrasco, como veremos mais para frente, após inserir cópias de algumas leis do país onde sofreram.

 

Numa corte geral celebrada em Boston, o 14 de outubro de 1656

Por quanto há uma maldita seita de hereges que surgiu ultimamente no mundo, chamados comumente quáqueros, que assumem serem enviados diretamente de parte de Deus e ser assistidos de maneira infalível pelo Espírito, falando e escrevendo opiniões blasfemas, menosprezando o governo e a ordem de Deus, na Igreja e na comunidade, falando mal das dignidades, vituperando e injuriando a magistrados e ministros, tratando de afastar o povo da fé, e conseguir prosélitos para seus perniciosos caminhos: este tribunal, tomando em consideração suas premissas, e para impedir males semelhantes como os que por causa deles têm lugar em nossa terra, ordenamos portanto que, pela autoridade deste tribunal, que seja ordenado e cumprido que qualquer patrão ou comandante de qualquer nave, barca, chalupa ou bote que traga a qualquer porto, arroio ou enseada, dentro desta jurisdição, a qualquer quáquero ou quáqueros, ou quaisquer outros hereges blasfemos, pagará, ou fará pagar a multa de cem libras ao tesoureiro do país, exceto se carecia de verdadeiro conhecimento ou informação de que o fossem; em tal caso, tem liberdade de demonstrar sua inocência declarando sob juramento quando não haja suficiente prova do contrário; e em caso de falta de pagamento ou falta de aval, será encarcerado, e continuará nesta condição até que fique satisfeita a suma ao tesoureiro, como se indicou acima.

E ao comandante de qualquer barca, nave ou chalupa que fique legalmente convicto, dará suficiente segurança ao governador, ou a qualquer ou mais dos magistrados, que tenham poder para determinar a mesma, para levá-los outra vez ao lugar de onde vieram; e em caso de que recuse fazê-lo, o governador, ou um ou mais dos magistrados, recebem por estes instrumento poderes para emitir sua ou suas ordens para entregar o mencionado patrão ou comandante à prisão, para que fique nela até que dê suficiente seguridade do conteúdo ao governador, ou a qualquer dos magistrados, como já foi dito.

E se ordena e estabelece além disso que qualquer quáquero que chegue a este país desde o estrangeiro, ou que chegue a esta jurisdição desde quaisquer zonas vizinhas, será imediatamente levado à Casa de Correição; ao entrar nela, será severamente açoitado, e será mantido constantemente ocupado em trabalhos para o diretor, e não se permitirá que ninguém converse nem fale com eles durante o tempo de seu encarceramento, que não se prolongará além do necessário.

E se ordena que se qualquer pessoa introduzir intencionadamente em qualquer porto desta jurisdição quaisquer livros ou escritos quáqueros, acerca de suas diabólicas opiniões, pagará por tal livro ou escrito que lhe seja legalmente demonstrado contra ele ou eles a suma de cinco libras; e todo o que dispersar ou ocultar tal livro ou escrito e seja encontrado com ele encima, ou em sua casam e não o entregar de imediato ao magistrado, pagará uma multa de cinco libras por dispersar ou esconder tal livro ou escrito.

E também se ordena, além do mais, que se quaisquer pessoas de dentro desta colônia assumem a defesa das opiniões heréticas dos quáqueros, ou de nenhum de seus livros ou artigos, serão multados pela primeira vez com 40 xelins; se persistirem no mesmo, e as defendem numa segunda vez, quatro libras; se apesar disso voltam defender e a manter as mencionadas opiniões heréticas dos quáqueros, serão levados à Casa de Correição até que haja uma passagem conveniente para tirá-los desta terra, sentenciados a desterro pelo Tribunal.

Finalmente, se ordena que toda pessoa ou pessoas que injuriem às pessoas dos magistrados ou dos ministros, como é usual com os quáqueros, tais pessoas serão severamente açoitadas, ou pagarão multa de cinco libras.

Esta é uma cópia fiel da ordem do tribunal, como testemunha

Edward Rawson, sec.

