A HISTÓRIA DE JOHN NEWTON

(1725-1807)

 

DE PLYMOUTH A TORBAY

O jovem aspirante da marinha caminhava apressadamente em direção a Torbay. O barulho de Plymouth ficava cada vez mais distante, e, por trás dele, o sol se punha ao fundo da cordilheira; por isso, ele levantou a gola do blusão para se proteger da friagem daquela noite de primavera. A cada hora, os seus passos, assim como o seu coração, pareciam tornar-se mais confiantes. Por volta do meio-dia, na manhã seguinte, já teria percorrido os cinquenta quilómetros entre o H.M.S. Harwich e o encontro com seu pai. Vez após vez repetia a sua história, esperando que tão-somente ela soasse razoável a qualquer soldado do exército real que viesse a encontrar. Para trás, no navio de guerra ancorado no porto de Plymouth, ficara um capitão enfurecido, Philip Carteret, por causa da deserção de seu jovem oficial; à frente, em Torbay, achava-se um pai severo, possivelmente lamentando a perda recente de algum navio de seu interesse, nada sabendo do encontro que o filho pretendia ter consigo. No caminho enlameado, John Newton, salpicado de lama, estava completamente só. Mas essa era a história de sua vida. A mãe havia morrido quando ele tinha apenas sete anos. Desde então, poucos amigos tivera e se esforçara por opor-se à maioria dos que conhecera, especialmente àqueles que tinham posições de autoridade. Na primeira noite, Newton dormiu sob o céu frio e, bem cedo, no dia seguinte, reiniciou a viagem. Enquanto encurtava a distância que o separava de Torbay, refletia sobre os seus dezenove anos de vida, fazia planos para o futuro e repetia a história que inventara às pressas.

Educado na Verdade

John Newton nasceu em Londres a 24 de Julho de 1725. Visto que, durante a sua infância, o pai passava a maior parte do tempo no mar, a mãe se encarregava de educá-lo. Esta mulher temente a Deus, frágil e gentil, com frequência trazia o seu único filho para perto de si e contava-lhe histórias da Bíblia. "Ela acumulava em minha me­mória, muito retentiva naquela época, muitas coisas valiosas, tais como capítulos e porções das Escrituras, hinos e poemas." Dez anos antes do nascimento de Newton, Isaac Watts, depois de ter escrito os seus Hinos e Cânticos Espirituais, publicou os Cânticos Divinos para Crianças. Eram estes os cânticos que entoavam pela casa, quan­do ambos, mãe e filho, adoravam a Deus e oravam pelo pai ausente, no mar.

Logo surgiram os Cânticos Divinos e Morais, de Watts, com temas como "contra o escárnio e a calúnia" e "contra a vaidade no vestir". A Sra. Newton achava que tais cânticos continham um ensino moral precioso e com eles enchia a mente de seu jovem filho. Certamente, quando ele era ainda um bebé, ela lhe cantava a ma­ravilhosa canção de ninar que Watts, um celibatário por toda a vida, incluíra em seus Cânticos Divinos e Morais. Esta paz e este calor afetuoso desapareceram com a morte da mãe, em 1732. Ela desejara ardentemente que o filho viesse a se dedicar ao ministério e, por isso, encomendara-o muitas vezes a Deus, com muitas orações e lágrimas. Foi um dia terrível o da morte da mãe e, pior ainda, o dia em que uma madrasta veio substituí-la. Era suficientemente bem tratado, mas a nova Sra. Newton nutria pouco amor pelo enteado e menos cuidado ainda pela alma dele. Não havia mais histórias da Bíblia, nem Cânticos Divinos ao redor da lareira, nem orações ao deitar. John tinha permissão para andar com crianças rudes e ímpias. Ele se tornou violento, rancoroso e rebelde. Dois anos num internato de classe inferior, em Essex, serviram unicamente para instigar a sua indiferença para com a religião, sendo esta também toda a educa­ção escolar que teve.

Aos onze anos, John fez a sua primeira viagem marítima junto com o pai, que neste tempo era capitão da marinha mercante no Mediterrâneo. O capitão Newton exercia uma disciplina rígida sobre o filho. Embora a cabina do capitão propiciasse refúgio para a árdua vida de serviço na marinha mercante, o pai mostrava-se sempre distante do filho. A brisa do mar, as brincadeiras grosseiras e a vida livre que os marinheiros levavam fizeram que John desejasse se tornar um homem, um verdadeiro homem, tal como os marinheiros do pai. John viajou várias vezes com o pai. Aos quinze anos tornou-se aprendiz de um comerciante amigo, em Alicante, na Espanha. "Mas o meu comportamento irrequieto e a minha impaciência fizeram daquela oportunidade um malogro." Sob a disciplina inflexível e rígida do capitão Newton, o espírito do jovem sentia-se intimidado; porém, longe do pai, ele conhecia poucas restrições.

De vez em quando, a sua impetuosidade era interrompida, e Newton manifestava um conflito de consciência, ao desejar atirar-se irrefletida e dissolutamente à vida e ao ser impedido pelo ensino que recebera de sua mãe. Dois incidentes marcaram-lhe a consciência. Não foram incidentes notáveis em si mesmos, mas sem dúvida foram usados por uma mão invisível para impedi-lo de entregar-se a uma vida totalmente desregrada. Certa vez, aos doze anos, Newton foi jogado de um cavalo, escapando de ficar espetado nas estacas de uma cerca recentemente cortada; isso aconteceu de tal maneira que, por um momento, fê-lo pensar seriamente na Providência. Em outra ocasião, por chegar cinco minutos atrasado, ele deixou de embarcar no barco que o levaria, juntamente com um amigo, para visitar um navio de guerra; o barco virou e o seu amigo morreu afogado. New­ton nunca soube nadar (estranhamente, uma falta muito comum entre os marinheiros na época das embarcações à vela), e a ideia de deparar-se com a morte tão de perto levou-o, por algum tempo, a encarar a vida com mais seriedade.

Uma Mente Envenenada

Agora, enquanto o aspirante da marinha caminhava para Torbay tais acontecimentos pareciam-lhe insignificantes. Podia rir-se deles e contá-los em detalhes aos colegas do tombadilho. Não eram importantes; John tivera apenas sorte. Porém, não conseguia fugir do fato que, quando tais acontecimentos se deram, afetaram-no profundamente. Conseguia lembrar-se de algumas ocasiões em que se decidira por períodos de reforma pessoal e vivera como um fariseu. Em extraordinário contraste com a sua vida habitualmente extra­vagante, passava longas horas a ler a Bíblia, meditando e orando. Também jejuava e, certa vez, tornou-se um vegetariano, por três meses, vivendo em medo constante de pronunciar palavras impróprias. Era ascético, mas, segundo a sua confissão anos depois, "era uma religião pobre; deixava-me, em muitos sentidos, sob o poder do pecado e, naquilo em que era eficaz, tendia apenas a fazer-me melancólico, estúpido, reservado e inútil". Assim é a capacidade do homem em transformar a si mesmo! John admitia que "amava o pecado e não queria abandoná-lo". Este prazer pelo pecado, comum a todos os homens, arruinou completamente a sua vida, até que Deus mesmo o arrancou da ruína.

O jovem aspirante pensou no dia em que encontrou casualmente um livro que atingiu fortemente a sua consciência. Foi um livro que mudou profundamente a sua maneira de pensar.

O livro Características dos Homens, Costumes, Opiniões, Tem­pos, etc., de Lord Shaftesbury, foi publicado em 1711 e, por volta de 1733, tornara-se de tal modo popular que um prefácio à edição de bolso dizia: "Os melhores peritos são unânimes em afirmar que a língua inglesa jamais possuiu obra tão admirável, deleitosa e instrutiva". Em essência, os dois compridos e (para um leitor mo­derno) tediosos volumes continham uma mensagem simples. O uni­verso é governado por uma mente amável e benévola, pelo que o homem deve viver também de modo benévolo. A natureza humana não erra: "Quando parece verdadeiramente ignorante ou perversa nas suas realizações, declaro-a, apesar disso, tão sábia e prudente como em suas melhores obras". A deformidade da alma (aquilo que John fora ensinado a chamar de "pecado") deve-se unicamente aos nossos "corpos frágeis e órgãos corruptos". A má conduta não é nada, exceto um mau discernimento daquilo que é moralmente bom. Isto, juntamente com a paródia do conde a respeito dos fanáticos religiosos, descritos como "homens orgulhosos e grosseiros", apelava ao espírito rebelde do jovem Newton. Shaftesbury teve o cuidado de não negar a fé cristã e a crença em Deus; Newton também não desejava, naquela época, ir tão longe. Ele considerava o autor "uma pessoa muito religiosa", que acreditava num Deus distante, impessoal, que não se envolvia nos assuntos do mundo; e isto estava muito mais de acordo com o gosto de John.

Shaftesbury pisoteava, com eloquência, a doutrina evangélica do pecado original e a consequente crença numa predisposição natu­ral para pecar, inata em todos os homens; e representava o homem como essencialmente bom e virtuoso. Com isso, John podia desprender-se da teologia Puritana de sua mãe. Ele memorizara passagens inteiras da Rapsódia e, sem dúvida, podia recitá-las como justificati­va de suas ações: "Não resistirei por mais tempo à paixão que cresce em mim pelas coisas naturais, que nem a arte, nem a vaidade, nem o capricho do homem espoliaram da sua ordem genuína, mediante a resistência ao seu estado primitivo". Este modo de encarar a vida abria a porta a tudo. A definição de moralidade estava a cargo de Newton mesmo; não lhe haviam dito que é o próprio homem quem deve descobrir "o que é bom e o que é mau para si mesmo"? Con­siderava que finalmente havia encontrado o caminho para a verdadei­ra felicidade. Assim, com "belas palavras e lindos discursos", deixara que o seu coração simples fosse logrado. Leu e releu a Rapsódia, como mais tarde confessou, até que o lento veneno se infiltrou em sua mente.

Por Amor a Mary

Quando deixou de pensar no passado para se fixar na realidade do presente, a ideia de que se encontraria com o pai, ao término da estrada para Plymouth, causou-lhe um calafrio. Tais entrevistas eram sempre desagradáveis. Eleja provara a paciência de seu pai por mais de uma vez. No final de 1742, o Capitão Newton, desesperado com o seu voluntarioso filho, arranjou a maneira de estabelecê-lo na Ja­maica, onde homens ainda jovens eram urgentemente necessários para dirigir o trabalho escravo nas plantações. Um amigo, Joseph Manesty, comerciante em Liverpool, arranjou as coisas; o filho, com a perspectiva da riqueza e de uma liberdade para viver como quisesse, concordou prontamente; e o pai, com a perspectiva de se ver livre de um filho desordeiro, sentiu-se mais do que contente. A uma semana da partida para Liverpool, Newton precisava fazer uma viagem até perto de Maidstone, em Kent, para resolver negócios de seu pai; decidiu aproveitar esta viagem para visitar a família que cuidara de sua mãe nos seus últimos dias de vida. Achou que devia, pelo menos, conhecer as pessoas que, para si, até então não passavam de nomes. Assim, a 12 de Dezembro, dirigiu-se à modesta mas confortável casa no West Borough de Chatham, onde foi recebido como um membro da família há muito ausente. O casal Catlett tinha vários filhos: Jack, de onze anos, um diligente estudante no colégio de Rochester; Elizabeth, de treze, e Mary, ou Polly, como era familiarmente chamada, que faria quatorze dentro de um mês. Havia outros filhos na família, cujas idades ficavam entre a de Polly e a do bebé George. Quando o aventureiro de dezessete anos contemplou Mary, o seu coração fi­cou perdido. Passados mais de vinte anos, escreveu: "Praticamente no primeiro olhar que dirigi a esta moça, senti uma afeição por ela que nunca diminuiu nem perdeu a sua influência, por um momento sequer, em meu coração. Em grau, igualava-se a tudo o que os escritores de romance haviam imaginado; em duração, era inal­terável".

John fora tão calorosamente recebido pelos Catletts que acabou permanecendo mais do que os três dias planejados. Mary sempre se comportava da melhor maneira e não o encorajava muito a pensar que o seu ardente amor, de algum modo, fosse correspondido. A princípio John não compreendia o que lhe sucedera: "Sentia-me agitado quando estavas ausente; no entanto, à tua presença mal ousava olhar-te". Se tentava falar, sentia-se embaraçado, mas não suporta­va a ideia de ter de ausentar-se dela. Pobre John! Numa carta para Mary, muitos anos depois, confessou: "O meu amor tornou-me estúpido a princípio". Todavia, ela evidentemente gostava de sua companhia, e os três dias tornaram-se três semanas, o que significa que passou o Natal com Mary. A carruagem para Londres, e de Londres para Liverpool, fora e viera muitas vezes; o navio de Liverpool para a Jamaica partira sem ele. John decidiu que não iria; não poderia ir para as índias Ocidentais e ficar longe de "Polly" por cinco anos. Quando finalmente regressou a Londres e acalmou a ira do pai, John não se atrevia a contar a verdadeira razão da sua demora.

De fato, não podia contar a ninguém sobre o seu amor, nem sequer à pessoa em questão. "Aquele amor permaneceu como um misterioso fogo fechado em meu peito."

Mary era a única pessoa viva que ele amava, por quem tudo sofreria de bom grado. Era por causa dela que tão desesperadamente queria uma entrevista com o pai. Se Polly pudesse ser sua! Ele sofreria qualquer coisa por amor ao seu ídolo. Pensar em Mary estimulava os passos de John. Os seus pensamentos e a sua imaginação divagavam e perambulavam.

O ruído de cascos, uma imprecação, o barulho dos arreios, e o aspirante Newton viu-se obrigado a voltar para trás. Mui repentinamente, para que John tentasse evitar ser visto por eles, um grupo de soldados do exército real surgiu numa curva da estrada, e o jovem marinheiro achou-se de imprevisto a proferir uma razão pobremente arquitetada para explicar a sua presença naquele local, sem cavalo, sem mochila, sem ordens oficiais e de costas para a armada de Sua Majestade. O oficial encarregado não se deixou enganar nem per­suadir, e o desertor, fatigado, apenas a duas horas de distância do seu destino, teve de caminhar de volta para Plymouth. Maltratado como um criminoso e empurrado ao longo das tavernas e por entre ma­rinheiros embriagados que lhe arreganhavam os dentes, Newton foi levado através da cidade até à pequena prisão.

Foi deixado ali por dois dias, sozinho, para pensar. Não foram encorajadores os seus primeiros pensamentos. John Newton já estivera a bordo de um navio de guerra o tempo suficiente para saber o que o esperava. Um conselho de guerra e o enforcamento no pátio seria misericordioso; mas poucos eram deliberadamente mortos, pois o potencial humano mostrava-se insuficiente; e a guerra com a França era eminente. Seria uma "fustigação infligida por toda a armada"? Amarrado ao cabrestante, ser-lhe-iam aplicadas vinte e cinco ou trinta chicotadas nas costas nuas e, depois, seria levado aos outros navios para que lhe aplicassem o mesmo castigo, até ter percorrido toda a armada ancorada; o fato de alguns navios terem naufragado alguns dias antes, devido às severas tempestades, era apenas um pequeno conforto. Não ouvira ele que, depois de um tal castigo, "quase sempre morriam"? Passar pelo chicote seria menos perigoso. A tripulação do navio enfileirar-se-ia à volta do convés, e Newton, despido até à cintura, seria obrigado a andar ao longo da fileira, e cada um dos marinheiros espancá-lo-ia com um chicote, com o oficial do navio andando de costas à sua frente e de espada desembainhada, para abrandar-lhe os passos. Comparado a isto, o ser arrastado por baixo da quilha do navio, de um lado para o outro, era uma punição leve. John não encontrava conforto nas Regras de Disciplina e Bom Governo para se Observar a Bordo dos Navios de Guerra de Sua Majestade, elaboradas em 1730. É verdade que proibiam um capitão de infligir mais do que doze chicotadas; mas havia poucas punições leves, e quando, no passadiço, um marinheiro desafortunado ficava com as costas ensanguentadas e era arrastado para baixo, gemendo e contorcendo-se, quem iria denunciar o capitão? O capitão era todo-poderoso em seu navio.

John não teve muito tempo para divagar sobre tais pensamentos. Passados dois dias foi entregue ao seu comandante e posto a ferros. Naqueles alojamentos limitados, restringido pelo espaço e pelas algemas, nas profundezas do navio, onde o cheiro abominável da imundície estagnada do lastro lhe infestava por completo as narinas e os pulmões, o marinheiro recalcitrante aguardava o seu destino. Não era a primeira vez que o aspirante Newton provocava a ira do comandante, e o Capitão Carteret, da Marinha Real, determinara que aquela seria a última. Fora unicamente devido à intercessão de seu pai que Newton fora promovido. Tendo eleja abusado uma vez do tempo de licença e ofendido o capitão pela sua insolência e comportamento indecente, Philip Carteret desta vez iria quebrar-lhe a vontade, lançando ao mesmo tempo um aviso ao resto da tripulação.

Toda a tripulação foi reunida no convés principal. O delinquente, nu até à cintura, foi posto numa grade onde os pés, na posição "à vontade", foram amarrados e os braços, abertos acima da cabeça, ficaram presos pelos pulsos. Os fuzileiros organizaram-se em fila na popa, acima dos marinheiros e de frente, para impedirem qualquer intervenção por parte dos tripulantes. O cirurgião do navio e o oficial puseram-se um de cada lado, e todos esperavam em silêncio o começo do castigo. O navio baixava e levantava com a ondulação do mar, a brisa fazia-se ouvir no cordame, e as gaivotas chilravam zombe­teiramente por cima das cabeças dos homens, quando o capitão Carteret, trajado cerimonialmente, surgiu do seu camarote. Leram-se o nome de Newton, a sentença e os "estatutos de guerra" apro­priados, e deu-se a ordem para começar. Avançou o contramestre que, com uma forte e brutal chicotada, esfolou a carne branca das costas do prisioneiro. Quantas dúzias de chicotadas John New­ton apanhou, cada uma infligida pelos ajudantes do contramestre, não foi registrado. Embora este capitão fosse, segundo os padrões da época, "geralmente muito humano, agindo com benevolência para com a tripulação do navio", a ofensa era grave, por isso o castigo devia ser adequado ao crime. Por ordem do capitão, o corpo lacerado foi desprendido, enrolado numa manta e levado para baixo. O cirurgião executou o agonizante ritual de cauterizar as feridas com vinagre, essências puras, água salgada ou alcatrão quente, e a tripulação foi dispersada para continuar com a sua rotina.

 

Um Marinheiro Raso

Por vários dias, Newton alternou entre o estado de consciência e o de coma, enquanto a febre lhe atormentava o corpo. Como con­sequência do que acontecera, foi rebaixado de oficial a marinheiro raso, e os seus amigos oficiais foram proibidos de lhe falar. Mais uma vez se encontrava só e sem amigos. Apenas a sua constituição de ferro e o forte desejo de ver Mary o habilitaram a readquirir forças. Fracassara na intenção de chegar até Mary, mas "ansiava ser ou fazer algo que me ajudasse a concretizar os meus desejos no futuro".

Num estado deplorável, por baixo do tombadilho, e antes do cirurgião declará-lo em condições de regressar ao trabalho normal, John pôde voltar a refletir sobre a sua vida, uma reflexão abruptamen­te interrompida por aqueles soldados do exército real, na estrada de Plymouth para Torbay! Quando John não embarcou no navio que o esperava em Liverpool com destino à Jamaica, o capitão Newton não perdeu tempo e arranjou-lhe outra alternativa e, em breve, John estava trabalhando como marinheiro a bordo de um navio comercial que operava entre a Inglaterra e o Continente. Trinta anos após New­ton ter iniciado a vida do mar, o Dr. Johnson, um famoso ensaísta, historiador e lexicógrafo, disse: "Nenhum homem que não tenha sagacidade suficiente para se jogar numa prisão será um marinheiro; porque estar num navio é estar numa prisão, com o risco de morrer afogado. O homem na prisão tem mais espaço, melhor comida e, geralmente, melhor companhia". A vida a bordo no século XVIII era limitada, doentia e dissoluta, sendo quase impossível para um jovem de dezessete anos resistir às tentações e oportunidades que o rodeavam. Além disso, não havia lugar para o ascético ou para o individualista na vida comunitária do navio mercante. E, segundo a sua própria confissão, não tardou a que John Newton se deixasse corromper devido ao mau exemplo e à má companhia dos que lhe rodeavam. John fez "uns frágeis esforços a fim de parar"; porém, tudo o que conseguiu foi "avançar, a passos largos, em direção a uma apostasia total de Deus". A instrução que recebera da mãe, os hinos de Watts, as histórias da Bíblia, a visão de "Polly" e as suas primeiras tentativas de auto-reforma não impediram a sua queda.

Durante uma visita a Veneza, que, antes da descoberta da rota do Cabo para a índia, era a entrada para o Oriente, Newton recebeu um aviso que nunca duvidou ter procedido da mão de Deus; foi uma experiência única em sua vida. Teve um sonho que seria uma parábola da sua vida. O cenário era o porto de Veneza, e Newton, que estava de guarda, foi abordado por um estranho que lhe deu um anel, com a promessa de que enquanto o conservasse seria um homem afortu­nado e feliz. O estranho avisou-o também de que, se alguma vez se desfizesse do anel, deveria esperar unicamente tristeza e miséria. Newton, alegre com o presente, foi pouco depois abordado por um segundo estranho que fixou o olhar no anel, ridicularizando as promessas feitas acerca dele. A princípio, Newton recuou, mas depo­is acabou por concordar com a sugestão de que, para mostrar a sua rude indiferença quanto a promessas tão absurdas, deveria atirar o anel à água. Imediatamente, as longínquas montanhas irromperam em fogo e os Alpes transformaram-se num inferno terrível. Lembrado pelo seu tentador de que perdera o direito a todas as promessas de Deus, Newton viu aparecer o primeiro estranho que, ao tomar conhecimento da causa da sua angústia, recuperou o anel da água. O marinheiro tentou receber novamente o anel; todavia, o estranho o reteve, dizendo: "Se este anel te fosse confiado outra vez, muito em breve atrairias o mesmo infortúnio sobre ti. Não és capaz de preservá-lo, por isso guardá-lo-ei para ti. Sempre que necessitares dele, exibi-lo-ei por ti". Naquela ocasião, o sonho perturbou-o seriamente, pelo que, por dois ou três dias, mal conseguiu comer alguma coisa, dormir ou cumprir as suas obrigações. "Mas a impressão causada passou depressa, e eu o esqueci por completo. Só vários anos mais tarde, o sonho me voltou à memória". Prosseguiu então com uma vida que posteriormente descreveu como de "licenciosidade e loucura".

Se John Newton, que se debatia em dores, na maca a bordo do Harwich, e refletia sobre a sua vida, tivesse parado para considerar as muitas ocasiões em que Deus interviera em sua vida e semeara na sua mente impressões de misericórdia quanto à sua rebelião e ao seu caminhar incauto, ele não poderia ter feito outra coisa senão procurar o perdão de Deus em Cristo. Porém, ele desprezara todas as promessas e privilégios que lhe haviam sido oferecidos. A cruz, da qual a mãe lhe falara tantas vezes, não significava nada para ele. Nem o amor de um Salvador crucificado, nem as repreensões de um Deus santo lhe mudariam a vida. A Rapsódia libertara-o e liberto continuaria. Anos depois, o pródigo convertido compreendeu o verdadeiro estado da sua alma naquela época: "Achava-me desamparado e desesperado, à beira de uma eternidade aterradora. Se o meu entendimento tivesse sido aberto, teria visto o meu grande inimigo, aquele que me seduzira obstinadamente a rejeitar e a me desfazer das minhas crenças religio­sas e a me envolver em delitos complexos". Só mais tarde ele percebeu que a sua vida pródiga, na realidade, não fora uma vida de liberda­de e sim de escravidão; também viu que a mão de um Deus soberano traçara o seu caminho e preparara um lugar para o arrependimento. "Deveria, igualmente, ter visto aquele Jesus, a quem eu perseguira e desonrara, repreendendo o adversário, reclamando-me para Si mes­mo, como um tição arrancado do fogo, e dizendo: 'Não o lances no abismo; eu tenho o resgate'." Mas, antes que a sua libertação chegasse, Newton se aproximaria ainda mais do abismo.

O Destacamento de Recrutadores

Agora, como marinheiro raso no Harwich, John pensava apenas no passado; afinal, o futuro não era animador. Para trás, ficara Mary; pela frente, havia a possibilidade de cinco anos de separação. John pensou com tristeza no último encontro que tivera com Mary e nas circunstâncias que o trouxeram ao Harwich.

Em dezembro de 1743, John regressou uma vez mais à sua terra, vindo do mar, e trilhou apressadamente o caminho para Chatham. Infelizmente apresentava uma perspectiva menos atraente para Mary. Talvez poderia emocionar o Jack, contando-lhe histórias do mar, e impressionar as duas moças com a sua "vasta" experiência e sua força máscula, mas com o Sr. Catlett seria diferente. John era um rapaz indeciso e desobediente, que desperdiçara a oportunidade de um posto lucrativo nas índias Ocidentais, não passando agora de um marinheiro raso. Se fosse um oficial, seu salário seria bastante pequeno, mas como marinheiro não tinha valor algum. Visto que o desajeitado adolescente ainda não havia proposto casamento a Mary, era melhor nem sequer pensar nisso. Newton prolongou outra vez a sua estadia em Chatham, irritou o pai e veio desta vez a pagar caro pela sua indolência.

Em princípios de 1744, a armada francesa tornava-se cada vez mais agressiva no Canal da Mancha, e George II ficou alarmado. A vergonhosa derrota de 1667, em que os holandeses silenciaram os defensores de Sheerness, invadiram Medway e atacaram a armada em Chatham, não deveria repetir-se jamais. O novo e enérgico ministro do rei, o Lorde Carteret, ordenou uma imediata proposta de lei para as esquadras britânicas. O recrutamento era sempre um problema, visto que não havia uma marinha de guerra permanente e as perdas devido às doenças eram imensas. A lei autorizava os capitães a enviar "destacamentos de recrutadores" para ajudar a recrutar, sendo o marinheiro mercante o primeiro alvo (a lei protegia apenas o capitão mercante, o primeiro-imediato e o piloto). As pernas arqueadas, o modo de andar e a má linguagem de marinheiro traíam-no, más o jovem nunca se juntaria à marinha de livre vontade. O salário de marinheiro, num navio de guerra, era de vinte e quatro xelins mensais, enquanto no serviço mercante montava a cinquenta. E, como Daniel Defoe singularmente observou, em 1697: "Quem serviria ao seu rei e ao seu país, lutaria e morreria" por uma quantia como esta?

Os recrutamentos eram sempre dispendiosos. Em 1756, o custo do recrutamento de um homem, depois de todos os subsídios pagos, podia elevar-se a cento e catorze libras; era também cruel, e os destacamentos brigavam frequentemente uns com os outros pela pos­se de uma vítima infeliz. Em 1796, um navio que comerciava com a índia e que acabara de completar uma viagem mercante de muitos anos, ancorou no Tamisa; um capitão naval, do H.M.S. Britannia, abordou o navio e à vista de esposas e noivas recrutou toda a tri­pulação. Somente os navios que estavam de viagem para o exterior ficavam livres do "recrutamento". O recrutamento compulsório era um dos costumes mais cruéis e bárbaros já impostos, e, para evitá-lo, os homens iam ao ponto de cortar os próprios dedos, fingir paralisia ou esfregar urtigas no corpo para simular uma terrível brotoeja.

Numa quarta-feira, 8 de fevereiro de 1744, o primeiro-tenente do H.M.S. Harwich fez uma breve anotação no seu diário de bordo: "Eu e 31 soldados embarcamos no Betsy Tender com o propósito de recrutar". Eles também tinham ordens para obter provisões para a viagem seguinte. O Betsy Tender partiu do porto de Harwich e ancorou em frente a Sheerness, em Kent, no domingo da mesma semana. Oito dias depois, o tenente Ruffin registrou ter levado para bordo "15 homens do Hospital de Chatham, 3 homens dispostos a serem recrutas e 2 homens do Hospital de Sheerness".

No dia 25, um sábado em que, segundo o diário do capitão, houve fortes vendavais e neve, John Newton foi um dos oito homens recrutados e levados a bordo do H.M.S. Harwich, juntamente com o pão, a aguardente, a carne de vaca, a manteiga, a carne de porco, o sebo, as ervilhas, a farinha de aveia, o queijo e o vinagre, não enumerando as armas de fogo, a cordame, e os duzentos e vinte barris de pólvora que o primeiro-tenente entregou ao seu capitão. O H.M.S. Harwich era um navio de guerra de quarta ordem, de novecentos e setenta e seis toneladas e de cinquenta canhões. O na­vio, construído em Harwich em 1742, chamou-se primeiramente Tiger; porém, em Novembro de 1743, mudaram-lhe o nome. O seu capitão necessitava desesperadamente de mais gente para comple­tar a tripulação, e, num navio em que o convés dos canhões media quarenta e dois metros e a maior largura era apenas de doze metros, as limitadas condições de vida de uma tripulação de trezentos e cinquenta homens não são difíceis de imaginar. Newton comentou, em poucas palavras, a sua nova experiência: "Sofri muito cerca de um mês".

Se a vida era árdua no serviço mercante, na marinha o era ainda mais. No primeiro mês, Newton participou da dieta dos outros marinheiros: biscoitos (feitos de farinha e água convertidas numa pasta dura, geralmente repletos de bichos, após algumas semanas no mar) e carne de vaca ou de porco salgada que acabava por não ter o sabor "nem de peixe, nem de carne, mas de ambos". A carne era com frequência tão negra e dura que os marinheiros desperdiçavam as suas poucas horas livres gravando figuras nela e polindo-as. Sabia-se que os queijos haviam sido usados como borlas para o mastro da bandeira do navio e que haviam aguentado os elementos tão valen­temente quanto a mais forte madeira; muitas vezes os marinheiros faziam do queijo botões para os blusões e para as calças. Uma descrição do próprio Newton, a respeito dos biscoitos do navio, dizia: "Eram tão leves que, se batêssemos com eles de leve em cima da mesa, desfaziam-se praticamente em pó, surgindo então numerosos insetos conhecidos pelo nome de gorgulhos; estes eram desagradá­veis ao paladar e indício certo de que o biscoito perdera as suas partículas nutritivas. Se, em lugar desses gorgulhos, aparecessem grandes gusanos com cabeças negras, podíamos considerar que o biscoito estava apenas na sua primeira fase de deterioração — os rusanos eram gordos e sem sabor, mas não desagradáveis". A água mostrava-se invariavelmente verde e fervilhante; ninguém compreendia os efeitos das bactérias. Dizia-se do marinheiro: "Ele tem um es­tômago invencível, que, à semelhança do avestruz, quase pode digerir ferro". Muitas vezes tinha mesmo de fazê-lo. Sopa de ervilhas era praticamente a única comida que o cozinheiro não conseguia estragar. O escorbuto, originado pela carência de vitamina C, e a disenteria, devido à imundície do porão sobre o qual os marinheiros viviam e dormiam, eram causas de um grande número de vítimas. Passar-se-iam ainda cinquenta e um anos antes que o Estado Maior da Arma­da ordenasse a ingestão de hortaliças, fruta fresca e suco de limão como preventivos contra o escorbuto. Estimou-se que, durante a Guer­ra dos Sete Anos, de 1756 a 1763, dos cento e oitenta e cinco mil homens levados para serviço no mar, mais de dois terços morreram por motivo de doença. Segundo o Lorde Nelson, a vida útil do marinheiro findava aos quarenta e cinco anos; se continuasse vivo depois dessa idade, seria atormentado por malárias, deformado pelo reumatismo e ficaria aleijado devido às hérnias.

Felizmente, para Newton, o seu pai interveio e, embora incapaz de conseguir a isenção do filho num período de estado de alerta, obteve a sua promoção ao tombadilho superior, através da qual, como aspirante da marinha, lhe era concedida alguma autoridade, "a qual, como insolente e vaidoso que era, não hesitei pôr em prática". Agora podia oprimir, dar ordens e tratar com desacato aqueles com quem roera os biscoitos e o queijo incomestíveis. O amigo mais íntimo de Newton, entre os oficiais, era um jovem de "talentos naturais mui­tíssimo bons"; era um livre pensador, pelo que não lhe foi difícil en­corajar o recém-chegado a completar o processo "libertador" iniciado por Shaftesbury. John idolatrava o amigo e ficou amargamente triste quando, alguns meses mais tarde, uma tempestade bastante violenta o lançou fora do navio, levando-o para a eternidade. Havia escutado os argumentos do amigo e bebido as suas palavras de "sabedoria", até que por fim "renunciei as esperanças e os confortos do Evangelho, precisamente na altura em que todos os outros confortos estavam prestes a abandonar-me".

Assim que John se converteu a este livre pensar, transformou-se em um apóstolo desta causa e encontrou um excelente ouvinte na pessoa de um impressionável jovem chamado Job Lewis. Job idolatrou John quase tanto quanto este idolatrara o seu velho amigo. Em meio às longas horas de trabalho, Newton gostava de transmitir a Job Lewis as preciosidades proferidas pelos lábios eloquentes de seu velho ami­go, fazendo-o com uma aparência de sábia autoridade, implicando que tais palavras eram suas. Newton iniciou Lewis no caminho escoregadio em que ele próprio havia embarcado. Os três amigos riam da Bíblia, zombavam da religião verdadeira e vendiam as suas almas ao mundo. Anos depois, quando Newton tentou desespe­radamente impedir a queda de Job Lewis e reverter tudo o que lhe gravara na mente, descobriu quão desregrado e humanamente irre­versível é o caminho pelo qual haviam enveredado.

Em Dezembro de 1744, Newton obteve licença para passar um dia em terra e se dirigiu, a cavalo, para Chatham. Não foi um encontro inteiramente bem sucedido e Mary não o encorajou muito. Só voltou ao navio no dia de Ano Novo e ficou feliz quando o capitão mandou-o embora do camarote apenas com um severo aviso. Desta vez o espírito de John ficara deveras abatido. Possuía pouco nesta vida; também estava convencido de que não havia nada a esperar depois da morte. O amor ardente que nutria por Mary era a única coisa que mantinha uma centelha de esperança viva em seu coração. Uma carta dirigida a Mary, escrita do Harwich a 24 de janeiro de 1745, revela o estado em que então se encontrava: "Não fora por ti, e eu continuaria uma pessoa difícil, desagradável e insociável. Tiraste-me da melan­colia depressiva em que eu caíra e que me empurrara para o mundo. Já se passaram mais de dois anos; no entanto, continuo decepcionado com tudo o que empreendo..." Sem Deus, John encontrava-se sem esperança neste mundo.

O Comboio de Escolta

O H.M.S. Harwich partiu de Spithead no princípio de 1745. John soube que a armada seria enviada numa missão que certamente os manteria afastados de casa durante cinco anos. A ideia de ficar separado de Mary, apesar de que seu amor por ela não parecia ser correspondido, era insuportável, e, quando a armada foi forçada a abrigar-se em Plymouth devido a uma violenta tempestade, Newton não cumpriu com as suas responsabilidades, ao abandonar um grupo de soldados que havia sido enviado a terra sob o seu comando e ao dirigir-se a caminho de Torbay.

Enquanto se revirava na maca, ou tratava as costas laceradas, ou amaldiçoava o destacamento que o havia descoberto, John New­ton não via mais nada em sua vida, exceto tristeza e desconsolo. A consciência atormentava-o mais do que as feridas. Sua mãe, Mary, uma vida desperdiçada, uma esperança de salvação rejeitada, tudo se amontoava no seu pensamento. "O meu peito estava cheio das mais agonizantes paixões, de fúria amarga e de um lúgubre deses­pero... Quer dentro de mim, quer no exterior, não conseguia ver senão miséria e negridão."

Quando finalmente o Harwich zarpou de Plymouth, John perdeu toda a esperança de ver Mary por muitos anos. Contemplou o litoral desaparecendo por entre o nevoeiro e, por um momento, chegou a pensar em atirar-se ao mar; apenas o pensamento sobre qual poderia ser a reação de Mary o impediu de fazer aquilo. Uma ordem áspera fê-lo voltar à realidade; tinha-se pouco tempo para contemplar o passado ou o futuro a bordo de um navio de guerra. O ocioso marinheiro transformar-se-ia muito em breve num homem indolente e atrevido. Alguns capitães açoitavam os marinheiros pela única ofensa de sorrirem na presença de um oficial, e os oficiais portavam bastões e chicotes como "incentivos" para obrigar os marinheiros a cumprirem imediatamente a ordem recebida. Não devemos nos admirar, pois, que para sobreviver (e é surpreendente que muitos o tivessem conseguido) o marujo da Marinha Britânica tivesse de ser um homem de ferro, "capaz de transportar cerca de cinquenta quilos de uma liga de estanho, durante pelo menos cinco quilómetros, sem parar".

Geralmente podia-se contar com as escoltas para proporcionar alguma ação, mesmo que fosse à guisa de lealdade para com a coroa. A 12 de junho de 1744, seis meses antes de Newton desertar e ser colocado no porão, a ferros, os marinheiros estavam de alerta junto aos canhões, e, enquanto o navio se deixava arrastar sem rumo ao "sabor da brisa", o capitão anotou: "Disparados 17 canhões pela subida de Sua Majestade ao trono. Às dez horas, recrutados 7 homens do navio William, procedente da Jamaica; enviados um imediato e seis homens no lugar deles". Newton observava os homens recrutados subindo para bordo do Harwich com uma simpatia compreensiva. Por volta de 20 de junho, os canhões foram acionados por outra razão, e um navio francês vindo de Dunquerque, de carga mista, com 20 canhões e cento e setenta e seis homens a bordo, foi capturado e enviado sob escolta, como presa de guerra, para a Inglaterra. Em um domingo, 30 de setembro, o Harwich aprisionou um navio de guerra francês, também de Dunquerque. O combate principiou às seis da manhã e à uma e meia da tarde o capitão fez o seu relatório: "Vimo-lo, fizemos-lhe uma bordada dos tombadilhos superiores e das gáveas. O navio francês retribuiu a descarga de artilharia, borde­jou e abriu fogo. Às sete, voltamos a vê-lo e atiramos-lhe com os canhões do tombadilho superior e 7 canhões do tombadilho inferi­or. Ele devolveu-nos a bordada, atirou-nos granadas de mão e retrocedeu". Às vinte horas, rendeu-se. O navio de guerra britânico ficou com um homem ferido e grande quantidade de dano na apa­relhagem e no madeiramento. Newton apreciou o combate, o cheiro de fumaça, o estilhaçar da madeira e os gritos da batalha; fora uma luta dura, com o inimigo tão próximo, a ponto de lhes poder lançar granadas. O sangue de John corria-lhe velozmente pelas veias. Era um brado remoto dos domingos de Isaac Watts e das histórias da Bíblia, ao colo da mãe.

Todavia, nem tudo era ação no comboio de escolta. A doença era comum entre os marinheiros, e a 7 de março de 1745, o capitão registrou: "Enviados 35 homens doentes a terra, para o hospital". A 27 de março, julgou sábio "ler os Artigos de Guerra à tripulação do navio"; talvez no dia da selvagem punição de Newton. Quando o Harwich por fim chegou às costas da Madeira, em Abril, seguiram-se semanas de labor rotineiro, com pouca coisa para quebrar o trabalho enfadonho e o tédio, excluindo o dia em que o capitão "distribuiu anzóis e linhas à tripulação do navio!" De outro modo, o registro que se seguiu no livro de bordo do capitão, referente a 11 de maio, um sábado, podia ter-se aplicado a qualquer outro dia: "Brisa leve. Às três da tarde, distribuídas roupas à tripulação do navio. Às sete, distribuídos três quartilhos de água, juntamente com um de vinho". A cansativa rotina do marinheiro sem graduação foi apropriadamente descrita por um segundo-tenente, James Loggie, em seu diário: "Alcatroaram os anteparos, rasparam os lados das chalupas, hastea­ram o mastro principal e afrouxaram os ovéns principais".

O único conforto de John durante esses dias tediosos, em que a fúria de uma separação forçada se fazia sentir com violência no seu roração, era planejar a morte do capitão, à qual se seguiria, de imediato, a sua. Assim, pensava Newton, acabaria com toda a sua desgraça de uma vez para sempre. Mas, a mão invisível de Deus impediu-o de pôr em prática uma solução tão dramática para os problemas criados unicamente por John Newton e que só Deus po­deria resolver.

 

2. A ESCRAVATURA NA ÁFRICA OCIDENTAL

Um aspirante da marinha encaminhou-se arrogantemente para o tombadilho inferior, ergueu os ombros ao avistar a forma inerte, ainda dormindo na maca, e rugiu: "Para tora, é a ordem". Seguiu-se uma cutilada rápida no colhedor, e o marinheiro Newton caiu no chão duro de madeira. Praguejando e semicerrando os olhos à luz do sol, Newton apareceu no convés e parou para ver os homens nos seus afazeres. Dificilmente po­dia queixar-se do seu rude despertar, pois havia castigos mais severos guardados para os marinheiros ociosos; em muitos navios, o último homem a obedecer uma ordem era automa­ticamente punido. Newton lançou uma olhadela pelo porto da Madeira e observou os navios da esquadra ancorados preguiçosamente. A sua atenção foi atraída para um pequeno navio mercante, boiando ali próximo, e depois para dois membros da tripulação do Harwich que transportavam os seus poucos e deploráveis haveres para um bote. John apercebeu-se depressa do que e passava, tratava-se de uma "troca".Um capitão naval podia interceptar qualquer navio mercante levar os membros da tripulação que lhe fossem particularmente contanto que os substituísse por outros, dos seus homens.

Era uma maneira fácil de obter um carpinteiro de que muito neces­sitasse ou livrar-se de um marinheiro imbecil ou débil. A troca podia ser prejudicial para o capitão mercante, que era incapaz de resistir. Todavia, esse sistema de troca também podia tornar-se vantajoso para o mercador. Cinco anos mais tarde, quando Newton comandava o seu próprio navio e se encontrava ancora­do ao largo da Serra Leoa, sentiu-se radiante por se ver livre de quatro membros rebeldes da tripulação, que passaram para bordo do H.M.S. Surprize, e por adquirir, na "troca", quatro mari­nheiros do navio de guerra.