 

Numa corte geral celebrada em Boston o 14 de outubro de 1657

Em adição à anterior ordem, com referência à chegada ou transporte de qualquer da maldita seita dos quáqueros a esta jurisdição, se ordena que qualquer que desde agora traga ou faça trazer, direta ou indiretamente, a qualquer quáquero ou quáqueros conhecidos, ou outros hereges blasfemos, propositadamente, cada uma destas pessoas será multada com quarenta xelins por cada hora de hospitalidade e ocultação de qualquer quáquero ou quáqueros como se mencionou, e será encarcerada como se disse antes, até que a multa seja satisfeita integramente.

E se ordena além disso que se qualquer quáquero ou quáqueros têm a presunção, depois ed terem sofrido o que a lei demanda, de voltar entrar nesta jurisdição, serão arrestados, sem necessidade de ordem judicial quando não haja magistrado disponível, por qualquer policia, comissário ou xerife, e levados de policia em policia até o magistrado mais próximo, que encarcerará as mencionadas pessoas em prisão estrita, para ficarem ali (sem fiança) até a seguinte reunião do tribunal, onde serão julgados legalmente.

Depois de ficar convicto de pertencer à seita dos quáqueros, será sentenciado ao desterro, sob pena de morte. E todos aqueles habitantes desta jurisdição que sejam convictos de pertencer à mencionada seita, bem por assumir, publicar ou defender as horrendas opiniões dos quáqueros, ou agitando motins, sedição ou rebelião contra o governo, ou assumindo suas insultantes e subversivas práticas, como a de negar respeito cortes a seus iguais ou superiores, e afastando-se das assembléias da igreja; e em lugar disso freqüente reuniões próprias, em oposição a nossa ordem eclesiástica; aderindo-se ou aprovando a qualquer quáquero conhecido ou os princípios e as práticas dos quáqueros que sejam opostas às ortodoxas opiniões recebidas dos piedosos, e que trate de levar a outrem a serem desafetos frente ao governo civil e à ordem da Igreja, ou que condene a prática e os procedimentos deste tribunal contra os quáqueros, manifestando por isso que está de acordo com eles, cujo dignidade é a subversão da ordem estabelecida na Igreja e no estado; toda pessoa assim, sob convicção ante o mencionado Tribunal, da forma mencionada, será encerrada em prisão estrita durante um mês, e depois, a não ser que escolha voluntariamente ir-se desta jurisdição, se der fiança por sua boa conduta, e comparecer ante o tribunal em sua seguinte convocatória, persistindo em sua obstinação, recusando retratar-se e reformar-se das mencionadas opiniões, será sentenciada a desterro sob pena de morte. E qualquer magistrado que ao receber denúncia de toda pessoa assim, a fará apreender e encerrar em prisão, a sua discrição, até que compareça a juízo como se especificou anteriormente.

 

Parece que também se promulgaram leis nas então colônias de New Plymouth e New Haven, e no estabelecimento holandês de New Amsterdam, agora New York, proibindo às pessoas chamadas quáqueros que entrassem nestes lugares, sob severas penas; como conseqüência disso, alguns sofreram consideravelmente.

Os dois primeiros em serem executados foram William Robinson, mercador, de Londres, e Marmaduke Stevenson, camponês, de Yorskshire. Chegados a Boston, a começos de setembro, foram feitos comparecer ante o Tribunal e ali sentenciados a desterro, sob pena de morte. Esta sentença foi também pronunciada contra Mary Dyar, mencionada mais na adiante, e Nicolas Davis, que se encontravam em Boston. Mas William Robinson, considerado como mestre, foi também condenado a ser duramente açoitado, e se ordenou ao chefe de policia que conseguisse um homem forte para isso. Então Robinson foi levado até a rua, e despido; colocando suas mãos através dos orifícios da carreta de um grande canhão, onde o manteve o carcereiro, o verdugo lhe aplicou vinte açoites com um chicote de três pontas. Depois ele e os outros presos foram liberados e desterrados, como se desprende da seguinte ordem:

 

Se ordena por esta que se coloque agora em liberdade a William Robinson, Marmaduke Stevenson, Mary Dyar e Nicolas Davis, que, por ordem do tribunal e do conselho, tinham sido encarcerados, porque se desprendeu por própria confissão deles, suas palavras e ações, que são quáqueros; portanto se pronunciou sentença contra eles para se saíssem desta jurisdição, sob pena de morte; e que será a seu próprio risco se qualquer deles for achado dentro desta jurisdição ou em qualquer parte da mesma depois do 14 deste presente mês de setembro.