No entanto, na presente situação, Newton pensava apenas numa maneira de escapar. Atravessou, correndo, o convés e im­plorou ao contramestre que demorasse a partida dos dois homens. A seguir, instou com o tenente para que intercedesse junto ao capitão no sentido de consentir que o trocassem por um dos dois homens prestes a partir. O tenente, apesar de não ter qualquer razão para conceder favores a um marinheiro insolente que fre­quentemente lhe causara problemas, falou com o capitão. O ca­pitão Carteret, por sua vez, sentiu-se mais do que radiante por poder se livrar de tal espinho, embora em Plymouth se tivesse recusado a atender o pedido do próprio almirante para transferir o marinheiro castigado. Pouco depois, John Newton encontrava-se no convés do Pegasus, um pequeno navio mercante com des­tino à Africa Ocidental. Assim, em 1745, ano em que o Príncipe Charles, tendo fracassado na sua tentativa de conseguir o trono da Inglaterra, iludiu os soldados ingleses e se fez à vela para Skye, John Newton, havendo também fracassado na sua tentativa de ver o pai e requestar uma noiva, escapou da Marinha de Guerra de Sua Majestade e navegou pela costa ocidental da Africa rumo a Serra Leoa.

Um Coração Endurecido

Enquanto o Harwich deslizava para as névoas da História e, quinze anos mais tarde, para os rochedos de Cuba, John Newton avaliava a sua nova situação. Havia, finalmente, uma possibilidade de obter uma melhor posição na vida, uma posição que lhe merecesse a mão de Mary. Claro que havia aventura num navio de guerra, mas poucas esperanças existiam para um marinheiro re­crutado, que fora açoitado e degradado em público.

O Pegasus estava aparentemente dirigindo-se a Serra Leoa e às partes adjacentes da costa ocidental da África. O seu carrega­mento compunha-se de um desinteressante conjunto de chumbo, chaleiras de cobre, panelas de latão, colherões de ferro, bacias, caldeiras, canhões, pólvora, facas e outros artigos. Cuidado­samente guardado no porão havia um espantoso arsenal de cor­rentes, grilhões, algemas para os pés e para as mãos, coleiras e "anjinhos". O Pegasus era um navio traficante de escravos. Uma parte do seu carregamento constava do "dinheiro" com o qual se havia de comprar escravos dos traficantes locais, na costa oci­dental da África; a outra era os meios com os quais os escravos eram mantidos em ordem durante a segunda etapa da missão de comércio, a partir da África para as índias Ocidentais ou para a América do Sul; uma viagem que muitas vezes ultrapassava sete semanas. Uma vez nestas terras, os escravos eram vendidos prin­cipalmente para trabalhar nas plantações. Depois de vender os escravos, o navio era carregado de açúcar, gengibre, rum, péro­las, algodão e outros produtos que o consumidor britânico espe­rava ansiosamente; então, o navio regressava à pátria, atraves­sando as traiçoeiras águas do Oceano Atlântico. Esta era a etapa final do que se tornou conhecido como o "comércio triangular" da Inglaterra para a África, com artigos para permuta; da África para as índias Ocidentais, com escravos, e das índias ocidentais para a Inglaterra, com produtos para o mercado nacional. John Newton viria a familiarizar-se bastante com o "co­mércio triangular". Era improvável que a viagem triangular le­vasse menos de dois anos. Sem dúvida, alguns escravos também eram transportados para a Inglaterra, sendo que, por volta da metade do século, calculava-se residirem, apenas em Londres, não menos que vinte mil escravos negros.

Todavia, no momento, John Newton era, em grande medida, um ignorante quanto àquele assunto. Nunca estivera antes em um navio de escravos, revelando assim um verdadeiro interesse por tudo o que o rodeava. Os marinheiros envolvidos no comércio desumano viviam pouco melhor do que os próprios escravos, porque, à semelhança dos marinheiros da Frota Naval de Sua Majestade, eram intimidados e espancados sob a autoridade e a mão de ferro absolutas do capitão. Era uma tripulação blasfema, alcoólica e promíscua. Que melhor companhia, pois, haveria para o jovem e livre pensador? A bordo do Harwich, os homens lembravam-se do jovem sério que chegara naquele dia gélido do mês de Fevereiro de 1744; e, mesmo depois de ter abandonado toda a pretensão de sobriedade, Newton não conseguira recompor-se totalmente do passado. Mas a situação presente era outra. Ninguém o conhecia, nem ao seu passado. Fora para bordo como um homem do mundo e, em breve, iniciaria aqueles ma­rinheiros ignorantes numa filosofia que concordava com as vidas devassas que levavam.

John, para sua surpresa, descobriu que o capitão conhecia o seu pai e, por isso, durante algum tempo, nutriu uma disposição tolerante e simpática para com ele. Na verdade, como Newton admitiu mais tarde, podia ter-se saído bem neste navio; era forte, saudável, de modo algum um marinheiro medíocre e filho de um respeitável capitão mercante. Mas Newton estava sob o controle das suas próprias opiniões e de um coração perverso e, tal como o filho pródigo, aventurava-se num país longínquo, a fim de desperdiçar a sua vida. Não demorou muito para que a boca obscena e o comportamento grosseiro lhe merecessem a censura do capitão, que perdeu a sua boa vontade para com ele. "Não apenas pequei com um coração endurecido", confessou pos­teriormente, "como fiz todas as diligências possíveis para tentar e seduzir outros em cada oportunidade". John possuía os dons da sagacidade e da aptidão para respostas rápidas. Certa vez, compôs um poema em que, sem mencionar o nome do capitão, o ridicularizava, assim como ao seu navio; pouco tempo depois, toda a tripulação cantava o novo hino, entremeando-o com pragas e blasfémias nos pontos apropriados. Anos mais tarde, Newton desejou que esta parte da sua vida fosse "enterrada no silêncio eterno".

Por seis meses, John Newton continuou como membro da tripulação, detestado pelo capitão e pelo primeiro-piloto, mas aplaudido pelos marinheiros. À medida que o navio negociava ao longo da costa ocidental africana, Newton participava da arrumação dos escravos no porão do navio. Era algo bárbaro. Os es­cravos do sexo masculino eram algemados juntos e encerrados no porão, sendo dispostos "à maneira de livros numa prateleira". Com apenas um metro e meio de altura entre os conveses, este espaço era dividido por uma tábua de madeira, para que os es­cravos, acorrentados em pares, pudessem ser dispostos em duas camadas. Quarenta anos depois, quando escrevia a favor da abolição do comércio de escravos, Newton comentou: "Via-os tão juntos que era difícil caber mais um na tábua. E, havia um branco com a função de, lá em baixo, colocá-los nestas fileiras e zelar para que não houvesse o mínimo de espaço perdido". As próprias mãos de Newton empurraram, uma vez, os corpos vi­vos para os seus lugares. O objetivo principal era encher o navio. Um barco de pouco mais de cem toneladas podia apinhar, no seu porão, duzentos e cinquenta escravos. O calor e o mau cheiro eram insuportáveis; a febre e a disenteria ocasionavam um grande número de mortes, e não raramente, pela manhã, eram encon­trados os mortos algemados aos vivos. O movimento do navio, até mesmo em uma leve ondulação, podia causar enorme so­frimento, pois ninguém podia se mexer sem o consentimento do companheiro ao lado. A sorte das mulheres e das moças era tão má como a dos homens, se não pior. Newton escreveu de maneira vívida sobre a presa sendo dividida pelos marinheiros, sendo "guardada apenas até que se apresentasse a oportunidade". Ao contrário dos homens, elas podiam desfrutar da liberdade do con­vés, mas quando levadas para bordo nuas, trémulas e ater­rorizadas, quase mortas de frio, fadiga e fome, "ficavam expostas com frequência à devassa grosseria dos selvagens brancos".

Naquele tempo, John Newton era um daqueles "selvagens brancos". Envolvido neste comércio brutal, "toda a disposição humana e gentil" se endurecia como o aço, resistindo a todas as sugestões de sensibilidade. Desde que obedecessem às ordens, muitos capitães consentiam que os seus homens vivessem como quisessem, e a maioria dos marinheiros fazia exatamente isso. Estes excessos", escreveu Newton, "se não provocam febres, pelo menos diminuem as defesas do organismo; e, demasiadas vezes, a lascívia termina em morte". Quando John Atkins, um cirurgião dos navios de Sua Majestade, Swallow e Weymouth, visitou estes lugares em 1735, queixou-se das mortes estarrecedoras sofridas em Serra Leoa, devido às febres malignas ori­ginadas pelos vinhos, pelo tempo e pelas mulheres; perdas tão grandes que, a certa altura, nenhum dos navios tinha força hu­mana suficiente para levantar âncora, tendo o Weymouth, que levara duzentos e quarenta homens da Inglaterra, registrado "du­zentas e oitenta mortes nos seus livros", antes do fim da viagem! Quase dez anos depois, no mês de julho, ao referir-se àqueles dias, numa carta que escreveu à esposa, Newton dava graças por ter sido salvo "das cenas de devassidão mais depravadas, encontrando-me eu satisfeito na companhia dos mais vis ímpios e miseráveis". Que o silêncio eterno sepulte os pormenores!

A Febre

Após seis meses no Pegasus, a situação de Newton voltou a mudar. Exatamente quando o navio estava para zarpar para as índias Ocidentais, indo pela "Rota do Meio", o capitão morreu, sendo substituído pelo primeiro-piloto. John não tinha ilusões. O seu comportamento originara no piloto tamanho ódio, que este o trocaria a bordo do primeiro navio de guerra que surgisse. John considerava este destino mais terrível do que a própria morte. Assim, no mesmo dia em que o navio partiu, John Newton desembarcou na ilha de Benaroes e empregou-se a serviço de um comerciante próspero, cujo nome era Clow. Nada havia recebido pelo trabalho de seis meses no Pegasus e, por ter falido a companhia proprietária do barco, antes de John ter voltado para a Inglaterra, nunca mais lhe foi paga a dívida. O que John não sabia era que tampouco seria pago pelo trabalho do ano seguinte.

Contudo, com grandes esperanças de sucesso e de enri­quecer depressa, este jovem pisou na terra, segurando um livro, com pouco mais do que as roupas que trazia vestidas, como se tivesse escapado de um naufrágio.

Clow era um dos poucos europeus que se dedicava ao negócio de escravos no interior, trazendo-os depois para a costa onde eram vendidos, com bom lucro, aos navios de escravos.

Embora a Grã-Bretanha já negociasse com a África desde 1553, os navios ingleses se iniciaram no mercado de escravos somente em 1625. Diz-se que a rainha Elizabeth I ficou horrorizada, ao saber que os pretos eram transportados contra as suas ordens: "É detestável e atrairá a vingança do céu sobre os emprendedores de tal negócio", disse ela. John Hawkins, um dos seus capitães marítimos mais importantes, prometeu respeitar essa finura de consciência da soberana real. Mas a promessa manteve-se por pouco tempo, e os escrúpulos cedo desapareceram; o próprio John Hawkins se tornou um daqueles "empreendedores"!

Por volta de 1689, a Companhia Real Africana fechou um contrato com o governo de Carlos II para o fornecimento de escravos, com destino às Índias Ocidentais. A princípio, poucos ingleses, ao meterem-se no negócio, se atreviam a ir além da ln< ora do seu próprio navio, mas eventualmente os comerciantes brancos começaram a penetrar no interior e a acelerar o transporte de escravos para a costa. Estes homens eram ricos e viviam na luxúria, com tantas mulheres, criados e vícios quantos dese­javam. Clow não era uma exceção. É verdade que nunca escravi­zara um negro; os brancos eram suficientemente astutos, ao ponto de fazer que fossem os pretos a escravizar a sua própria raça. Os chefes das tribos vendiam as crianças indesejáveis ou os homens que tivessem ofendido a comunidade, praticando um ou outro crime. O roubo de homens ou "sequestro", nome pelo qual era conhecido, constituía uma fonte habitual de escravos. Além disso, qualquer homem podia prender outro, desde que provasse que a desventurada vítima o defraudara ou enganara. Quando o abaste­cimento de escravos era insuficiente, uma guerra tribal, com ar­mas fornecidas pelos brancos, asseguraria uma vitória rápida. Enquanto milhares eram massacrados, outros eram escravizados. Desta maneira, muitos negros tornaram-se potentados em sua própria região, sendo cortejados e agraciados com presentes pelos traficantes brancos, cujo alvo era assegurar um suficiente abastecimento de escravos.

Mas tudo isto era trabalho perigoso e exigia uma vida dura. Numa terra de pântanos e de febres, de guerras tribais e de superstição, de bebidas fortes e liberdade para se desfrutar de qualquer vício, onde o branco era amado por alguns, devido ao seu comércio, mas odiado pela maioria, devido à matança prati­cada por ele, a vida era incerta e frequentemente muito curta. Na melhor das hipóteses, a vida consistia nos "prazeres transitóri­os do pecado".

Quando Newton se juntou a Clow, para participar deste ne­gócio abominável, confiou na honestidade do experimentado co­merciante, não tendo sido feito nenhum contrato formal que lhe salvaguardasse os interesses. Clow mudara-se recentemente para uma nova área do seu comércio, uma ilha baixa e arenosa, com cerca de duas milhas de circunferência e quase toda coberta de palmeiras. Era uma das três pequenas ilhas que ficavam a três quilómetros do continente e se situavam muito perto da foz do rio Sherbro; ao conjunto dessas ilhas chamava-se Bananas-de-São-Tomé, por causa da semelhança do fruto destas ilhas com as bananas, que constituíam um produto básico de alimentação nas zonas tropicais. Clow e Newton não foram os primeiros a fixarem-se ali, sendo possível que o infame pirata John Leadstone, "o velho capitão Cracker", tenha erguido lá um forte e um recinto para escravos, em 1720. Clow e Newton construíram a sua casa e começaram a trabalhar. Podiam negociar com o interior, usando o rio Sherbro, e depois voltar para a ilha-refúgio com o carrega­mento humano recentemente adquirido.

Newton podia ter encontrado o êxito pelo qual ansiava, se Clow não fosse grandemente influenciado por uma negra com quem vivia. Era uma mulher de certa importância e fora um grande instrumento no sucesso de Clow. Por alguma razão, que John nunca conseguiu descobrir, a mulher antipatizara, à primeira vista, com o recém-chegado e cedo encontrou oportunidade para dar vazão ao seu ódio. Quando Clow estava prestes a embarcar para uma aventura de tráfico, John foi acometido por uma febre violenta tendo de ficar aos cuidados da negra P.I., como Newton a chamava, pela simples razão de seu nome assemelhar-se ao som destas letras, em inglês. A princípio, P.I. cuidou um pouco dele, mas, como não havia melhora alguma, depressa o negligenciou.

A febre queimava-o há dias e, com dificuldade, John con­seguiu procurar alguma água fria que lhe saciasse a terrível sede. A sua vida balançava imprecisamente entre o restabelecimento e i morte. Em dias de delírio, cenas lampejavam-lhe pela mente: a mãe, as histórias e os hinos junto à lareira; o pai, severo e infle­xível, quando John tentava justificar-se por ter permanecido em Chatham além do tempo determinado; o tenente Ruffin e a ação ( mel do destacamento de recrutadores; o olhar incrédulo e mali­cioso do oficial do Exército Real; a voz ameaçadora do capitão Carteret e o chicote bárbaro do contramestre; os dias de miséria os momentos de prazer desenfreado; mas, acima de tudo, Mary. O que pensaria ela, se pudesse vê-lo naquele momento, deitado em uma esteira imunda, estendida sobre uma tábua dura, um tronco mal ajeitado debaixo da cabeça, servindo-lhe de travesseiro, e os escravos compadecendo-se da sua miséria?

John Newton recebia, com a mesma gratidão de um pedinte, os restos das refeições de P.I., que lhe eram levados no prato dela. Um dia, devido à excessiva fraqueza em que se encontrava, deixou cair o prato de migalhas. Enquanto ele olhava para a sua patética refeição, derramada no chão, P.I. ria-se e negava-se a dar-lhe mais. A fome, cada vez mais intensa, obrigava-o a rastejar à noite, para arrancar raízes na plantação, correndo o risco de ser castigado como ladrão. Essas raízes "tão impróprias, como as batatas, para serem comidas cruas", ele as mastigava com verdadeiro prazer. P.I. sempre zombou dele durante a sua lenta recuperação. Obrigava-o a andar quando não podia sequer levantar-se. Mandava os criados imitar suas pobres tentativas; mandava-os bater palmas, em atitude de zombaria, à medida que John cambaleava por ali, e mandava-os atirar limões e pedras em seu corpo desgastado. Tornou-se, por assim dizer, "a diversão dos escravos, ou, o que ainda era mais deprimente, o alvo da sua compaixão".

Quem poderia imaginar que este espécimen abandonado, e num estado deplorável, no futuro viria a ser amigo de um poeta nacional, a corresponder-se com o dramaturgo mais famoso da­quela época, a aconselhar um eloquente e popular ministro de Estado e a ocupar o púlpito da região do primeiro magistrado, na capital da maior nação do mundo?

Quando Clow regressou, John queixou-se do mau trato rece­bido. Mas, aconteceu que Clow não lhe deu crédito e P.I. passou a detestar John ainda mais. A saúde de Newton melhorara bas­tante; deste modo, pôde acompanhar seu patrão na segunda via­gem de tráfico, ao longo do rio. Juntos, trabalharam bem e com prosperidade, até que outro negociante convenceu Clow de que o seu assistente era desonesto e lhe roubava a carga durante a noite ou quando Clow estava em terra. Newton foi condenado, sem provas, sob a acusação de desonestidade que, com ironia amarga, "era praticamente o único mau hábito de que não podiam acusar-me com justiça".

Uma Porção de Arroz e Um Peixe Cru

Dali em diante, a compaixão mostrada para com Newton foi inferior àquela que P.I. tivera para com ele. Sempre que Clow saía do navio, Newton era trancado no convés com uma porção de arroz como sua ração diária. Para suplementar esta escassa alimentação, era-lhe dada autorização para usar como isca nos seus anzóis as vísceras das aves comidas à mesa de Clow. Por conseguinte, na maré baixa, quer chovesse a cântaros quer fi­zesse um sol ardente, podia-se ver o esfarrapado e macilento escravo, de pé, no convés, vigiando a sua linha de pesca, com impaciente ânsia. Algum peixe que conseguia apanhar desta ma­neira era devorado meio cru, meio chamuscado, proporcionando-lhe uma refeição deliciosa.

O mês de agosto era a metade da estação das chuvas, nesta parte da costa africana, e, durante semanas caiu dos céus densos, incessantemente, uma chuva torrencial. Os rios, subindo mais de seis metros acima do seu nível normal, passaram a desaguar na costa, transformando-a em vastos e impenetráveis pântanos e selvas alagadas. Os mosquitos reproduziam-se aos milhões, e o céu cerrava-se de pequenas moscas, portadoras de disenteria e de morte. As chuvas diminuíram em setembro, mas outubro era "o mês do bolor"; tudo o que não estivesse totalmente seco ficava coberto de um bolor espesso e velho. A Serra Leoa era o coração da "sepultura do homem branco".

John Newton, protegido apenas por uma camisa, uma calça, um lenço de algodão que lhe cobria a cabeça, e uma peça de pano também de algodão, com menos de dois metros de comprimento, ficava exposto, com frequência, a estas chuvas torrenciais cerca de vinte a quarenta horas de cada vez. O quadro deste miserável desgraçado, chupando um peixe meio cru mer­gulhado em arroz, encolhido no convés varrido pelo vento, encharcado pela chuva, ansioso para que o seu patrão regressasse, tremendo como se fosse um cãozinho patético, é uma ilustração perfeita do "serviço e salário do pecado". Outras vezes estava quase nu, e o corpo coberto de pústulas provocadas pelas queimaduras implacáveis do sol; tudo o que tinha a fazer era acordar pela manhã, sacudir-se, como fazem os cães, e estava pronto ira enfrentar o dia. O tormento da fome também não lhe era estranho, acontecendo com frequência não saber o que era "uma boa refeição no curso de um mês". Este terrível estado de coisas quebrou-lhe a forte constituição e, embora recobrasse muito da sua força, Newton admitiu, quase meio século depois, que continuava a sentir algumas visitas ténues das violentas dores contraídas naquela época.

Passados dois meses, Clow e Newton voltaram a Bananas-de-São-Tomé. A condição e o tratamento de Newton não sofreram mudança, mas o seu espírito mostrava-se quase quebrantado, ainda que não para o arrependimento. A sua resolução e a sua vontade haviam sido minadas, e era apenas a visão que tinha de Mary que fazia com que a vida ainda tivesse algum significado para si. Mas, com certeza, era uma esperança murcha, uma mera ilusão. Ainda que continuasse livre, não tinha o direito de pre­tendê-la e, muito menos, os meios para chegar até ela. Além das roupas que usava, tinha apenas outra possessão no mundo. Quan­do se encontrava livre de suas obrigações, desviava-se para a praia. Lá ele abria uma cópia dos diagramas e das teorias geo­métricas de Euclides e traçava, com um pau, os diagramas na areia branca e macia. Sem nenhuma ajuda e sem nenhum alvo em vista, John Newton, o servo dos escravos, dominava os seis primeiros livros de Euclides. Além disto, ele nada possuía.

A sua filosofia ruíra à sua volta, o vigoroso zelo de sua jovem mente tornara-se insensível, e o seu espírito estava humilhado e amedrontado. Durante algum tempo, alimentou a superstição primitiva dos nativos que o rodeavam e adorou a lua! Agindo de uma maneira que até Shaftesbury se teria envergonhado, Newton recusava-se a dormir enquanto a lua fosse visível acima da linha do horizonte, adorando assim a criatura em vez do Criador. Num desafio patético, procurava manter uma aparência decente, pelo que à noite deslizava, sem barulho, para lavar a camisa sobre as rochas. Em seguida, ele a vestia para secá-la com o calor do corpo, enquanto dormia. Quando algum bote dos navios visitava a ilha, John escondia-se na floresta para evi­tar o olhar pasmado dos estranhos. Amedrontado, mas não convertido, "a mudança operada em mim assemelhava-se apenas à de um tigre domado pela fome. Mudem as circunstâncias e verão quão selvagem se tornará". Desesperado, escreveu cartas ao pai, explicando a sua situação angustiosa, mas resolvido a não regressar, a menos que o pai lhe pedisse. Escreveu também a Mary, embora com pouca esperança de que as suas cartas conseguissem chegar-lhe à mão.

Certo dia, Newton estava ocupado em plantar limeiras. As árvores eram apenas do tamanho de um pequeno arbusto. Clow e P.I., ao passarem, se detiveram para zombar dele. "Quem sabe", escarneceu o patrão, "se, quando estas árvores tiverem crescido e estiverem a dar fruto, tu não irás à Inglaterra, não conseguirás o comando de um navio e não voltarás aqui para apanhar os fru­tos do teu trabalho? Acontecem coisas estranhas às vezes". Com este sarcasmo afiado, Clow continuou a caminhar, nunca esperando que a sua profecia viesse a cumprir-se. Era tão impossível quanto Newton chegar a ser rei da Polónia. Não obstante, aquela zombaria ridícula converter-se-ia em realidade no curso de três anos.

Um ano após este tratamento cruel, Newton conseguiu auto­rização de Clow para trabalhar para outro comerciante e, numa carreira em que se habituara a mudanças repentinas, viu-se ime­diatamente vestido, bem alimentado, tendo-lhe sido também confiada a administração de alguns milhares de libras do dinheiro do seu novo patrão e uma feitoria no Rio Kittam. Ali ele comer­ciava, acompanhado de outro homem branco. O negócio florescia, e seu empregador mostrava-se muito satisfeito. Por fim, John já se considerava contente com a sua sorte. Assim como os outros exilados ao seu redor, podia adotar os costumes, até mesmo as religiões e, certamente, os prazeres dos próprios nativos. Dentro em breve, tal como eles, sentiria muito pouco desejo de regressar ao seu país. Seria um branco transformado em negro.

Em Fevereiro de 1747, os dois comerciantes preparavam-se para fazer uma viagem ao interior, mas a chegada tardia de alguns artigos necessários atrasou-lhes a partida. Newton pretendia um duelo com um negociante local que o ofendera; tinha preparado as pistolas, escolhido o local e, no prazo de um ou dois dias, passaria do desafio à ação. Também já havia decidido que seria um duelo de morte. O companheiro de John andava ociosamente pela praia, cerca de dois quilómetros da feitoria, quando viu passar um navio. Apressou-se então a fazer fumaça, como sinal de haver comércio ali; mas o capitão do navio duvidou se valeria a pena parar naquele lugar. Não era um local costumeiro de omércio e, além disso, o vento era propício e o navio já se encontrava ligeiramente afastado. Todavia, sem saber bem porquê, o capitão voltou atrás e recebeu a bordo o comerciante.

O Greyhound

O nome de Joseph Manesty constava na lista de nomes de mercadores que negociavam com a África, vindos de Liverpool, autorizados por uma lei do Parlamento em 1750. Sendo amigo íntimo do capitão Newton, havia-se oferecido para instalar o filho na Jamaica, não tendo ficado aborrecido pelo jovem não ter chegado a Liverpool na data combinada, em 1742. Com a pressão dos negócios, depressa esqueceu o incidente. Um dia, porém, recebeu do seu velho amigo o pedido de que, se algum dos seus capitães descobrisse John Newton na África Ocidental, o levasse de regresso à Inglaterra, que ele ficaria muito grato. Pelo menos algumas das cartas de John haviam chegado às mãos do pai! Quando o Greyhound partiu da Inglaterra, Manesty deu ins­truções rigorosas ao capitão para inquirir sobre John Newton; e, pela providência, que John não reconheceu na ocasião, o capitão sentiu-se persuadido a ancorar o navio cerca de dois quilómetros de distância da feitoria de Newton, apenas algumas horas antes da tencionada partida dele para o interior.

O companheiro de Newton foi recebido a bordo, e ime­diatamente o capitão perguntou-lhe se conhecia um homem chamado Newton. Ao ouvir que Newton se encontrava naquele lugar, o capitão foi a terra esperando encontrar um passageiro mais do que desejoso de embarcar no seu navio. Porém, a alma escravizada a Satanás frequentemente é como um cão doente e maltratado, que por nada deixa o seu dono, nem mesmo quando lhe oferecem a liberdade. No momento, John sentia-se satisfeito com sua vida e não queria mudá-la. Mas o capitão do Greyhound também não queria perder a sua presa e inventou uma história de uma pessoa da família que morrera recentemente, tendo deixado a John uma herança de quatrocentas libras por ano. Para melhor garantia, o capitão disse que tinha ordens para pagar quaisquer dívidas que John tivesse, mesmo que estas atingissem o valor de metade do seu frete. Além do mais, o capitão prometeu-lhe que dividiria o seu camarote com ele, que poderia comer à sua mesa e acompanhá-lo sem ter de fazer nada em troca. Embora todas estas compensações tivessem contribuído muito para o persuadir, foi apenas "a lembrança da minha amada, a esperança de vê-la e a possibilidade de que, ao aceitar essa oferta, poderia uma vez mais ter a oportunidade de ganhar a sua mão", que fi­nalmente decidiram a questão. Assim, com aquilo que segu­ramente teria sido uma última esperança, embarcou no Greyhound, e, em poucas horas, o cenário de sua horrível escra­vidão, nos últimos quinze meses, desapareceu de vista.

O Greyhound não negociava escravos, e sim ouro, marfim, plantas para a fabricação de tintas e cera de abelha. Por vezes, os dentes de marfim pesavam mais de cinquenta quilos cada um, mas elefantes eram mais raros do que escravos. Segundo John Atkins, o ouro era obtido na forma de imagens nativas ou amuletos moldados em ouro, pedaços de rocha aurífera ou, mais labo­riosamente, na forma de ouro em pó, garimpado nas cataratas das montanhas. Levava-se muito mais tempo para arranjar um carregamento deste género do que um de escravos. Por isso, quando Newton embarcou no Greyhound, já havia cinco meses que o navio comerciava ao longo da costa, o que continuaria a lazer por mais de um ano, percorrendo-a por quase dois mil qui­lómetros.

Apesar desta sua incrível fuga da escravidão, da hospita­lidade do capitão, do regresso ao lar, e do pensamento de poder chegar a abraçar Mary como esposa, Newton não mostrava sinais de mudança. A sua vida fácil e confortável levou-o à impiedade e a profanação. "Não sei se alguma vez encontrei um blasfemador tão ousado. Não contente com maldições e blasfémias vulgares, inventava outras a cada dia", escreveu Newton, com tristeza, mais tarde. Com frequência, era repreendido pelo próprio capitão, que também era conhecido por não saber refrear bem a língua! Newton não era beberrão, e o seu pai comentava, muitas vezes, enquanto tal não acontecesse havia esperanças de recuperação. Contudo, "apenas por brincadeira", John promovia rodadas de bebidas e divertia-se com as palhaçadas daqueles que enchia com os vinhos baratos, feitos de palmeiras da costa africana. Uma noite, quando o resto da tripulação já se recolhera, Newton arranjou, às suas custas, uma rodada de bebidas com três ou quatro amigos. O navio encontrava-se ancorado no rio o; a noite era clara, e a água, calma. Uma grande concha do mar serviu de copo, e o grupo bebeu alternadamente rum e genebra, que naquele tempo era uma bebida muito barata. Newton, que começara a beber, proferiu uma praga abominável contra o homem que se mexesse primeiro do seu lugar, uma pra­ga que acabou por ser dirigida contra si mesmo. Mal qualificado para uma tal competição, o seu cérebro excitou-se bem depressa, e, saltando do lugar, John iniciou uma dança selvagem ao redor do convés. De repente, seu chapéu caiu para fora do navio; Newton quis saltar para o bote que, no seu estado de confusão, lhe pareceu estar mesmo ali ao lado. Na verdade, o pequeno barco estava a pelo menos seis metros de distância, e, se um companheiro não o tivesse agarrado pelas roupas, enquanto ele se balanceava precariamente sobre a amurada, John ter-se-ia, com toda a certeza, afogado nas águas tranquilas do Gabão. Ele esteve muito perto de morrer, conforme disse, "afogado na eter­nidade sob o peso da minha própria praga"; todavia, o diver­timento prosseguiu sem qualquer pensamento acerca da eter­nidade.

No Cabo Lopez, alguns dos marinheiros foram a terra e, ao penetrarem nos bosques atiraram em uma vaca brava e trouxeram uma parte dela para o navio. Ao anoitecer Newton chefiou os homens, ao voltarem lá com a intenção de buscar o restante da carne. Mas, a noite aprisionou-os, vendo-se em breve irremedia­velmente perdidos, sem luz, alimentos e armas. Num momento, encontraram-se emaranhados numa densa floresta; noutro, mer­gulhados até à cintura na água fétida dos pântanos. Sem estrelas, sem bússola, temendo os animais selvagens que eram muitos na­quela floresta, os pobres homens vaguearam por ali, às cegas, caindo ora num lamaçal, ora noutro. Podia muito bem ter sido uma parábola da sua vida, mas Newton estava muito ocupado em amaldiçoar a sua sorte e em encontrar o caminho de volta para pensar sobre tal coisa. Repentina e inesperadamente, a lua irrompeu através das pesadas nuvens, e eles puderam confirmar que realmente se encontravam bem no interior da floresta, longe do navio e de estarem seguros. O grupo, já fatigado e aterro­rizado, voltou, chegando ao navio num estado de profundo can­saço, mas agradecido. A parábola completara-se.

Entre as muitas aventuras e situações tumultuosas em que se envolvia com indiferença, Newton, ocasionalmente, se voltava para a geometria de Euclides. Este foi o único pensamento sério que abraçou durante aquelas longas semanas e meses. Claro que havia uma exceção: Mary. Se as palavras de Paulo, dirigidas à igreja de Roma, tiveram algum exemplo vivo, sem dúvida foi na vida de John Newton que tal exemplo se revelou. Ele se tornara (útil em sua maneira de pensar, e a sua mente insensível entenebreceu-se. Portanto, nas concupiscências do coração, estava entregue à imundície, à desonra do seu corpo, porque trocara a verdade pela mentira e adorava e servia mais a criatura do que o Criador (Romanos 1.21,24-25). Quando, em janeiro de 1748, o Creyhound se aprontava para deixar o Cabo Lopez e empreender a longa e perigosa viagem de mais de mil quilómetros, através do Atlântico, a consciência de John Newton, que se tornara tão fraca, finalmente cessou de funcionar. Estivera à beira da morte muitas vezes, mas nunca se preocupara o mínimo com as consequências; a consciência já não o acusava, nem o afligia. Podia, enfim, pecar com arrogância, sem que a mente o perturbasse. 'Parecia possuir toda as evidências da impenitência e da rejeição final; nem castigos, nem misericórdias causavam a menor impressão em mim."

Houve uma efémera exceção. Ocasionalmente John pegava uma cópia do livro Imitando Cristo, de Thomas Kempis, que costumava ficar na cabina do capitão. Ele lia aquela obra com uma indiferença ociosa. Entretanto, a 9 de março, surgiu-lhe à mente um pensamento: "E se tudo isto for verdade?" Imitando Cristo foi escrito por um monge alemão do século quinze e, no tempo de Newton, era um dos livros devocionais mais conhecidos; estava impregnado de amor a Cristo e de compromisso com Ele. Uma grande parte do livro falava intimamente à própria experiência de Newton; por isso, ele compreendeu bem o que Kempis pretendia dizer, quando leu: "Assim como o barco sem leme é remessado de um lado para o outro, assim também é tentada de muitas maneiras a pessoa irresponsável e propensa a aban­donar o seu propósito". Por um momento, a consciência de John incomodou-o, mas, o obstinado marinheiro rejeitou os pensamentos que lhe vieram à mente, admitindo a horrível conclusão que lhe restava apenas aceitar as consequências de sua escolha.

Ao mesmo tempo que o Greyhound partia da Terra Nova, a primeiro de Março, e apanhava os fortes ventos ocidentais, que rapidamente o empurrariam de volta à sua pátria, outro capítulo se fechava na vida de John Newton, um capítulo que poderia ser escrito sem a menção do nome de Deus.

Uma Tempestade no Atlântico

A noite de 10 de Março de 1748 foi um terror. O forte vento ocidental transformou-se num vendaval enorme que atacava violentamente o indefeso Greyhound, com rajadas que chegavam a cento e trinta quilómetros por hora e sacudiam aquela casca de noz", levando-o por entre as ondas, que formavam paredes na de nove metros de altura. Durante a escuridão da noite, um pesado vagalhão esmagou-se no convés, rolando para baixo. Newton, arrastado do seu beliche, cambaleava à procura da escada, enquanto ouvia os marinheiros gritarem que o navio estava a partir-se e a afundar. Agarrou-se à amurada e saiu do chão esmagado do camarote, arrastando-se. No meio da escada, Newton encontrou o capitão que lhe ordenou retrocedesse para buscar uma faca. John largou a amurada, deixou-se cair ao chão e foi procurar um objeto cortante. Um marinheiro, que passou por Newton, subiu com dificuldade ao convés e, imediatamente, foi atirado a uma sepultura fria e asfixiante. Mas, John e a tripulação que lutava tinham pouco tempo livre para atentar naquela morte horrorosa, pois, da maneira como o barco balançava no mar, previam ter a mesma sorte de um momento para o outro. Gelados, assustados e sem esperança, os marinheiros cumpriam aqueles deveres que a severa disciplina lhes havia instilado, em uma luta desesperada pela so­brevivência.

O Greyhound já se encontrava em mau estado de conservação antes de ter iniciado a travessia do Atlântico. Após dois anos na costa africana, as velas e o cordame estavam fracos e podres, e o casco, esburacado. As madeiras gretadas tinham sido calafetadas com piche e corda, mas os enormes vagalhões não respeitavam o trabalho duro nem as boas intenções. Naquela noite terrível, as vigas superiores foram arrancadas de um lado, as velas, rasgadas, os mastros e as vergônteas, estilhaçados. Com esforços desesperados para controlar o navio, a tripulação correu para as bombas, enquanto outros se juntavam num gesto desafiante para tirar a água com baldes. O navio danificado estava tão mergulhado na água, que era apenas a sua carga de cera de abelha e madeira que o mantinham flutuando.
"Que o Senhor Tenha Misericórdia "

Após uma hora desde a primeira onda destruidora, amanheceu e o vento amainou. Os doze homens a bordo despiram as camisas, rasgaram a roupa das camas e começaram a tapar os muitos buracos por onde penetrava a água, que se esforçava incansavelmente para lançar o navio mercante no fundo do Atlântico, para sempre. New­ton mostrava-se pouco afetado. Enquanto pregava uma madeira tosca sobre a camisa, para encher um buraco, brincava asperamente com um marinheiro, dizendo que aquela experiência serviria para tema de conversação à volta de um copo de vinho. Os olhos do marinheiro, a quem ele se dirigira, encheram-se de lágrimas, ao responder: "Não, já é demasiado tarde". Demasiado tarde! Ao ouvir tais palavras, o estômago de John revolveu-se de um modo estranho, porém repeliu os pensamentos perturbadores tão firme­mente quanto a tripulação repelia o oceano. Às nove horas da manhã, exausto de frio e de fadiga, Newton foi falar com o capitão. Quando atravessava aquilo que era o resto do convés do navio, proferiu a primeira oração desde a sua infância: "Se isto não servir, que o Senhor tenha misericórdia de nós". Quase no mesmo instan­te, calou-se a voz daquele marinheiro marcado pelo pecado. Que direito tinha ele de clamar por misericórdia? Que direito tinha de invocar Deus ou esperar uma resposta? Newton encaminhou-se apreensivamente para as bombas, onde, fustigado pelas ondas que persistiam em passar mais por cima do que por baixo do navio, trabalhou até ao meio-dia. Porém, não podia continuar se mostrando insensível face à morte iminente. A estranha linguagem, ofensiva e grosseira, não aparecia em seus lábios; a fácil zombaria, para assegurar aos outros que não havia nada a temer, recusava-se a sair-lhe dos lábios. Se as Escrituras eram verda­deiras, considerava ele com desespero, então era mais do que certo que não podia esperar misericórdia. O Greyhound, atacado com violência, balançou-se de um lado para o outro no Atlântico, durante dez dias. Ao mesmo tempo, Newton balançava-se mi­seravelmente nas profundezas de um ressentimento amargo e de desespero absoluto.

O dia 21 de Março foi uma data que Newton jamais esqueceu, em todo o resto da sua vida, porque, como ele próprio disse: "Naquele dia o Senhor, enviado das alturas, livrou-me das águas profundas". Naquele dia, trabalhou na bomba das três da manhã até o meio-dia; depois foi-lhe concedido, por uma hora, descansar um pouco em seu beliche encharcado, no qual se deixou cair, importando-se pouco se voltaria a levantar-se. A uma hora, sentindo-se em extremo cansado para bombear a água, foi amarrado ao leme, onde esteve até a meia-noite, com apenas um pequeno intervalo para comer alguma coisa.

 

Tempo Para Pensar
 

Com os pés firmes no convés, o corpo amarrado à roda e os braços fortes mantendo o navio tanto quanto possível na direção John tinha tempo suficiente para pensar. Mas não era agradável sua vida à luz penetrante da Palavra de Deus. Com nada mais que a vasta expansão do oceano à volta, conseguia agora ver bem o ateísmo estúpido e arrojado que lhe arruinara a vida, que assemelhava ao despedaçado e arruinado convés do Greyhound. Dando razão às Escrituras, pensou que era difícil haver pecador maior do que ele. Quando pensava sobre a sua libertinagem, sua profanidade, os ditos insultuosos, sobre quantas vezes ridicularizara o Evangelho através de suas canções gros­seiras, John tinha certeza de que o dia do perdão para si já passara. Essas terríveis lembranças pareciam confirmadas pelas Escritu­ras. A sua mãe gravara em sua mente a Palavra de Deus; essa instrução ministrada durante a infância, mostrou-se tão valiosa que nada em sua vida subsequente conseguira apagar-lhe da me­mória as Escrituras.

Enquanto o mar cruel inundava o navio e John tremia, sem camisa, na sua prisão ao leme, afluíam-lhe à mente versículos das Escrituras, que lhe iluminavam a alma com a mesma clareza e luminosidade dos relâmpagos que cruzavam o oceano. Involun­tariamente, repetia Provérbios 1.24-31, e sua memória parecia ser divinamente assistida, quando sussurrava, por entre o baru­lho do vento e das velas agitadas, as seguintes palavras de con­denação: "Mas, porque clamei, e vós recusastes; porque estendi a minha mão, e não houve quem atendesse; antes, rejeitastes todo o meu conselho e não quisestes a minha repreensão; também eu me rirei na vossa desventura, e, em vindo o vosso terror, eu zombarei, em vindo o vosso terror como a tempestade, em vindo li vossa perdição como o redemoinho, quando vos chegar o aperto e a angústia. Então, me invocarão, mas eu não responderei; procurar-me-ão, porém não me hão-de achar. Porquanto aborreceram o conhecimento e não preferiram o temor do Senhor; não quiseram o meu conselho e desprezaram toda minha repreensão. Portanto, comerão do fruto do seu procedimento e dos seus próprios conselhos se fartarão". Quão exatamente tudo isto se aplicava à sua vida! Não rejeitara ele o conselho de Deus? E não parecia que o Todo-Poderoso zombava do seu desespero? Também Hebreus 6.4-6 e 2 Pedro 2.20 surgiram como fantasmas horripilantes, a martelar os últimos pregos de julgamento no seu caixão aquático: "Portanto, se, depois de terem escapado das contaminações do mundo, mediante o conhecimento do Senhor e Salvador Jesus Cristo, se deixam enredar de novo e são vencidos, tornou-se o seu último estado pior do que o primeiro". Quantas vezes não haviam as instruções da mãe, os Cânticos Divinos de Watts e as visitas do pregador dissidente de Stepney imprimido nele a esperança e a certeza da salvação, que apenas podiam ser encontradas na cruz de Cristo? Mas ele desperdiçara e rejeitara o firme ensinamento evangélico recebido na infância, deixando-se enredar e finalmente vencer pelas contaminações do mundo. Sentiu-se envolvido por uma escura nuvem de desespero e "a afundar, sob o peso de todos os meus pecados no oceano e, também, na eternidade".

Por volta das seis horas da tarde seguinte, o navio ficou livre da água, e a tripulação ganhou um pouco de esperança. John pensou que podia ver a mão de Deus nisto, mas mostrou-se cauteloso; afinal, a sua avaliação acerca da Providência tinha apenas algumas horas de experiência. Nos dias seguintes, à medida que o navio danificado abria caminho desafiadoramente pelo Atlântico, os marinheiros doloridos e tiritantes racionavam a comida e ousavam alimentar esperanças de chegar a terra; e John Newton continuava embrenhado em seus pensamentos.

No seu desespero lúgubre e insondável, John dirigiu o pensamento para Cristo, o que significava uma nova aventura para ele. Recordou a vida e a morte de Cristo, "uma morte não pelos próprios pecados, mas pelos daqueles que, constrangidos, confiam nEle". John queria evidências. Tinha entranhado pro­fundamente em seu coração os incómodos princípios da in­credulidade e ansiava por saber que o evangelho era uma rea­lidade e não uma ficção. Procurou, pois, um Novo Testamento e resolveu examiná-lo com mais atenção. Professar fé em Cristo, quando nem mesmo acreditava na verdade histórica da narração evangélica, ele corretamente julgava que implicaria em zombar de Deus. Folheou os evangelhos, até que chegou a Lucas 11.13: "Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais o Pai celestial dará o Espírito Santo àqueles que lho pedirem?" Se as Escrituras são verdadeiras, raciocinou, então esta passagem é verdadeira, e este Espírito poderia ajudá-lo em sua busca por paz e segurança.


Um Velho Marinheiro
 

O vento abrandou, e o navio prosseguiu viagem em direção à Inglaterra. Porém, a situação dos tripulantes continuava de­sesperadora. Os recipientes de víveres ficaram despedaçados, e os animais vivos, tais como porcos, carneiros e aves domésticas, haviam sido arrastados para o mar. Tudo o que restava era uma pequena e ordinária porção de comida para porcos, um pouco de pão, algum bacalhau salgado, pescado nos barrancos da Terra Nova e, para completar o resto dos alimentos, meio litro de conhaque.

Nos quatro ou cinco dias que se seguiram, o navio avançou com dificuldade; as velas haviam sido quase totalmente rasgadas, e agora, mesmo com ventos favoráveis, o velame era pouco, tornando a viagem de regresso dolorosamente lenta. De repente, numa manhã, um grito do vigilante atraiu a tripulação, aos tropeções, para o convés, e um coro de vozes saudou a terra distante. Era uma aurora ma­ravilhosa, e o sol, que principiava nesse momento a sua longa subida na abóboda celeste, mostrava o perfil dos montes num cenário de céu resplandecente. Os quase derrotados marinheiros felicitaram-se uns aos outros quando, um a um, identificaram a costa nordeste da Irlanda. À ordem do capitão, dividiu-se o último meio litro de conhaque pelos marinheiros em festa e devoraram-se as últimas fatias de pão. Não tardaria a haver pão e conhaque em abundância. O navio ergueu-se com novo ânimo, e dirigiu-se a terra, enquanto o sol se elevava no horizonte. Mas a alegria da tripulação logo se dissipou. O imediato soltou uma praga; a terra sólida desaparecia no céu na forma de ilusórias bolas de nuvens. Compreendendo, com desgosto, a sua alegria precipitada e o esbanjamento da última provisão de alimentos, a tripulação via a sua única esperança esvair-se no céu longínquo. Em meia hora, viram-se de novo a sós no oceano.

A tripulação enferma permaneceu naquela prisão flutuante durante uma semana, morrendo um marinheiro devido à inso­lação. O navio era obrigado a manter o lado partido virado para os melhores ventos, o que significou que uma alteração dos ventos 0 empurrou em direção ao norte da Irlanda e muito para oeste das ilhas ocidentais da Escócia. Havia pouca esperança de encontrar outro navio nestas águas, e Newton concluiu, com fa­cilidade, que muito provavelmente aquele era o primeiro navio a estar naquela parte do oceano, durante aquela época do ano. Podia muito bem ter sido este o marinheiro que Coleridge tinha em mente, quando escreveu o trágico Poema do Velho Mari­nheiro, que incluía a seguinte estrofe:


A brisa agradável soprava,
A espuma branca voava,
O sulco seguia livre.
Fomos os primeiros a irromper
Naquele silencioso mar.


Se a tripulação se opôs ao "Velho Marinheiro", por ter este ter atirado em um albatroz, também Newton teve os seus problemas. O capitão irritado pela desgraça, repreendia-o sem cessar, acusando-o de ser a causa dela. Parecia ter a certeza de que, como Jonas, somente se salvariam se atirassem Newton ao mar; caso contrário, todos morreriam. Claro que não tencionava fazê-lo, mas o recitar contínuo daquelas palavras causavam a John uma inquietação compreensível, "especialmente porque a minha consciência apoiava as suas palavras". Este velho marinheiro não tinha dúvidas de quem era o responsável pela presente tragédia.

Misericordiosamente, o vento mudou de rumo. O tempo, no entanto, estava muitíssimo frio e, com poucas roupas, pequena quantidade de mantimentos e um labor constante para manter o navio à tona, a tripulação assemelhava-se a homens condenados, que esperava tão-somente pelo golpe do carrasco. Mas, após anos de incredulidade depravada, John Newton começou a orar e, como mais tarde contou a Mary: "As minhas primeiras e mal formuladas orações foram respondidas. Aquele a quem os ventos e os mares obedecem, levou-me em segurança à Irlanda, de uma maneira milagrosa". A 8 de abril, justamente quatro semanas depois da tempestade, e na altura em que os últimos alimentos cozinhavam na panela, o Greyhound conseguiu a grande custo chegar a Lough Swilly, um dos pontos mais setentrionais da Irlanda. Cerca de duas horas depois de terem ancorado na baía relativamente abrigada, surgiu uma tormenta no mar, com tal força, que teria despedaçado o navio já danificado. Ao mesmo tempo, os marinheiros descobriram que os sete grandes barris de água, que pensavam estar cheios e nos quais haviam posto a sua única esperança de sobrevivência, estavam todos, menos um, partidos e vazios. O navio deteriorado, que chegara com difi­culdade à paz e à segurança de Lough Swilly, transformou-se numa figura de John Newton, o qual lentamente estava se achegando ao seu Deus, com muitos receios e dúvidas, mas crendo, por fim, na existência de um Deus que ouve e responde à oração. Assim age o poder de Deus para reverter as expectativas do homem, pois o lastimoso marinheiro que dissera "já é de­masiado tarde" não tardou em se encontrar na taberna local, tendo o copo nas mãos e gracejando de sua experiência no mar, en­quanto o homem mais endurecido e menos impressionável do navio lia com muita seriedade o Novo Testamento e um volume de sermões!

Enquanto o Greyhound estava sendo consertado, John foi a Londonderry, a poucos quilómetros de distância, onde foi recebido com todo o calor e a hospitalidade que os habitantes desta costa desabrigada tradicionalmente oferecem aos marinheiros naufraga­dos. Ia à igreja duas vezes por dia e preparava-se para receber a Ceia do Senhor. Naquele dia solene, comprometeu-se a viver sempre no serviço de Deus. Este compromisso não era uma re­ligião artificial, praticada com precipitação por um sobrevivente agradecido ou uma religião que nada lhe custaria para abandonar; com toda sinceridade e simplicidade, John Newton renunciou o pecado e solicitou o perdão que Deus prometera dar, "em virtude da obediência e dos sofrimentos de Jesus Cristo. Naquela altura, abracei a sublime doutrina de Deus manifestado em carne, re­conciliando consigo mesmo o mundo". A boca imunda e a lin­guagem obscena tornaram-se coisas do passado.

Como resultado da calorosa hospitalidade oferecida pelos habitantes de Londonderry, no dia seguinte àquele memorável culto de comunhão, John foi convidado a participar de uma caçada com o prefeito. Caminharam penosamente pelas charnecas, atirando às ziguezagueantes narcejas que surgiam da erva. O grupo chegou a uma pequena encosta, e John pôs a espingarda no chão, ao seu lado, para galgar o outeiro com mais facilidade. De repente, a pesada arma de caça disparou, tendo o tiro passado tão perto da lace de John Newton, a ponto de atingir-lhe o canto do chapéu. A sua primeira Ceia do Senhor quase fora a última.


Finalmente de Volta Para Mary
 

De Londonderry, Newton escreveu ao pai. O navio que o tansportara desde a costa ocidental da Africa não dera sinais de /ida durante dezoito meses. O capitão Newton recebeu a carta do filho pródigo, que estava morto mas agora vivia, apenas alguns dias antes de navegar para assumir o cargo de governador de York Fort, na Haia de Hudson. O pai de Newton fez planos para que o filho se juntasse a ele em breve. Todavia, ainda que John diligenciasse para chegar em Londres a tempo, o pai viu-se forçado a partir sem ter encontrado com o filho. John teve de contentar-se em receber duas ou três cartas carinhosas. O capitão Newton morreu tragicamente anos mais tarde, antes que pudesse regressar à Inglaterra. Deste modo, o filho não teve a oportunidade de pedir perdão pelos sofrimentos que causara ao pai. Contudo, o velho capitão prestara um último serviço, imerecido mas relevante, ao filho arrependido. Visitara Chatham e dera o seu consentimento pessoal à união de John com Mary, caso John persistisse em seu amor.

Curado das feridas, o Greyhound deslizou para o Atlântico, desafiando o oceano, virou para o Leste e, dirigindo-se ao canal do Norte, até ao mar da Irlanda, ancorou no porto de Liverpool pelos fins de Maio, aproximadamente no mesmo dia em que o capitão Newton zarpava para fora do estuário do rio Tamisa, a fim de cumprir a sua mal fadada comissão na Baía de Hudson.

Joseph Manesty, ignorando estar apenas a oito anos de uma falência, recebeu John com carinho, oferecendo-lhe imediatamente o comando de um dos seus navios mercantes. Alguns meses atrás, John não teria hesitado, porém sua nova mentalidade dizia-lhe que ainda não estava em condições para tal responsabilidade, comprometendo-se a fazer primeiramente uma viagem como primeiro-piloto. O imediato do Greyhound tomou o comando do navio, tornando-se assim capitão de John. Mas John tinha uma missão urgente a cumprir antes do Brownlow fazer-se ao mar, e, apressadamente, dirigiu-se a Chatham. Quando John chegou a Liverpool, não havia carta de Mary para ele; então, com lágrimas nos olhos, escreveu à tia dela, suspeitando que esta lhe respon­deria que Mary estava comprometida com outro. A resposta que recebeu despertava-lhe o coração e acelerava-lhe os passos; a esperança permanecia de portas abertas.

Os Catletts receberam-no entusiasticamente, e John alimentou esperanças de uma conclusão feliz para sua estadia ali. No entanto, por causa de seu passado, arrogante e irresponsável, a presença de Mary fê-lo agir como se fosse um pretendente estúpido e mudo. Procedeu de maneira desajeitada e embaraçosa durante a breve visita e sentiu que não conseguira comunicar o seu amor e o seu objetivo para com Mary. Na verdade, apenas conseguiu autorização para lhe escrever!

Sem dinheiro, John regressou ao seu navio! Referiu-se ao caso posteriormente como a "viagem solitária para Liverpool", tão triste quanto solitária. Sentia-se aborrecido consigo mesmo por não ter sido capaz de expor, com mais clareza, as suas intenções a Mary e desanimado por não ter muito a lhe oferecer. Não ou­sou dizer ao Sr. Catlett que não tinha dinheiro para pagar a pas­sagem de regresso a Liverpool. Depois de ter chegado a Liver­pool, John escreveu a Mary. No entanto, se desajeitado na fala, era eloquente na escrita. Esperou com impaciência a resposta, pronto a sufocar sua paixão, caso recebesse recusa total. Mas, Mary, compreendendo melhor as intenções dele, respondeu de forma polida e apropriada, dando-lhe a saber que estava livre de qualquer compromisso e desejosa de aguardar o resultado da viagem. Quando o Brownlow levantou âncora, John segurou a carta de Mary junto ao seu coração. Era a passagem de regresso.


Tão Mau Como Antes
 

Nos desígnios de Deus para com os homens, enquanto Isaac Watts, o maior escritor de hinos da Inglaterra, jazia no leito de mente em seu bonito lar de Abney, em Cheshunt, outro homem, sobre cujos ombros cairia o manto de Watts, era sacudido de um lado para outro no alto mar, a bordo de um barco frio e des­confortável. Professando uma nova fé, Newton lutava por conseguir o domínio de sua vida.

Se John já se sentia seguro em sua fé, ele ainda haveria de aprender através de amarga experiência, nesta viagem, que o crente, sem comunhão e sem ensino bíblico, é como uma brasa distante do fogo. Logo após ter partido de Liverpool, começou a negligenciar a oração e a leitura das Escrituras; a sua conversação tornou-se trivial. E, quando o barco chegou à Guiné, John mostrava-se quase tão mau como antes. Excluindo a irreverência, voltou a ser presa fácil de todos os seus velhos pecados, e "o inimigo preparou-me uma porção de tentações... fazendo-me, quase por um mês, adormecer numa vida de transgressão, que uns meses atrás nunca imaginaria ser possível". Às vezes, a consciência o perturbava; então resolvia, de coração, voltar ao lado de entrega total a Deus, como ocorrera em Londonderry. Tal como Sansão, ele dizia: "Sairei ainda esta vez, como dantes, me livrarei" (Juízes 16.20). Entretanto, encontrava-se sem forças, pois o Senhor parecia ter-se ausentado dele. Porém, Deus abandonou por muito tempo neste estado de miséria e desamparo.

Newton voltara à cena de seu serviço anterior, e o seu tra­balho consistia em visitar diversos lugares, num escaler, comprando escravos a fim de levá-los para o Brownlow. Faltava um ano para as limeiras produzirem frutos, e já Clow e P.I. estavam desejosos de negociar com Newton, que era agora um homem atarefado e próspero, mas quase tão descuidado com sua alma quanto havia sido anteriormente.
O escaler oferecia pouca proteção contra a chuva incessante. Eram-lhe familiares as dores nos membros, dores resultantes da exposição às intempéries, durante cinco ou seis dias seguidos, não se encontrando nada seco ao seu redor. Esses barcos raramente regressavam sem alguns membros da tripulação mortos ou doentes com febre ou disenteria. O sol escaldante, com temperaturas acima dos 38° centígrados, no mês de Fevereiro, a chuva e as violentas tempestades, numa terra em que a pluviosidade anual era apro­ximadamente 3.800 milímetros, as longas caminhadas por meio de florestas emaranhadas e de pântanos infestados de mosquitos, e a ameaça contínua de morte, que podia ser repentina ou dolorosa às mãos de nativos traiçoeiros: tudo isto roubava anos de vida ao comerciante branco. O primeiro-piloto Newton sepultou seis ou sete membros da tripulação de seu escaler. Portanto, não admi­remos que ele próprio tenha sido vítima de uma febre violenta. Durante os longos dias de intenso ardor e calafrios, dias em que faces e vozes se moviam à roda de sua cabeça atordoada, John viu, com clareza, a sua pródiga vida passada, a oportuna mise­ricórdia de Deus na tempestade do Atlântico e seu coração ingrato. Fraco e quase delirante, levantou-se da cama e arrastou-se até um canto afastado da ilha, onde se lançou sobre a misericórdia de Deus. Não tomou qualquer grande resolução, mas esperou e creu num Salvador crucificado. Daquela hora em diante, não somente a sua saúde melhorou, como também foi liberto do poder e domínio do pecado. Não que se tornou perfeito ou parou de lutar contra a tentação; no entanto, a verdade é que nunca mais caiu num "declínio" tão sombrio.

Dois anos mais tarde, John tentou explicar a Mary por que, após ter abraçado o evangelho, caiu tão lamentavelmente em seus velhos caminhos. "Eu tinha alguns pensamentos sérios", escreveu ele, "e estava reformado em grande medida, porém excessivamente satisfeito com minha reforma. Se eu possuía alguma luz espiritual, esta se assemelhava apenas aos primeiros e ténues raios de luz no início da aurora". Verdade se diga, ele não confiara inteira­mente em Cristo; continuara, sim, procurando ganhar a salvação.


Afogado em lugar dele
 

Nenhuma viagem de negócios de escravos decorria sem incidentes. Várias vezes, o escaler que o transportava do navio para a praia virou, sendo Newton tirado das águas mais morto do que vivo. John achou certo incidente digno de nota especial. O negócio já estava feito; o navio encontrava-se no Rio Cestors, preparando-se para partir com um total de duzentos e oitenta escravos. Um dos a primeimos deveres do imediato no escaler era levar madeira e água para a viagem. Newton fizera várias viagens em que saía do navio à tarde e passava a noite em terra, regressando com o carregamento na manhã seguinte. Um dia John estava preparando-se para partir, conforme seu costume. Já estava sentado no escaler, pronto para desamarrá-lo, quando o capitão apareceu no convés e ordenou que ele subisse a bordo. John obedeceu e apresentou-se ao capitão, esperando receber novas ordens. O ímpio capitão não deu o motivo daquela mudança inesperada, a não ser o de que "metera na cabeça", como rudemente se exprimiu, que devia mandar outro homem no lugar de Newton. Naquela noite, o escaler, velho praticamente sem condições de continuar no serviço, afundou no rio e o substituto de Newton morreu afogado.

O Brownlow partiu da África Ocidental e navegou para Antígua, nas índias Ocidentais e dali para Charles Town, na Carolina do Sul. A esta altura, sessenta e dois dos escravos já tinham sido sepultados no mar. Em terra, quando os afazeres o permitiam, John escapulia para os bosques e campos, a fim de estar a sós com Deus, mas a influência dos marinheiros levava-o de volta a noites ociosas e frívolas. No entanto, John sentia-se cada vez mais atraído para as coisas de Deus. Utilizava suas horas de lazer, na longa viagem de regresso, para rever o idioma latino, que quase esquecera, usando partes das Odes, de Horácio, que obrira numa velha revista. Escrevia com regularidade a Mary e trocava cartas "folha por folha", com o irmão dela. John revelava a Mary pouco da vida que o rodeava, exceto que em certa ocasião confessou sentir-se aprisionado a bordo, "com quase tantas criaturas imundas como aquelas com as quais esteve Noé, só que numa área muito menor", mas que continuava sendo para ela, "com um respeito e uma paixão que não diminuíam, um fiel admi­rador e um servo humilde". A Jack, porém, descrevia com viva­cidade os perigos no mar e em terra.

Ao desembarcar em Liverpool, John Newton resolveu os seus assuntos oficiais o mais depressa possível e partiu para Kent. Este Newton, que apanhou a diligência para Londres, era um Newton mais sábio e espiritualmente mais forte do que aquele que se dirigira àquela cidade dezoito meses atrás. Mais sábio porque aprendera lições importantes na escola do sofrimento, e mais forte por já saber reconhecer a sua própria fraqueza.

 

4. UM NOVO CAPITÃO

A breve visita a Chatham decorreu agradavelmente. A família ouviu as histórias que John lhes contou sobre a vida no mar e Mary não perdia nenhuma de suas palavras. Jack estava em Londres, onde estudava Direito e Elizabeth deixara de ser a menina das risadinhas que John conhecera na primeira visita, há sete anos. A família vivia uma vida confortável de classe média, frequentava com respeito a igreja e fornecia, proveitosamente, farinha, pão, ervilhas e outros géneros à Casa dos Pobres; mas nada conhecia da religião vital que John já possuía, era um crente novo e não havia conversado ainda com ne­nhum ministro do evangelho, nem ouvido uma pregação evangélica, a não ser alguns sermões proferidos por um pregador dissidente em Charles Town. John dificilmente sabia explicar o lhe acontecera e menos ainda transmitir esse tesouro a outras oas. Além disso, tinha outros assuntos urgentes em mente.

Por fim, quando John e Mary, com aquela comunicação silenciosa das pessoas que se amam, conseguiram ficar sós, o pretendente apresentou com tremor a sua proposta de casamento. Mary tornara-se mais positiva; também ela havia esperado, anelado, confiado e, visto que possuía um senso prático singular, não permitiria que aquela oportunidade escapasse. A bela jovem de vinte anos aceitou a proposta. Apesar de todos os seus ardentes sonhos, John verdadeiramente jamais se preparara para aquele momento. Pensara nele muitas vezes, mas parecia sempre tão improvável, tão fora do seu alcance, como um castelo edificado sobre as permanentes e desvanecedoras nuvens de suas circuns­tâncias, que mudavam constantemente. Quando o momento che­gou, sentiu-se ridículo e insensível. O velho relógio de parede tiquetaqueava solenemente, e os dois jovens namorados permane­ciam num silêncio embaraçador. Alguns anos mais tarde, John tentando explicar sua estupidez, escreveu a Mary uma carta cheia de amor, pedindo desculpas pelo embaraço que lhe causara devido à falta de jeito: "O meu coração estava tão cheio de emoção, ba­tia e tremia a tal ponto, que eu não sabia como proferir uma sim­ples palavra". O silencioso pretendente limitou-se a ficar ali sen­tado, agitando-se nervosamente, até que Mary quebrou o silêncio.

John Newton e Mary Catlett casaram na igreja de Sta. Margaret, em Rochester, no primeiro dia de Fevereiro de 1750, e acomodaram-se com a família, em Chatham. Não possuíam recursos para ter casa própria. Na verdade John tinha a perspectiva do comando de um navio, mas ganhara pouco na última viagem e nada como resultado do extenso serviço antes dela. Uma pequena quantia de dinheiro, que John esperava receber perto de seu casamento, também não se concretizou. Assim, ele com honestidade podia dizer que, omitindo as roupas, a soma do seu inventário de bens terrenos, por ocasião do casamento, montava a "setenta libras em débito".

A primeira grande alegria do jovem casal foi rudemente interrompida por uma ordem chegada em Junho, oferecendo a John o comando de um navio pronto a navegar para a África. John fora embalado pela vida tranquila de West Borough e, segundo o seu próprio testemunho, confiou na dádiva, esquecendo-se do Doador. Deixando Mary em Chatham, John viajou para o seu navio e no dia 11 de Agosto de 1750, um sábado, iniciou o diário de bordo, es­crevendo: "Zarpamos do cais de Liverpool".

O Duque de Argyle era um navio mercante comum, do tipo "bergantim"; possuía pouco mais do que um brigue de nove velas e uma deslocação pouco superior a cem toneladas. O seu novo capitão referia-se a ele como "um barco muito velho e inseguro".

A tripulação consistia de vinte e sete membros, além do capitão, do primeiro-piloto e do médico; era formada pelos habituais marinheiros rudes que constituíam a força de trabalho de qualquer navio que comerciava escravos. John conhecia-os; eram iodos a mesma coisa, e, sem uma disciplina rígida, cedo assumiriam o comando. Dessa tripulação, o primeiro-piloto, o médico, o carpinteiro e quatro marinheiros foram sepultados durante a viagem, outros quatro foram "trocados" por membros da tri­pulação do H.M.S. Surprize, e seis foram despedidos. Um navio raramente regressava com a tripulação com que saíra.

O Duque de Argyle estava armazenado com todos aqueles artigos de comércio que Newton encontrara a bordo do Pegasus, em 1745. Mas agora era o próprio John que supervisionava pes­soalmente a escolha de algemas e coleiras para o carregamento humano.

 

Para Mary, com amor
 

Uma vez que o navio se pusera a caminho, que a longa e tediosa viagem começara e a tripulação se estabelecera em sua rotina, John tinha tempo para iniciar a sua regular e pormenorizada corres­pondência com Mary. Durante as três viagens que fez nos quatro anos seguintes, o jovem marido escreveu mais de duzentas páginas à esposa e, embora algumas delas tenham mudado de navio vezes, antes de chegarem ao seu destino, nenhuma delas se perdeu. Escrevia duas ou três vezes por semana, mas uma comparação entre as cartas dirigidas a Mary e os pormenores do seu diário oficial de bordo mostrava quão cuidadoso era em não assustá-la com os perigos de seu ofício.
John desejava, nessas cartas, que ele e sua esposa se ajudassem um ao outro na "edificação da vida espiritual". Mary pensou que o marido estivesse sugerindo que ela carecia do verdadeiro cristianismo (o que era verdade!); por isso, se opôs com todo o vigor. John retrocedeu um pouco, relutante em ofender aquela a quem tanto amava; mas em julho, precisamente antes de zarpar, voltou ao assunto: "Se a minha muito querida Mary me permite, dar-lhe-ei o meu melhor conselho, o qual proponho como regra para mim mesmo, a saber: esforça-te por lançar todos os teus cuidados sobre Ele, que prometeu cuidar de nós, se tão-somente depositarmos nEle a nossa confiança".
De fato, as cartas da primeira viagem continham pouco que revelasse o profundo estado do coração de Newton. Ele referia-se com frequência à "Graciosa Providência" e ao "Grande Libertador", mas estava ainda por aprender o privilégio de conhecer aquela Graciosa Providência como um Pai celestial e pessoal. Mary era sem dúvida o ídolo de sua vida. Por volta de setembro, admitiu que não encontrava nada merecedor de sua atenção, "exceto a religião e o amor". Escreveu longas e lindas cartas de amor expressando adequadamente, em linguagem delicada, a paixão que sentia pela jovem esposa. "O único estudo em que me detenho presen­temente", escreveu John a 5 de setembro de 1751, "é sobre como posso melhor merecer e retribuir a tua bondade. Boa noite. Vou contemplar a Estrela do Norte". John e Mary haviam combinado olhar para o céu estrelado, em determinada hora de cada semana, em direção à Estrela do Norte, sentindo-se assim ligados um ao outro através dos muitíssimos quilómetros de água que os sepa­ravam. Até este simples ato de pessoas que se amam era uma evidência de sua jovem fé. Em anos posteriores, ao recordar o passado, ele comentou: "Naquela época conhecíamos muito pou­co o Trono da Graça... no qual todos os que amam o Senhor se encontram diariamente".

As cartas emitiam, em profusão, os elogios de um reverente amor. A 18 de Setembro, em uma de suas viagens, John escreveu: "Suponho que estou agora aproximadamente a meio caminho de Serra Leoa e a mais de dois mil e quatrocentos quilómetros de minha muito amada — uma grande distância, que aumenta em cada hora que passa! Mas não é suficiente para te separar dos meus pensamentos". Um ano mais tarde, regressando para casa, afirmou: "Devo-te a maior parte daquilo que torna a vida preciosa para mim". John sempre se sentiu indigno do amor de Mary e não se iludia quanto à falta de encanto em sua própria vida e aparência. Numa carta escrita em Abril de 1751, ele zombava de si mesmo, falando das reações dos amigos de Mary. "Quantas vezes não devem ter dito: O quê! A perfeita, a dócil, a educada senhorita, casada com aquele desajeitado pedaço de formalidade, cujo comportamento ridículo foi, durante anos, um alvo permanente de risada entre nós! Que estranho!" O amor de John por Mary era constante e fiel. As cartas continuaram durante a segunda viagem — "Penso em ti continuamente e oro por ti quase todas as horas" — e durante a terceira. Após a terceira viagem, sempre que estavam separados, as cartas de John seguiam Mary por onde quer que ela se encontrasse. Este amor, que excedeu tudo o que i is românticos jamais escreveram, prosseguiu sem desfalecer até a dolorosa morte de Mary, quarenta anos depois. Após aquele triste acontecimento, escreveu acerca do seu amor por Mary nos tempos das longas viagens no mar: "O afeto que eu nutria pela minha muito amada era grande, deveras excessivo, verdadeiramente idólatra! Já era assim quando começou. Penso que nunca um escritor de romances conseguiu imaginar algo maior do que aquilo que senti. Era assim quando me casei. Ela estava, para mim, exatamente (como poderei dizê-lo?) no lugar de Deus. Em lodos os lugares, mesmo acompanhado de qualquer pessoa, ela dominava os meus pensamentos. Fazia tudo por amor a Mary, quando ela estava ausente... nada me dava prazer".

 

O Capitão Newton
 

O capitão da marinha mercante não era inferior ao comandante da marinha de guerra e tinha poder absoluto a bordo. John descreveu o seu reino a Mary, em uma carta datada de 21 de Setembro de 1751, nos seguintes termos: "A não ser a dor provocada pela tua ausência (que espero sentir sempre que estiver longe de ti), há poucas coisas que me inquietam. A minha posição a bordo, mesmo na Guiné, podia ser cobiçada por muita gente que não sai de sua pátria. Sou tão soberano em meus pequenos domínios (não falando da vida e da morte) como qualquer potentado da Europa. Se disser a um homem: vem, ele vem; se disser a outro: vai, ele vai. Se mandar alguém fazer alguma coisa, talvez haja três ou quatro desejosos de participar de tal serviço. Ninguém no navio pode comer sem a minha autorização; mais ainda, ninguém se atreve a dizer que é meio-dia oito horas, na minha presença, até que eu ache adequado autorizá-lo a fazer isto. Quando tenho de sair do navio, a tripulação junta-se para assistir à minha saída, e, na minha ausência, faz-se uma vigília meticulosa, para que eu não volte de surpresa e fique sem se recebido com a devida honra. E, se não tiver regressado até à meia-noite, (o que, exatamente por esse motivo, nunca faço sem necessidade) ninguém deve ousar fechar os seus olhos sem ter tido a honra de me ver novamente".

O fato de que Newton evitava regressar tarde ao navio, por pensar em sua tripulação, revela-o um capitão humano e impar­cial. Jamais permitiria o "uso de leis arbitrárias ou opressivas no seu reino pacífico" e pagaria frequentemente a multa imposta sobre os que atravessavam o Equador pela primeira vez, em lugar de os ver submersos quase até a morte. Contudo, os velhos cos­tumes estabelecidos, que faziam parte da autoridade do capitão, eram necessários para manter a disciplina; sem ela, os mari­nheiros mais inferiores tornar-se-iam incontroláveis. Portanto, Newton mantinha a mais rigorosa disciplina, e muitos não con­cordariam com ele sobre o ter pouca coisa que o inquietasse.

Em Novembro de 1750, registrou no diário de bordo: "Dei uma boa vergastada em dois dos meus homens e prendi outro". Este marinheiro ficou na prisão durante quatro dias; e, por conti­nuar agressivo, foi algemado e preso no convés. Se o H.M.S. Surprize conseguiu domar William Lees nunca o saberemos. O capitão do Duque de Argyle pôs quatro rebeldes, membros da tripulação, a bordo do navio de guerra H.M.S. Surprize; no en­tanto, segundo o que foi anotado em seu diário no último dia de 1750, não fez um bom negócio: "Will Capworth, um homem que recebi do navio de guerra Surprize, foi descoberto forçando a fechadura da escotilha da cabina, para roubar conhaque; coloquei-o a ferros". Se os membros de sua tripulação lhe causavam problemas, os escravos negros constituíam uma ameaça ainda maior. A 26 de Maio de 1751, Newton descobriu que vinte deles haviam quebrado os grilhões, e, depois, correu o rumor de que tinham envenenado a água fresca; isto alarmou todo o navio. Certamente, nem todos lhe invejariam a vida.

Talvez seja difícil compreender como John Newton, um nem tão em dívida para com a misericórdia de Deus, pôde envolver-se no comércio de escravos, um comércio tão destruidor de almas. Porém, na metade daquele século, o comércio de escravos era considerado uma profissão respeitável e lucrativa, trabalho distinto". Afinal, havia o rumor de que os ministros estantes nos Estados do Sul possuíam sessenta e cinco mil escravos e, alguns anos mais tarde, o bispo de Falk possuía quatrocentos. Poucos acharam incoerente que, ao aventurar-se neste comércio, John Newton tivesse solicitado as orações dos crentes a favor de uma viagem próspera ou que tivesse redigido no seu no de bordo: Laus Deo - diário de uma viagem "realizada com a permissão de Deus". John admitia que a consciência o in­alava e que desejava um trabalho mais humano, sem grilhões, algemas e anéis de ferro. Contudo, de pé no convés, braços cruzados, cutelo no cinturão e pistola em punho, esta era a única que este capitão temente a Deus conhecia. Após uma longa viagem pelas florestas, os escravos eram levados a homens como Clow, que os traziam para bordo. Com relutância, Newton fazia negócio com o seu velho patrão e, na verdade, apanhava limas da fileira de árvores que ele próprio havia plantado. Uma vez a bordo, os escravos eram agrupados no porão; eram apreçados a tantas "barras", e uma barra era composta por um conjunto de pistolas, potes e sobras que havia no navio. O incrível negócio de traficar carne humana encontra-se bem descrito no diário de bordo de Newton: "Sábado, 29 de Dezembro... Às duas horas da manhã, o escaler regressou tra­zendo seis escravos — três rapazes e três moças, todos pequenos. Foram numerados de 38 a 43". "Quarta-feira, 20 de Março... comprei um barril de carne de porco para o Sr. Tucker, que veio a bordo cerca do meio-dia com quatro escravos — dois homens, uma moça já quase mulher e uma mulher com uma criança pequena; acertei as contas com ele, tendo-lhe pago o saldo." "Quarta-feira, 8 de Maio... convidei George e Peter para virem jantar a bordo. Comprei, do primeiro, um escravo já homem, um jovem com uma canoa, que veio das terras baixas, e uma cabra." Os escravos eram comerciados do mesmo modo que um barril de carne de porco ou uma cabra.


Os Escravos Debaixo do Convés
 

A vida a bordo era perigosamente doentia. Nenhum barco navegava sem uma colónia de ratos que roía e sujava tudo. John lamentava que a maior parte do tempo fosse gasto a reparar as velas sobressalentes, o que não conseguia com a velocidade com que os ratos as destruíam. Havia tantos a bordo, que ameaçavam comer tudo; mordiam os marinheiros e os escravos, quando dormiam, e chegavam a mordiscar as cordas.

À noite, o porão do Argyle estava apinhado com cento e setenta e quatro escravos, e pronto para deixar a costa. Os corpos, trans­pirando e exalando vapor, jaziam comprimidos, e alastravam-se a doença e a disenteria com uma rapidez alarmante. Poucas se­manas se passavam sem que um ou mais membros da carga humana não sucumbissem ao fedor do ar imundo debaixo do convés. Quando algum escravo morria, Newton trazia os res­tantes ao convés para os arejar, mandava a tripulação esfregar os compartimentos, enfumaçar o navio com breu, tabaco e enxofre durante duas horas e, depois, lavá-lo com vinagre. Sempre que possível, os homens eram desfilados no convés, lavados com agua salgada e enxaguados com água fresca. Mas, apesar disso, continuavam a morrer e a doença devastou também a tripulação, matando o médico, o imediato e o carpinteiro. John escreveu a Jack falando acerca do trabalho desagradável, mas necessário, de atirar os corpos dos negros e dos brancos às águas infestadas de tubarões, onde "estes animais vorazes... se mostravam tão atentos que, ao tocar o corpo na água, era imediatamente feito em pedaços e devorado perante os nossos olhos".

O número de mulheres a bordo e o poder absoluto do capitão constituíam uma tentação, à qual poucos capitães tinham interesse em resistir. Porém, John já pensava de maneira diferente e se disciplinava; no que dizia respeito à vida a bordo do seu navio, levava a sua tripulação a fazê-lo também. Não hesitou em prender um dos marinheiros por ter este abusado de uma escrava e, durante as viagens, John abstinha-se de comer carne, a fim de, pensava ele, ajudá-lo a controlar suas paixões. Não era difícil discernir o contraste entre a vida desse estranho capitão e a dos que se achavam ao seu redor. John podia ver neles aquilo que ele mesmo já fora. Com corações consumidos pelo pecado habitual e pela crueldade, aqueles homens eram escravos de suas paixões, desconhecendo muitos deles o que era a compaixão humana. Quando, anos depois, fazia campanhas contra este comércio terrível, Newton ainda se lembrava do capitão que, impedido de dormir pelo choro do bebé de uma escrava, saiu da cabina e, dirigindo-se à parte debaixo do convés, arrancou a criança dos braços da mãe, atirando-a ao mar. Esta cena horripilante era ultrapassada apenas pela daqueles que, deliberadamente, atiravam os negros ao mar, i que a perda fosse coberta pelo segurador.

Esse estranho capitão aguentava bastante zombaria da parte dos outros capitães. Eles não conseguiam compreender um homem orava, lia a Bíblia e escrevia cartas à mulher. "Eles pensam que não tenho uma noção correta da vida", escreveu numa dá­lia las cartas, "e estou certo de que são eles que não a têm. Dizem que sou melancólico; eu lhes digo que são loucos. Dizem que "sou escravo de uma mulher, o que eu nego; mas posso provar alguns deles são meros escravos de uma centena delas. Estranham a minha maneira de ser; eu me compadeço deles; não têm a mínima ideia da minha felicidade". Sobre este fato John sentia-se satisfeito, pois confessou que se sentiria envergonhado, se tais homens, que "se contentavam com uma bebedeira ou com o sorriso de uma prostituta", pudessem compreender a sua ale­gria. Além da oração, o único escape de John ao barulho dos escravos e dos comerciantes, ao calor sufocante e ao conversar perpétuo, era deslizar até ao convés à noite e sussurrar, na quie­tude fresca do firmamento estrelado, "minha muito querida Mary". Nunca mencionava o seu nome a outrem, porque usá-lo na presença de "simples marinheiros" seria degradá-lo.

No final de uma viagem que se podia chamar próspera, virou o navio em direção à pátria e deixou-se levar por um vento forte que o conduziria a Mary, à velocidade de duzentos e noventa quilómetros por dia. Chegou a Liverpool no dia 8 de outubro de 1751, uma terça-feira, mas viu Mary no dia 2 de Novembro.


Uma Façanha na Leitura

 

Um capitão marítimo usufruía de pouco tempo para desfrutar dos confortos do lar. Em Abril, John já havia partido de novo pa­ra Liverpool, para o lançamento de um navio novo, que ele ia capitanear em sua segunda viagem. John descreveu o African, outro navio mercante do tipo "bergantim", como "um dos barcos mais fortes que se pode construir pelo poder do dinheiro... porém, um veleiro que não se podia considerar de boa qualidade".

No dia 30 de Junho, terça-feira, o African zarpou e iniciou a sua longa viagem. A 13 de Agosto, Newton comprava a primeira consignação de escravos, e um mês depois, em obediência a uma lei do Parlamento, o African adotava o novo calendário gregoriano, que levou o país de Newton e o seu pequeno navio a nivelar-se ao resto da Europa. Nessa viagem, John determinara ser mais disci­plinado do que na anterior; assim, fixou uma rotina regular para a sua vida, de modo que pudesse dedicar tempo à devoção, ao estudo, ao exercício e ao repouso. Nunca dormiria mais do que seis ou sete horas, começando os dias com uma ou duas horas de leitura da Bíblia e, conforme o trabalho lhe permitisse, pros­seguiria com o estudo do Latim, do Francês e da Matemática. Cerca do meio-dia, voltaria a orar.

Além de Euclides e de Horácio, John lera pouco em toda a sua vida; mas o crescimento da alma não provém dos estudos de geometria nem da leitura dos versos latinos. Durante o curto tem­po que esteve em casa, Newton encontrara um livro que lhe prendera a atenção, pois parecia um espelho de sua própria vida. Intitulava-se A Vida do Coronel James Gardiner, e fora escrito por Philip Doddridge. Doddridge, pregador dissidente de North-ampton, amigo de Isaac Watts e também hinógrafo de talento, conhecera pessoalmente aquele coronel, que morreu heroica­mente a 21 de setembro de 1745, na infeliz batalha de Pres-lonpans, uma tentativa desastrosa de esmagar o exército do Jovem Pretendente. Gardiner começou sua carreira no exército de uma forma tão jovial e impetuosa, que era referido como "o libertino feliz", por todos os que o conheciam na corte francesa, lugar onde fazia trabalhos diplomáticos. Enquanto esperava por uma mulher casada, à meia-noite, se voltou ociosamente para um pequeno livro de Thomas Watson. O livro chamava-se O Soldado Cristão ou O Céu Tomado de Assalto). De repente, baixou uma luz sobre a página, e Gardiner recebeu uma representação tão visível de Cristo na cruz, cercado de glória, que sua vida foi transformada; acabou imediatamente com os compromissos ilícitos e tornou-se um destemido soldado cristão. A autodisciplina (Gardiner serviu de padrão para Newton.

Por esse tempo, John também começou a ler outro livro de Doddridge, A Origem e o Progresso da Religião na Alma. A obra fora planejada de início por Watts, mas, devido à falta de saúde, esse trabalho foi transferido para o seu amigo. Era um livro prático, parecia ter sido escrito exclusivamente para John Newton. Uma rápida olhada nos títulos dos capítulos foi o suficiente para convencê-lo disso: "Despertando o pecador desinteressado", "Lembrando leitor acerca de quanto ele precisa da assistência do Espírito de ", "O triste caso de uma queda no pecado deliberado e co­lo, depois de solenes atos de dedicação a Deus". Doddridge fugiu nem ao diagnóstico, nem à cura, e a alma de John pulava de alegria pelo conforto oferecido. No Brownlow havia cedido à tentação, tornando-se a sua situação deplorável, mas o sábio doutor encorajava-o dizendo que a sua "gangrena não era incuráveI. Há um bálsamo em Gileade, há um Médico lá. Renova petição a Jesus, para que o seu sangue seja espargido sobre ti, de modo que a tua alma seja purificada e a tua culpa, re­movida". Tal conforto introduziu-se habilmente na alma de Newton, fazendo-se acompanhar de uma jubilosa paz.
Mas nem tudo era paz, e talvez tenha sido o capítulo deno­minado "O cristão firme estimulado a servir a Deus" que mais o incentivou daquela vez. Era levado a inspecionar sua vida e a ver as oportunidades de serviço que se lhe deparavam. "Deus investiu-te de poder, quer estejas numa cidade grande ou numa pequena comunidade?", escreveu o hinógrafo de Northampton. "Lembra-te de que esse poder te foi dado para que Deus seja honrado e para que os que estão sob o teu domínio, quer domés­tico, quer público, venham a ser felizes". Servir! John nunca pensara em tal coisa. A 24 de julho de 1751, examinou a sua vida e escreveu a Mary: "Já vivi vinte e sete anos, mas quão pouco fiz realmente digno da vida". Os livros adequados come­çavam a mudar sua maneira de pensar.