Edward Rawson

Boston, 12 de Santo, 1659.

 

Embora Mary Dyar e Nicolas Davis deixaram esta jurisdição naquele então, Robinson e Stevenson, contudo, embora saíram da cidade de Boston, não puderam decidir-se (não estando livres em sua consciência) a ir-se daquela jurisdição, ainda se jogassem a vida. Dirigiram-se então a Salem, e a alguns lugares das redondezas, para visitar e edificar a seus amigos da fé. Mas não se passou muito tempo antes que voltassem a serem encarcerados em Boston, e acorrentados nas pernas. No mês seguinte também voltou Mary Dyar. E enquanto estava enfrente do cárcere, falando com um tal Christopher Holden, que tinha chegado ali com o propósito de indagar acerca de algum barco que se dirigisse à Inglaterra, aonde queria ir, foi também arrestada.

Assim, agora tinham a três pessoas que, segundo a lei deles, tinham perdido o direito à vida. O 20 de outubro estes três foram feitos comparecer ante o tribunal, onde estavam John Endicot e outros reunidos. Chamado ao tribunal, Endicot ordenou ao guarda que lhes tirasse os chapéus; depois lhes disse que eles tinham promulgado várias leis para manter os quáqueros fora de sua companhia, e que nem as chicotadas nem o cárcere, nem o corte de orelhas nem o desterro sob pena de morte os podia manter afastados. Disse também que nem ele nem os outros desejavam a morte de nenhum deles. Contudo, sem mais preâmbulo, estas foram suas seguintes palavras: "Ouvi e escutai vossa sentença de morte". Também se pronunciou sentença de morte contra Marmaduke Stevenson, Mary Dyar e William Edrid. Vários outros foram encarcerados, açoitados e multados.

Não temos desejo algum de justificar os Peregrinos por estes procedimentos, porém acreditamos que sua conduta admite atenuação, considerando as circunstâncias da idade em que viviam.

Os pais de Nova Inglaterra sofreram incríveis dificuldades para prover-se de um lar no deserto; e para proteger-se no gozo imperturbável de uns direitos que haviam adquirido a tão grande preço, adotaram às vezes medidas que, se julgadas pelas perspectivas mais ilustradas e liberais de nosso tempo presente, devem ser pronunciadas como totalmente injustificáveis. Porém, devem ser condenados sem misericórdia por não terem agido em base a uns princípios que eram então não reconhecidos e desconhecidos em toda a cristandade? Se terá a eles unicamente como responsáveis de umas opiniões e uma conduta que tinha-se consagrado desde a antigüidade e que era comum aos cristãos de todas as outras denominações? Cada governo que existia então se arrogava o direito de legislar acerca de questões de religião; e de reprimir a heresia mediante estatutos penais. Este direito era reclamado pelos governantes, admitido pelos súbditos, e está sancionado pelos nomes de lorde Bacon e de Montesquieu, e por muitos outros igualmente afamados por seus talentos e erudição. Assim, é injusto "pressionar sobre uma pobre seita perseguida os pecados de toda a cristandade". A falta destes pais foi a falta de seu tempo; e embora não possa ser justificada, desde logo é um atenuante de sua conduta. Igualmente poderiam ser condenados por não compreender e agir com base nos princípios da tolerância religiosa. Ao mesmo tempo é justo dizer que por imperfeitas que fossem suas perspectivas em quanto aos direitos da consciência, estavam contudo muito avançados à idade a qual pertenciam; e que é mais com eles que com nenhuma classe de homens sobre a terra que está o mundo em dívida pelas perspectivas mais racionais que prevalecem hoje em dia acerca da questão da liberdade civil e religiosa.

JOSÉ MATEUS
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