John tencionou arranjar os "domingos no mar", de modo a serem mais úteis; ele os descreveu a Mary durante a terceira viagem, em 1754. Levantava-se às quatro da manhã, enco­mendava o dia e Mary a Deus e dava "um passeio pelo convés". Depois seguia-se a leitura de dois ou três capítulos da Bíblia, o café da manhã, e às onze horas "toca-se o sino do navio para que a minha pequena congregação se junte ao meu redor". O capitão lia o sermão, utilizando para isso o Livro de Oração Comum, despedia a tripulação e andava pelo convés até à hora do almoço. À tarde, reunia a tripulação de novo para outro culto. John não hesitava em adequar a liturgia às necessidades dos seus homens.

A preocupação de John pela tripulação evidencia-se na carta que escreveu ao Dr. Jennings, um pregador dissidente de Wapping, perto de Londres, com quem se correspondia frequentemente. Nessa carta, John incitava a que se encontrasse alguém que escrevesse um livro com conselhos e leituras devocionais, to­talmente apropriado para os homens do mar; comprometia-se a comprar cem de uma vez e a arranjar encomendas de mais, se cada cópia não excedesse os dois xelins. Estimulava igualmente que se procedesse à reedição do livro Navegação Espiritualizada, de John Fiável, pregador não-conformista em Dartmouth, desde 1656 até à sua morte, em 1691.

 

O Motim

 

John tinha boas razões para desejar o aperfeiçoamento de sua tripulação. Durante o mês de Novembro, a febre atingiu o contramestre e três marinheiros, enfraquecendo o potencial humano do capitão, especialmente por ser uma ocasião em que vários membros da tripulação estavam ausentes do navio mer­cante. Para aumentar a preocupação, Newton foi informado por um dos tripulantes que um marinheiro chamado Richard Swain estava tentando influenciar homens do navio e planejando um motim. Isto colocava o capitão numa situação muito precária. Com um número crescente de escravos a bordo, quatro membros da tripulação doentes e metade ausente no escaler, Newton já nem sabia quem era a seu favor ou quem planejava a sua morte. Quando Swain regressou no escaler, o capitão prendeu-o imediatamente, mostrando-se o marinheiro aparentemente muito sur­preso e afirmando veementemente a sua inocência. Mas, apesar disso, Newton não sabia quem pertencia ao grupo de amotinados. Passados dois dias, um marinheiro contou ao capitão que ouvira uma conversa entre Swain e outro membro da tripulação, na qual planejavam a morte do primeiro-piloto e do doutor e planejavam também tomar posse do navio pelas armas. Revelada a identidade dos rebeldes, Newton prendeu-os, entregando mais tarde Swain e um outro homem ao navio Earl of Halifax, pedindo que estes fossem postos a bordo do primeiro navio de guerra que encontrassem. Providencialmente, no próprio dia em que se devia executar a conspiração, adoeceram dois dos cúmplices principais, tendo um deles morrido no espaço de uma semana. John sentiu-se triste por este episódio, visto que não conseguiu descobrir nenhuma causa para o motim. Voltou à cabina e sentou-se para escrever a Mary. Ansioso por não preocupá-la com uma ex­periência tão desagradável, justificou-se pelo silêncio recente, apresentando uma breve desculpa: "Ultimamente tem-me sido impossível escrever. Tenho passado uma parte do tempo em terra e o resto, indispensavelmente ocupado".

Mas, logo a seguir, foi a vez dos escravos. Alguns dos rapa­zes mais novos usufruíam da mesma liberdade que as mulheres. No dia 10 de dezembro, durante a noite, pouco depois do capitão ter concluído o culto dominical, despedido a tripulação e dado a última volta pelo convés, quatro rapazes negros esgueiraram-se despercebidamente para a grade que cobria o porão e deixaram cair facas, um formão e várias ferramentas, para os homens que estavam acorrentados em baixo. Enquanto o capitão e a tripulação dormiam, os escravos trabalhavam. Pela manhã, quando o capitão fazia a ronda, descobriu dois homens com os grilhões quase ti­rados. Ordenou-se imediatamente uma revista, tendo-se des­coberto as ferramentas, sendo os escravos devidamente cas­tigados. Foram postas coleiras de ferro nos líderes do motim e quatro dos rapazes levaram "uns apertos ligeiros nos polegares, para que confessassem tudo". Na verdade, Newton usou esta tortura horrorosa apenas duas vezes ao longo de todos os seus comandos; uma restrição notável entre os capitães de escravos. Nas poucas semanas que se seguiram, os escravos mostraram-se submissos, mas sempre de mau humor e à procura de uma oportunidade para escaparem. Essa tentativa de fuga não foi a primeira que Newton enfrentou em suas viagens. Na primeira viagem, no Duque de Argyle, descobrira vinte homens que haviam quebrado os grilhões com um grande ferrão de merlim e se preparavam para atacar; foram descobertos, dominados e presos no porão. Nesta costa conhecia-se muitos exemplos de tripulações inteiras assassinadas por escravos que fugiram.

A segunda viagem foi uma das mais perigosas que Newton empreendeu. No mês de Fevereiro de 1753, ele procurava livrar-se de uma falsa acusação arranjada contra ele por um dos comerciantes mestiços. Certo dia, um pressentimento estranho impediu-o de sair do navio. Mais tarde descobriu que, se o tivesse feito, a sua vida teria corrido um sério risco, pois o comerciante planejava envenenar o capitão e denunciar o pretenso crime.

 

Mary Está Morta

 

Não é surpreendente que Newton, alguns anos mais tarde, se admirava de tantos capitães ingleses conseguirem sair da costa vivos e se sentia alegre por poder desviar o African da Serra Leoa para se dirigir para a rota África-Antilhas. Mas, no fim desta viagem, outro choque o esperava.

John aguardava com ansiedade o momento em que, na ilha de S. Cristóvão, mais comumente conhecida pelos capitães como a ilha de S. Kitts, lhe seria entregue o previsto maço de cartas provenientes da esposa. No entanto, não havia cartas para o capitão Newton. Sua face empalideceu, seu coração bateu ace­leradamente, uma faca em brasa parecia espetar-lhe o estômago, e John Newton afundou-se na cadeira. Mary estava morta, tinha de estar; não podia haver outra explicação. Averiguou em todos os navios, perguntando se havia correspondência para si. Os ca­pitães vieram a bordo dar-lhe as condolências, mas com uma obstinada rotina escreveu mais uma carta ao seu ídolo. "Mas por que estou escrevendo", redigiu em desespero, "se muito possi­velmente a minha querida Mary já não a pode ler?"

John perdeu o apetite, sentia uma dor incessante no estômago e, passadas três semanas, considerou-se sob o peso de um terrível golpe. Sabia que nunca fora digno de Mary, mas não podia conformar-se com a ideia de tê-la perdido. Num último gesto de desespero, enviou um barco a Antigua, caso as cartas tivessem sido mal en­dereçadas. Trouxeram-lhe então um maço de cartas, vendo-se em seis delas a elegante e familiar caligrafia de Mary. "Oh! quão gentil e cuidadosa é a minha querida!", escreveu John. Tornando-le alvo das felicitações de todos os capitães, Newton voltou ao seu negócio de vender esposas e maridos a um continente distante.

Em Agosto de 1753, o African, depois de ter desembarcado duzentos e sete escravos, regressou à pátria com um carregamento de algodão, açúcar e rum, após "uma viagem longa, penosa e precária", ainda que com "total satisfação para mim, para os meus amigos e para os meus empregados".

 

A última Viagem

 

A viagem final de Newton começou a 21 de Outubro, quan­do, com uma suave brisa, zarpou e, com uma tripulação de vinte e sete homens, dirigiu o African rumo à Africa Ocidental.

Nesta viagem, John levou consigo um jovem de nome Job Lewis. Encontrara-o por acaso no cais de Liverpool e, ao falir o proprietário do barco de Lewis, John ofereceu-se para recebê-lo a bordo. Ao explicar a Mary o seu cuidado evidente pelo rapaz, Newton escreveu simplesmente: "Há outras razões para o meu interesse pelo rapaz, que não são necessárias dizer-te". Essas razões remontavam ao H.M.S. Harwich, onde Newton, re­centemente convertido ao livre pensamento de Shaftesbury, per­verteu a mente desse jovem impressionável, orientando-o no mesmo rumo vil. Lewis mostrava-se agora tão despreocupado quanto Newton outrora, e este, com uma sensação de pesar e culpa esperava levar Job a um melhor estado. A intenção, porém, foi melhor do que a decisão. Um mês depois de ter partido de Liverpool, o capitão Newton prendeu um oficial e um marinheiro apanhados a roubar. Agrilhoou-os e, no dia seguinte, após os fatos terem sido comprovados, "entregou-os para serem castigados", tendo o oficial recebido dezessete açoites e o marinheiro, onze. Mas, nessa altura, haviam passado apenas alguns "domingos no mar". Mais se poderia ter esperado do carpinteiro, que em Dezembro de 1753 provocou distúrbios, recebendo por eles "duas dúzias de chicotadas". É justo supor-se que foram as chicotadas, e não a liturgia, que o fizeram voltar fielmente ao trabalho dois dias mais tarde.

Job Lewis foi a maior provação de Newton. A profanidade e a moralidade libertina do jovem eram um espelho de sua própria vida anterior, e, a cada passo da vida miserável de Job, John sentia um dedo acusador que apontava em sua direção. Qualquer tolo pode fazer naufragar um barco, mas como é difícil tirá-lo depois do fundo! Job desdenhava dos "domingos no mar", esforçava-se por anular a influência do capitão sobre a tripulação e foi quase sempre um espinho agudo para Newton. Por fim, na costa africana, Newton comprou um pequeno veleiro, o Race-horse, preparou-o para o comércio de escravos, proveu-o de uma tripulação e nomeou Lewis capitão. Lewis tomou conta do navio em 18 de janeiro e no dia 21 do mês seguinte havia morrido. Morreu por causa da sua vida excessivamente libertina e, segundo o testemunho dos que o rodeavam, deixou este mundo enfurecido e desesperado, "pronunciando a sua própria condenação fatal antes de expirar, sem nenhuma aparência de ter esperado ou suplicado por misericórdia".

O ano de 1754 foi uma terrível época de mortes na costa africana; John não se lembrava de outra igual. Todavia, em 8 de abril ele, mostrando um coração grato, informava à esposa que se encontrava em perfeita saúde e que não tinha sepultado nem brancos nem pretos. Mas escreveu demasiado cedo. Pouco de­pois, uma febre o atacou tão violentamente, por três dias, que tanto ele como a tripulação temeram por sua vida. John confessou estar pronto para morrer, havendo, no entanto, um pretexto com o qual encobria o desejo de viver. Era a inspiração daquele capítulo do livro Origem e Progresso da Religião, de Doddridge; Newton ansiava "ter a oportunidade de fazer algo para a glória de Deus e para o bem dos meus semelhantes, para não deixar este mundo tendo sido sempre inútil". John sentia que havia feito pouco uso de suas presentes oportunidades, e dificilmente ousava fazer uma petição deste género. Contudo, esta era uma oração que Deus responderia mais cedo do que Newton imaginava.

As cartas para a esposa continuavam a emitir profusas ex­pressões do seu amor. "Encontro em ti, todos os dias, algum motivo novo de estima", escreveu em Janeiro. Mas, além dessas expressões, continham outros assuntos de muito interesse. Logo a seguir à febre quase fatal, John escreveu cheio de esperança quanto à sua fé em Cristo e quanto à Mary. Estava por fim certo de que Mary compartilhava com ele da crença de que nada poderia suceder por acaso nas suas vidas e que dependiam completamente "da misericórdia divina, por meio da fé no sangue de Jesus Cristo, nosso Redentor, de acordo com os termos claros e literais do evangelho". Dedicava páginas extensas a falar do seu amor por Cristo e da sua confiança na verdade. Mary não podia ter dúvidas sobre a profunda entrega do marido ao Salvador. Em julho, en­quanto o navio se dirigia rapidamente para casa, Newton escrevia com triunfo: "Não preciso de ninguém para me pronunciar absolvido; posso dizer a mim mesmo que os meus pecados foram perdoados, porque sei em quem tenho crido. Isto leva-me a louvá-Lo e a adorá-Lo..."

Se John aprendeu o valor dos livros cristãos na segunda viagem, foi na última que aprendeu a apreciar o valor da co­munhão cristã. Ao ancorar em Sandy Point, em frente à Ilha de S. Cristóvão, John encontrou um capitão que era crente. Uma observação casual, feita numa reunião de capitães, deu a Newton a suspeita de que este homem conhecia algo de Cristo. Mencionou o assunto e os dois homens iniciaram uma estreita camaradagem. Ao escrever a Mary, John referiu-se a ele como uma pessoa de valor, porém retirou a descrição de que era "do mesmo tipo" que ele próprio, porque, ao refletir, "vejo que ele me ultrapassa em tudo que eu mais desejo". Alexander Clunie era um cristão piedoso e experiente. Todas as noites, os dois capitães se viam no camarote, ora de um, ora de outro, e, junto à luz pálida da lanterna, liam, oravam e conversavam. O exemplo e a conversação de Clunie foram de imensa ajuda. Deste homem, John aprendeu a sua doutrina cristã. Clunie ensinou-lhe a fé evangélica com mais clareza e advertiu-lhe sobre os que negavam a divindade eterna de Cristo e a verdade histórica da sua Palavra. Até ali John pensara que todo sermão era bom e todos os pregadores verdadeiros. Alexander Clunie ensinou-o a distinguir as coisas. Fez mais do que isso: ensinou-o a orar em voz alta e a testemunhar da sua fé em Cristo. O jovem cristão aprendeu o enorme valor de um professor sábio. Foi através de Clunie que John aprendeu que a sua salvação se devia à iniciativa e ao poder soberano de Deus; por consequência, era uma salvação que, uma vez obtida, jamais se poderia perder. Durante duas semanas, John embebeu-se do ar revigorante da confraternização cristã e, quando finalmente partiu para o seu país, sentia-se em perfeita paz, apesar do ministério não-edificante existente nesta ilha, onde a única marca distintiva do clérigo como ministro do evangelho "era a toga e a sobrepeliz". John aprendia a discernir!

Quando o African regressou a Liverpool em agosto, Joseph Manesty ficou satisfeito com seu jovem capitão. Não perdera um escravo ou um marinheiro sequer na terrível rota do meio, o que era muito recomendável; merecera os cumprimentos elogiosos recebidos de todos os capitães no porto. Mary viajou para Liverpool e permaneceu em casa da família Manesty, enquanto John equipava um barco novo e mais veloz para outra viagem. O Bee ficou pronto para se fazer ao mar em Novembro, e John preparou-se para se despedir da sua querida Mary, uma despedida que lhe partia o coração. As provisões estavam a bordo, a tripulação reunida, as mercadorias para troca, guardadas e o capitão, uma vez mais, estava pronto a partir para a costa da África e arrancar pais e filhos do seu lar nativo e lançá-los à morte cruel, nas plantações. Eram estes os planos de Newton. Mas Deus dispôs as coisas de outro modo.


5.A ALFÂNDEGA E OS IMPOSTOS
 

John e Mary estavam sentados na sala de visitas, na casa da família Manesty. Estavam à sós, bebendo chá e falando de acontecimentos passados. Com o rosto maltratado pelo mar e os olhos secos da espuma da água salgada, o capitão contemplava a beleza juvenil da esposa. Conversavam. Qualquer conversa satisfazia, desde que pudessem ter o prazer de estar juntos, antes que os mares montanhosos e os ventos uivantes os voltassem a separar. Mary ria-se da desajeitada declaração de amor de John; ele, por sua vez, reprovava-a pelas respostas frias, emhora adequadas, que as suas cartas apaixonadas haviam recebido. Falaram do mar, dos marinheiros e dos escravos. John expressou a sua aversão por um comércio que envolvia correntes, grilhões e algemas e que, ao mesmo tempo, o separava de Mary com tanta persistência. Mas, a verdade é que não conhecia outra maneira de ganhar a vida. Com a idade de trinta anos que mais podia fazer? Era escravo da escravatura.

De repente, o capitão levantou-se da cadeira, levou a mão à cabeça e estatelou-se no chão. Mary gritou, o Sr. e a Sra. Manesty, assim como os criados, precipitaram-se para a sala, e o médico foi chamado com urgência. Por uma hora, John não deu qualquer sinal de vida, além da respiração. Mary desmaiava e soluçava, alternadamente, e demorou quase um ano para recuperar-se do choque. John foi levado para a cama, onde melhorou, entre ton­turas e dores de cabeça.

Os médicos sugeriram que fora um ataque apoplético e, apesar de não ter voltado a se repetir ao longo da sua vida, o diagnóstico permaneceu o mesmo. Em tais condições não era sá­bio Newton voltar a navegar. Assim, quando faltavam dois dias para zarpar demitiu-se do comando do Bee. O seu substituto, a maior parte dos oficiais e muitos homens da tripulação, morreram às mãos dos escravos durante aquela viagem, e o barco foi trazido de volta com grande dificuldade.

John levou Mary para Chatham, na esperança de que, longe da cena da sua enfermidade e na atmosfera familiar do lar, se recupe­rasse mais depressa. Mas, à medida que ele melhorava, ela decli­nava, e os médicos não eram capazes de diagnosticar nem de remover o mal. Mary enfraqueceu de tal maneira que não tolerava ouvir ninguém andando no quarto. Durante onze meses, John cuidou dela com grande ansiedade, mantendo-se naquele "posto terrível de observação, que parecia cada vez mais tenebroso".

Havia poucas possibilidades de arranjar trabalho, mas a ne­cessidade não era urgente. Tinham sido bem recebidos na casa dos Catletts e, embora o seu ordenado como capitão tivesse sido somente de cinco libras por mês, tinha-lhe sido permitido uma participação nos lucros que, só na segunda viagem, se elevaram a duzentas e cinquenta e sete libras, três xelins e onze pences. Com a ansiedade imediata fixada em Mary, John propôs-se a tirar o maior proveito possível do tempo que passava no condado de Kent.


Em Boa Companhia
 

Alexander Clunie tivera a previdência de recomendar a Newton determinado homem que o ajudaria a crescer na fé, se alguma vez acontecesse estar perto de Londres. Chatham ficava a poucos quilómetros de Londres; por isso, John ia frequentemente àquela cidade, despedindo-se da esposa com um beijo. Lá ouviu o pastor de Clunie pregar, o reverendo Samuel Brewer, um ministro congregacional de Stepney. Ser apresentado ao sábio pastor ajudou muito a John, que, pela primeira vez, recebeu aconse­lhamento espiritual de um ministro de Deus. Mal sabia ele que, trinta anos mais tarde, homens e mulheres de todo o reino viriam à sua própria casa, na cidade de Londres, para receber tais conselhos dos seus próprios lábios. Em Londres, John foi apresentado a sociedades cristãs e a muitos amigos crentes, inclusive a George Whitefield, um homem de quem ouvira falar tanto, mas de quem sentia saber tão pouco. Pouco havia em Chatham que se pudesse comparar a isto e, não fosse pela débil saúde de Mary, teria passado muito mais tempo na cidade.

Mary enfraqueceu mais. O temor de uma separação e a preo­cupação por um emprego futuro lançaram John numa crise de fé. Ele mostrava-se relutante em renunciar Mary e incapaz de voltar ao mar. Manesty prometeu ajudar em tudo o que pudesse, mas o negócio estava saturado e o comerciante não ousava aventurar-se a mandar outro navio, enquanto o Bee não retornasse. John passeava pelas veredas arborizadas de Chatham e orava nos campos verdejantes que margeavam o Rio Medway.
Se o dinheiro de John estava se esgotando, por certo que o mesmo não acontecia com o seu tempo. Deslocava-se frequentemente a Londres, algumas vezes indo de barco desde Gravend, perambulando pelo convés para evitar a impureza da linguagem falada em baixo. Levantava-se às quatro da manhã, a fim de estar no Tabernáculo de Whitefield para ouvir o sermão após um culto de três horas, "partia exultante", para ouvir o Brewer! John vira Moorfields tão cheio de lanternas, às cinco horas de uma manhã de inverno, "quanto o Haymarket cheio de tochas acesas, em noite de ópera".

George Whitefield ultrapassara o seu quadragésimo ano de vida movia-se entre a América do Norte e a Inglaterra, envolvido no poderoso trabalho evangelístico. Clérigo ordenado na igreja anglicana e graduado em Oxford, Whitefield (juntamente com os irmãos Wesley) havia escandalizado a religião polida e formalista de seus dias, proclamando a necessidade do novo nascimento e indo pregá-lo ao ar livre, sempre que lhe negavam um púlpito.

A sua pregação ofendia tão-somente porque era verdadeira e poderosa. Numa resposta a Lady Huntingdon, que a convidara a fim de ouvir Whitefield pregar, a duquesa de Buckingham con­firmou bem o valor da mensagem, quando protestou nos seguintes termos: "É monstruoso dizer-nos que temos um coração tão pecaminoso como o dos miseráveis que se arrastam pelo solo. É extremamente ofensivo e insultante; não posso deixar de me sur­preender que Vossa Senhoria consiga apreciar sentimentos tão contrários aos das classes elevadas e à boa educação". Todavia, a Sua Senhoria cria em verdade tão "monstruosa", e a duquesa acabou por aceitar o convite! Mas as multidões sabiam que a mensagem de Whitefield era verdadeira, e mais de trinta mil pessoas afluíam aos campos para ouvi-lo pregar. O avivamento evangélico estava invadindo o país. John também sabia que a mensagem de Whitefield era verdadeira e que este estava certo ao insistir em que a salvação era uma obra de Deus e que nenhum homem poderia se tornar cristão sem que primeiramente o Espíri­to Santo lhe despertasse a consciência e lhe desse fé para crer. A própria experiência de John lhe dizia isto, mesmo que não lhe dissesse mais nada. Sentia-se muito atraído por estes desprezados "metodistas", nome pelo qual eram conhecidos Whitefield, os irmãos Wesley e os seus seguidores.

Newton tinha visitado Whitefield em Junho de 1755, por apenas cinco minutos, mas o breve encontro desenvolveu-se numa amizade para toda a vida. John ouviu todos os pregadores evangélicos de Londres: o Sr. Romaine, que recentemente havia se fixado na igreja de Santa Ana, e "o corajoso Bradbury", um áspero e ar­doroso dissidente que ofendera a rainha Ana e estava no seu sexagésimo ano de pregação. Com estes homens, fiéis ao ensino das Escrituras, John Newton aprendeu a amplitude da fé evangélica.


Inspetor de Alfândega
 

Em Agosto de 1755, Joseph Manesty, fiel à sua palavra, conseguira para Newton o cargo de Inspetor de Alfândega, em Liverpool. John sentia-se relutante em deixar Mary, que piorava a olhos vistos, mesmo sob cuidados médicos. Numa época em que uma dúzia, ou mais, de curas para a tuberculose consistiam de alternativas tais como "água de caracóis" (uma mistura de caracóis assados, adicionados a minhocas picadas e cerveja, ervas e vários outros ingredientes!), ou nabos crus e açúcar mascavo, não admiramos que John se mostrasse insatisfeito em deixar a esposa. A medicina abusava da liberdade, e havia pílulas, pós e poções para todas as doenças. A própria eletroterapia entrara em campo, e, sem dúvida, Mary foi "eletrificada"; afinal, não foi John Wesley tentado a referir-se à eletroterapia, alguns anos mais tarde, como "a medicina mais aproximada da medicina universal, já conhecida no mundo"? John Newton sentia-se tão impressionado com esta maravilha que, uma vez instalado em Liverpool, investiu numa máquina elétrica e organizou um sistema de consultas particulares. Ao fim de muitos anos, continuava ainda a usá-la em Olney, e contou o caso de uma pobre mulher que sofria de reumatismo e que o procurou para receber tratamento; é duvidoso que a máquina a ajudou, mas Newton anotou que, enquanto esteve em Olney, para fazer o tratamento, ela ouviu os seus sermões e acabou por ficar sob convicção de pecado! Os médicos estavam ganhando experiência valiosa no tratamento de desordens nervosas e, com um rei a ser em breve declarado demente, já estavam empregando vesicantes nas cabeças, para extrair os venenos que pudessem existir nos cérebros. Com toda a parafernália da medicina do século XVIII ao seu dispor, o milagre não foi que Mary se recuperasse, e sim que não morresse!

A maneira como Newton obteve o lugar de inspetor de alfândega foi realmente notável. Manesty tinha a impressão de que o antecessor de Newton, no cargo, ia demitir-se; por isso, requereu o lugar para John. Na verdade, o titular do cargo não tinha qualquer intenção de resignar; mas, um dia, depois do recebimento da proposta de Newton, o inspetor de alfândega foi encontrado morto na cama! Assim que soube do caso, o prefeito de Liverpool candidatou o sobrinho ao posto que ficara vago. Porém, devido ao estranho erro cometido por Manesty, a proposta de Newton já se encontrava lá. E isso não foi tudo, porque, um pouco antes do incidente, fora oferecido a John um emprego bem inferior, e, se não fosse pelo erro de Manesty, John tê-lo-ia aceitado.

John iniciou o novo trabalho de inspetor de alfândega no dia 19 de Agosto de 1755. Nessa época, o contrabando atingira o seu apogeu, e a Ilha de Man, ainda isenta de impostos, era um valioso ponto de descarga para os navios corsários, provenientes da Amé­rica e das índias Ocidentais. Para impedir o avanço deste co­mércio ilícito, mas crescente, os barcos aduaneiros patrulhavam as águas; as praias solitárias e os rochedos eram vasculhados pelo Oficial de Ancoração, e o inspetor de alfândega vistoriava os navios que entravam no porto. O trabalho de um oficial de alfândega nem sempre era fácil; porém, Newton fazia-o com agrado. Por vezes, o seu trabalho era "uma festa de prazeres", mas algumas ocasiões se refere a ele como uma "semana alvo­raçada e tumultuosa".

A cidade para onde John Newton foi, em 1755, crescia rapidamente no aspecto comercial e em influência. No princípio do século XVIII, houve um surto de construção que deu lugar ao aparecimento de edifícios, tais como: uma nova igreja, uma escola de caridade, o hospital Bluecoat, uma enfermaria, uma fábrica de vidros, uma indústria de sal, refinarias de açúcar, uma siderúrgica, fábricas de cobre e várias outras indústrias. Gastou-se acima de meio milhão de libras em projetos de construção, durante a primeira metade do século. A indústria naval e as oficinas de reparação de navios estavam em franco desenvolvimento, rivalizando a importância comercial de Liverpool com a de Londres e a de Bristol. As belas casas georgianas dos mercadores navais situavam-se na Rua do Duque, na Travessa do Parque e na Rua Great George, embora muitos preferissem continuar a viver por cima dos seus escritórios e locais de trabalho, nas ruas estreitas e sujas. Numa época em que o comércio florescia e eram muitos os corsários e os piratas, o escritório da alfândega ficava na Rua Paraíso!

John descreveu a Mary a sua situação. O seu trabalho era visitar os navios que chegavam e examinar se traziam con­trabando; na semana seguinte, teria de inspecionar os barcos anco­rados no cais "e assim, alternadamente, o ano inteiro". Estava provido de um bom escritório, uma lareira, uma candeia e tinha a seu cargo entre cinquenta a sessenta pessoas. Para transportar o inspetor, segundo a moda, a alfândega pôs à sua disposição um vistoso barco, equipado com seis remos e um timoneiro. John gostava do seu trabalho e declarou à mulher: "Tornar-me-ei perito nisto bem depressa". E assim foi! Na primeira semana, capturou um contrabando no valor de cem libras, dois xelins e três pences, principalmente de tabaco e café. Metade desta quantia foi dada a Newton como recompensa. Todavia, tais descobertas não eram comuns, e, dos seus nove anos de serviço, constam apenas doze entradas creditadas a favor de Newton, no Registro de Apreensões. Em noites frias de inverno, Newton era transportado em barco de remos, por entre fortes marés e vendavais, a fim de ir ao encontro de algum navio que chegara. Ele admitia que, em tais condições, não era muito agradável abordar um navio. Noutras ocasiões, podia ser encontrado, às primeiras horas da manhã, de vigia no gabinete, aquecendo-se ao fogo e, alternadamente, escrevendo a Mary ou intercedendo por ela. John queria muito a esposa se juntasse a ele em Liverpool; porém, Mary estava demasiado fraca para fazer uma viagem tão longa e árdua. Com um salário de cinquenta libras por ano, uma participação nas apreensões, que atingia em média sessenta e quatro libras anuais e muitos outros direitos que os inspetores de alfândega podiam legitimamente requerer, ele possuía recursos para manter a esposa nesta cidade. Mas tudo o que John podia fazer no presente era preocupar-se com a segurança dela, enquanto ela, por seu lado, respeitosamente se preocupava com a dele. Setembro era um mês de grandes tempestades, e, enquanto deitada, Mary imaginava o marido sendo arremessado de um lado para o outro e finalmente naufragando; escrevia sobre os seus temores noturnos, mas logo era tranquilizada por John informando que, na noite de uma tempestade particularmente violenta, à qual ela se referira, ele estava a salvo na cama! John dizia-lhe que um pouco de prática ensiná-la-ia a não se preocupar. Entretanto, ele continuava a preocupar-se com Mary.

O que John não lhe contou foi uma experiência que, não fora a mão de Deus, certamente a teria deixado viúva muito jovem. Depois de sua conversão, Newton foi, ao longo de sua vida, um homem notável por sua pontualidade. Os que tra­balhavam sob as suas ordens podiam determinar as horas do dia pela chegada do inspetor de alfândega. Um dia, porém, deteve-se um pouco por motivo de negócios, tendo chegado ao bote poucos minutos mais tarde do que o planejado, para inspecionar um navio ancorado no porto. Newton partiu no bote e, quando estava a poucos minutos de chegar ao navio em ques­tão, este explodiu e afundou, morrendo todos os que estavam a bordo. Se não tivesse sido impedido por aquele atraso aborrecido e inesperado, John teria estado a bordo no momento em que ocorreu a explosão.

As cartas para a esposa, nesta época, iam cheias de enco­rajamentos preciosos. Mary, na fraqueza da carne, havia sido tentada a duvidar da sua salvação pessoal, mas John exortava-a: "Continua, minha querida, creio que estás no bom caminho, es­pera pacientemente no Senhor. Não abandones a confiança que expressas na misericórdia dEle, porque mantendo-a encontrarás uma grande recompensa. Maior é Aquele que está conosco do que aquele que está no mundo. Deves esperar mudanças. A vida cristã é uma luta, e, embora o Capitão da nossa salvação, ao triunfar por nós, nos tenha assegurado a vitória final, podemos ser penosamente afligidos e, algumas vezes, até feridos, quando estamos no campo de batalha; mas há um bálsamo curativo, e Ele estará sempre perto para aplicá-lo em nós".

Mary mudou-se para mais próximo de Londres, onde "co­nheceu um grupo de metodistas genuínos", o que agradou tão imensamente a John quanto aborreceu a tia de Mary! A vida espiritual de Mary e a sua certeza da salvação cresceram, e, pelo tom das cartas, John sabia o estado em que ela se achava. "Agora o meu maior desejo foi atendido", escreveu a 30 de setembro, "porquanto a minha muito amada Mary compartilha da mesma esperança que eu. Quão agradáveis serão todos os futuros con­fortos e bênçãos que ao Senhor agrade conceder-nos, se pudermos discernir os confortos e bênçãos que nos são outorgados pelo amor remidor!" Ele notou com satisfação que ela começara a iornar posição a favor da verdade; também ela passou a ouvir o Sr. Brewer e descobriu que ouvir falar do grande Médico lhe fizera melhor do que todos os medicamentos. Mary já não demonstrava interesse pelos jogos de cartas, festas e teatros; agora procurava a companhia dos cristãos.

Entretanto, a verdadeira religião para os Newtons não era algo insociável ou melancólico; pelo contrário, segundo John, era a fonte da "paz, da alegria e do bom humor". John começou a amar os pregadores cristãos e o povo do Senhor, achando na companhia deles um grande deleite, embora tivesse de confessar que havia poucos em Liverpool que se interessassem pelas coisas de Deus. Os quarenta mil habitantes interessavam-se mais pelo teatro, ao ponto de, virtualmente, chorarem quando os atores partiam.
Almoço com Whitefield

Quando George Whitefield foi a Liverpool, no princípio de Setembro de 1755, podia estar seguro das boas-vindas da parte de Newton, para compensar a frieza com que a Câmara Municipal o receberia. O grande pregador admitiu ter estado em poucos lugares onde houvesse tão pouco encorajamento. No decurso de uma semana, John ouviu Whitefield pregar nove vezes e comeu com ele em cinco ocasiões. O zelo do evangelista também atingiu Newton, e uma das suas primeiras tentativas foi persuadir a proprietária da hospedaria a ir com ele ouvir um dos sermões. A senhora assistiu muito timidamente (de fato, a sua primeira res­posta ao convite havia sido francamente rude), mas ficou tão interessada que pediu ao seu inquilino um exemplar dos sermões impressos de Whitefield e foi ouvi-lo pela segunda vez. Para gran­de alegria de John, esta senhora sugeriu que ele convidasse o eminente cavalheiro para almoçar com eles num domingo. John não precisou de outro encorajamento. Decidiu, no mesmo ins­tante, contribuir para o custo extra da refeição e aproveitou a oportunidade para convidar quatro ou cinco amigos cristãos a se juntarem ao grupo!
A 14 de setembro, John acompanhou Whitefield ao culto matinal na igreja de S. Tomé, onde ouviram um homem que era o verdadeiro oposto do grande evangelista. "Não havia vida na mensagem dele, nem evangelho em seu discurso", comentou John. Contudo, este era o dia em que George Whitefield almoçaria com Newton, com a dona da hospedaria e com aquele punhado de amigos seletos. A tarde, Whitefield ocupou o seu lugar na praça de S. Tomé e, às cinco horas, estava pregando para quatro mil pessoas.
George e John tornaram-se amigos achegados. Um falava e o outro ouvia. John tinha muito a aprender e, embora procurasse ler e estudar sempre que o trabalho lhe permitia (começou com o grego, iniciou o hebraico um ano depois e, dois anos mais tarde, debruçava-se sobre o aramaico), havia muitas coisas que só podiam ser aprendidas através da conversação. Whitefield era claro e conciso. Ele cria firmemente nas velhas doutrinas bíblicas: que a salvação pessoal se realizava pela eleição soberana de Deus e que aos escolhidos para a vida eterna era outorgado o Espírito Santo, por Quem, única e exclusivamente, eram capacitados a crer no Evangelho. John sempre soubera disto por experiência própria. Ele recordava sua condição de desamparo, antes de Deus lhe ter aberto a mente naquela tempestade no Atlântico; agora Whitefield fazia-o voltar-se às Escrituras, a fim de encontrar esta doutrina na trama e urdidura da Palavra de Deus. George também mostrou a John a gloriosa esperança da salvação eterna e explicoulhe, conforme as Escrituras, a impossibilidade de perder a salvação adquirida para nós, na cruz. O próprio John Wesley contestaria essa doutrina, mas Newton aprendera o suficiente acerca do seu próprio coração, ao ter-se afastado do caminho do Senhor, no Brownlow, para saber que, se Deus não o tivesse guardado "em Cristo", não haveria esperança para si. Whitefield também cria no inferno. O Dr. Johnson declarou certa vez: "Tenho medo de estar entre os que serão condenados"; e, ao perguntarem-lhe o que queria dizer com aquilo, replicou com cólera, em alta voz: "Enviado para o inferno, senhor, e punido eternamente". Esta não era uma doutrina popular, e nunca havia sido, mas a Bíblia ensinava-a. Por isso, Whitefield a pregava, e John Newton, sabendo que merecera tal condenação, acreditava nessa doutrina.
Alguns dos amigos de Newton referiam-se a ele como o "Jovem Whitefield", mas o capitão do mar, que tanto havia sido ridicularizado na Africa e nas Índias Ocidentais, pelas suas estranhas opiniões, muito dificilmente interpretaria esse trata­mento como outra coisa, senão como um elevado elogio.
A visita de Whitefield não somente instruiu John, como também lhe inflamou o coração, e, pouco depois daquele primeiro esforço evangelístico em favor de sua hospedeira, John encontrou-se empenhado na sua primeira visita pastoral. Foi a casa de um homem cuja esposa falecera de parto no primeiro ano de casados. Com o tempo, tais visitas tornavam-se comuns na vida de um pastor, naqueles dias em que a mortalidade por parto era terrivelmente elevada. John esforçou-se por confortar aquele homem, mas sentiu que os seus esforços foram inúteis. "Somente Deus pode dar conforto em tais casos", escreveu a Mary; e, num sentido muito real, não podia nunca esperar que chegaria a ser mais profissional do que aquilo.


Mary  Vem para Liverpool
 

Em Outubro, Mary estava suficientemente recuperada para fazer a tediosa e desconfortável viagem para Liverpool. Não era o melhor mês para viajar; porém, se não o fizesse naquela ocasião, as estradas transformar-se-iam nos costumeiros lamaçais de inverno, e a viagem seria impossível. Quatro anos depois, John experimentou este caminho em janeiro, e a estrada de Kverton a York encontrava-se em tão péssimas condições, que chegou a temer pelo seu pobre cavalo. John expressou a sua preocupação a Mary: "Cheguei a pensar que teria de deixá-lo cravado no barro, como um memorial da minha passagem por aquele caminho". Num dia, cobriu apenas trinta quilómetros, e dez deles foram gastos numa estrada errada. Temos de admitir que o animal de John era bastante vagaroso e recusava-se a corrigir o passo para agradar a alguém; no entanto, mesmo le­vando isso em conta, o cavaleiro encontrou um trecho de dezesseis quilómetros, entre York e Leicester, tão mau que de­clarou preferir fazer um desvio de cento e sessenta quilómetros do que ter de atravessar aquela parte de novo. No inverno, as carruagens atolavam; mesmo um salteador somente com muita dificuldade conseguia chegar ao seu local de assaltos, e milhares de vilarejos ficavam isolados até à primavera.

Mary chegou, cansada e fraca, porém inteira e encantada por estar com o marido. Embora ela retornasse a Londres de vez em quando, os Newtons permaneceram juntos durante a maior parte do tempo que estiveram em Liverpool.

1756 foi o ano em que a Inglaterra iniciou a "Guerra dos Sete Anos" contra a França. A febre da guerra paralisou a nação naqueles primeiros meses, e Liverpool perdia dois de cada cinco navios que saíam do seu porto. Os recrutas eram empurrados à torça para os quartéis, e os destacamentos de recrutadores per­corriam a costa e o interior uma vez mais. Na casa dos Newtons, ainda se vivia em relativa paz e quietude, John começou a ler orações para a família. Vez por outra comentava sobre a pas­sagem que lia, o que não fazia com grande facilidade, sentindo-se por isso um pouco embaraçado na presença de alguns amigos, uma criada e Mary. Mas ele persistia.

Os anos passados em Liverpool foram atarefados e felizes. Depois das longas separações de Mary, era uma alegria para ambos voltarem a estar juntos. Mary, embora frágil, recobrou muito de sua força, e tanto ela como John se envolveram no pouco da ver­dadeira vida espiritual que havia na cidade. Ele, com tristeza, queixava-se dos muitos ministros da Palavra que "consideravam e degradavam" Jesus através das suas doutrinas falsas. Encontrou, todavia, comunhão com o Sr. Oulton e sua assembleia de batistas (embora nunca concordasse com a sua insistência sobre a imersão de adultos apenas); também encontrou um pouco de comunhão com os metodistas Wesleyanos. Este último grupo era rigoroso e intolerante, e Newton estimulou John Wesley a usar sua influ­ência no sentido de levá-los a uma disposição mental mais amigável e cordial. John e Mary principiavam a dar menos ênfase a uma posição denominacional e mais às verdades vitais do cris­tianismo evangélico.


A Caminho do Ministério

 

John nunca pregara um sermão, mas publicara um ou dois pequenos artigos que foram bem recebidos. A sua mãe desejara e orara para que o filho ingressasse no ministério; e, quando John meditava as palavras de Paulo em Gálatas 1.23-24, os seus pensamentos tomavam esse rumo. Ele lia: "Ouviam somente dizer: Aquele que antes nos perseguia, agora prega a fé que outrora procurava destruir. E glorificavam a Deus a meu respeito". John ansiava ardentemente ser capaz de fazer o mesmo. Se alguém tinha uma mensagem para pregar, John era essa pessoa; no entanto, a sua primeira tentativa foi quase desastrosa.

Havia pouca pregação evangélica em Liverpool. John e Mary aproveitaram a oportunidade para visitar Yorkshire e ver, eles mesmos, o trabalho do Espírito na região de que tanto tinham ouvido falar. Chegaram a Leeds num dia de 1758, e John foi convidado a pregar em White Chapei pelo pastor, o Sr. Edwards. Newton preparou o sermão com esmero, mas determinou, à boa maneira metodista, não levar apontamentos para o púlpito. Depois de um chá, o Sr. Edwards disse-lhe que podia sair da sala para ficar alguns momentos sozinho, se assim o desejasse, mas John respondeu que estava bem preparado. O culto iniciou-se e a congregação aguardava, com interesse, o momento de ouvir a mensagem dos lábios de um homem com tão grande testemunho. John leu em voz alta o seu texto: "O Senhor, tenho-o sempre à minha presença; estando ele à minha direita, não serei abalado" (Salmos 16.8). No início, falou fluentemente; mas, passados poucos minutos, seu comportamento deixou de corresponder à verdade contida no versículo. O esboço fugira-lhe da mente, como se tivesse sido soprado por uma rajada de vento. Gaguejava, pa­rava, reorganizava-se, somente para voltar a suceder-lhe a mesma coisa e, por fim, completamente confuso, solicitou ao pastor que concluísse o sermão. O Sr. Edwards tomou conta do tema, en­quanto o pobre John, de cabeça baixa, saía do púlpito, enver­gonhado. Por algum tempo, sentiu tão profundamente o seu fracasso, que ao encontrar duas ou três pessoas conversando na rua, ficava convencido de que estavam falando da sua estreia desastrosa na pregação. Porém, foi uma lição de valor que ele nunca esqueceu. Ainda que muitas vezes pregaria sem a ajuda de apontamentos, nunca mais tentou pregar sem a ajuda do Espírito Santo. Na tentativa seguinte, não se saiu muito melhor, embora tenha garantido que tanto ele como a congregação aguen­taram pacientemente até ao fim. John escreveu o sermão todo, e leu-o como se estivesse dando uma aula enfadonha, e, receando perder a linha na qual estava lendo, não ousou levantar os olhos da página uma vez sequer, antes de chegar ao fim da mensagem! Anos mais tarde, quando chamado para aconselhar jovens que pretendiam ingressar no ministério, Newton lembrava-os de que pregar bem dezenove vezes não era garantia de que pregariam bem na vigésima, e, mesmo depois de tê-lo feito bem durante vinte anos, se o Senhor retirasse a sua mão, o pregador sentir-se-ia perdido, tal como se fosse apenas um principiante.

No entanto, encorajado por amigos, embora não sabendo ainda se alguma vez seria capaz de enfrentar o auditório e pregar regularmente, apresentou-se ao Bispo de Chester, em Dezembro de 1758. O bispo recebeu-o com amabilidade e dirigiu-o ao capelão do arcebispo. O capelão mandou-o ao secretário, que, por sua vez, recusou-o com "a desculpa mais delicada que se pode imaginar". John Newton não frequentara a universidade e, pior ainda, relacionava-se com os metodistas.

Quando John Wesley visitou Liverpool e tomou conhecimento da não-aceitação de Newton, mostrou-se zangado com as autoridades por terem rejeitado um servo tão valioso, quando, todos os dias, entravam para o serviço da igreja homens pre­guiçosos e ignorantes, apoiados apenas na força de um diploma.

Wesley aconselhou Newton a tornar-se um pregador itinerante, tal como ele. Sem perder a coragem, John começou a escrever sermões que, visto ser impedido de pregá-los, publicava posteriormente. A primeiro de janeiro de 1760, ano em que George III subiu ao trono, apareceram os primeiros sermões de John, sob o título de Seis Discursos Projetados Para o Púlpito. John não era monótono e referia-se constantemente à sua própria vida; utilizando textos bíblicos, tais como: "Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas e desesperadamente corrupto" (Jeremias 17.9); e "Fiel é a palavra e digna de toda a aceitação, que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal" (1 Timóteo 1.15), quem mais teria ele em mente? Eram sermões ousados, cheios de citações bíblicas e de doutrina, curtos e não-cansativos. John sabia como atingir os corações.

Diante do desinteresse da igreja oficial, John sentiu-se tentado a seguir o exemplo dos pregadores itinerantes ou mesmo a juntar-se aos dissidentes, por quem nutria grande estima; mas Mary, a sua "conselheira prudente e afetuosa", entendia que o melhor era ele continuar no mesmo caminho. Ele teria de esperar pelo tempo do Senhor. Embora com impaciência, John esperou. Entretanto, ambos fizeram mais algumas viagens a Yorkshire, para verem, por si mesmos, o progresso do avivamento evan­gélico metodista.

Como John quase entrou para os dissidentes pode se ver pelo fato de, no princípio de 1764, ter aceitado três meses de compromisso numa capela congregacional, em Warwick. Continuava com o trabalho de inspetor de alfândega, mas a guerra não somente impedia o embarque legítimo, como restringia grandemente o contrabando. Por isso, Newton podia se ausentar por bastante tempo. Porém, não se sentia feliz com o resultado de sua pregação em Warwick e, embora tivesse entrado naquele lugar com a promessa que Deus fizera a Paulo: "Não temas... pois tenho muito povo nesta cidade" (Atos 18.9-10), em breve concluiu que Paulo não era John e que Corinto não era Warwick. Não obstante, a con­gregação instou calorosamente para que ficasse, e John con­siderou seriamente o convite. Isto causou grande aborrecimento a Jack, o irmão de Mary, que já o acusara de se preocupar mais com os amigos religiosos do que com os familiares. Jack não tinha razão para falar assim, pois John suplicava com regularidade pela salvação do cunhado. Infelizmente, Jack morreu em de­zembro de 1764.

Nos anos seguintes, John considerou a hipótese de começar uma igreja em Liverpool, onde pudesse pregar. Mary vetou lambem essa ideia. Em lugar disso, ele escreveu um relato de sua vida, em benefício de um jovem amigo, clérigo em Oxford. Thomas Haweis ficou tão impressionado, que pediu a John para desenvolver a narrativa. Depois, ele a enviou a um nobre que conhecia e sabia ser um patrocinador de evangélicos.


Uma Carta de Dartmouth
 

No início de 1764, John recebeu um convite de uma igreja presbiteriana em Yorkshire, o que, juntamente com a recusa de sua ordenação por parte de dois arcebispos e de um bispo, o levou a sentir que esta era a porta que se abria para seu ministério. Ao fim de dois dias, contudo, chegou outra carta que mudou a sua maneira de pensar e o curso da sua vida. A segunda carta vinha do Lorde Dartmouth, o nobre que lera as catorze cartas da vida de Newton. O conde oferecia-lhe o pastorado da igreja de S. Pedro e S. Paulo, na remota vila de Olney, em Buckinghamshire. "Se a proposta se tivesse atrasado apenas uma semana", escreveu Newton, "teria sido demasiado tarde".

William Legge, o segundo Conde de Dartmouth, nascera em 1731, estudara em Westminster e em Oxford e ocupou lugar na Câmara dos Lordes, em 31 de maio de 1754. As convicções evangélicas do conde eram evidentes a todos, razão pela qual lhe foi negado um cargo de confiança na corte de George III, "a fim de que esse homem tão santo não se aproveitasse demais da piedade de Sua Majestade". Teria salvo Sua Majestade de muito sofrimento e infelicidade se lhe tivesse sido dado aquele posto! Em acréscimo à sua nomeação para o Conselho Privado, em 1765, o Lorde Dartmouth trabalhava como Presidente do Ministério do Comércio, Secretário de Estado das Colónias e Administrador Principal da Universidade de Oxford. Não era grande político e raramente falava na Câmara dos Lordes, mas sua sinceridade e fé cristã distinguiam-no. O poeta Cowper referiu-se a ele como "aquele que usa uma pequena coroa e ora", numa época em que era raro encontrar esses dois privilégios na mesma pessoa. Dartmouth defendeu a causa evangélica e, devido à sua associação com os entusiásticos metodistas, foi alcunhado de "O Cantor de Salmos".

Newton conheceu Dartmouth, que o apresentou a muitos amigos de influência, incluindo John Thornton. Thornton tinha a reputação de ser um dos negociantes mais ricos do país; entrara para o comércio com a Rússia com um capital de cem mil libras e, em 1790, ano em que morreu, a sua generosidade tinha-se tornado lendária entre os evangélicos. Diz-se que doou mais de cento e cinquenta mil libras. Newton pouco sabia da futura importância deste encontro.

O mês de Abril viu John de novo em Londres, a fim de conversar com o Bispo de Chester. A princípio a entrevista não foi nada encorajadora. John suspeitou, pelo comportamento de Sua Exce­lência, que alguém lhe escrevera de Liverpool, falando depre­ciativamente a seu respeito. O bispo iria examinar o candidato com mais rigor, quando Newton lhe apresentou uma carta de Dartmouth, recebida já em Londres e redigida com o propósito de mudar o parecer de qualquer dignatário. Repentinamente, pôs-­se "um ponto final em todo o interrogatório, exceto nas perguntas que eram de teor agradável"; o bispo tornou-se, então, sociável, conversou amigavelmente com John cerca de uma hora, desejou-lhe êxito e enviou-o ao Bispo de Lincoln. Este examinou-o durante uma hora, e John, para que nunca viesse a ser acusado de de­sonestidade, informou o prelado sobre as áreas de doutrina em que discordava do ensino habitualmente ministrado nos res­peitáveis púlpitos. Mas Lincoln não se mostrou ofendido, "declarou-se satisfeito" e, no prazo de três semanas, a 29 de Abril de 1764, ordenou Newton diácono da igreja anglicana. Passados dois meses, era ordenado pastor. De volta ao lar, John fez um desvio até Olney "apenas para dar uma olhadela no lugar e nas pessoas".

 

 

 

6. O PASTOR RURAL

 

O Reverendo John Newton encostou-se ao olmeiro velho e retorcido que se erguia no extremo da povoação e descansou da longa viagem. Newport Pagnell situava-se a dez quilómetros ao sul; Bedford, um pouco mais a leste e Northampton, quase trinta e dois quilómetros a Noroeste. A povoação fazia um ângulo reto com o rio Ouse e o campo ao redor era pla­no e desinteressante. Além do mais, refletia o capitão do mar, dificilmente teria encontrado uma congregação mais no interior, se tivesse sido ele mesmo a procurá-la!

Tivessem os olhos de John podido contemplar todo o com­primento da rua principal e transpor a velha ponte de pedra no outro extremo, teria visto um quadro bem simples. Olney mostrava pouca atração no seu aspecto de vila do século XVIII. Na rua mais importante, alinhavam-se, em filas desiguais, casas rebo­cadas com barro, cujas janelas arqueadas e telhados de palha inclinados lhe davam o aspecto de uma fila desordenada de recrutas inexperientes, antes de serem chamados para a formação. O barbeiro, William Wilson, fazia publicidade de sua barbearia com o habitual poste listrado, e The Swann, uma das duas hos­pedarias da povoação, de acordo com William Cowper, era exces sivamente negligente com a correspondência e ostentava uma grande varanda de madeira feia e saliente. A rua principal desta remota povoação, que anos mais tarde continuava a orgulhar-se de possuir apenas "um barbeiro, um sineiro e um poeta", con­duzia ao largo triangular do mercado, dominado por três olmei­ros grandes e majestosos. As casas pobres retraíam-se, respei­tosamente, de transgredir os limites deste triângulo de comércio, mas enfeixavam-se, como se procurassem proteção e calor, ao redor do salão de cultos da igreja batista e do grande edifício de Orchard Side, que parecia uma prisão de tijolos vermelhos, telhado plano e imitação de ameias.

A igreja independente, ou Congregacional, erigida em 1700, estava situada atrás das casas, à saída da rua principal, dando-lhe acesso um portão com a largura apenas suficiente para passar uma carruagem. A área comercial exibia o Shield Hall, um antigo edifício de pedra com dois andares e uma fila de degraus exteriores que conduziam ao andar superior, onde estava instalada a câmara municipal, e, depois de 1775, a escola de Samuel Teedon; e uma curiosa casa de seis lados, a Round House, que servia de prisão e situava-se no centro da área comercial, como se fosse uma sen­tinela solitária para exercitar a lei. Ir daqui à igreja independente e voltar era a "grande distância" de Olney. Algumas casas mais e a oficina do ferreiro preenchiam o cenário.

Embora John Newton, encostado ao olmeiro, não pudesse vislumbrar tudo isto, involuntariamente os seus olhos captaram a torre da igreja, a menos de mil metros de distância, e acompanharam a sua silhueta esbelta e graciosa até o céu. O edifício atual fora construído no século XIV, ainda que tivesse havido uma igreja em Olney muito antes disso, e situava-se na margem norte do Ouse, no limite extremo da povoação, como que para proteger os seus dois mil habitantes dos ventos violentos que a fustigavam através dos campos abertos. A rua principal passava pelo jardim da igreja e desviava-se em direção à comprida ponte de pedra que se escar­ranchava sobre o rio. Ao longo do Ouse, lento e com as margens revestidas de olmeiros majestosos, o novo pastor contemplava os prados tranquilos que se perdiam no horizonte; o gado a pastar e uma solitária choça de boiadeiro completavam a cena.

A parte das fazendas dispersas, a povoação era compacta. A rua principal estava surpreendentemente bem construída, com um declive ou arqueamento para drená-la. As pedras desta rua precisavam estar bem assentadas. Pelo menos dois ribeiros principais entravam em contato um com o outro exatamente em frente à igreja indepen­dente e, juntos, viajavam até o rio. Em tempos de enchentes, po­diam levar mais tempo do que o habitual para alcançar o seu destino. A leste da igreja podia-se ver a Great House, uma mansão velha e grande, pertencente ao Lorde Dartmouth, e ainda mais a leste ficava o Moinho Olney.

Em maio, Newton mudou seus pertences para a velha casa pastoral em frente ao jardim da igreja e, acabada a tarefa, sentou-se para escrever a Mary: "Estou bem e tão confortavelmente instalado quanto posso desejar durante a tua ausência". Mary, em Chatham, achava-se novamente mal de saúde e chegou a Olney somente no fim do verão.

"Os Semi-esfomeados e Esfarrapados"

Não obstante a amizade crescente do conde e do comerciante rico, John Newton mudara-se para uma das povoações mais po­bres do país. Havia apenas dois meios de vida neste lugar: o fazer rendas e a agricultura; por isso, a maioria das famílias se dedicava a ambos. Os homens levavam uma vida deplorável tra­balhando na terra, enquanto as mulheres suplementavam o rendimento, trabalhando dez horas por dia em suas almofadas, pró­prias para feitura de renda, trabalho que lhes rendia o magnificente ordenado de quatro xelins por semana, dos quais ainda des­contavam meio xelim pela linha. A pobreza não era estranha ao novo pastor; por isso, ele entrava e saía com facilidade das frias casas de pedra deste povo "semi-esfomeado e esfarrapado", tal como Cowper os descreveu posteriormente.

O trabalho de fazer rendas de bilros foi introduzido na Inglaterra por volta de 1626, por refugiados flamengos. No princípio do século XVIII já estava bem enraizado em Olney. As moças aprendiam cedo o ofício, começando aos cinco ou seis anos nas escolas para moças. Orchard Side fora outrora uma escola para moças, onde as crian­ças trabalhavam dez horas diárias e pagavam meio xelim por semana para aprender; este montante era reduzido à medida que fossem sendo capazes de dominar o ofício. Ao entrar numa das casas pobres, numa tarde de inverno, John não encontrou fogo na lareira de ferro, porque a fuligem e a fumaça estragariam a renda; uma "garrafa de porcelana" de água quente ajudava a manter quentes os pés das mulheres aconchegadas ao redor do único castiçal que tinham. Com a ajuda do engenhoso castiçal, a luz de uma vela, difundida através de frascos de vidro cheios de água, era suficiente para que dezoito mulheres trabalhassem, gas­tando apenas alguns centavos cada noite.

Normalmente, três ou quatro mulheres trabalhavam na ren­da, enquanto outra, bem perto, tecia o fio. Cada uma delas estava debruçada sobre uma grande almofada que, por sua vez, estava parcialmente apoiada no colo e parcialmente num banco. Era a sua almofada de bilros, na qual davam forma aos intrincados padrões da requintada renda, tão em moda na extravagante socie­dade londrina. Os alfinetes eram dispostos e movidos como a milícia de um exército, e os bilros trabalhados a tal velocidade que John mal conseguia observar os objetos, os quais eram, em si mesmos, obras de arte. Não havia dois bilros iguais, embora fossem usados centenas deles; e com nomes tais como "querido papai", "Joey", "Ellen", cada um contava sua própria história, trazendo interesse e conversação a uma rotina enfadonha. Não podia haver erro quanto à casa da rendeira de bilros; quando passava pela rua principal, John parava fascinado à porta, para escutar as mulheres que cantavam os seus versos rítmicos, a fim de ajudar o movimento dos alfinetes e dos bilros:

Chega ao campo à uma Junta as varas às duas

Ata-as em molhos às três

Manda-as para casa às quatro

Trabalha arduamente às cinco

Dá-lhe a ceia às seis

Envia-a para a cama às sete

Põe-lhe o cobertor às oito...

E os versos continuavam. Estas "cantigas de renda", como Newton chegou a conhecê-las, contavam histórias, referiam-se a mexericos, moralizavam ou revelavam apenas o trabalho duro, infindável e penoso, e a vida monótona da rendeira. Um banco, uma cama, uma mesa e algumas vasilhas era tudo o que aquelas casas possuíam.

William Cowper que, como Newton, também veio a passar pelas mesmas portas, alguns anos mais tarde, pôs em evidência a vida da rendeira no seu descritivo poema intitulado "Verdade".

Aquela habitante de casa pobre que tece à sua porta,

Tendo como únicos bens alfinetes e bilros.

Contente, embora humilde, jovial, se não divertida,

Embaralhando os fios durante um longo dia,

Ganha apenas uma bagatela sem importância, e à noite

De bolso leve e coração descansado,

Deita-se em segurança...

Mas isto não era tudo, através da instrução sã e cuidadosa do pastor da igreja, muitas dessas pobres mulheres adquiriram conhecimento de uma verdade da qual o grande filósofo e ateísta francês, Voltaire, nada sabia. Embora a rendeira cristã não tivesse muitos conhecimentos,

Ela sabe que a sua Bíblia é verdadeira,

Uma verdade que o célebre francês nunca conheceu.

E nessa carta régia lê com olhos cintilantes

Que tem direito a um tesouro nos céus.

O Zelo Pastoral

 

A fome estava sempre à espreita, e a doença intrometia-se com frequência. John e Mary traziam no coração esta pobre comunidade, e Newton descobriu que muitas pessoas da sua congregação eram "gente de oração"; pois, quando Mary foi tratar do pai que estava enfermo, em 1775, oravam constan­temente por ela e incentivavam Newton a pedir-lhe que voltasse. Ele escreveu simplesmente: "Os doentes, os pobres e a tua família sentem muito a tua falta".

O século XVIII caracterizou-se pelo afastamento dos clérigos. Quando Newton se tornou pastor em Olney, teve primeiro de chegar a um acordo com Moses Browne, o antigo evangelista, que, tendo doze filhos para sustentar, insistiu em que devia receber vinte libras por ano, das modestas cinquenta concedidas ao responsável. Trinta libras seriam escassas para suprir as ne­cessidades de John e Mary, mas eles não ficaram intimidados. O pequeno investimento que Newton fizera com Manesty perdera-se totalmente, quando o comerciante faliu, dois anos depois de John ter assumido seu novo cargo. Mas John já passara por desapontamentos desse tipo e, na terceira viagem que fizera, doze anos antes, tinha dito a Mary o que pensava sobre o assunto: "Este fracasso quanto ao desprezível dinheiro é a única frustração com que até aqui nos temos deparado... noutras questões, temos as vantagens daqueles que são invejados pelo mundo... atualmente não carecemos de nada... talvez não sejamos ricos — não importa. Somos ricos em amor. Quando temos as promessas e a providência de Deus como nossa herança, somos deveras ricos".

Embora mais tarde John Newton tivesse publicado as suas cartas e sermões, que se tornaram muito populares, e ainda que pudesse reivindicar a amizade de gente de grandes fortunas, nunca foi rico e gastava prontamente com os pobres o dinheiro que recebia. A chamada de John para Olney foi clara e firme. Logo após ter-se fixado na nova congregação, alguns amigos gentis, preocupados com o seu bem-estar, sugeriram que deveria considerar a oferta de uma igreja grande e rica em Hampstead, perto de Londres e dos seus amigos e colegas de ministério, onde o ar era saudável. Face a esta sugestão tentadora, John pôde apenas concluir: "O Senhor, antes de me ter conduzido a Olney, sabia que havia vagas em outros lugares". E, assim, ficou por ali.

Este coração insensível ao mundo e o seu zelo pastoral o levavam tanto à casa do rico como à do pobre. O primeiro sermão de John, em Olney, foi num domingo, 27 de maio de 1764, e baseou-se no Salmo 80.1: "Dá ouvidos, ó pastor de Israel, tu, que conduzes a José, como um rebanho"; nos dezesseis anos que se seguiram, Newton pôs em prática aquele sermão. A morte de um menino, de treze anos, filho de um agricultor, afetou John como se ele estivesse no lugar daquele pai. O rapazinho, que acabava de chegar em casa, vindo da escola, subiu numa carroça de feno, quando outro filho a punha em marcha; de repente, o cavalo entrou em pânico, a carroça virou, e o pobre garoto caiu debaixo da roda, morrendo no mesmo instante. O pastor, para quem a morte fora, em certa época de sua vida, algo comum, necessária, parte do seu ofício, visitou a casa para confortar o pai que pranteava e a nervosa mãe. Estes receberam-no com amabilidade, e, com verdadeira compreensão, John proferiu algumas poucas palavras no cemitério, "uma vez que a hora já ia avançada, e os pais estavam de coração partido". A despojada mãe frequentava a igreja independente já havia algum tempo, mas a partir daquele acontecimento veio mais regularmente à capela.

John conhecia bem o seu povo. Visitava frequentemente a humilde casa de Molly Coles, "o Monte Molly", como ele cos­tumava denominar aquela casa, visto que lá se reuniam fre­quentemente para orar. Quando Molly mudou de casa, as reuniões de oração seguiram-na. Sempre que se ausentava, John escrevia para casa e mandava cumprimentos para diversos al­deões, mencionando-os cuidadosamente pelos nomes e, nas grandes casas, mencionava os criados também. A carta de John a William Cowper, escrita de Londres, é típica do seu zelo pasto­ral: "Espero que Molly Coles esteja se recuperando depressa e que a quarentena sobre as duas casas seja retirada muito em breve. Sinto-me feliz por mandar-te saudações cristãs, assim como a Molly (a qual espero que seja uma boa menina) e a todas as Marys, Mollys, Sallys, Sarahs, etc, que encontrares — em particular, a Sally Johnson e a Judith".

Poucos acontecimentos na povoação escapavam à inquirição pormenorizada ou ao cuidado do pastor sempre atento. Quando Mary estava ausente, ele mantinha-a informada de todas as novidades: as mortes recentes e as doenças; o noivado desfeito ou o marido embriagado; a boa senhora que caiu no rio, quase se afogou e que, enquanto se recuperava, caiu de um cavalo, escapando de morrer por um triz; a moça que fugiu com um soldado. Mas nada disto era bisbilhotice nem maledicência. Estas pessoas eram importantes para John, assim como John e Mary eram importantes para elas. Em novembro de 1775, quando Mary estava em Chatham, John escreveu-lhe: "No domingo à tarde, dei às pessoas as minhas boas notícias e li para eles a carta de teu pai. Orou-se com fer­vor, tanto por ele como por ti". Mas era uma temporada de grande doença, e havia poucas casas onde não se encontrava alguém enfermo. "Suponho que se eleva a mais de uma centena o número daqueles que não puderam estar conosco devido a resfriados e outras enfermidades".

John Newton era um visitante bem acolhido, quer nas casas, quer nos campos. Bilros e arados eram postos de lado para uma breve conversa, talvez um hino e uma oração. Sempre que John encontrava uma família ávida de ler a Bíblia, mas demasiado pobre para a comprar, ele conseguia a maneira de lhes arranjar uma. Quando em 1776 uma grande nevada virtualmente isolou a vila, durante algumas semanas, Newton, sem a mínima demora, levantou coletas para auxiliar os pobres.

John Newton não era o tipo de ministro rural que passava o tempo andando a cavalo e caçando com proprietários rurais, ou que se fechava no escritório, enchendo a cabeça de filosofia ou de poesia; era disciplinado no estudo, passando as manhãs junto aos livros e à Bíblia, preparando-se para os seus sermões. Porém, uma grande parte do dia era gasta na visitação às casas ou a alguma fazenda remota, "preocupado com as almas imortais, lendo a eternidade em vista". Os habitantes de Olney depressa viram que a vida de John Newton, como ministro, era consistente com aquilo que ensinava no púlpito. Certa vez, ele próprio ligou de maneira admirável os dois aspectos, ao comentar com um amigo: "Avalio os ministros como que por uma medida de su­perfície. Não tenho ideia do tamanho de uma mesa, se me disseres apenas o seu comprimento; mas, se também me disseres a sua largura, saberei quais as suas dimensões. Por conseguinte, quan­do me falares acerca do que certo homem é no púlpito, deves também dizer-me como se comporta fora dele; caso contrário, não terei ideia da sua verdadeira dimensão".

 

O Púlpito e os Bancos

Em julho de 1758, ecoara, do púlpito da igreja de Olney, a voz eloquente e poderosa de George Whitefield, e o povo não era estranho à doutrina evangélica.

John Newton não era grande orador, e havia mesmo quem pensasse que o benefício que tirava do púlpito era mínimo. Richard Cecil, seu amigo pessoal e biógrafo, grande admirador de Newton, afirmava que "a sua pronúncia estava longe de ser clara e que as suas atitudes eram desajeitadas". A maneira como estruturava e pregava os sermões deixava muito a desejar. Mas o valor de um sermão não deve ser avaliado deste modo. John confessou, em determinada altura, a um estudante de teologia: "O Senhor enviou-me aqui, não para obter a reputação de um exímio orador, e sim para ganhar almas para Cristo". E nisto ele era bem-sucedido.

Em certa ocasião, John queixou-se dos sermões longos (isto é, de duas horas) e acreditava ser preferível alimentar as pessoas como se faz às galinhas, dando-lhes comida regularmente e pouco de cada vez, ao invés de empanturrá-las, como perus, até não poderem comer mais. "Além disso", continuou ele, demonstrando uma preocupação devastadoramente prática, "os sermões dema­siado longos interferem nas ocupações familiares e, com fre­quência, desviam os pensamentos do sermão para a comida que ficou ao fogo em casa, correndo o perigo de queimar". Quando tinha pouco para dizer, não falava mais do que uma hora. Con­trariamente ao hábito anglicano do século XVIII, que se carac­terizava pela leitura dos sermões, Newton preferia a pregação oportuna, que lhe dava mais liberdade para apelar aos corações; preparava o sermão escrevendo as notas num pequeno caderno de capa dura, mas subia ao púlpito sem ele. A primeira desastrosa tentativa de ler um sermão era uma recordação dolorosa.

Depois de ter pregado os primeiros seis sermões em Olney, John pensou que havia esgotado todo o repertório. Vagueou desde o pátio da igreja até ao Ouse; ali, observou o rio na sua extensa viagem em direção ao mar. "Há quanto tempo corre este rio?", pensou. "Há muitos séculos, e assim continuará". Então concluiu: "A Palavra de Deus, a base para os meus sermões, não é igualmente inesgotá­vel?" Newton não mais receou ficar sem assunto para os sermões.

John Newton falava ao coração; pregava os sermões por um espaço de tempo razoável e ilustrava-os com vivacidade, procurando nunca comprometer sua doutrina. Preocupava-se tanto em ir ao encontro das necessidades de toda a congregação que, em determinada ocasião, pregou sobre 2 Pedro 1.10, "especi­almente por causa da minha criada Molly, que anda perplexa e debaixo de tentação sobre o assunto da eleição". Noutra ocasião, escolheu Hebreus 2.18 como texto, porque o poeta Cowper andava deprimido, ainda que depois tenha afirmado: "Penso que não ficou melhor por isso, no entanto, talvez tenha sido apropriado para outros".

Quaisquer que fossem as suas limitações no púlpito, os bancos de Olney iam-se enchendo, e, em julho de 1765, teve de ser acrescentada uma galeria à parede do lado norte; mas mesmo quando parte da congregação sentou-se acima, houve outros que vieram ocupar os lugares deixados vagos, até que pareceu não haver mais espaço na igreja do que aquele que havia antes. O clima inconstante e as ruas lamacentas não influenciavam grande­mente a congregação, e, no seu primeiro ano, John podia dizer, com um coração grato, que a congregação era "grande e respon­sável" e que raramente se passava uma semana sem ele saber de alguém que fosse desafiado ou despertado quanto à vida es­piritual.

Além dos cultos regulares de domingo, de manhã e à tarde, John tinha um pequeno grupo que ia à sua casa aos domingos à noite, após uma refeição ligeira, e lá se reuniam para orar e cantar durante cerca de uma hora. O "pequeno grupo" aumentou para mais de setenta pessoas, e John se viu obrigado a restringir o número dos participantes, ficando de fora os que iam apenas por curiosidade. Ao fim de seu ministério em Olney, aquele pequeno grupo deu origem a um culto noturno, e, de 1776 a 1779, John expôs-lhe a Primeira Carta de Pedro. Organizou três reuniões especiais, uma para crianças, outra para "interessados e jovens" e uma terceira para cristãos adultos, visando a oração e o estudo da Bíblia. Newton dividiu ainda a congregação em pequenos grupos, de oito a doze pessoas cada, de modo que se reunisse com elas de seis em seis semanas, para conversarem e orarem.

Não demorou para que a reunião de oração das terças-feiras passasse a ser frequentada por mais de quarenta adultos, e New­ton, ao escrever ao seu velho amigo, o capitão Clunie, exatamente um ano antes da morte daquele excelente capitão, em 1770, informou-o de que em breve se mudariam para o salão da Great House, onde podiam acomodar mais de cento e trinta pessoas. Para celebrar esta mudança, em 1769, William Cowper compôs um hino encantador:

Jesus, onde quer que teus filhos se reúnam,

Eles contemplam o teu trono de misericórdia.

Onde quer que Te busquem, és achado por eles,

E todo lugar é um solo santificado.

A população daquela vila estava preparada para, quer chovesse quer nevasse, ir à reunião de oração. Newton anotou, com gratidão, que muitos dos mais jovens e "do género ferveroso" haviam co­meçado uma reunião de oração aos domingos, às seis da manhã. William Cowper a assistia assiduamente e descreveu-a com viva­cidade: "No inverno, aos domingos de manhã, levantava-me antes do alvorecer e, à luz de uma lanterna e na companhia da senhora Unwin, caminhava com dificuldade, muitas vezes através da neve e da chuva, até à reunião de oração na Great House... Encontrava lá sempre quarenta ou cinquenta pessoas, pobres, que preferiam um vislumbre da luz do rosto de Deus e de sua graça ao conforto de uma cama quente ou a quaisquer outros confortos que o mundo pudesse oferecer-lhes, havendo eu próprio compartilhado, repe­tidas vezes, dessa bênção com eles". Essas reuniões de oração eram a força do ministério de Newton, em Olney.

A Casa e o Escritório de John

A velha casa pastoral era muito inconveniente para o amplo ministério de John e Mary Newton. Por isso, em 1767, o Lorde Dartmouth alargou-a e quase a reconstruiu, de modo que John considerava-a "uma das melhores e mais cómodas casas do con­dado". A casa permaneceu virtualmente inalterada desde então.

A publicação de sua autobiografia foi um dos primeiros resultados da mudança de Newton para Olney. Sob o título origi­nal de Uma Autêntica Narrativa de Alguns Pormenores Interessantes e Extraordinários da Vida de..., transmitida numa sé­rie de Cartas ao Rev. T. Haweis, o livro era anónimo, segundo o costume da época. Todavia, assim que Newton se tornou conhe­cido, o nome lhe foi logo acrescentado. Os seus catorze capítulos surpreenderam muitos dos habitantes de Olney, tendo-se John tornado alvo da curiosidade deles. "Depois de os terem lido, as pessoas olhavam-me espantadas, e bem podiam fazê-lo. Sou re­almente um espanto para muitos, um espanto para mim mesmo, admiro-me de não me espantar mais". Ele cria que Deus o enviara a Olney, para que, embora não conseguisse mais nada, quando o vissem a andar na rua, as pessoas reconhecessem na sua vida a admirável graça de Deus.

Os visitantes percorriam muitos quilómetros para ver o homem que estava por trás da Autêntica Narrativa, e a casa pas­toral era assediada por gente que desejava conhecê-lo. Isso tornou-se muito inoportuno, pois interrompia as obrigações pastorais de John e punha em perigo o seu espírito, devido às muitas distínções e privilégios que lhe eram oferecidos. Ministros do Evan­gelho de todas as denominações viajavam a Olney, porquanto ouviam dizer que "grandes coisas" estavam acontecendo naquele lugar. Estudantes visitavam-no e ficavam para ouvi-lo. Chegavam políticos, e até um almirante quis falar com o homem que outrora fora açoitado no passadiço por ter desertado do seu navio.

Inconscientemente, aquelas multidões de visitantes consti­tuíam uma grande carga para o escasso orçamento da casa de Newton, ainda que Mary continuasse a governá-la com eficácia e sem queixas. Na verdade, o que poderia John fazer, mesmo que ela se queixasse? Assim, com um profundo senso de gratidão a Deus, John e Mary abriram uma carta de John Thornton em que este os aconselhava a serem hospitaleiros, a manterem a porta aberta aos que eram dignos de serem recebidos em sua casa e a ajudarem os pobres e os necessitados. Para apoiar seu pedido, o comerciante rico prometia a Newton duzentas libras por ano e até mais, se fosse necessário.

A sua hospitalidade aumentou, e John, todos os domingos, convidava para almoçar todos os que tinham andado mais de nove quilómetros para chegar à igreja. Mas, não importava quão cheia a casa pudesse estar, sem Mary era sempre uma casa vazia. Ele escreveu-lhe durante a sua ausência: "Sem ti, a casa parece desmobilada, e sinto a tua falta por todo o lado". Ele descrevia-se como alguém entediado, sentindo-se completamente mise­rável. Mary, assim como todas as boas esposas, era o "lar". No fim de 1775, Mary levou o pai, enfermo, para a casa pastoral, onde este morreu precisamente um ano depois.

Enquanto Mary e a criada tratavam dos convidados, usando uma dignidade discreta, John conversava amavelmente com eles, até achar a oportunidade de escapar para o seu escritório. Uma vez lá, na parte de cima da casa, em seu pequeno escritório no sótão, John espalhava os livros ou ajoelhava-se para orar por Molly e seu brilhante testemunho, ou por Sally Perry que estava doente e para quem a esperança de melhoras era pouca, ou pelo lavrador que maltratava a mulher e deixava a família passar fome, ou pelos muitos amigos, de terras longínquas, que ia conhecendo.

Por cima da lareira do escritório, John Newton pintou dois textos na parede. Eram textos que refletiam bem a sua vida: Visto que foste precioso aos meus olhos... eu te amei.Isaías 43.4; Lembrar-te-ás de que foste servo na terra do Egito, e de que o Senhor teu Deus te remiu. Deuteronômio 15.15

Havia duas janelas neste compartimento da casa. Se New­ton olhasse para o sul, podia apenas ver o jardim e o edifício da igreja, os rios e os campos que se estendiam ao redor. Mas é possível que tenha colocado a sua escrivaninha perto da janela que dava para o norte, de onde podia ver um agrupamento de casas à volta de Orchard Side, a um pequeno canto da povoação. Foi neste escritório que John escreveu os seus muitos hinos para as reuniões de oração na Great House, assim como aquelas cartas compridas e proveitosas que mais tarde foram publicadas com os títulos de Omicron e Cardiphonia. Foi também ali que New­ton começou a obra intitulada Uma História Eclesiástica; embora a sua intenção fosse escrever uma história da Igreja Cristã, não foi além do primeiro século! No entanto, a qualidade desse trabalho foi recomendada pelo eminente historiador do século XVIII, Joseph Milner que, na introdução à sua própria História da Igreja de Cristo, louvou a superioridade da obra de Newton e disse que ela serviu de inspiração ao seu trabalho, tendo ori­ginariamente pensado em começá-la onde Newton havia parado. Cowper achava o estilo de Newton superior ao de Gibbon! Numa era de grande erudição, Newton, com somente dois anos de edu­cação formal e inferior, bem merecera tal elogio.

Pouco depois de ter saído de Olney, em 1780, John escreveu com humor, embora sério, ao seu sucessor, Thomas Scott, di­zendo: "Parece-me que o vejo sentado no meu velho canto do escritório. Quero avisá-lo de uma coisa: esse escritório (não se assuste) costumava ser assombrado. Não posso dizer que alguma vez tenha visto ou ouvido alguma coisa com os meus órgãos físicos, mas tenho certeza de que havia lá, bem perto de mim, espíritos malignos — um espírito de insensatez, um espírito de indolência, um espírito de incredulidade e muitos outros — na verdade, o seu nome é legião. Mas, porque razão diria eu que estão no seu escritório, se me seguiram até Londres e continuam a atomentar-me aqui?"

O Pastor e as Crianças de Olney

John e Mary nunca tiveram filhos legítimos. No princípio de 1753, na segunda viagem em que participou como capitão, John fez a seguinte observação sobre a tragédia de uma amiga do casal que morreu ao dar à luz, cerca de um ano após o casa­mento: "Ficaria eternamente agradecido e contente, se aprouvesse a Deus poupar-te de tão horrível risco... Admito que as crianças, pela consolação de serem tuas, ser-me-iam sumamente aceitáve­is, se assim estiver determinado... mas já sou feliz sem elas". No entanto, aquela carta encobria o que deve ter sido uma dor pro­funda para os dois dedicados cônjuges, porque tanto John como Mary gostavam muito de crianças. Todavia, o vazio foi preenchido parcialmente em 1775.

George, o irmão mais novo de Mary, casou, vindo a morrer ainda novo. A esposa, infelizmente, morrera antes dele, pelo que deixaram órfã uma menina de cinco anos. Elizabeth Catlett foi adotada e levada para Olney. O riso de Betsy soava pelos compartimentos modestos da casa, fazendo-se ouvir no jardim cercado de tijolos. John e Mary viam-na com um orgulho pater­nal crescente.

Este amor pelas crianças manifestava-se no cuidado que Newton demonstrava pelos garotos de Olney. John Newton foi um forte defensor do movimento das escolas dominicais, na época em que este começou, por volta de 1780, sob a direção de Robert Raikes. Este jornalista de Gloucester precisava de tal apoio, pois o Bispo de Rochester pregava contra ele, e o Arcebispo de Canterbury propunha-se a convocar uma conferência de bispos para pôr termo a semelhante obra! No entanto, muito antes de Raikes ter empregado as quatro mulheres, pagando um xelim a cada uma por dia, para instruírem as crianças da escola dominical, John Newton podia escrever acerca das cem crianças que, com regularidade, frequentavam as reuniões às quintas-feiras, após o jantar. A Great House, propriedade do Lorde Dartmouth, situada tão convenientemente ao lado da igreja, caíra em desuso. John recorreu ao conde, o qual providenciou para que a casa fosse ar­ranjada, e o salão grande passou a servir para as reuniões dessas crianças. Era lá que John se reunia com as suas crianças, não para catequizá-las, embora pretendesse fazê-lo no devido tempo, mas para "conversar, pregar, discutir com elas e explicar as Es­crituras na linguagem delas".

As experiências do pastor proporcionavam uma fonte inesgotável de histórias e de ilustrações, que fascinavam as crianças, ficando elas deleitadas com os barcos de papel que ele fazia. Dentro de pouco tempo, o número aumentou para mais de duzentas, tendo o capitão de pôr em marcha o seu exército juvenil, da Great House para o salão da igreja, onde podiam reunir-se com mais espaço e maior conforto.

Um Ano de Avivamento

O ano de 1772 marcou, talvez, o auge do ministério de Newton, em Olney. Seria errado assumir que houve um declínio imediatamente após esta data, mas, sem dúvida, antes deste não houve um ano tão grandioso no seu ministério.

As reuniões para crianças aumentaram, e muitos dos jovens mostravam sinais evidentes de um novo vigor espiritual. As reuniões de oração continuavam com um zelo inabalável, e a reunião dos domingos à noite, na Great House, era tão concorrida, que New­ton desesperava-se por não encontrar uma forma de limitar o número dos participantes. Cheio de reconhecimento, escreveu a um amigo: "Tem sido, e espero que continue a ser, um tempo de graça e de avivamento. Não sei ao certo, mas penso que nestes três meses tantas pessoas foram despertadas espiritualmente quanto as que foram nos últimos dois ou três anos"; e estes convertidos progrediam bem na fé. Depois dos cultos de domingo, a multidão enchia o salão ao lado da igreja em busca de mais ajuda, e este homem, cuja pregação estava longe de corresponder aos padrões estabelecidos pelos críticos, era assegurado cons­tantemente da ajuda que o seu ministério oferecia aos crentes da congregação. As orações do povo eram tão calorosas, o seu amor e a sua gratidão tão sinceros, que o velho capitão do mar, que raramente derramava uma lágrima do púlpito, muitas vezes ao voltar para a casa ajoelhava-se no sofá fundo, na sala de jantar, e, banhado em lágrimas, expressava seu agradecimento a Deus.

Os visitantes continuavam vindo à povoação. Perguntavam pela casa pastoral e batiam à pesada porta de madeira trabalhada. De janeiro a maio, as visitas eram constantes, e a admiração de John pela eficiência de Mary não conhecia limites. Quando em 14 de maio, o último visitante partiu, Newton anotou, com gra­tidão, quantos haviam sido abençoados sob o seu teto. Em julho, o movimento de visitas começava outra vez.

A evidente obra do Espírito presenciava-se no amor e na paz existentes entre os membros da igreja; e isto, em si mesmo, era um reflexo da natureza firme, mas pacífica, do pastor. A descrição maravilhosa que John fez dos crentes de Olney, em 1768, bem podia ser idêntica à de 1772: "Sentimo-nos tranquilos e felizes em Olney. Não sabemos o que são disputas nem divisões. Se, à tarde, pas­sarmos por um rebanho de ovelhas a pastar, podemos observar como se preocupam em alimentar-se. Talvez aqui e ali alguma levante a cabeça, apenas por um momento, para nos olhar, mas logo volta a baixá-la para a grama. Não é olhando para estranhos que ela enche a barriga. Espero que algo semelhante esteja se passando conosco. Não prestamos atenção a quem faz o barulho, se o que nos interessa é a grama. Os que gostam de falar que falem; nós preferimos comer". E assim John Newton alimentava sua congregação, não com disputas nem dissensões, e sim com a genuína Palavra de Deus.

Todavia, não se deve imaginar que toda a povoação havia sido conquistada pelo evangelho. Apesar de ser um ano de "graça e de avivamento", Newton achou necessário pregar num do­mingo, 31 de maio, um sermão sobre Isaías 58.13-14, para incentivar a polícia e os magistrados, que se tinham levantado para acabar com o mau uso do Dia do Senhor entre muitos dos habitantes de Olney; e o mesmo evangelho que levava uns a Cristo, para gozarem de paz e perdão, endurecia outros, que se tornavam cada vez mais atrevidos na desobediência às leis, tanto de Deus como do homem. Apesar disso, a assistência crescia a ponto de quase encher a igreja, o salão anexo e a torre do cam­panário. E, quando algum pastor evangélico chegava de visita e o sino tocava para informar o povoado de que iria haver um sermão, sempre havia uma assembleia para ouvi-lo.

 

7.UM MINISTÉRIO MAIS VASTO

Embora estivesse encarregado de uma igreja num pequeno  povoado, John Newton, de modo algum, era um homem limitado ao seu local de trabalho. O seu ministério, assim como a sua mente, era vasto. Através da escrita, da pregação e das amizades, demonstrava amor pelas almas de todos os homens, tanto dos que estavam perto como dos que estavam longe. Passava longas horas no escritório escrevendo cartas destinadas a inqui­ridores longínquos, dos quais alguns nunca chegaria a conhecer e outros, poucos, se juntariam à sua igreja. Gastava dias em viagens cansativas, a cavalo ou a pé, para chegar a alguma comu­nidade pequena e dispersa, onde pudesse pregar ou juntar uma família solitária de alguma fazenda distante, à volta da lareira, para ouvir a Palavra da Vida. As amizades ministeriais de New­ton não eram restritas nem rígidas; no seu coração cabiam todos os que amavam a Verdade. Tinha tempo e amizade tanto para os dissidentes menosprezados como para os metodistas. Escrever acerca do verdadeiro evangelho, pregá-lo em qualquer parte e em qualquer ocasião e manter relações pessoais com outros pre­gadores eram os seus prazeres fundamentais. 

"A Minha Correspondência é tão Numerosa "

Em 17 de Novembro, um sábado, do ano em que se instalou em Olney, Newton chegou ao fim de uma semana que passara escrevendo cartas. Não fora uma semana fora do comum, visto que as cartas chegavam à sua casa em abundância, e John era encontrado frequentemente, durante muitas horas do dia, encer­rado no escritório e debruçado sobre a escrivaninha, sempre a escrever. Mas, no final desta semana específica, anotou: "Nesta semana empreguei as horas vagas essencialmente para escrever cartas. Na verdade, a minha correspondência é tão numerosa que absorve quase todo o meu tempo (excluindo o tempo de pre­paração para o púlpito), e não sei como diminuí-la".

Em 1774, publicou muitas dessas cartas no seu pequeno livro intitulado Omicron. Era uma seleção de quarenta e uma cartas, cheias de informações práticas e conselhos sábios. Escreveu a um estudante de teologia, tentando persuadi-lo a aplicar-se às "Escrituras Sagra­das e à oração", como meio principal de adquirir sabedoria. Em resposta à pergunta "Como se deve fazer um sermão?", o jovem foi instruído a estudar as pessoas, porque o que observasse em cada dez aplicar-se-ia a mil. Noutra carta, em que aconselhava um correspondente sobre o dever do culto familiar, John não apenas descreveu o privilégio e a responsabilidade desse culto, como também falou da importância prática de quando e como realizá-lo: "Com certeza você escolherá aquelas horas em que estará menos sujeito a incomodações e mais convenientes para a família se reunir". Newton recomendava ao leitor não deixá-lo para muito tarde, para que não se sentissem demasiado sonolentos; além disso, aconselhava que o marido e a mulher orassem jun­tos, um pelo outro. John estava convencido de que as orações em família deviam governar a vida do lar; no entanto, com­preendia bem os que não tinham tais costumes e, recordando-se das suas primeiras e hesitantes tentativas, em Liverpool, incluiu informações de caráter prático quanto à maneira de vencer este obstáculo.

Newton tinha uma opinião definida sobre a oração, o que se pode verificar numa carta sobre "o exercício da oração em grupo", na qual ele condenava as orações compridas: "É melhor... que os ouvintes desejem que a oração tivesse sido mais longa, do que passarem a metade ou uma considerável parte do tempo desejando que já tivesse acabado". Também criticava as orações que dão a impressão de estar prestes a terminar e depois recomeçam, bem como as orações que são quase um sermão. John opunha-se igual­mente à voz artificial que podia detectar em alguns frequentadores das reuniões de oração, em Olney, e ao costume de "falar com o Senhor empregando o tipo de voz usado nas ocasiões mais familiares e triviais". Quando falamos com o Rei dos reis, con­cluiu, deve haver um ar de seriedade e de reverência em nossa oração.

Alguém que estava prestes a envolver-se numa controvérsia em que a causa era, sem contestação, a da Verdade, recorreu sensatamente a Newton para receber conselho. Este Sr. "Valente-na-Verdade" era também valente na paz e reconheceu logo a fra­queza do inquiridor. John sabia que seu correspondente estava do lado da Verdade e que era um homem capaz; por isso, John sentiu-se confiante quanto à vitória, mas, "se não saíres vencido, talvez saias ferido". Ele sabia que naquele jovem "o amor à Verdade se misturava com o entusiasmo natural de seu tem­peramento", pelo que o aconselhava na carta sobre como con­siderar o adversário, o público e ele próprio, na controvérsia. Após tê-lo aconselhado com sabedoria, o pastor de Olney con­cluiu: "Se agirmos com um espírito errado, pouco glorificaremos a Deus, pouco será o bem que faremos ao nosso próximo, e não conseguiremos nem honra nem conforto para nós mesmos. Se ficas contente apenas porque arranjaste a maneira de mostrar a tua esperteza e de ganhar louvor para ti mesmo, o caso é fácil; mas espero que tenhas um alvo mais nobre a atingir..." O próprio Newton vivia em conformidade com este conselho.

Numa valiosa carta intitulada "Ouvindo mensagens", John aconselhava o leitor a procurar um homem cujo ministério não fosse apenas aceitável, mas também proveitoso. Logo que tivesse en­contrado um homem que pregasse o verdadeiro evangelho, de­veria "fazer questão de assistir fielmente seu ministério". New­ton tinha pouco tempo para aquelas pessoas que andam, de um lado para o outro, em busca de novos pregadores; elas faziam-no lembrar-se de Provérbios 27.8: "Qual a ave que vagueia longe do seu ninho, tal é o homem que anda vagueando longe do seu lar". Tais ouvintes "raramente prosperam; geralmente desenvolvem-se na vaidade, têm as mentes cheias de falsas ideias, adquirem um espírito mordaz, crítico e severo; e propõem-se mais a argumentar sobre quem é o melhor pregador do que a ti­rar proveito daquilo que ouvem". No entanto, também advertiu contra o perigo de a pessoa se transformar num mero ouvinte e contra o perigo do criticismo precipitado para com o ministro da igreja: "Será mais útil para ti, que és ouvinte, considerar se pos­sivelmente a falta não está em ti".

Numa época em que o contrabando era comum e respeitável e que todos, desde o prelado ao mendigo, estavam juntos no negócio, Newton condenou vigorosamente "o comércio ilícito", em uma carta aberta dirigida aos "Mestres do Comércio". Até os cristãos professos justificavam a sua ação; alegavam ser ne­cessário para a sua subsistência fugir ao imposto de um xelim sobre cada meio quilo de chá; John exigia-lhes, caso persistissem na sua desobediência para com a lei de Deus, que pelo menos se assegurassem de que sua conduta aguentaria o julgamento após a morte.

As páginas de Omicron continham também cartas devocionais e doutrinárias. Numa carta acerca da "Eleição e Perseverança", Newton identificava-se, sem receio, com os Reformadores; e, em outra carta, intitulada "União com Cristo", escreveu acerca da "união íntima, vital e inseparável" do crente com Cristo. Em três outras cartas, descreveu três estágios do crescimento do cristão, usando a figura da erva, da espiga e do grão maduro na espiga. Um jovem escreveu ao autor, agradecendo-lhe e dizendo que encontrara seu caráter espiritual habilmente descrito na terceira dessas cartas. Mas ficou um pouco desconcertado, pois Newton lhe respondeu que havia omitido uma característica fundamental na situação do cristão no estado de grão maduro na espiga, a saber, que o cristão neste estado "nunca conhecia a si mesmo".

Ao Redor da Povoação e da Comarca

De maneira alguma, o ministério de pregação de Newton se limitava ao simples púlpito de madeira da igreja de S. Pedro e S. Paulo. O fato de ser ele pouco elegante em suas maneiras e inculto no falar, quando pregava, não parece ter sido muito notado pelas suas congregações rurais; estas exigiam os seus serviços por toda a parte. Dois anos depois de se ter fixado em Olney, John visitou Londres, onde pregou quatorze vezes; e, em agosto daquele ano, escreveu ao capitão Clunie sobre o seu ministério, contando que pregara durante seis horas, na igreja e em casa; e isto, em Olney! Nos meses de verão, John viajava com Mary pela comarca, pre­gando onde quer que tivesse acesso, tanto nos púlpitos como nos lares. Em 1767, percorreram 1040 quilómetros, tendo certa vez arranjado as coisas de modo que pudessem visitar Howell Harris, o grande evangelista galês.

Frequentemente, tanto no verão como no inverno, John selava o cavalo e deslocava-se por caminhos difíceis e campos encharcados pela chuva, a alguma casa distante, onde reunia as pessoas pobres à sua volta, para ler, orar e expor as Escrituras, de um modo que até mesmo o lavrador e o seu filho pudessem compreender. A seguir, o pastor dirigia-os no cantar de um hino, aceitava a oferta de algo quente para beber e um pedaço de pão de cevada, duro e grosseiro, aquecia as mãos no fogo fumarento e, depois, partia para outro povoado. Típico foi o registro no seu diário, a 6 de novembro de 1764, dia em que, a pé, foi a Denton (a 9 quilómetros e meio de Olney), "e passei algumas horas com um pequeno grupo do povo do Senhor".

Um dos lugares de reunião preferido por John era Lavendon Mill, onde tomava chá com seu amigo, Sr. Perry, o moleiro, e depois pregava para a congregação que se juntava no amplo celeiro do Sr. Perry. Logo se tornou um hábito, para Newton, passar toda a sexta-feira da semana de Pentecostes com o moleiro e sua "igreja".

Ao chegar a Olney, John determinou manter um relacionamento sadio com todos os que pregassem o verdadeiro evangelho, independentemente das denominações a que pertencessem. Sempre pensara deste modo e continuaria a faze-lo até morrer. Apesar das tão fortes doutrinas calvinistas da soberania de Deus na predestinação, que Newton tão ousadamente pregava, confessava-se satisfeito por orar e trabalhar com qualquer pessoa que não se desviasse das verdades evangélicas. O que lhe importava era saber se um determinado homem pregava a Cristo crucificado como único sacrifício pelo pecado, se insistia na necessidade do novo nas­cimento, pela ação do Espírito Santo, e se proclamava uma fé cristã e vital que governasse por completo a vida da pessoa e que a transformasse diariamente na semelhança do eterno Filho de Deus.

Como resultado desse verdadeiro espírito evangélico, o Pas­tor John Newton visitou o Pastor William Walker, que se tornara o pastor da igreja batista, em 1753. John foi mais longe: ele não se envergonhou de ir ao local de reuniões do Sr. Walker para ouvir a pregação de William Grant, de Wellingborough; assim como não se envergonhou de jantar com o excelente pastor. "Aproveitarei esta oportunidade", escreveu John no mês de Julho, logo após a sua ordenação, "para abrir de par em par a porta da amizade. Se desejarem mantê-la aberta, tanto melhor; se não, fiz apenas o meu dever". Felizmente, os dissidentes preferiram mantê-la aberta.

Nutria a mesma estima pelo Pastor Drake, que, em 1759, passou a pastorear o rebanho que se congregava na igreja independente. Na terça-feira, 26 de setembro de 1765, John Newton cancelou a reunião de oração, para que tanto ele como a sua congregação fossem ouvir o ousado Sr. Bradbury pregar para os indepen­dentes. John anotou no diário: "Fico contente com estas oportunidades, surgidas de vez em quando, para envergonhar a into­lerância e o espírito partidário, para servir de exemplo aos nossos irmãos dissidentes. Esta deveria ser a nossa prática para com todos os que amam o Senhor Jesus Cristo e pregam o seu evangelho, sem nos prendermos a formas ou denominações". Sempre que vinham novos pastores às igrejas batista e indepen­dente, Newton lá estava para lhes dar as boas-vindas. Certa vez expressou o desejo de se juntar ao grupo dos batistas de Olney que foram a Carlton para assistir às reuniões da associação batis­ta, em junho de 1774, mas achou ser mais sábio ficar em casa, pois a sua presença poderia ofendê-los. Contudo, no ano seguinte a associação escolheu Olney como lugar de encontro, e Newton tirou partido da oportunidade, indo para ouvir as mensagens e convidando um número razoável de pastores visitantes para al­moçar com ele.

Tudo isto era muito contrário ao espírito da época, e Mary, com sua natureza cautelosa e conservadora e com um pai ainda mais conservador, não estava certa se gostava daquela confraternização. Mas John era inflexível, e Mary mostrou sua sabedoria ao confiar na dele.

"O Senhor Bull é o teu Papa"

No ano em que John Newton foi para Olney, William Bull ocupou o pastorado da igreja independente de Newport Pagnell. Quando os dois se encontraram pela primeira vez, não se sentiram atraídos mutuamente, talvez devido ao fato de William se identificar, por vezes, com o seu sobrenome. Todavia, à medida que o tempo passava, mostravam-se mais e mais um atraídos à companhia um do outro. Excluindo as denominações, tinham tudo em comum. Tal como Newton, Bull era, em grande medida, um autodidata. Aprendera hebraico simplesmente com a ajuda de uma antiga Bíblia com letras hebraicas que encabeçavam as seções do Salmo 119; estudara matemática com um único livro, de Whiston, e a dominava de tal maneira que, ainda como adolescente, já colaborava com artigos para a Revista Matemática; e cedo se seguiram o latim e o grego. Os dois ministros viam-se com regularidade, encontrando-os Cowper constantemente na sua casa de verão, mergulhados em discussões sérias e limpando os seus cachimbos, o que o poeta considerava uma prática imun­da. "Bull, o inalador de fumo", como Cowper zombeteiramente o chamava, guardava o cachimbo e a charuteira debaixo da mesa central da casa de verão.

William pregava com frequência na Great House, e John procurava com tal persistência os seus conselhos, exaltando a sua sabedoria, que Mary censurava-o provocantemente, dizendo: "Penso que o Sr. Bull é o teu papa". Apesar desta depreciação, própria de esposa, as últimas quatorze cartas de Cardiphonia foram dirigidas ao "papa" de John. A relação entre os dois homens tanto era séria como alegre. Os seus diferentes pontos de vista sobre o governo da igreja e sobre a igreja oficial conduziam a longas e proveitosas discussões. Mas, apesar dos assuntos sérios, estavam ambos prontos a compartilhar um pouco de humor. Certa ocasião, quando Newton devia ir a Newport Pagnell, para visitar um bispo, enviou as suas vestes à frente, cuidadosamente ende­reçadas a casa do ministro independente, com as seguintes pala­vras no pacote: "Aqui envio as minhas roupas de ovelha".

Thomas Scott

O pastor titular das igrejas de Ravenstone e Weston Underwood dirigiu-se a passos largos para seu escritório, bateu com força a porta e jogou-se à escrivaninha com desalento. Se ao menos aquele homem, Newton, se ocupasse apenas com a sua congregação!

Thomas Scott era filho de um pobre criador de gado. Por mau comportamento, Thomas fora expulso da escola onde estudava para ser médico; determinou, então, solicitar a ordenação, que, para ele, seria um modo mais fácil de ganhar a vida do que zelar pelas ovelhas e pelo gado do pai; disporia também de mais tempo livre para ler, podendo vir a distinguir-se como homem de letras, o que era a sua grande ambição.

De acordo com isso, Thomas aprendeu grego e latim sozinho, satisfez os seus examinadores e foi ordenado ministro da igreja anglicana, em 1772. Ele era o oposto de tudo o que o evangelho defendia. Não cria na Trindade, negava que Cristo era Deus manifesto em carne, ridicularizava a realidade do Calvário como uma substi­tuição e um preço pelo pecado e rejeitava qualquer pensamento sobre a necessidade da regeneração por intermédio do Espírito Santo. Se ainda restasse alguma salvação depois de tudo isto, acreditava ele que podia ser ganha através de uma vida de boas obras. Mas Scott se sobressaía! Em vinte semanas conseguiu dominar o hebraico, gastando a maior parte do tempo estudando no escritório; a sua congregação era pobre, ignorante e pregui­çosa; mesmo assim não era visitada pelo seu pastor e só o via se fossem ouvi-lo na igreja, o que, surpreendentemente, muitos deles faziam. Dois anos após a sua ordenação, Scott casou. Co­nhecera a esposa durante um jogo de cartas em que ele ganhou todas as apostas!

Vivendo tão perto de Olney, era inevitável que viesse a se encontrar com Newton, mais cedo ou mais tarde. Isso veio a acontecer em 1775, e imediatamente os dois homens se en­volveram numa animada conversa sobre doutrina. Mas Newton não quis discussões; foi simples, direto e, de modo cortês, mostrou aquilo que cria. Cheio de curiosidade, Scott entrou sorrateiramente na Igreja de S. Pedro e S. Paulo, para ouvir o estranho pregador. Para seu horror, Newton pregou sobre a passagem de Atos 13.9-10: "Todavia, Saulo, também chamado Paulo, cheio do Espírito Santo, fixando nele os olhos, disse: Ó, filho do diabo, cheio de todo o engano e de toda a malícia, inimigo de toda a justiça, não cessarás de perverter os retos caminhos do Senhor?" Scott voltou desgostoso para casa, por pensar que o seu colega pregara daquela maneira especificamente para ele. Só mais tarde veio a descobrir que Newton desconhecia a sua presença no meio da congregação, naquele domingo.

John Newton começou a corresponder-se com Scott, apro­veitando para falar em detalhes sobre todos os pontos de doutrina em que discordavam. Fechava-se no escritório da casa pastoral, onde passava longas horas a expor cuidadosamente o verdadeiro evangelho, mas sentia que o progresso conseguido era pouco. Scott mostrava-se interessado, suas opiniões mostravam ter sofrido uma pequena transformação; todavia, por volta de Dezembro de 1775, acabou com a correspondência, voltando aos jogos de cartas e aos seus livros. Scott desprezava o verdadeiro evangelho e os fervorosos metodistas; Newton representava ambos.

Na época em que Scott desistiu de se corresponder com New­ton, dois de seus congregados, que haviam adoecido, encontravam-se moribundos na pobreza fria da miserável casa onde habitavam. Scott andava demasiado ocupado com seus livros para se aperceber da situação angustiosa, até que alguém lhe disse que o Pastor Newton visitava aquele casal com frequência, levando conforto e ânimo àquele lar entristecido. Scott sentiu-se zangado e, também, repreendido. Retirou-se para o escritório e voltou a pensar naquele homem que invadira seu território.

Podia desdenhar da doutrina de Newton, mas era obrigado a confessar que o procedimento do Pastor de Olney era mais compatível com o caráter de um ministro do evangelho do que o seu. Thomas Scott ajoelhou-se perante Deus, no seu escritório, e pediu perdão por ter negligenciado os seus deveres. Em seguida, foi visitar o pobre lar de suas sofridas ovelhas e decidiu renovar seus contatos com Newton, na primeira oportunidade que tivesse.

Numa ocasião em que a aflição lhe bateu à porta, Thomas Scott não se lembrava de mais ninguém a quem recorrer, senão a John Netwon. Assim, visitou-o e recebeu tanta ajuda e demons­tração de um amável interesse, que não demorou para as suas opiniões se acomodarem à fé evangélica. Em 1777, com trinta anos de idade, tornou-se evangélico, contrariou o seu superior, perdeu muitos amigos e propôs-se a publicar as suas novas cren­ças, bem como a sua peregrinação espiritual, sob o título de A Força da Verdade. O jovem convertido cedo veio a pregar no púlpito de Newton.

Pouco depois de Newton ter deixado Olney, Scott ocupou o seu lugar na casa pastoral, escreveu e pregou como um campeão da Verdade. A sua gigantesca Bíblia Familiar, um comentário escrito sobre toda a Bíblia, mostrou-se valiosíssima como uma exposição clara das Escrituras. Não trouxe recompensa financeira a Scott, mas foi um tesouro espiritual por muitas gerações.

William Carey, o fundador das missões modernas, vivia perto de Olney, e, antes de Scott se mudar para o Hospital e Missão Lock, em Londres, em 1786, o jovem sapateiro ia ouvi-lo com frequência. Em 1821, Carey escreveu: "Se há alguma coisa da Palavra de Deus no meu coração, devo-o em grande parte à pregação de Scott". Pode ser dito acertadamente que Carey era neto espiritual de John Newton.

O Grande Incêndio e a Noite de GuY Fawkes

Em 1776, John Newton necessitava ser operado de um tumor numa coxa; por isso, foi a Londres. Naqueles dias em que ainda não havia anestésicos, esta era uma experiência muitíssimo do­lorosa. John compareceu no consultório médico à hora marcada, concluindo: "Senti que ser capaz de suportar uma operação tão lancinante, com uma calma e confiança tolerável, era uma bênção maior do que a própria libertação da minha doença". Ele, que tantas vezes exortara a frágil esposa a aceitar sua debilidade como uma amável correção da parte de Deus, não se furtaria a aplicar este princípio a si mesmo. Em duas semanas, John estava pregando em lugar de um amigo em Londres.

Em Outubro de 1777, ocasião em que mais uma vez se en­contrava ausente, incendiou-se uma das casas de telhado de palha. Antes que o povo pudesse atirar os primeiros baldes de água às chamas, mais sete ou oito casas estavam em chamas. Não havia quase nada que os habitantes pudessem fazer, a não ser observar as chamas passando de telhado a telhado, até doze casas ficarem destruídas, parecendo que a ameaça se generalizaria por toda a vila. De repente, o vento mudou de direção, uma brecha na rua ladeada de casas impediu o avanço do fogo, e o povo de Olney aproveitou para jogar água nos escombros que ardiam sem cha­mas e reparar os danos. Pouco estava coberto pelo seguro nesta pobre comunidade. Ao regressar, Newton escreveu um hino adequado à ocasião e levantou quatrocentas e cinquenta libras, para aliviar as carências do povo.

O dia 5 de novembro era sempre perigoso em Olney. Muitos jovens embriagavam-se e mostravam-se desordeiros em ocasiões de festas populares, mas a noite de Guy Fawkes (conspirador que tentara, em 1605, explodir o Palácio de Westminster, a fim de restaurar a supremacia católica na Inglaterra - N. do E.) servia de desculpa para manifestarem sua selvageria mais do que nunca. Como resultado do recente incêndio, Newton, juntamente com muitas das pessoas influentes da povoação, considerou sensato pôr um ponto final às habituais orgias das festividades. Castiçais com velas acesas nas janelas das casas com tetos de palha e velas ardendo, sendo transportados por bêbados, através das ruas, não pareciam ser atitudes sábias. A povoação foi devidamente in­formada. Mas a turba pensava de outro modo.

John já tinha visto multidões iradas, quando, em tempos de fome e de alta de preços, cercavam em tumulto uma carroça de farinha de trigo, mas naquela noite a multidão não tinha motivos nem objetivos. Isto era sempre mais perigoso, porquanto uma turba nesse estado era inevitavelmente irracional. A turba sel­vagem e desenfreada desfilava pelas ruas, quebrando janelas e exigindo dinheiro de todos os que podiam agarrar. Um men­sageiro bateu à porta da casa pastoral e avisou o pastor de que se aproximava um grupo de quarenta ou cinquenta desordeiros embriagados. John muitas vezes fizera que tripulações em revolta se submetessem, e, com um passado como o seu, poucas coisas havia que o assustassem. (Nas suas muitas viagens solitárias, era somente devido à insistência de Mary que se refreava de andar a cavalo, à noite.) John pôs-se à porta de sua casa, pronto a receber o bando violento. Aprendera, através de uma longa experiência, que a melhor maneira de tratar com uma turba era reconhecer o chefe e acalmá-lo. Mas Mary estava aterrorizada; soluçava, im­plorava e perdia as forças; para tranquilizar a esposa, foi "for­çado a enviar uma embaixada e pedir paz. Uma mensagem suave e um xelim para o capitão da turba garantiram a segurança e dormimos em paz. Ah! Não o noticieis por aí! Sinto-me en­vergonhado de contá-lo".

Havia uma razão para o aumento da delinquência na juventude de Olney. Em 1757, o Primeiro Ministro, William Pitt, para satis­fazer as exigências da Guerra dos Sete Anos, aumentou gran­demente os efetivos do exército regular e da milícia. Os milicianos eram recrutados, por sorteio, para um período de três anos de serviço — uma espécie de Guarda Nacional. A agitação na Amé­rica, que levou à Guerra da Independência, começou no início da década de 1770. O sucesso crescente das forças americanas, especialmente depois que o jovem francês Lafayette chegou para apoiá-las, obrigou os ingleses a prosseguirem com esse recrutamento por sorteio. Em Olney, os jovens deixavam o arado e a simplicidade da vida da aldeia, para serem educados na escola da profanação, do jogo e da bebedice, na milícia de Sua Ma­jestade. A maioria gostava daquela vida de facilidade, quando comparada à vida do campo, e, de volta à sossegada aldeia, se mostravam insatisfeitos com a sua sorte. Cowper, no seu famoso poema A Tarefa, escreveu com eloquência a respeito da milícia que regressava, revelando assim os problemas que o pastor ru­ral tinha de enfrentar. O jovem soldado agora odiava o arado e os campos, onde não havia tambores nem pífaros a acompanhá-lo, e tinha saudades dos seus espertos companheiros.

Mas, com o seu aspecto desajeitado,

O mísero perdeu também a sua ignorância e

As suas maneiras inofensivas.

Praguejar, jogar, beber; mostrar em casa,

Pela lascívia, pela ociosidade

e pelo quebrar do domingo,

A grande sabedoria adquirida lá fora;

Espantar e entristecer os seus amigos pasmados,

Quebrar o coração de alguma donzela e de sua mãe,

Ser uma peste onde outrora era útil,

São o seu único alvo e glória.

O recrutamento obrigatório arruinara a juventude de Olney, e o capitão do mar empenhou-se numa guerra constante, a fim de restaurar tais jovens. John deixou transparecer sua grande preocupação por estes jovens num hino que compôs para ser cantado em uma reunião dirigida aos jovens, na noite de Ano Novo. Esse hino continha os seguintes versos:

Que toda a nossa mocidade

Conheça a força da sagrada Verdade;

Que ela penetre em vosso ser E vos ensine a amar e temer.

Que vos mostre os caminhos em que tendes andado,

Que vos mostre o deserto do pecado;

Revelando o imenso amor, na cruz

E nenhum coração resistirá a Jesus.

O sermão para os jovens, na noite de Ano Novo, passou a fazer parte da pregação de Newton, em Olney, e era sempre acom­panhado por um hino que ele ou Cowper haviam escrito, espe­cialmente para a ocasião. Compreendemos o grave problema de muitos dos jovens de Olney através da estrofe de um outro hino:

Da nossa numerosa juventude tem compaixão,

Os quais são jovens em idade, velhos em pecado.

E, pelo teu Espírito e pela tua Verdade,

Mostra-lhes o estado em que as suas almas estão!

Tempo de Mudar

Não era apenas a humilhação de lidar com uma turba embriagada que perturbava John; era o fato de, após treze anos de um ministério incansável e de visitação entre os dois mil ha­bitantes de Olney, ainda continuar vendo turbas como aquelas.

Muitas das pessoas que faziam parte daquele grupo de crentes fiéis, que oravam e que, em 1764, haviam recebido tão caloro­samente o novo pastor, já estavam sepultadas e John detestava uma indiferença lassa entre os jovens. Lamentava ter "vivido para enterrar a velha colheita, na qual se podia depositar toda a confiança". Ao fim da década, podia-se observar alguma dimi­nuição na presença às assembleias e, às vezes, podia-se dispensar o uso da galeria. Menos crianças frequentavam as suas reuniões. E John reparou, com tristeza, que, depois de ter sido anunciada na reunião de oração a sua possível mudança para outra igreja, dentre todas as orações calorosas e amáveis feitas em seu favor, ninguém "apresentou uma petição direta para que continuasse ali". Logo, talvez fosse o tempo de se mudar.

Ao findar 1779, John Thornton, que gastou muito do seu tempo, e muito mais ainda do seu dinheiro, na compra do pa­tronato de igrejas oficiais, oferecendo depois os púlpitos a homens evangélicos, ofereceu a Newton o cargo da igreja de Sta. Mary Woolnoth, na Rua Lombard, na cidade de Londres. John e Mary sentiram que deviam aceitar, e Newton escreveu de modo brin­calhão ao velho amigo Bull: "A minha corrida em Olney está chegando ao fim. Estou prestes a contrair um compromisso vita­lício com uma tal Mary Woolnoth, uma santa de reputação, da Rua Lombard, em Londres".

A 19 de outubro de 1781, a Guerra da Independência ame­ricana chegou a um fim triunfante, em que o General Cornwallis rendeu o exército Britânico a George Washington, em Yorktown. Dois anos antes, entregava John Newton a sua igreja, em Olney, com o mesmo sentimento de resignação frustrada. Mas a dor e o fracasso sentidos por John, quando partiu de Olney, não tinham razão de ser. Cometera erros, assim como qualquer outro ministro do evangelho. Talvez, em certas ocasiões, a sua própria batalha espiritual tivesse afetado a sua congregação; John era sufici­entemente honesto para admitir a um amigo, em 1766: "Frieza na oração, cegueira e formalidade na leitura da Palavra são praticamente o meu fardo contínuo. Quero ser mais vivo, mais sensível e mais afetuoso quanto às coisas espirituais". Noutra ocasião, deu-se conta de que visitava pessoas da sua congregação com um coração desatento e indiferente. Mas, por outro lado, continuava a visitá-los e entregava-se totalmente ao pastoreio de vidas. Centenas de pessoas deviam seu despertamento espiritual à pregação e ao zelo pastoral de John. As suas cartas, com ricos conselhos espirituais, transbordavam do Ouse e espalhavam-se pelos quatro cantos do país. A povoação de Olney ficou inde­levelmente fixada no mapa da história evangélica da Inglaterra. John já tivera muitas ofertas tentadoras para se mudar, para Hampstead, para Halifax, e até mesmo para ser o diretor de um novo seminário na América, mas nenhuma delas parecia ser a coisa certa. Agora, porém, era tempo de se mudar.

Antes de aceitar a chamada para Londres, John e Mary cor­reram pelo jardim e, passando pelo buraco que havia no muro ao fundo, atravessaram a relva de Orchard Side para falar sobre o assunto com William Cowper e a senhora Unwin. Os olhos tristes de Cowper perscrutaram o rosto sério do seu pastor; se alguém tinha motivos para estar grato pelo ministério público e pelo aconselhamento particular de John Newton, este "cervo ferido" era esse alguém.

 

8.COWPER E OS HINOS DE OLNEY

 

Um jovem de rosto pálido e magro curvou-se sobre a sua escrivaninha; a monótona falta de claridade do pequeno apartamento em Inner Temple, no coração da Londres do século XVIII, correspondia ao desespero e à melancolia que lhe iam na mente. William Cowper pegou na pena de escrever e, ao comparar a sumária sentença pronunciada sobre Judas com o grande tumulto da sua própria alma, referiu-se a si mesmo como "mais condenável do que Judas, mais abominável do que ele", e continuou:

Ele, a vara vingativa da justiça irada,

Enviado com rapidez e desespero ao centro escarpado;

Eu, alimentado com juízo, em uma sepultura de carne,

Sou como um sepultado vivo.

Se o grande poeta tivesse escrito o seu próprio epitáfio, é possível que a descrição de sua própria vida se limitasse a duas palavras espantosas: "Sepultado vivo".

Amor de Mãe

William Cowper nasceu a 26 de novembro de 1731, na resi­dência do reitor, de Berkhamstead, no condado de Hertfordshire; e, mesmo não falando sobre sua herdada melancolia, as ocor­rências dos primeiros dezoito anos de sua vida combinaram-se para pesar opressivamente sobre o seu espírito. Na infância, mor­reram três irmãos e duas irmãs, tendo ficado com um irmão chamado John, cujo nascimento causou a morte da mãe, exatamente dois dias antes do sexto aniversário de William.

Conhecia-se a profunda afeição de Cowper pela mãe, não apenas devido ao seu inconsolável coração de criança de seis anos, mas também por, quarenta e sete anos mais tarde, continuar afirmando: "Não se passa uma semana (talvez pudesse dizer, com igual veracidade, um dia) em que não pense nela". Aos cin­quenta e oito anos de idade, ao receber uma fotografia em mi­niatura da mãe, uma belíssima mulher que, ao morrer, tinha apenas trinta e dois anos, o poeta confessou ter chorado e beijado a fotografia, tendo-lhe depois arranjado um lugar onde fosse o primeiro e o último objeto a ver todos os dias; a seguir, escreveu um poema com tal ardor e sentimento, que é difícil alguém lê-lo sem sentir-se fortemente emocionado.

Cowper sofreu durante toda a vida de uma deformidade física tão insignificante que pouca gente sabia do caso, mas à qual ele era vividamente sensível. A debilidade crónica dos seus olhos perturbava-o bastante, e, em 1781, escreveu: "É possível que uma leve doença na vista me impeça de escrever-te uma carta extensa". Outros incidentes contribuíram para lhe aumentar a melancolia. De acordo com os hábitos da sociedade daqueles dias, Cowper costumava dar um agradável passeio por Bedlam para se divertir com idiotices dos pobres infelizes presos ali. Um livro contemporâneo intitulado Guia dos Divertimentos Sérios e Cómicos de Londres, descrevia o Hospital de Bethlem, em Moorfields (Bedlam), como "um lugar aprazível... um verdadeiro entretimento. Uns discursavam, outros gritavam em alta voz que iam à caça; uns rezavam, outros blasfemavam e praguejavam; uns dançavam, outros gemiam; uns cantavam, outros choravam; e tudo numa perfeita confusão". Essas "idiotices" tiveram maior repercussão na mente sensível do poeta do que na dos demais. Certa noite, também ficou muito chocado, quando ao passar por um cemitério, de regresso à sua casa, o coveiro atirou fora uma caveira humana que caiu ao seu lado!

O pai conseguiu-lhe um lugar na escola da cidade de West­minster, onde fora um ardoroso desportista e um admirável estudante; Após a expulsão de um valentão a quem William temia tanto, que só o conhecia pelas fivelas dos sapatos, ele se saiu bem nos estudos. Durante uma de suas férias, um amigo da família cometeu suicídio, e seu pai mostrou-lhe um artigo que defendia a autodestruição; Cowper tencionava refutar e desprezar esse artigo, mas, para uma mente como a de Cowper, era um argu­mento que se assemelhava a uma semente à espera do tempo certo para germinar.

Exercendo a Advocacia

Em 1749, Cowper deixou a escola de Westminster, seguindo-se o que ele mesmo descreveu como "três anos mal gastos em um escritório de advocacia" em Holborn. Nunca apreciou a leitura das leis, e apenas a absoluta necessidade o forçou a ocupar um lugar no Middle Temple, em 1754. Aqui, na lugubridade da grande cidade (no seu coração, ele fora sempre um rapaz do campo), exercendo uma profissão que odiava cada vez mais, Cowper sofreu de uma severa depressão. Essa depressão foi ainda agravada por um romance frustrado. Cowper apegara-se grandemente (talvez amor não seja a palavra indicada) à prima Theodora, que vivia em Southampton Row. Nos anos 1752 e 1753, o jovem casal via-se todos os dias, e Cowper, que já havia escrito alguns poemas infantis, enquanto estivera na escola, passou então a usar a pena mais seriamente para exaltar Theodora. Todavia, o pai da jovem interveio, e o relacionamento foi sumariamente interrompido, segundo a verdadeira obediência filial do século XVIII! Theodora nunca veio a casar, permaneceu uma admiradora constante da ascenção do poeta à fama e enviava-llie com frequência ofertas anónimas.

Todas estas experiências, talvez não invulgares para um cavalheiro georgeano, associaram-se para provocar uma profunda melancolia em Cowper. Um breve relacionamento com uma jovem de dezesseis anos, com quem não poderia haver possibilidade de casamento, a morte trágica de um amigo íntimo, que se afogou acidentalmente no Tamisa, certamente não foram acontecimentos destinados a animar o seu estado de espírito.

Tentativas de Suicídio

Em 1757, o advogado de vinte e seis anos mudou-se para o Inner Temple, onde permaneceu durante seis tristes anos, tal­vez sem nenhum litígio, odiando tanto o trabalho em que estava envolvido como o ambiente de seu emprego. Por volta de 1763, a sua situação financeira era desesperadora e, para outra pessoa, a oferta de dois lugares lucrativos e importantes, na Câmara dos Lordes, teria sido recebida com alegria. Mas Cowper, relu­tante em ter de falar em público, o que precisaria fazer em qual­quer um daqueles cargos, solicitou o lugar menos compensador de escrivão de atas da Câmara dos Lordes. Infelizmente, seu plano de querer permanecer na obscuridade foi frustrado quan­do lhe disseram que se preparasse para um exame público, a fim de provar sua capacidade para o cargo solicitado. A pos­sibilidade de ter de aparecer perante os Lordes, a fim de ser examinado, aterrorizou-o. Um desespero sinistro obstruiu-lhe a mente, de maneira que não pôde estudar, e aguardava frene­ticamente a terrível experiência: "Por vezes, a minha mente era atravessada pelo pensamento de que talvez esta desgraça se devia aos meus pecados e que a mão da vingança divina se achava por detrás dela; mas, no orgulho do meu coração, rapi­damente me inocentava e, de modo implícito, acusava a Deus de injustiça, perguntando-Lhe que pecados cometera eu para merecer isto." As férias breves, perto do mar, não serviram de bálsamo para uma mente torturada, e, quando o dia terrível do exame se aproximou, William Cowper pensou em suicidar-se.

O artigo que o pai lhe entregara há anos, uma notícia no jornal, uma conversa casual em uma taverna, tudo levava à mesma conclusão: "Talvez Deus não exista, ou, se existe, não serão falsas as Escrituras? Se assim for, Deus não proibiu o suicídio em lugar algum". Ele considerava a vida como pro­priedade sua, que, portanto, estava à sua disposição. Cowper, deste modo, caiu num lamaçal, que nunca mais esqueceu; propôs deliberadamente acabar com a sua própria vida. Comprou um frasco de láudano, mandou vir uma carruagem e foi para o Ta­misa, para ali acabar com seu sofrimento. O láudano era uma solução de ópio e vinho, vulgarmente usada para aliviar a dor; porém, quando tomado em maiores doses, o láudano matava. No entanto, Cowper sentiu uma mão invisível que agarrava a sua e a impedia de levar o frasco à boca. Cheio de desgosto e desespero, voltou para seu pobre apartamento. Na segurança dos seus aposentos, recorreu a um canivete, mas a lâmina partiu-se, e Cowper atirou-o ao chão. Tentou também enforcar-se, mas o peso do corpo partiu primeiro um grande gancho de ferro e, depois, uma verga de madeira. A terceira tentativa quase deu certo, mas, logo que ficou inconsciente, a liga que usou como laço rebentou-se, tendo o seu corpo caído no chão brus­camente. William Cowper, que não teve êxito nos romances nem na advocacia, também não se saiu bem no seu suicídio. Sentia-se condenado a ser "sepultado vivo".

O cargo que lhe fora oferecido na Câmara dos Lordes não lhe foi dado, e Cowper, cujos amigos e familiares tentavam em vão consolar sua mente em agitação, foi apresentado, pela pri­meira vez, a um cristão evangélico, o seu primo Martin Madan. Cowper já ouvira falar de Madan e há muito o repudiara, considerando-o um fanático; Madan era um líder entre os evan­gélicos, o que era razão suficiente para ser desprezado pela so­ciedade georgiana. Quando Madan se sentou à beira da sua cama, William Cowper pôde ouvir pela primeira vez acerca do sofri­mento expiatório de Cristo, da sua justiça para a nossa salvação, da oferta gratuita de perdão e da necessidade urgente de arrepen­dimento e de fé em Cristo. Essas conversas, no entanto, lhe pro­porcionavam apenas alívio temporário, e Cowper logo ficou se­riamente perturbado em sua mente.

A Casa de Repouso do Dr. Cotton

Em dezembro de 1763, a figura patética do jovem advogado chegou a uma casa de repouso particular em St. Albans, dirigida pelo Dr. Nathaniel Cotton, um cristão evangélico. Cowper passou aqui por um período de intensa agonia mental e, durante sete meses terríveis, nunca se viu livre nem da convicção do pecado nem da expectativa de um julgamento iminente. Um fragmento de um dos seus poemas revela claramente seu estado mental du­rante esse tempo:

Então, ruídos confrangedores da alma

Pareciam alcançar-me das profundezas,

Cenas e vozes visionárias,

Chamas do inferno e brados de tristezas!

No princípio do verão de 1764, Cowper pegou uma Bíblia; não era a sua, pois todos os seus livros se haviam dispersado, quando teve de sair do Inner Temple, e, no auge de sua fama literária, a sua biblioteca pessoal não possuía mais do que uma dúzia de livros! Leu, então, a história da ressurreição de Lázaro, vindo posteriormente a escrever sobre o que sentiu: "Quase cho­rei, quando vi, na conduta do nosso Salvador, tanta benevolência, misericórdia, bondade e compaixão para com o miserável ho­mem". William desejava muito ter paz, mas sentia que rejeitara o Redentor e perdera o direito a todo o favor dEle. Algum tempo depois, enquanto passeava pelo jardim, Cowper abriu des­cuidadamente uma Bíblia que encontrou num banco e leu, em Romanos 3.25, acerca de Cristo: "A quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos". A sua resposta foi imediata: "Vi o sofrimento da expiação feita por Ele, o meu perdão selado com o seu sangue e toda a plenitude e perfeição da sua justi­ficação". Com alegria inefável, lançou-se diante de Deus e aceitou o seu Salvador recém-encontrado. Cowper pegou na pena para expressar a sua peregrinação:

Através de ondas de profunda aflição.

Conduziste-me, ó amado Salvador,

Por profundezas de penetrante convicção,

Por pensamentos efémeros e repletos de dor.

Doce é o som da graça divina,

Doce é a graça que me tornou teu!

Em Junho de 1765, Cowper encontrava-se suficientemente bom para deixar St. Albans e, após uma breve estadia com o irmão, em Foxton, mudou-se para um apartamento em Huntingdon. Sendo um jovem reservado e retraído, Cowper ficou satis­feito com a oferta de amizade de William Unwin, que o apresentou aos pais e à sua irmã Susana. Passado pouco tempo, Cowper mudou-se como hóspede para este lar notadamente evangélico, vindo a abraçar de todo o coração a vida disciplinada e piedosa daquelas pessoas. Pouco depois de ter mudado para a casa dos Unwins, a família iniciou a leitura de Uma Autêntica Narrativa, deixando toda a família ansiosa por conhecer Newton, o homem que tivera uma experiência tão singular com Deus. Cowper tam­bém desejava conhecer Newton, mas a narrativa inspirou-o a es­crever a história da sua própria vida espiritual até ao ano em que chegou a Huntingdon. Alguém colocou em suas mãos uma cópia da obra de Doddridge, A Origem e o Progresso da Religião na Alma, e Cowper passou muitos dias agradáveis, sentado no jardim, inteirando-se dos privilégios e do desafio da sua nova fé.

No princípio da Primavera de 1767, o Sr. Unwin caiu do cavalo, teve uma fratura craniana e morreu poucos dias depois. A família mergulhou numa tristeza profunda, apenas aliviada pela esperança que tinham da vida eterna. Entretanto, sem que esta mesma família o soubesse, John e Mary Newton estavam de regresso de uma longa e fatigante viagem. John havia pregado muito e pensava como seria bom voltar para o seu povo, em Olney, quando a carruagem em que viajavam se avariou. Mary ficou ligeiramente ferida, e o casal viu-se obrigado a aceitar a calorosa hospitalidade do Dr. Conyers, um cunhado de John Thornton.

O Dr. Conyers conhecia os Unwins, ainda que não estivesse sabendo da morte do Sr. Unwin, e incentivou John a visitá-los. Por conseguinte, John e Mary chegaram a casa dos Unwins alguns dias depois do funeral. O conforto e o conselho oferecidos pelo seu novo amigo, o interesse de Newton pelo seu bem-estar e, acima de tudo, a sua clara fé evangélica decidiram-nos. A Sra. Unwin, os dois filhos e o hóspede visitaram Olney e ficaram encantados com o pregador, as pessoas e o lugar; estavam todos "cansados do ministério sem vigor e desestimulante de Hunting­don" e planejaram alugar uma casa na sossegada vila de Buckinghamshire.

Em 14 de agosto de 1767, os ocupantes da casa pastoral de Olney receberam mais quatro visitantes. Estes permaneceram ali até que Orchard Side fosse decorada. Porém, não demorou que os convidados se mudassem para Orchard Side, a sua nova resi­dência, tendo Cowper vivido com os Unwins durante os dezenove anos que se seguiram, até que Susana e William saíram de casa, para se casar. Certa ocasião, William Unwin, ao contemplar o grande edifício de tijolos e pedra, referiu-se a ele como "a prisão".

A casa pastoral ficava com o seu fundo virado para a po­voação, enquanto que o de Orchard Side estava virado para a casa pastoral, mas, por trás, um caminho bem batido, alguns degraus de pedra e um buraco na parede ligavam as duas ha­bitações. Cowper, ou Cooper, como John Newton corretamente o conhecia, passou a ser um visitante habitual da porta de trás, pela qual entrava, esgueirando-se depois, pelos dois lances de escadas largas, até ao gabinete do pastor.

A Sra. Unwin era apenas sete anos mais velha do que Cowper, mas tratava-o como se fosse seu filho e, enquanto Wil­liam e Susana viveram em casa, quase ninguém estranhou que Cowper continuasse a viver com a família, depois da morte do seu marido. Em dezembro de 1769, a Sra. Unwin, por quem Cowper sempre nutrira uma afeição profunda e respeitável, adoeceu. A dor sentida diante de tal acontecimento levou-o a es­crever o belo hino: "Oh! Que Tenhamos um Caminhar mais Perto de Deus". Compôs o hino no dia 9 de dezembro e, embora, seu "queridíssimo ídolo" depressa se tivesse recuperado, Cowper havia aprendido que as experiências da vida, muitas vezes, fazem parecer ao cristão que o Senhor está distante dele. A segunda estrofe representava um clamor do seu próprio coração:

Onde está a bem-aventurança que conheci,

Quando, pela primeira vez, o Senhor eu vi?

Onde está a visão que a alma refresca,

Que Jesus, em sua Palavra, manifesta?

Mas, tendo, na quinta estrofe, arrancado seu queridíssimo ídolo do seu trono, para adorar apenas o seu Deus, o poeta pôde, então, concluir, com confiança:

Assim, o meu andar será perto de Deus;

Calma e serena, minha atitude.

Então, mais pura luz iluminará

O caminho que ao Cordeiro me conduz

O amor de Cowper por Mary Unwin, embora o tivesse ex­pressado apaixonadamente em algumas de suas poesias, nunca se comparou ao que sentiu por Theodora. Nunca existiu algo impróprio no relacionamento de William e Mary; e Newton, amoldado à estrita forma puritana da retidão, nunca questionou as relações da Sra. Unwin com o seu pobre e doente amigo.

Cowper envolveu-se com entusiasmo no trabalho de New­ton, ajudando-o sempre, e raramente deixava passar um dia sem ter comunhão com o seu pastor. Ajudava-o no ensino das crianças, acompanhava-o, a cavalo, nas suas visitas de pregação às vilas e dirigia muitas das reuniões de oração em Olney. John Newton ajudou Cowper a vencer a timidez de orar em público, não demorando muito para que a voz de William se ouvisse na maior parte das reuniões de oração; alguém que o ouviu muitas vezes observou: "De todos os homens que tenho ouvido orar, nenhum se iguala ao Sr. Cowper". Newton dava imenso apreço a estas orações; quando Cowper orava, parecia que estava vendo, face a face, o Senhor a quem se dirigia. O pastor de Olney apreciava igualmente a companhia e a assistência do seu jovem amigo. William Cowper tornou-se uma figura tão familiar na povoação como a do próprio pastor, e as pobres rendeiras e os lavradores sempre apreciavam uma conversa com o frágil poeta. Por alguns anos, William sentiu-se muito feliz no seu trabalho.

Os Hinos de Olney

John já escrevia hinos antes de William ter ido para Olney, e foi com satisfação que o poeta juntou os seus à crescente coleção, disponível para as congregações dos domingos e terças-feiras. O dom que o marinheiro blasfemo usara outrora, na com­posição de versos irreverentes e profanos, era agora utilizado para a glória de Deus. John estava bem consciente do valor daqueles Cânticos Divinos e Morais, do velho Dr. Watts. Nunca pôde banir por completo de sua mente as palavras daqueles cânticos, mesmo nos dias de maior corrupção. As habitantes das pobres casas de Olney estavam habituadas a cânticos simples; e, se can­tavam as suas "cantigas de rendeira" todo o dia, por que não fariam o mesmo com os cânticos espirituais, à tardinha?

Cantar hinos era uma experiência relativamente nova para o anglicanismo, mesmo entre os evangélicos, e os hinos que se cantavam em público restringiam-se aos salmos métricos. Os salmos eram o hinário dos Puritanos, mas em 1659, William Burton, pastor na igreja de St. Martins, em Leicester, publicara Um Século de Hinos Selecionados. Nesta obra, ele dispôs várias partes das Escrituras de modo a formar um hino, colocando as referências dos textos bíblicos nas margens. Ao final do século dezessete, pregadores famosos, como Richard Baxter, Matthew Henry e John Mason, o autor da doxologia "Louvai a Deus, a Fonte de Todas as Bênçãos", fizeram tentativas de introduzir hinos nos cultos. Até John Bunyan se juntou à campanha, mas causou uma tremenda divisão em sua igreja batista, cuja ferida não foi curada senão após a sua morte; apesar disso, resolveu-se que os que se opunham ao cântico de hinos deveriam permanecer em silêncio ou esperar no vestíbulo, até que se acabasse de cantar! A tradição custava a morrer, e muitas das congregações que não cantavam outra coisa, a não ser salmos pobremente mutilados, com apenas três melodias, ainda menos atraentes, preferiam con­tinuar assim. Quando Issac Newton publicou Hinos e Canções Espirituais, a era do cântico de hinos, em 1707, chegou para ficar. Watts fez o seguinte comentário, no prefácio do seu hinário: "Enquanto cantamos louvores a Deus, na igreja de Deus, estamos participando daquela parte do culto que mais nos faz lembrar o céu; é uma pena que isto seja o que se faz pior sobre a terra... Ver a tola indiferença, o descuido e a negligência nos rostos de toda a assembleia, enquanto cantam o Salmo, pode levar o observador mais benevolente a suspeitar do fervor da religião interior". Newton concordava plenamente com esta opinião.

Por volta de 1779, Newton e Cowper tinham conseguido fazer um pequeno hinário, intitulado Hinos de Olney. Duzentos e oitenta eram da autoria do pastor, e sessenta e oito, do poeta; mas, se o último apresentava menos quantidade, a qualidade era superior. O custo de cada cópia encadernada, na primeira edição, ficou em dois xelins e seis pences, dividindo-se o hinário em três seções: "Textos das Escrituras", "Assuntos para Ocasiões Especiais" e "O Progresso e as Mudanças da Vida Espiritual". Os que pertenciam a Cowper estavam prefixados com a letra C. Ter os hinos reunidos em um livro, não apenas era mais conve­niente para o povo de Olney, como também proporcionava a John fundamento para protestar, quando muitos dos hinos que fugiam para o mundo exterior eram reivindicados por pessoas que nada tinham a ver com sua composição original.

No prefácio do hinário, Newton apresentou as mais sérias razões que tinha para a publicação daqueles hinos. Newton con­siderava o seu hinário como um monumento "para perpetuar a memória de uma amizade profunda e afeiçoada". Queixava-se de que a doença do amigo limitara sua valiosa contribuição. Tanto ele como Cowper escreveram para os moradores de Olney, por isso, declarou Newton, não se desculparia pela simplicidade e, muitas vezes, rudeza de sua poesia. Além disso, reivindicava para os seus hinos uma doutrina que denotava bem as suas cren­ças, não retirando deles coisa alguma. "A hora aproxima-se, e não está distante o dia", concluía Newton, que tinha mais trinta e oito anos para viver, "em que o meu coração, a minha pena e a minha língua não mais conseguirão servir ao povo de Deus".

Entre as contribuições de Newton, achava-se o seu mais famoso hino, A Graça Eterna. É um hino baseado em 1 Crónicas 17.16-17, passagem em que o rei David rememora a misericórdia de Deus para com um homem tão insignificante e pecador como ele. John Newton relembrou a sua própria vida:

A Graça eterna de Jesus

Que veio me libertar,

A mim tão grande pecador,

Oh, Graça singular.

Tal graça o medo me levou

Desde o dia em que eu cri,

E bem feliz me transformou,

Tal nunca mereci.

"Graça", para John Newton, era a misericórdia imerecida de Deus para com a sua vida pecadora e rebelde. Assim, ele continuou na terceira estrofe:

Perigos e horrores passarei

Na peregrinação,

Mas pela Graça alcançarei

Celestial mansão.

É triste verificar que poucos são os hinários que atualmente incluem essa estrofe final deste grande hino de Newton.

E quando no lar celestial

Por tempos sem cessar,

Louvor daremos, eternal,

A quem nos quis salvar.

Outros hinos revelavam a sua velha vida de marinheiro, como por exemplo, "Ainda que as Dificuldades Ataquem e os Perigos Assustem". Escrito em Fevereiro de 1773, este hino originalmente continha uma terceira estrofe:

Podemos, como os navios,

Por tempestades ser sacudidos

Mas, nas profundezas do mal

Não ficaremos perdidos.

Ainda que Satanás enfureça

O vento e o mar,

Temos a promessa fiel

De que o Senhor proverá.

Newton possuía uma longa experiência quanto à verdade deste hino! Também havia outro que principiava com uma estrofe, cujas palavras devem ter feito a sua memória retroceder aos muitos dias violentos, passados no mar, e que devem tê-lo feito recordar, em especial, a terrível tempestade de 1748:

Vai-te, incredulidade,

Pois, está perto o meu Salvador;

E para meu auxílio

Certamente dará seu favor.

Pela oração, combaterei

E Ele usará de bondade

Com Cristo no barco,

Zombarei da tempestade.

John Newton tornou-se peculiarmente conhecido devido ao hino que escreveu sobre a igreja cristã:

Coisas gloriosas se falam de ti,

Sião, cidade do nosso Deus!

As linhas finais ecoam a sua própria experiência:

Toda ostentação e pompa orgulhosa

Dos prazeres mundanos se desvanecem;

Alegrias verdadeiras e um eterno tesouro

Só os filhos de Sião os conhecem.

Outro hino calorosamente sincero começa da seguinte forma:

Quão doce soa o nome de Jesus Ao ouvido do crente!

Por algum tempo, Newton escreveu um hino novo para cada reunião semanal de oração, e geralmente o explicava antes que a congregação o cantasse pela primeira vez. Muitos dos seus hinos refletiam os acontecimentos relacionados à vida simples de Olney. O inverno, a primavera, o verão, o tempo da ceifa, a tempestade violenta, a forte geada, o terremoto de Setembro de 1775, o incêndio de Olney em 1777, um eclipse da lua, no dia 30 de julho de 1776, e mesmo a visita de um leão a Olney — tudo proporcionava temas ocasionais para os hinos, que se tornaram uma herança da nação.

A contribuição de William Cowper incluía "Jesus! Onde Quer que o teu Povo se Reúna", "Ouve, Minha Alma! É o Senhor", "Há uma Fonte Carmesim", e "Algumas Vezes uma Luz surpreende o Cristão, Enquanto Canta".

Este último hino exprimia as muitas ocasiões em que o poeta assentava-se em seu banco de madeira, de encosto alto, na igreja, e sentia a profunda tristeza do seu coração transformar-se em louvor, ao ouvir o pastor dirigir o culto e pregar entusiastica­mente a Palavra de Deus:

Algumas vezes uma luz surpreende,

Enquanto canta o cristão;

É o Senhor que surge:

Traz em suas asas a salvação!

Estes hinos confirmaram, para a posteridade, a sua profunda e sincera fé evangélica, por mais provada que ainda seria.

A Antiga Depressão

 

No final de 1770, Cowper voltou a cair na velha depressão, e Newton, alarmado com o que pudesse acontecer, encorajou-o a escrever mais hinos. "Deus Age de Maneira Misteriosa" foi escrito no princípio deste segundo período de melancolia, e William firmou-se na verdade de que "Deus é o seu Próprio Intérprete e Esclarecerá Tudo". Foi durante um passeio solitário, num dia frio de janeiro, que Cowper pressentiu a angústia que se apro­ximava e escreveu este hino.

Passados dois anos, Susana saiu de Orchard Side para se casar (o irmão já o tinha feito). Para evitar suposições impróprias, William Cowper e a Sra. Unwin ficaram noivos. Ela tinha quarenta e oito anos e ele quarenta e um. Infelizmente, a sua mais profun­da depressão, que iniciou em janeiro de 1773, malogrou o plano de casamento, sendo quase certo que a sua condição se agravou devido a este mesmo plano. Cowper viu-se de novo sob o terrível domínio da depressão, que o levava cada vez mais ao desespero. Um mês depois de ter penetrado neste túnel de trevas, que só terminaria na morte, Cowper teve um sonho em que lhe foi dada uma "mensagem". Nunca revelou esta mensagem, mas considerou-a sempre como o anúncio plangente da morte de sua espe­rança e confiança em Cristo. Em 1784, escreveu a respeito do seu sonho: "No final do mês vindouro, completar-se-á um período de onze anos no qual não tenho falado outra linguagem (senão a do desespero). Para uma pessoa a quem os olhos foram abertos, é um período muito longo de trevas, suficientemente longo para fazer do desespero um hábito inveterado; e este é o meu caso"; e acrescentou que "a consolação se desvaneceu naquela época".

Cowper passou a assistir pouco aos cultos; evitava as com­panhias e atividades de que antes tanto gostava; suas conversas eram cuidadosamente orientadas para longe dos assuntos evan­gélicos e sua pena, embora destinada a ganhar-lhe ainda grande fama, como poeta nacional, nunca mais percorreu a página com expressões de experiência e adoração cristãs, destinadas à con­gregação de Olney (exceto em 1788, quando foi persuadido a escrever um hino para a escola dominical). Cowper mantinha uma amizade calorosa com Newton, e correspondiam-se frequen­temente depois de Newton ter mudado para Londres, mas era raro referir-se nas suas cartas à sua alma ou ao seu Salvador; tudo o que restava eram fragmentos, tais como: "Lembramo-nos de vocês muitas vezes, e um de nós (a Sra. Unwin) ora por vocês; o outro fá-lo-á quando puder orar por si mesmo".

Diz-se, com frequência, que esta recaída no desespero serviu de instrumento para libertação dos seus dons como poeta; agora estava livre para alcançar, com a mente e com os talentos que tinha, todos os aspectos da vida, em vez de ficar confinado aos estreitos limites da fé evangélica. Certamente é verdade que, se não fosse devido às circunstâncias desta depressão trágica, Cowper nunca poderia ter chegado a ser uma estrela entre os poetas. Mas também podemos perguntar se a ausência de mais hinos, que indiscutivelmente teriam saído de sua pena, e o subse­quente desespero lúgubre, ao qual a certa altura ele se referiu como "o ventre deste inferno", sob o qual trabalhou até morrer, o que aconteceu vinte e sete anos mais tarde, não terá sido um preço demasiado caro e trágico a pagar pela fama alcançada. John e Mary trataram e zelaram dele com amor incansável. Quantas vezes não foi John chamado à noite! Pondo o sobretudo aos ombros, apressava-se a levar conforto à mente torturada do "Sir William", como carinhosamente o chamava. Em 12 de abril de 1773, Cowper mudou-se para a casa pastoral por alguns dias; John e Mary cuidaram dele com devotado altruísmo durante quatorze meses!

Newton estava preparado para resistir às críticas que lhe faziam. Muitos, que não conheciam bem o poeta, consideravam impróprio que Cowper e a Sra. Unwin vivessem na mesma casa. Mas, aquele não passava de um relacionamento perfeitamente inocente; John e Mary sabiam-no. Contudo, os mexericos transformaram-se em escândalo, tendo o próprio John Thornton mos­trado descontentamento por Newton os ter acolhido em sua casa. Porém, John, consciente de estar procedendo bem para com o seu pobre amigo, permaneceu firme, e a tempestade passou.

No entanto, pouca esperança havia para o homem que se considerava condenado a um estado de "abandono e desgraça perpétua". Cria que todos o odiavam e que sua comida estava envenenada. Ao final do ano seguinte, fizera progressos sufici­entes para voltar para casa com a Sra. Unwin. Passava os dias a escrever e a tratar do jardim e da sua sempre crescente bicharada. Em certa época, Cowper possuía cinco coelhos, três lebres (cha­madas Puss, Tiny e Bess), dois porquinhos-da-índia, um gaio, um estorninho, dois pintassilgos, dois canários, dois cães, um esquilo e um gato. Cowper tirara as flores do galpão do jardim havia algum tempo, passando muitas horas lá, a escrever. Pito­rescamente, muitas das suas cartas eram remetidas da "estufa".

Ascenção à Fama

Quando John e Mary entraram na sala de visitas de Orchard Side, Cowper e a Sra. Unwin sentiram-se constrangidos; aperceberam-se de que algo desagradável se passava. Newton sentou-se e, de maneira gentil, revelou a história da sua chamada para a igreja de St. Mary Woolnoth, em Londres. O coração do poeta disparou, sua mente sobressaltou-se, mas, de modo amável e bastante patético, concordou com a sabedoria da mudança, expressou gratidão pela amizade do passado e bebeu chá com os amigos. Não demorou muito que os Newtons se mudassem. Cowper sentiu-se destituído de um amigo muito querido. Costu­mava ir até o jardim de onde olhava para a fumaça que saía da chaminé do escritório da casa pastoral, e recordava os dias em que aquela fumaça significava que o Sr. Newton estava à secre­tária, e o poeta aproveitava para entrar silenciosamente, a fim de orarem e conversarem por alguns momentos. Mas agora, embora as paredes continuassem a manter a mesma aparência, o ferrolho da porta soasse como antes, e o portão ainda rangesse nos gonzos, Cowper sentia-se só e desamparado. Como alternativa, recor­reu a William Bull que, apesar do tabaco e do fumo, o ajudou bastante.

No ano seguinte, Lady Austen entrou na vida de Orchard Side. Foi a esta senhora alegre e ativa, por quem Cowper claramente nutria uma paixão correspondida, que o poeta ficou devendo muito da sua fama. A inspiração dos seus dois poemas mais famo­sos, John Gilpin e A Tarefa é-lhe diretamente atribuída. Todavia, Cowper, consciente dos seus verdadeiros sentimentos para com Lady Austen, terminou de forma brusca a ligação existente entre os dois, em atenção à sua estima pela Sra. Unwin. Os poemas e a prosa de Cowper eram muito procurados por um público ávido, e as honras e as adulações de pessoas eminentes choviam em Weston Underwood, à propriedade do Sir John e Lady Throck-morton, para onde Cowper e a Sra. Unwin se mudaram, em 1786. Foi aqui que Cowper iniciou a sua tradução de Homero.

Mas, apesar daquela ascenção constante à fama e do seu trabalho aparecer amiúde em Londres, Cowper nunca conseguiu escapar do seu terrível sonho: "Prova-me que tenho direito de orar", exigia ele, "e orarei sem cessar... mas permite-me dizer que não existe, nas Escrituras, nenhum encorajamento que inclua o meu caso, nenhuma consolação eficaz para mim... Há dez anos que não dou graças pela minha comida, e não creio que voltarei a fazê-lo".

As cartas chegavam com regularidade da cidade de Londres, e William Cowper esperava ansiosamente ouvir a "buzina roufenha" de Dick Tyrell, anunciando a chegada da correspondência. New­ton tinha sempre palavras adequadas à ocasião e elogiava com entusiasmo as novas aventuras literárias do amigo. As cartas de John e Mary tanto podiam ser amenas e alegres como sérias e encorajadoras, de acordo com as necessidades do poeta. New­ton sofria, acima de tudo, pela lugubridade de Cowper, mas a crença numa salvação eterna era inabalável e, corretamente, John nunca duvidou da salvação de Cowper, ainda que o próprio poeta o fizesse.

A vida de William, excetuando a sua escrita formal, tornou-se uma rotina de elegante frivolidade. Ele alterou a paisagem do jardim porque os seus vizinhos também o fizeram; plantava as suas sementes na terra com meticuloso cuidado e tratava dos vasos de flores quase com um interesse paternal. Dava longos passeios pelas circunvizinhanças e, tanto no verão como no inverno, era visto passeando pelos caminhos e campos. Mas a sua vida era fechada e introvertida. Às vezes, falava à vontade com aqueles que encontrava; noutras, ignoraria quem quer que fosse, perdido no seu triste mundo de sonhos, vozes e desespero.

Numa carta à Sra. Newton, para agradecer pelo peixe que ela lhe enviara de presente (peixe era um alimento que Cowper muito apreciava), Cowper falou da visita de John à Ramsgate, recordando a vida de marinhagem de Newton e as memórias que sem dúvida lhe aflorariam à mente, ao contemplar o oceano; e, com uma referência óbvia a si mesmo, continuou: "Há pessoas para as quais seria melhor verem-se engolidas pelas profundezas do oceano, do que sentarem-se tranquilamente a rabiscar, tal como eu. Todavia, é tão natural acovardarmo-nos diante de pensamentos sobre a eternidade, pois sei que os meus dias se prolongam não em misericórdia, mas em juízo". Após Newton ter regressado a Londres, em segurança, de sua viagem pelo mar, Cowper escreveu ao amigo:

O mar tempestuoso passaste

E à praia tranquila chegaste;

Eu, na tempestade, um náufrago

Nunca mais chegarei ao porto.

Contudo, durante todo o seu tormento mental, Cowper nunca duvidou da verdade e do valor da expiação de Cristo. De fato, admitia a absolvição gratuita como fruto do amor perdoador de Deus, "para todos os casos, menos para o meu". Em 1785, ele pôde escrever: "O Teu Perdão é Grande e Absoluto". A Tarefa, escrito um ano antes, contém as seguintes linhas no fim do Livro V:

Mas Tu, ó generoso Doador de tudo o que é bom!

De todas as tuas dádivas, Tu mesmo és a coroa!

Dás o que queres, sem Ti somos pobres;

Mas contigo somos ricos, leva o que quiseres.

Depois de 1773, Cowper não mais pôde experimentar a aplicação de todas essas verdades a si próprio.

À esta melancólica maneira de pensar, o poeta acrescentava agora uma preocupação hipocondríaca pela saúde. Ar puro e exercícios eram acompanhados de consultas frequentes com vári­os médicos e aplicações, mais frequentes ainda, de tártaro solúvel para a indigestão; fricções no corpo para combater o lumbago, quina para eliminar as dores de cabeça, láudano para curar a insónia e os medicamentos de Elliot, para os olhos. Como se tudo isso não bastasse, havia ainda a sua máquina de eletroterapia! Infelizmente, os únicos conselhos espirituais que Cowper procurava nesse tempo, exceto a sua correspondência regular com John, em Londres, eram os do Sr. Teedon, o excêntrico e idoso diretor de escola, que se considerava o dom de Deus para aconselhar o poeta. Teedon estava tão seguro de si quanto Cowper o estava de sua condenação. Teedon interpretava os muitos sonhos do seu admirador, sempre de modo favorável, e "aconselhava-o" em suas grandes decisões. É triste observar uma mente tão grande sendo influenciada por outra tão pequena. Em Newton, Cowper possuía um conselheiro muitíssimo mais sábio e mais maduro.

Em dezembro de 1791, a Sra. Unwin foi acometida de uma apoplexia repentina e, embora se recuperasse da paralisia parcial resultante, nunca mais voltou a ser o que fora. A sua doença foi uma grande provação para Cowper. A última e única rocha de defesa contra seus tormentos mentais estava, aos poucos, sendo afastada de sua vida. Durante os sofrimentos mais profundos, os silêncios mal-humorados e as tentativas de suicídio, a Sra. Unwin cuidou do poeta com tal compaixão e afeição, que se tornou uma heroína silenciosa. No outono de 1793, enquanto a sua vida lentamente se apagava, Cowper escreveu um elogio pateticamente primoroso com o título de Minha Mary.

Antes de morrer, um breve raio de luz passou-lhe pela vida. Aconteceu num domingo, 16 de outubro de 1792. Cowper, a Sra. Unwin e um primo passeavam por um pomar, quando ele sentiu que era capaz de acercar-se de Deus em oração. "Orei em silêncio, por tudo o que estava mais próximo do meu coração, com uma considerável liberdade... Na manhã seguinte, fui agraciado com aquela liberdade espiritual para dar a conhecer a Deus as minhas petições; desfrutei então de alguma tranquilidade, embora não livre de ameaças do inimigo". No entanto, não passou de um vislumbre evanescente do sol por entre as nuvens, e o ho­mem que tinha "três fios de desânimo para um de esperança" escreveu em 1793: "Creio ser o único exemplo de um homem a quem Deus promete tudo, mas nada faz".

A Mudança para Dereham

Em 1795, Mary Unwin piorava fisicamente tão rápido como William piorava mentalmente. Em Julho, o seu primo "Johnny" Johnson insistiu em que se mudassem para Norfolk e se esta­belecessem perto de sua igreja, em East Dereham. Assim, Cowper e a Sra. Unwin foram morar na desocupada casa pastoral, em North Tuddenham. A mudança não o curou, e o poeta continuou na sua sombria disposição mental.

Johnson incentivou-os a uma mudança para o interior do país e, em Outubro de 1795, instalou o casal enfermo em Dunham Lodge, perto de Swaffham. Mas, depois de instalados, visto que "Johnny" se encontrava a pelo menos vinte e quatro quilómetros do local de seu ministério, o que causava sua ausência durante todo o do­mingo, mais tarde eles acabaram por se mudar para Dereham. Dereham, com os seus 2.500 habitantes, situava-se no centro de Norfolk. A extensa e interessante história de Dereham, com a atratividade dos campos circunvizinhos, tornava-o um lugar suficientemente agradável para Cowper.

O Cervo Ferido

Mary Unwin morreu a 17 de Dezembro de 1796. Cowper acompanhou Johnson ao andar superior e fitou o rosto sereno e tranquilo da única pessoa por quem experimentara uma afeição tão imutável. Após alguns minutos, atirou-se ao canto do quarto com um grito de desespero; logo a seguir, recompôs-se e nunca mais se referiu a Mary ou mencionou seu nome até ao fim da vida.

Foi sepultada à noite, de acordo com os costumes, para evitar-se que ele o soubesse.

"As vozes" de Cowper continuaram a fazer-se ouvir com ímpeto crescente. Convencido de que era assaltado na cama tanto por espíritos bons como por maus, sendo que os últimos cons­tantemente tinham a supremacia, quando escrevia, fazia-o com a pena da miséria, mergulhada no desespero mais profundo. Em agosto de 1798, o poeta recomeçou a revisão de Homero ("faço isto porque não posso fazer mais nada"), tendo-a completado em Março do ano seguinte. Cowper sentia que não havia nada que pudesse desejar, a não ser o anseio de muitos anos, o de nunca ter existido.

A 20 de março de 1799, este "cervo ferido", como ele próprio se chamou em certa ocasião, escreveu um dos seus últimos poemas, O Náufrago. É a história de um pobre marinheiro que caiu ao mar durante uma tempestade. Batalhou contra as ondas, e os companheiros, ao ouvirem-no gritar, atiraram barris e cortiças numa tentativa fútil de salvá-lo. Finalmente o marinheiro sucumbiu e foi tragado pelas ondas. Era a parábola de sua própria vida:

A desgraça, porém, alegra-se em deixar

A sua imagem noutro acontecimento;

A tempestade, nenhuma voz divina vem aquietar;

Nenhuma luz propícia brilha, no momento;

Quando, roubados de toda a ajuda eficaz

Perecíamos, cada qual sozinho,

E eu, num mar mais cruel e turbulento,

No abismo, fui empurrado mais profundo do que ele.

 

Quando Cowper começou a definhar, um amigo perguntou-lhe como se sentia. "Sentir-me!", respondeu, "Sinto um desespero inexprimível!" William Cowper morreu numa sexta-feira, 25 de Abril de 1800, aos sessenta e nove anos de idade, sendo enterrado no cemitério da igreja, em East Dereham, ao lado de Mary Unwin. Como memorial a um amigo que amou e admirou, John Newton pegou na pena para escrever uma pequena biografia da vida de Cowper, tendo sido impedido pela sua debilidade física e subsequente morte.

Uma conhecida biografia de Cowper, escrita pelo Lorde David Cecil em 1929, atribuía a Newton e à sua fé evangélica a maior parte da culpa do transtorno mental de Cowper. Cecil descreveu Newton como "tacanho e inculto... torpe, negligente, insensível e sem juízo", e as cartas de Newton, como "rudes e absurdas". Com certa intensidade, Lorde Cecil acusou Newton de um "indecente e ridículo" ensino de seu credo, acrescentando ainda que "nada conseguia persuadi-lo a não querer que os outros pensassem como ele". Somos tentados a perguntar se por engano o Lorde Cecil não teria lido a história de outro homem. O amor e o cuidado de John e Mary para com William e Mary foram tão comoventes quanto sinceros. Cowper não tinha amigo maior ou mais compreensivo, o que o poeta nunca se cansou de manifestar. Se Newton tinha alguma culpa, essa poderia estar apenas em sua amável doçura de espírito e em procurar evitar toda a controvérsia desnecessária.

Certamente Cowper nunca atribuiu a culpa da sua depressão à sua fé evangélica. Um desequilíbrio mental herdado, uma deformidade física e uma melancólica disposição natural, tudo isso contribuiu para que não desfrutasse das bênçãos que por direito eram suas, como filho de Deus. Não fosse a sua fé evangélica, é duvidoso que tivesse vivido para se tornar um poeta famoso.

A história de William Cowper é a mais trágica dentre a de todos os hinógrafos ingleses. Foi seu quinhão experimentar a verdade expressa pelos teólogos do passado: "Às vezes, Deus lança os seus filhos na escuridão". Johnny Johnson comentou que em sua morte "o semblante de Cowper ficou com a expressão de serenidade misturada, por assim dizer, com santa admiração". Esta expres­são refletia o presente estado de William Cowper, pois este havia contemplado a plena luz da face do Sol da Justiça, naquele lugar em que não há mais tristeza nem trevas, e havia aprendido o verdadeiro significado de seu próprio hino:

Então, com um mais nobre e doce canto

Cantarei o teu poder para salvar,

Quando esta pobre e balbuciante língua,

Em silêncio, na sepultura quedar.

 

9.LONDRES, 1780

John Newton escolhera um ano agradável para fixar sua residência em Londres. Embora não tivesse deixa­do Olney senão em Janeiro, a 19 de Dezembro de 1779 pregou o seu primeiro sermão na igreja de St. Mary Woolnoth, sobre Efésios 4.15: "Seguindo a verdade em amor". Seis meses depois, a 2 de Junho de 1780, uma sexta-feira, "a Senhora Turba" afluiu às ruas de Londres com fúria incontrolada.

Londres não era alheia ao domínio da turba. Com uma população de quase um milhão de pessoas não havia uma força policial organizada. O número de policiais, guardas-civis, vigias e patrulhas montava a pouco mais de três mil homens, muitos deles trabalhando apenas meio período; uma boa parte era de idade avançada e continuava empregada somente para se manter fora do asilo dos pobres, e muitos eram vulneráveis ao suborno. Era difícil para o prefeito de Londres conseguir homens aptos por apenas oito xelins por semana. Aos guardas noturnos, ou "Charlies" eram fornecidos uma lâmpada, um chocalho, um cacetete e uma guarita para se abrigarem. Os "Charlies" se tornaram o alvo da zombaria de toda a gente, e os bandos juvenis gastavam as primeiras horas da noite virando as pequenas guaritas de madeira contra a parede, para que os guardas não pudessem sair de lá até que alguém os ajudasse pela manhã.

Para se protegerem, os cidadãos organizavam-se em grupos nalgumas tabernas, de onde saíam com ímpeto, armados de cace­tes e bordões, sempre que uma parte da turba se tornava amea­çadora. Não passava um dia sem as viciosas brigas de rua, que terminavam em desordens violentas e sangrentas. Para o novo pastor, a situação não era muito diferente daquela que assistira na costa ocidental da Africa! Os comerciantes costumavam alvoroçar-se por tudo e por nada; os marinheiros, os tecelões de seda, os mineiros de carvão e os tintureiros de chapéus convertiam-se em turbas sempre que a situação o exigisse. Mas, de todos os tumultos do século XVIII, nenhum se assemelhou aos Motins de Gordon, em junho de 1780.

John Newton encontrara uma casa em Charles Square, Hoxton, havia pouco tempo, e aguardava que Mary e Betsy se juntassem a ele. Era uma habitação bastante agradável, com "ár­vores verdes na frente e um prado ao fundo, com vacas a pastar, de modo que tem uma pequena semelhança com os campos". Começou, pois, a trabalhar entusiasticamente na metrópole.

 

Lorde Gordonea "Senhora Turba"

Em 1778, George Saville apresentou ao Parlamento um projeto de lei restaurando muitos privilégios aos católicos romanos. Desde a morte da rainha Ana e seu cismático projeto de lei de inspiração católica, de 1 de agosto de 1714, os católicos romanos tiveram a sua sorte mudada e Roma sentiu-se indesejada. Saville escolheu o momento oportuno. A maioria dos membros do Parla­mento encontrava-se fora da cidade, e o projeto foi aprovado pela Câmara com poucos parlamentares presentes. A nação, no entanto, protestou, e Lorde Gordon, um fanático deputado esco­cês, declarou que iria a Londres com cento e oitenta mil homens e com petições que chegariam desde a cadeira do Presidente do Parlamento até às janelas centrais do Whitehall. Assim, a 2 de junho, Gordon reuniu entre sessenta a oitenta mil pessoas (New­ton preferiu estimar o número em "mais de cinquenta mil pes­soas") no campo de St. George, fez-lhes um discurso veemente em que lhes recordou a intolerância papal e as fogueiras de Smithfield e fê-los marchar, em grupos de seis, para a cidade. Gritando, "papismo não", atravessaram a recém-construída ponte de Blackfriars, ignorando o pedágio de meio pence, sitiaram o edifício do Parlamento e ameaçaram matar os seus ilustres membros. Foi uma cena de absoluta confusão, quando os parla­mentares, de espada na mão, prometeram primeiro matar Lorde Gordon, que tentava falar à Câmara, e defender a liberdade do Parlamento com suas próprias vidas. Tanto lordes como bispos foram empurrados e tratados grosseiramente, e, na sexta-feira, a turba espalhou-se pelas ruas e vielas da cidade, iniciando aquilo que o novo pastor chamou de "devastações cruéis".

John escreveu extensa e pormenorizadamente sobre os acon­tecimentos que se seguiram; acontecimentos que, em compa­ração, tornavam insignificantes os tumultos de Olney. Não pôde deixar de ser uma testemunha ocular, pois no sábado a turba surgiu em Hoxton, destruindo uma escola católica que fora aberta como resultado da lei de 1778.

Seguiu-se uma trégua breve no domingo, dificilmente devido a uma consciência religiosa, tal como John se deu ao trabalho de frisar, os tumultos não eram apoiados pela Associação Protestante e sim "por um grupo de pessoas ociosas sem qualquer religião". Muitos dentre aquelas hordas ferozes e irresponsáveis que mor­reriam de bom grado (e morreram) pelo "papismo não", prova­velmente nem sabiam se o papa era um homem ou um animal.

A violência retornou às ruas durante toda a segunda-feira; na terça, foram colocadas tropas na Torre, no Parlamento e em outros pontos estratégicos, mas, visto que tinham ordens para não atirar, a sua presença apenas contribuía para aumentar a far­sa da lei e da ordem; as multidões até cuspiam nos soldados e puxavam-lhes o nariz! Ao entardecer a cidade caiu nas mãos da "Senhora Turba". As prisões foram incendiadas e os prisioneiros, postos em liberdade; a biblioteca do Lorde Mansfield, onde se encontravam manuscritos insubstituíveis, foi pilhada, e muitas casas foram incendiadas. Os amotinadores embriagados e baru­lhentos perambulavam pelas ruas, saqueando, incendiando e ba­tendo. Pessoas inocentes eram "presas" ou arrastadas de suas casas e obrigadas a pagar multas, sendo destruídas as suas casas, se não o fizessem, juntamente com aquilo que Newton disse ser "outras crueldades, demasiado chocantes para que mencione".

Na quarta-feira, dia que John considerou ser o pior, a vio­lência atingiu o seu ápice. Todas as prisões em Londres, exceto uma, foram queimadas e os reclusos, libertos; foi destruída uma destilaria em Holborn, e, enquanto alguns dos desordeiros pere­ciam nas chamas, outros literalmente bebiam com sofreguidão o álcool puro que escorregava pela calha, até morrerem. O banco, situado perto da igreja de St. Mary, foi assaltado, e um desta­camento de soldados repeliu a turba "com muita carnificina". O que John não viu foi que os judeus aterrorizados afixaram letreiros dizendo: "Esta casa é protestante", e um italiano foi ao ponto de escrever com giz na sua porta aferrolhada, "sem religião"!

Finalmente, ao entardecer da quarta-feira, o rei ordenou à Guarda Real que tomasse conta da situação, e o matraquear apaziguante da fuzilaria acalmou John, permitindo-lhe dormir. Na quinta-feira de manhã, quando a cidade despertou, pôde ver os escombros do massacre da semana anterior: casas que ardiam lentamente, uma nuvem de fumaça, fogueiras ainda a queimar, garrafas e barris quebrados e mais de duzentos corpos caídos nas ruas. As tropas marchavam e andavam a cavalo pela cidade, os bombeiros traziam mangueiras, os comerciantes, nervosos, voltavam às lojas e os habitantes acordavam do seu pesadelo. Foram executados vinte e oito amotinadores e deportados trinta e um, e o pastor John Newton voltou ao seu escritório pastoral, recomeçou a visitação e escreveu com tranquilidade na margem de sua carta: "Estamos bem".

No domingo seguinte, a passagem que Newton usou para pregar no culto da manhã foi Lamentações 3.22: "As miseri­córdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos". A noite pregou sobre o Salmo 46.10: "Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus".

As Ruas e o Barulho

A cidade para onde os Newtons se mudaram, em 1780, caracterizava-se por barulho, imundície, violência e extravagância. Também, os seus habitantes estavam rodeados por aqueles lindos "campos verdes com gado a pastar"; Chelsea, Hyde Park, Pad-dington, Tottenham Court, Islington (uma das mais belas vilas inglesas), Hoxton, Bethnal Green, Mile End e Stepney formavam um cinturão verde, com campos e quintas, em volta da cidade. Na margem sul do Tamisa, Camberwell era um pequeno bosque frondoso; Herne Hill, um parque de árvores imponentes, e entre Denmark Hill e Norwood ficava uma região repleta de bosques.

Mas as ruas de Londres eram na sua maioria estreitas, não pavimentadas e mal iluminadas. Havia poucas calçadas e uma fileira de postes protegia das rodas ameaçadoras das carruagens o caminho por onde se passava. Este era um caminho por onde se devia andar devagar e com muito cuidado, pois as lojas e as casas abriam as suas portas e janelas georgianas de maneira abusiva para as ruas. Quando John fazia as suas visitas ou Mary, as suas compras, isso significava um constante subir degraus ou desviar-se de pórticos. Não tardou muito para que John se tor­nasse vítima das ruas de piso irregular de Londres. Em abril de 1780, o pastor estava à frente de sua casa; deu um passo atrás sem cuidado, tropeçou numa grande pedra e caiu sobre uma estaca pequena. Quando tratava do ombro contundido e deslo­cado, John disse a Mary que, em todas as suas viagens e perigos, aquele fora o único acidente sério de que se lembrava! No meio da rua corria o esgoto aberto, ou seja, uma valeta que geralmente estava obstruída e consequentemente imunda. Qualquer carroça ou carruagem que passasse por ali em momento inoportuno repre­sentava um desastre para o vestido branco e limpo de Mary e para os sapatos de John, que eram caprichosamente engraxados. Não havia leis de trânsito e só os mais espertos sobreviviam!

A iluminação era pobre e irregular. Os candeeiros a gás só passariam a ser usados nas ruas dentro de uns trinta anos, e como os acendedores de lampiões vendiam com frequência uma parte do azeite, poucas eram as ruas que tinham qualquer iluminação antes da meia-noite.

Quando percorria a cidade para realizar os seus deveres pastorais, John não teria grande dificuldade em compreender a razão por que Napoleão se referiu mais tarde à Inglaterra como uma nação de pequenos comerciantes. Por toda a parte, o ven­dedor escancarava as suas portas para atrair o cliente, e, quando Mary Newton passava, era-lhe oferecido tudo quanto ela precisasse, se apenas tivesse dinheiro para comprar. Os vendedores ambulantes eram os mais barulhentos. A mulher das maçãs, o homem dos chapéus, os consertadores de foles, o homem dos colchões e o vendedor de coelhos, todos uniam os seus gritos a muitos outros, oferecendo tudo, desde pó de tijolo (para afiar as facas) até os bolinhos redondos de trigo ou milho, servidos quentes e com manteiga.

O barulho das ruas londrinas era quase insuportável para o sossegado pastor da zona rural, que, pelo menos durante os dezesseis anos passados, se habituara ao som de um rio serpenteante, ao chilrear dos passarinhos e ao suave ruminar das vacas no campo. Em Londres, as mulheres tagarelavam às portas, as crian­ças gritavam, os carreteiros amaldiçoavam os animais e uns aos outros, os vendedores ambulantes anunciavam com grande vozeirão as suas mercadorias, procurando fazer concorrência uns com os outros, os cavalos escoiceavam e empinavam-se, os homens lutavam e as multidões se ajuntavam; a cidade de Londres gemia sob uma babel de gritaria confusa.

A Imundície

O Rio Fleet serpenteava pelos campos verdes de Islington e passava perto do hospital da varíola, como uma profecia do seu curso posterior. Passava por baixo de quatro pontes, Bridewell, Fleet Street, Fleet Lane e Holborn, cuja área, disse um con­temporâneo, estava "coberta de imundície e de ruínas, servindo de esconderijo a um numeroso enxame dos mais perversos de nossos pobres". O rio Fleet atravessava a cidade como um lento e vasto canal de imundície, mudava o seu nome de rio para "vala" e vomitava a sua vil carga no Tamisa, em Blackfriars. Não havia esgotos, e todo o lixo imaginável e inimaginável, assim como to­dos os excrementos eram despejados para as ruas, na esperança de que a chuva os levasse, o que ocasionalmente acontecia. Mas o mau cheiro em uma tarde de verão era insuportável.

Os fogões a carvão expeliam baforadas de enxofre asfixiante em direção ao céu, formando uma capa protetora acima da cidade, que impedia a entrada do ar puro e da luz solar, assim como a saída do cheiro de águas fétidas e da sujeira. John dirigia-se tossindo para os becos e casas, com muitas saudades da ulmária perfumada que atapetava os campos perto da igreja de Olney e da delicada madressilva que se entrelaçava à volta das sebes e dos jardins da sua velha igreja rural.

As favelas da Londres não precisavam ser visitadas para se acreditar no que lá se passava; mas Newton visitou-as muitas vezes. A superlotação era apenas um dos muitos males, e não é difícil imaginar as consequências de dormirem dezessete pessoas em um só cómodo. Uma das áreas de favelas mais notória era a de Locks Field, à saída da elegante estrada de New Kent. Crianças descalças e sujas, filhas de "prostitutas, batedores de carteiras, salteadores, arrombadores e ladrões de toda a espécie" vaguea­vam pelas ruas; um bocado de comida imunda com batatas gor­durosas constituíam a refeição de um dia inteiro. Os homens perambulavam por ali preguiçosamente, sujos e despenteados; as mulheres, na maioria propriedade comum dos homens, apa­reciam à porta vestidas com roupas sebosas e rasgadas, com o cabelo emaranhado e caído sobre aos cordões partidos do corpete, atirando o lixo para a rua.

John conhecia melhor a área que ficava mais próxima do rio. Se as pescadoras de Billingsgate eram grosseiras, espalha­fatosas e arruaceiras, as mulheres das tabernas situadas à beira rio eram ainda mais miseráveis; nada possuíam, viviam em qual­quer lugar e por volta dos vinte e cinco anos acabavam no grande cemitério de St. George, em Ratcliffe, sem que ninguém as pranteasse.

Lorde Vício era o senhor das favelas, e os inquilinos eram a Imundície e o Piolho. A bebida enxugava as lágrimas e animava os corações, e milhares pareciam viver e morrer sem alma. A única solução de que Londres dispunha para os habitantes das favelas era condenar à forca, em cada sessão do tribunal, nú­meros suficientes deles, "para manter o equilíbrio".

A Violência

Era uma época de se "fazer justiça com as próprias mãos"; até o Dr. Johnson, quando andava pela cidade, trazia consigo um sólido cacetete que usava habilmente em cima dos batedores de carteiras e dos indesejáveis. Anos antes, em 1752, Sir Horace Mann lamentava-se: "Somos obrigados a andar, mesmo ao meio dia, como se fôssemos para uma batalha", e tudo continuava na mesma quando Newton ali chegou. As senhoras elegantes con­tinuavam a ser escoltadas, por rapazes com bordões, do local de seus jogos de cartas até às suas casas, e vice-versa.

John teve de aprender um vocabulário novo, que descrevia os delinquentes de Londres: sujeitos, bárbaros, chatos, vigaristas, vadios — a lista era interminável. O roubo invadira todos os can­tos da vida da cidade; as multidões estavam infestadas de bate­dores de carteiras, assim como o cabelo de quase toda a gente o estava de piolhos, e raros eram os dias em que a diligência entre­gava todas as suas encomendas. Os criados dos ricos, os jardi­neiros, os vendedores, todos estavam envolvidos no "negócio". Felizmente, por sua longa experiência no mar, John havia apren­dido a reconhecer tanto o embusteiro como o ladrão. O salteador dominava nas charnecas e nas terras reservadas à caça (era a romântica época das lendas de Dick Turpin e de Tom King), e o ladrão dominava nas ruas da cidade. Ninguém saía de casa à noite, a menos que fosse um tolo ou estivesse bem armado de pistola e espada.

As prisões produziam criminosos sem escrúpulos. Homens e mulheres eram amontoados em compartimentos frios e imun­dos, cujas condições eram excedidas apenas, quanto à miséria, pelas dos navios de guerra. Nada havia que os prisioneiros pu­dessem fazer na cadeia, a não ser aperfeiçoar os crimes pelos quais ali se encontravam detidos e sucumbir à sufocante "febre da cadeia".

Quando John e Mary foram para Londres ainda existia aquela terrível marcha da prisão de Newgate para a de Tyburn, marcha que continuou pelo menos até 1784. Dois anos antes de John e Mary chegarem, Wesley havia sepultado o honrado Silas Told. Este ex-marinheiro, alto e magro, gastara muitos de seus anos visitando as prisões, pregando para os reclusos de todas as prisões de Londres e subindo àquelas carroças mortais que se dirigiam para Tyburn; ele levou muitos dos reclusos à fé em Cristo. Sem dúvida, Newton já ouvira falar dele, mas Silas Told nunca mais andaria nas carroças como mensageiro dos céus; e, ao observar o horripilante espectáculo de um dia em Tyburn, John decidiu seguir o velho Silas no trabalho, nas prisões.

Era sempre festivo o dia em que Newgate lançava fora as suas carradas de prisioneiros, a fim de serem enforcados perto da barreira de pedágio, localizada ao fim da Rua Oxford. A via­gem durava meia hora, e as pessoas apinhavam-se na rua, como se fossem ver uma coroação. Barracas de gim e genebra, barracas de nozes e pão de gengibre, atores e palhaços, todos saciavam e distraíam a multidão. Entre os condenados estavam o salteador, desafiante e sorridente, indiferente ao seu trajeto cerimonioso para a morte, o tolo que, sendo pobre e tagarela, morria porque ninguém se interessara em defender a sua causa, o marido que ousou desobedecer a sentença de deportação voltando a casa, o pai que roubou pouco mais de um xelim para calar os choros da família necessitada, e a infeliz mulher que se agarrava ao seu bebé durante aqueles últimos minutos preciosos, antes que o ar­rancassem dos seus braços, enquanto o laço lhe caía à volta do pescoço. A vida tinha pouco valor, sendo facilmente alugada, e dela se dispunha com facilidade. As forcas públicas nunca care­ciam de clientes. Por onde quer que o visitante entrasse em Londres, havia patíbulos: ao longo das margens do Tamisa, na Rua Fleet, em Strand, em Covent Garden e, naturalmente, no fim da Rua Oxford. O coração de Londres era cruel e duro! Foi para esta cidade que Newton veio como ministro do evangelho.

A Extravagância

A outra face da Londres do século XVIII era extravagante, luxuosa e, da mesma forma, decadente; sua paz e felicidade eram ilusórias. Os ricos viviam nos arredores da cidade, banhando-se no luxo de suas fortunas desmedidas. As suas grandes casas com jardins amplos e o pequeno exército de criados falavam eloquen­temente de uma sociedade que era tão esbanjadora quanto po­derosa. As confortáveis casas dos comerciantes da classe média situavam-se mais próximo da cidade, tendo eles que se deslocar a Londres todas as manhãs para administrar os seus negócios.

Uma parte de Londres trabalhava catorze horas por dia e seis dias por semana, na imundície estagnada e no ar asfixiante, carregado de pó das ruas mais pobres, para ganhar de oito a quinze xelins por semana. Outra parte da cidade brigava e rou­bava, pois não tinha trabalho. O resto jogava cartas, bebia chá e café, ia a clubes particulares, onde se passava o tempo fumando e jogando por dinheiro, frequentava o teatro e flertava; tudo isso, durante os sete dias da semana, apoiados em uma fortuna que oscilava entre os sessenta mil e o meio milhão de libras.

Aquela era a época do colete estampado com flores, ajustado ao corpo, do casaco branco de seda, do chapéu de fita dourada, dos franzidos, da gravata requintada, da espada e seu cinto, da peruca postiça empoada, da barba muito bem feita, das meias de seda branca e dos sapatos de fivelas douradas. Completando o vestuário com a bengala e a caixa de rapé, o jovem cavalheiro estava pronto para os prazeres do dia.

A senhora igualava o seu par em esplendor. Na igreja, dis­traía os homens com a sua beleza e as mulheres com o seu vestido. As suas saias cremes, enfeitadas com rendas de Olney, os laços dos ombros em azul claro, o colar de âmbar, as acastanhadas luvas suecas, a pulseira de prata, um largo e floreado cinto de seda, em verde, cinza ou amarelo, com um laço ao lado: tudo isso fazia parte de seu traje. Aquele monstruoso vestido com saia-balão, de cintura muito fina e o penteado enorme, que por vezes atingia a horrorosa altura de quase um metro, haviam também se tornado moda.

A ocupação principal do rico ocioso era o jogo a dinheiro. Nos clubes particulares, os homens perdiam e ganhavam fortunas de uma só vez. Certa vez, o Lorde Carlisle perdeu dez mil libras num lance de um jogo de azar. As senhoras jogavam cartas em casa, desde a hora do almoço até à hora de irem para a cama. O governo, por sua parte, juntava-se-lhes com uma loteria que, no ano em que Newton pregou o primeiro sermão na igreja de St. Mary, vendeu quarenta e nove mil bilhetes e distribuiu qua­trocentos e noventa mil libras de prémios em dinheiro.

St, Mary Woolnoth

Quando John aceitou o convite para pastorear as igrejas de St. Mary Woolnoth e St. Mary Woolchurch, havia pouco mais de cento e cinquenta casas na sua região, equivalendo a sua remuneração anual a uma libra por casa, aproximadamente. O edifício, de aspecto pesado e modesto, com um "lindo órgão" (a maioria das igrejas londrinas não tinha órgão), ficava na Rua Lombard, perto do Banco da Inglaterra, da Bolsa de Valores e da Agência Geral dos Correios. Os correios vieram para a Rua Lombard em 1690, onde permaneceram até 1829, tendo sido providencialmente situados ali para o homem cujas cartas viajavam por todo o país. Dali, John podia enviar uma carta para Londres pelo custo de um pence (a tarifa de há cem anos mantinha-se!), para Edimburgo por sete e para a América por um xelim.

A simplicidade da vida em Olney foi substituída por um confuso turbilhão de barulho e de movimento, em Londres. Em Olney, os poucos que eram ricos dominavam os muitos que eram pobres com benevolência condescendente, mas em Londres cada um empurrava e brigava para obter alguma coisa, continuando a empurrar e a brigar para mantê-la.

Newton era um homem prático e realista, com pouco tempo e pouca paciência para aturar os caprichos e as frivolidades dos ricos. Não era pessoa que procurasse a sociedade, e os membros opulentos de sua igreja depressa se deram conta disso. O que eles faziam, por sua vez, era simplesmente ignorá-lo. A 29 de maio, John escreveu a Thomas Scott, manifestando sua tristeza: "Em St. Mary Woolnoth, parece que faço apenas o que quero, os meus congregados não me causam problemas, e alguns deles assistem às reuniões. Porém, ainda não me convidaram para visitá-los, exceto os poucos que são fervorosos. As raras vezes que me têm mandado chamar para realizar alguma cerimónia, etc. portaram-se como pessoas extremamente educadas. Tenho esperança de, com o tempo, me tornar familiarizado com elas, pois Roma não se fez num dia". O paciente pastor estava disposto a esperar pelo tempo oportuno; estava decidido a que tanto o ha­bitante das favelas quanto o comerciante e o aristocrata ouvissem o evangelho, mais cedo ou mais tarde. Mas John achou difícil ter uma conversa apropriada com estas pessoas. Ele compartilhou este seu problema e seus temores a Scott, na continuação da carta: "Não sei como chegar a eles. Ser recebido como convidado pelas pessoas ricas, sem poder sê-lo como ministro do evangelho, não serve ao meu objetivo; e, por outro lado, ir ao terreno deles na esperança de induzi-los a virem ao meu seria uma experiência arriscada. Não ouso aventurar-me a isto". Assim como receava ofender, também receava comprometer-se.

A vida espiritual de Londres era de nível muito baixo; sem dúvida, a pregação de Whitefield transformara um grande número de pessoas, mas havia dez anos que a morte silenciara os lábios deste grande homem; John e Charles Wesley já eram idosos. Quando John Newton veio para Londres, ele e o Sr. Romaine, da igreja de St. Anne, em Blackfriars, eram os únicos ministros evangélicos da igreja anglicana na cidade.

O Púlpito e a Galeria

A igreja de St. Mary não tinha galeria quando John Newton foi para lá; mas, à semelhança do que sucedeu em Olney, depressa se construiu uma. Não demorou muito a que este evangélico ferveroso atraísse uma congregação sempre crescente. Numa época em que todos possuíam um diário, escreviam cartas e desejavam ler os diários e as cartas dos outros, a correspondência de John Newton adquiriu um valor particular. A sua Autêntica Narrativa e o Omicron estavam atingindo um público cada vez mais numeroso e já haviam sido traduzidos para o holandês. Durante o seu primeiro ano em Londres, John publicou Cardiphonia, título escolhido por Cowper, que constava de cento e cinquenta e uma cartas calorosas e pessoais, que eram "de­clarações do coração".

O grande e imparcial cuidado de John mostra-se no fato de que as primeiras vinte e seis cartas eram dirigidas ao Lorde Dartmouth (se bem que os nomes não constassem nas cartas pu­blicadas) e de que mais sete o eram à sua própria criada, Sally Johnson. Eram calorosas cartas pastorais, em que dizia a Sally: "Penso em ti frequentemente e poucas vezes te omito nas minhas orações". Uma carta escrita em 1769 revela não apenas a sua preocupação quanto a Sally encontrar uma fé satisfatória em Cris­to (o que de fato aconteceu), como também a sua preocupação pela irmã de Sally que se encontrava muito doente. Em breve, tanto visitantes como londrinos começaram a se dirigir à Rua Lombard, para ouvir o autor dessas cartas tão preciosas. Apinhavam-se no edifício e formavam uma "congregação numerosa e atenta".

A igreja enchia-se de lojistas, comerciantes e adminis­tradores, que logo se queixavam de que os seus lugares estavam sendo ocupados por outros. Um dos introdutores da igreja sugeriu que o Sr. Newton fosse pregar fora ocasionalmente, sem anúncio prévio, porque, se a congregação não estivesse certa de sua pre­sença ali, talvez o número de visitantes diminuísse! John sorriu e prometeu fazer algo. Esse algo foi a construção de uma galeria.

A sua pregação, embora não fosse mais graciosa do que a de Olney, era igualmente cheia de poder. Aquele que havia sido um antigo escravo na Africa, que em certa ocasião atara o anzol a um pedaço de barbante e pegara o peixe com vísceras de galinha, cria que a hora mais feliz para o pescador não era aquela em que conseguia adquirir as melhores varas de pescar, os melhores anzóis ou as melhores linhas, nem mesmo aquela em que saía para o mar em épocas de condições atmosféricas mais favoráveis, e sim aquele em que conseguia fazer a maior pescaria!

Esta forma prática e realista de abordar as coisas significava que a aplicação da sua mensagem não poupava ninguém. Em um domingo, Newton subiu ao seu púlpito ornamentadamente es­culpido, com um estrado largo e forte, e informou à congregação de que tinha aparecido, no vestíbulo da igreja de St. Mary, a notícia de que um homem ainda jovem, tendo herdado uma for­tuna considerável, pedia as orações da congregação para que fosse preservado das ciladas as quais sua riqueza o expunha. "Ora", falou o pastor, "se o homem tivesse perdido uma fortuna, o mundo não se admiraria de o ver afixar um anúncio, mas este homem foi melhor ensinado".

A vida atarefada que Newton levava nem sempre lhe permitia dispor de tempo suficiente para preparar os sermões, havendo algumas manhãs de domingo em que não tinha nada em mente para a congregação. "Senhor, estou deveras vazio", exclamava muitas vezes; porém, encontrava consolo ao confiar em Deus, que lhe encheria a boca com a sua Palavra, visto ter sido por causa de assuntos legítimos que não tivera tempo para se preparar. Em 1784, John teve pouca dificuldade em conseguir assunto para uma série de sermões: havia uma comemoração de Handel na abadia de Westminster, e Newton, com toda a sua aversão ao uso que Handel fazia das Escrituras como "assunto de entreteni­mento musical", pregou cinquenta mensagens sobre o Messias, obra do grande compositor.

Newton continuou a pregar, como sempre o fizera, não para provocar dissenções, e sim para disseminar a verdade. Tinha o alvo de levar seus ouvintes a um conhecimento crescente e mais experimental do Filho de Deus e a uma vida de fé n'Ele. Por conseguinte, evitava as questões que sabia seriam capazes de provocar contendas. E, na sua ampla esfera de serviço, "clérigos e dissidentes, calvinistas e arminianos, metodistas e morávios, e, de vez em quando, creio eu, papistas e quacres, sentavam-se tranquilamente para me ouvir..." Todavia, não se deve pensar que, por agradar a tanta gente, a sua doutrina era frouxa. Ao escrever a um inquiridor numa das cartas do seu Omicron, John tratou com liberdade das "Doutrinas da Eleição e da Perseverança Final". Tinha a certeza de que, não por meio de "disputas barulhentas", e sim de um "esperar humilde em Deus, através da oração e da leitura cuidadosa da sua Santa Palavra", o seu correspondente não demoraria a considerar as doutrinas calvi­nistas sob uma luz favorável; por isso, empenhou-se em explicar, a partir das Escrituras, a depravação total da natureza humana e a necessidade de haver uma transformação desta por intermédio da graça imerecida de Deus. Cria igualmente na perseverança do cristão, certo de que nunca se perderá a salvação que Cristo ganhou para nós. Quanto melhor compreendêssemos "a nossa incapacidade do princípio ao fim, tanto mais excelente Jesus se mostraria". Em outra carta, John mostrava preferir a expressão "graça invencível"  ao invés de "graça irresistível"; a sua própria experiência lhe ensinara que o pecador pode resistir frequen­temente à graça de Deus, mas que, se Ele derramar o seu amor sobre determinado homem, este nunca conseguirá manter por muito tempo a sua teimosia. Newton concluiu, sem temer con­tradição, "que as doutrinas da graça são doutrinas segundo a piedade". As cartas de Newton refletiam o que pregava do púl­pito. A questão da eleição foi, uma vez mais, abordada de maneira fácil por uma idosa senhora de Olney, que dirigiu a Newton a seguinte observação: "Eu, há muito tempo resolvi essa questão, porque, se Deus não me tivesse escolhido antes de eu ter nascido, tenho a certeza que também não o faria depois, porquanto nada de bom veria em mim que O levasse a fazê-lo".

A inflexível posição de Newton, quanto à fé evangélica, nunca permitiria que se visse enredado em disputas sobre por­menores, e, em uma época em que duelos eram disputados devido à simples definição de uma palavra, essa atitude de espírito era urgentemente necessária. Em certa ocasião, um grupo de ministros discutia sobre o que ocorreria em primeiro lugar, a fé ou o arrependimento. Newton escutou com atenção durante al­gum tempo e acrescentou, em seguida, o seu parecer: "Cava­lheiros, o coração e os pulmões de um homem não são igualmente necessários para a sua vida?" "Claro que sim", responderam os amigos. "Bem, então digam-me", prosseguiu Newton, "qual destes começou a funcionar primeiro? Isto assemelha-se à questão que estais discutindo". Dessa mesma maneira ele tratou de outra questão. "Há muita gente que fica perplexa quanto à origem do mal", comentou. "Quanto a mim, vejo que existe o mal, e que há um caminho para se escapar dele; com isto começo e termino". Em 1784, escreveu a sua Apologia, uma série de quatro cartas dirigidas a um ministro independente para explicar os motivos por que continuava na igreja anglicana.

A Casa em Hoxton

Mary juntamente com Sally, a sua criada, puseram mãos à obra para tornar a casa tão confortável quanto possível. Breve­mente aquele mesmo número de visitantes, com os quais se acos­tumara em Olney, começaria a vir ali também. O seu marido tornara-se mais acessível e, no tempo que decorria entre as suas correrias de lá para cá, visitando outras pessoas, sentava-se em casa, "como se fosse um elefante ou um macaco domesticado que as pessoas vinham contemplar". Mary trabalhava no seu pequeno jardim e pediu a John que, quando escrevesse a Cowper, lhe pedisse "sementes esquisitas", pois William sabia o que ela queria dizer. John obedeceu e escreveu na carta que a esposa pedia-lhe uma coisa a que chamava "sementes esquisitas", acrescentando com perplexidade, "como se houvesse alguma semente que não fosse esquisita".

Betsy Catlett estava ausente a maior parte do tempo num colégio interno, em Highgate, e seu lugar era ocupado tempo­rariamente por Eliza Cunningham. A irmã de Mary, Elizabeth, casara e mudara-se para a Escócia, onde o filho mais velho mor­reu após um ferimento numa perna. Susie, a segunda na descendência, contraiu tuberculose, e Elizabeth levou-a para Edimburgo para ser tratada. Quando estava lá, morreu o seu marido, tendo a sua morte sido imediatamente seguida pela de Susie. A que restava, Eliza, foi acolhida no lar dos Newtons, e, pouco depois de sua chegada, a mãe, que havia ficado na Escócia por se encontrar demasiado fraca para viajar, morreu também de tuberculose. Esta doença dizimava uma grande parte da popu­lação, o que não era de espantar, porquanto o leite proveniente diretamente do úbere, o melhor lugar para a procriação do bacilo, era uma grande guloseima. Mas neste quadro nada era invul­garmente trágico. Em 1770, em cada mil crianças nascidas em Londres, e nasceram dezessete mil, quinhentas e cinquenta e três morreram antes de atingirem a idade de cinco anos, tendo o clero assistido, naquele ano, mais a funerais do que a batismos. Exatamente metade dos caixões pedidos eram de tamanho pequeno. Um dos mais promissores ajudantes de Newton morreu ainda jovem, em outubro de 1796, não antes de ter perdido a mulher e quatro filhos pequenos. Os Cunninghams foram afortunados em terem vivido tanto tempo!

Elizabeth Cunningham foi para a casa dos Newtons como uma saudável menina de quatorze anos, regozijando-se os New­tons com as duas jovens sobrinhas. Contudo, não passou muito tempo, e Eliza mostrou sintomas da mesma enfermidade devas­tadora; raramente podia sair, passava o tempo sentada, lendo, costurando, ou tocando seu cravo. John e Mary observavam aquele "tesouro de valor indizível" e aguardavam o fim. Eliza não tinha medo de morrer, pois possuía a mesma fé firme do tio. Foi ela que escolheu a passagem sobre a qual ele deveria pregar no funeral e o "Hino de Olney" que deviam cantar. Após a morte da sobrinha, John publicou um pequeno panfleto intitulado Um Monumento para o Louvor da Bondade do Senhor e em Memória da Querida Eliza Cunningham. A data era 13 de outubro de 1785 e a localidade, Hoxton. Circulou entre os parentes e amigos e terminava com as seguintes linhas: "Ficarei feliz se esta pequena narrativa servir de alento para os meus amigos que têm filhos". Cowper pensou que o panfleto era "exatamente aquilo que devia ser".

Depois de uma breve separação, quando Mary levou Eliza a Southampton, em Agosto de 1785, com a vã esperança de uma recuperação, Mary e John não voltaram a se separar mais, exceto no triste ano de 1790. Todos os anos, Newton e a esposa per­corriam o país, assim como haviam feito enquanto viveram em Olney, e refaziam-se com o ar puro da área rural. Chegaram mesmo a ir ver o mar em Brighton, onde as feias máquinas de banho, dispostas em ordem na praia, estavam à espera da senhora para a engolir e dar-lhe um modesto mergulho. Já havia muito tempo que a senhora Newton não passava tão bem de saúde, e o amor de John por ela, após trinta e cinco anos de casados, continuava o mesmo.

O Escritório do Pastor

Sempre que possível John preferia ir a pé à igreja; dava-lhe tempo para observar o que se passava ao seu redor e pensar. Era com tristeza que via os comerciantes com as portas de suas lojas abertas e os aprendizes de barbeiro a correr de casa em casa, com as perucas de domingo preparadas para serem usadas na igreja. No entanto, as pessoas estavam começando a prestar atenção, vidas estavam sendo transformadas, e as portas iam-se abrindo ao novo pastor.

Homens e mulheres entravam e saíam do seu escritório; car­tas eram respondidas. Newton era muito solicitado. Um grupo de dissidentes convidou-o para fazer um esboço de um currículo de estudo para ser adotado por uma academia dissidente que seria inaugurada em breve, sob a orientação de William Bull, em New-port Pagnell. John aceitou, embora se perguntasse qual seria a desculpa deles para recorrerem a um pastor. Escreveu um pre­fácio para o novo volume de poesias de Cowper, prefácio este que deleitou o poeta, mas que tanto molestou o editor, devido à sua linguagem religiosa, que este acabou pedindo que o retirassem. As cartas chegavam e saíam ininterruptamente; e a correspon­dência, que tanto tempo lhe tomava, quando em Olney, agora em Londres era ainda mais intensa. Em quase toda correspon­dência, Newton era informado de que os seus sermões publicados, as cartas e A Autêntica Narrativa estavam se mostrando de imenso valor no país, na Escócia, na Europa e também na América. Convites para pregar vinham de muito longe, e o constante fluxo de visitantes continuava. O seu tempo dividia-se entre a pregação, a escrita e o aconselhamento. O tempo corria, e o diário de um dia podia ser o de um ano.

O zelo e a sabedoria do pregador da igreja de St. Mary atraía muita gente ao seu escritório pastoral. Mas nem todos re­cebiam o conselho pelo qual esperavam. A senhora que o procurou para ser felicitada por ter recebido um prémio na loteria foi despedida, com a seguinte certeza: "Madame, orarei pela senhora, assim como oraria por um amigo que está sob tentação". Enquanto marinheiro e, ainda mais uma vez, quando estava em Liverpool, John comprara um bilhete de loteria e pedira a Deus que lhe desse sorte. Mas agora ele havia crescido no conhecimento. Um grupo de comerciantes recebeu o seguinte aviso: "Há uma grande e antiga firma oficializada que faz muito negócio e causa não poucos transtornos ao mundo e à igreja. Chama-se Satanás, Ego e Cia. Ltda.". Alguns membros da Associação Protestante insistiam com ele para que fosse mais específico em sua denúncia do papado; Newton, que tanto detestava o sistema de Roma como o da Associação, respondeu com uma cintilada de olhos: "Já li sobre muitos papas ímpios, mas o pior papa com o qual já me defrontei é o Ego". Até mesmo ao pedido de se organizar uma reunião de oração aos domingos à noite, o pastor respondeu com entusiasmo, mas acrescentou: "Depois de ter pregado e quando as nove horas se aproximam, sinto-me mais inclinado a jantar e ir para a cama do que a orar". Muitas pessoas o procuravam no escritório porque sentiam uma profunda neces­sidade espiritual. John interessava-se verdadeiramente por estas pessoas e oferecia-lhes conforto e conselhos sábios.

Da Rua Coleman para a Índia

Cláudio Buchanan foi um dos primeiros ingleses a se inte­ressar suficientemente pela angustiosa situação espiritual do povo da índia, ao ponto de gastar a vida servindo-os. Enquanto tra­balhou como sub-diretor do colégio em Fort William, esforçou-se de maneira incansável para desenvolver a educação entre os nativos e tirá-los de suas superstições. Viajou por todo o país, traduziu o Novo Testamento para um dialeto local e manteve, à sua custa, um crente arménio que estava traduzindo as Escrituras para o chinês. Morreu em 1815, enquanto revia uma tradução síria do Novo Testamento. Glasgow e Cambridge concederam-lhe um doutorado honorário pelos destacados serviços prestados à índia. Porém, a sua vida espiritual começara com uma carta anónima dirigida ao pastor da igreja de St. Mary.

Buchanan nasceu em 1766, em Cambuslang, perto de Glas­gow, mas, embora tivesse crescido no tempo das mais poderosas pregações de Whitefield, vinte e quatro anos antes, desprezou toda a instrução religiosa que recebera durante a infância. Aos vinte e um anos pôs-se a caminho de Londres, ganhando com seu violino o dinheiro para a passagem, como um músico ambu­lante do século XVIII. Em Londres, viveu em alojamentos obscu­ros e vendeu sua roupa e seus livros para comprar comida. Du­rante três tediosos anos viveu, conforme ele mesmo disse, "não sabia como, num estado de esquecimento ou de intoxicação men­tal". Levava uma vida muito irreligiosa e dissoluta, jamais pen­sando em algum dever religioso. Um amigo apresentou-lhe a obra de Doddridge, Origem e Progresso da Religião na Alma e outros livros bons. Não se sentiu muito tocado pela leitura, mas uma carta proveniente da mãe urgia-o a que se juntasse "à nume­rosa assistência de uma igreja na Rua Lombard". Então, Cláudio escreveu ao reverendo Newton, confessando-lhe: "Quando você pregava, pensei que ouvia as palavras da vida eterna; ouvi com avidez e desejei que pregasse até a meia-noite".

No domingo seguinte, Newton anunciou na igreja que, se a pessoa que lhe enviara uma carta sem assinatura e sem endereço quisesse contatá-lo, ele ficaria muito satisfeito de conversar mais sobre o assunto. Buchanan foi à casa do pastor, à Rua Coleman, n° 6, e, conforme disse, "desfrutei de uma hora tão feliz, que jamais devo esquecê-la. O meu próprio pai não se teria mostrado mais preocupado pelo meu bem-estar". Buchanan leu A Autêntica Narrativa, como faziam todos os que procuravam o antigo capitão, frequentemente tomou café da manhã com a família Newton e, com uma nova vida em Cristo, foi mandado a Cam­bridge, por John Thornton. Em 1794, Newton, pela primeira vez, aconselhou Buchanan a considerar a possibilidade de tra­balhar na obra missionária na índia.

O conselho dado a Buchanan talvez foi influenciado por uma visita que Newton recebera no ano anterior; a visita fora do sapateiro de Northamptonshire, William Carey. Carey havia se preparado durante muito tempo para servir ao Senhor na índia e por volta de março de 1793 estava pronto para partir. Deparando-se com uma semana muito difícil, incapaz de obter a licença necessária para entrar na índia como missionário, Carey procurou o "bondoso velho Newton". O missionário batista aconselhou-se com ele sobre como proceder no caso da Companhia da índia Oriental mandá-los de volta para casa, a ele e ao seu companheiro Thomas, quando chegassem a Bengala. O velho pastor disse de maneira solene: "Nesse caso, você tem de concluir que o Senhor não tem nada para você fazer ali. Se Ele tiver, nada no mundo poderá impedir". Os dois homens correspondiam-se com fre­quência, e a influência de Newton era, por vezes, a ajuda que Carey necessitava quando afrontado pelos clérigos que estavam na índia. O amor de Newton pelos servos do Senhor, sem importar qual fosse a denominação deles, encontra-se bem demonstrado na carta de recomendação que ele escreveu poste­riormente: "Um homem como Carey é para mim mais do que um bispo ou um arcebispo: é um apóstolo".

Enquanto John e Mary ainda viviam em Hoxton, foram visitados por duas outras pessoas, cada uma precedida por uma carta. William Wilberforce e Hannah More haviam sido arremes­sados para o turbilhão da sociedade londrina, e foi a sabedoria do velho marinheiro que os encaminhou para uma vida de uti­lidade e de satisfação.

10. WILBERFORCE E HANNAH MORE

Num domingo, 4 de dezembro de 1785, entrou pelo pórtico M. \/  da igreja de St. Mary Woolnoth um elegante e educado jovem, que entregou uma carta à mão do "velho Newton, na sua igreja". O texto da carta era misterioso e seu conteúdo de grande alcance em seus efeitos:

"Senhor,

Não há necessidade de pedir desculpas por molestá-lo, visto que se trata de um assunto de religião. Desejo ter uma conversa séria consigo, por isso tomarei a liberdade de visitá-lo daqui a meia hora. Se não puder receber-me, tenha a bondade de fazer com que me seja entregue uma carta à porta, marcando hora e lugar para nos encontrarmos; quanto mais cedo, melhor para mim. Tenho tido muitas dúvidas sobre se devo ou não abrir-me com o senhor; mas, todos os argumentos que surgem contra a nossa conversa têm o seu fundamento no orgulho. Estou certo que se comprometerá a não divulgar nada, a ninguém, quer sobre esta carta quer sobre o meu encontro consigo, até que eu próprio o liberte do compromisso.

P.S. Lembre-se que ninguém deve saber acerca de mim, pois, visto que, na galeria da Câmara que agora é tão popu­larmente frequentada, torna-se bastante fácil reconhecer o rosto de um deputado do Parlamento."

Se Billy tornar-se Metodista

Newton não pôde receber imediatamente o perturbado in­quiridor, por isso combinou encontrar-se com ele na quarta-feira seguinte. À hora indicada, o interessado chegou à Praça de Hoxton, mas achou que lhe faltava a coragem. Se a sociedade soubesse que estava prestes a conversar com o pregador evangélico metodista, se a sociedade pudesse adivinhar o turbulento estado de sua mente e que a sua visita tinha um propósito sério, então todo o seu futuro político poderia vir a arruinar-se! Depois de dar uma ou duas voltas pela praça e de se ter convencido de que o assunto era demasiado vital para ser posto de lado, só porque temia o povo, o deputado do Parlamento, por Hull e Yorkshire, dirigiu-se então ao gabinete do pastor da igreja de St. Mary.

De Hull para Winbledon

William Wilberforce nasceu em Hull a 24 de agosto de 1759. Foi educado na escola desta mesma localidade até à morte prematura do pai, quando, com a idade de nove anos, foi enviado para Londres, onde um tio possuía uma casa encantadora, no coração de pitoresca beleza, na zona rural de Wimbledon. Esta família fora profundamente afetada pelos princípios metodistas: George Whitefield visitava-a com assiduidade e o pastor de Olney também pregava com re­gularidade naquela casa. Quando estas notícias chegaram a casa da família de Wilberforce, em Yorkshire, o alarme foi grande; o avô paterno declarou: "Se Bill se tornar metodista, não receberá nem um centavo meu". Assim, Bill teve de regressar de imediato a Hull. Mas a influência evangélica que recebera na casa do tio o afetara apenas de leve, e, após ter completado os estudos no Colégio de St. John, em Cambridge, candidatou-se como deputado, por Hull, nas eleições de 1780, entrando aos vinte e um anos para a Câmara dos Comuns, onde trabalhou durante os quarenta e cinco anos que se seguiram.

A entrada de Wilberforce para o Parlamento significou o seu ingresso numa sociedade elegante, onde a sua considerável fortuna lhe permitia viver uma vida extravagante e dissoluta. Sendo jovem e apresentável, Wilberforce gostava de festas e de música. A sua voz era de tal modo bonita que recebeu um elogio do Príncipe Regente, tendo este declarado estar sempre disposto a ouvir Wilberforce cantar, a qualquer hora que fosse.

Quando a casa em Wimbledon lhe foi deixada como herança, Wilberforce retirou-se para aquele refúgio no campo e, em 1784, tornou-se Membro do Parlamento, por Yorkshire. Durante o outono, aproveitou as férias para visitar o continente com a mãe e a irmã, levando consigo um companheiro, o seu antigo mestre de escola, Isaac Milner, irmão do historiador, Joseph. Embora sendo um brilhante erudito, Milner era um homem rude proveniente de Yorkshire, de sotaque acentuado e de um severo mas firme me­todismo. Wilberforce sabia pelo menos como portar-se seriamente diante da religião e era um leal membro da igreja. Algum tempo atrás, em um domingo de 1782, escrevera triunfantemente em seu diário acerca do êxito conseguido em relação ao jovem Ministro da Fazenda: "Persuadi Pitt a ir à igreja". Não demorou muito a que Milner e Wilberforce se envolvessem em longas e profundas conversas a respeito da verdade evangélica.

Em 1785, Wilberforce regressou à azáfama da sociedade londrina, embrenhando-se em bailes, concertos, óperas e teatros, jantares domingueiros, clubes privados e jogos de azar. No entanto, se tivermos em conta toda a sua fortuna, jogava pouco e bebia ainda menos. No verão, voltou ao continente com Milner e juntos leram a obra de Doddridge, Origem e Progresso da Religião na Alma. Ao retornar à Inglaterra havia-se operado uma transformação evidente em sua maneira de pensar, mas não tão grande ao ponto de poder chamar de conversão. Foi com tristeza que escreveu em seu diário: "Devo estar atento ao meu estado, que é perigoso, e não descansar até ter alcançado paz com Deus. Meu coração é tão duro, minha cegueira tão grande, que não consigo odiar de forma suficiente o pecado, embora veja que estou completamente corrompido e cego quanto à percepção das coisas espirituais".

 

O Velho Newton

Milner convenceu o seu jovem companheiro a visitar Newton, e assim, no dia 7 de dezembro de 1785, os dois conversaram. Naquela tarde, depois de Wilberforce ter se despedido de Newton, sentiu-se muito triste, mal conseguindo orar; porém, determinou confiar e esperar em Deus. No domingo seguinte, encontrava-se entre a congregação da igreja de St. Mary. Percorreu com olhos atentos a grande e bem apinhada congregação, a nova galeria de madeira, o púlpito grotesco e as ainda mais grotescas colunas de Corinto, das quais havia doze. O pobre, o comerciante, o rico, todos estavam ali: as senhoras com os seus vestidos ondulantes e crepitantes, os homens engomados e todos empertigados. Mas o pastor afastou-lhe a atenção das coisas mundanas, e, quando William saiu da igreja naquele domingo, anotou em seu diário: "Ouvi Newton pregar sobre a inclinação da alma para com Deus — Excelente. Ele pregou com todo o seu coração". Dois dias depois, lia, para seu grande benefício, A Autêntica Narrativa, de Newton.

Durante os meses seguintes Wilberforce recorreu com frequência à rua Lombard e à praça Charles; tanto o seu diário como as cartas que escrevia estavam cheias de referências a Newton: "Fui à casa de Newton. Quando ele orou, eu estava frio e morto; assim que saímos de sua casa, este estado agravou-se". "Sinto-me mais frio do que nunca — muito infeliz. Visitei Newton movido pela amargura; ele confortou-me". A 20 de dezembro anotou: "A igreja de Newton... não parece tão calorosa (presumivelmente seria uma referência à sua própria alma!) mas é ainda uma boa esperança. Confio que Deus está comigo... Fiquei na cidade para assistir à Ceia do Senhor, tendo sido gloriosamente abençoado".

Foi em meados de Janeiro de 1786 que Wilberforce encontrou uma fé cristã jubilosa e firme, pela qual expressou sua gratidão a Newton. Decidiu, então, por conselho deste, continuar na política e ao mesmo tempo levar a sua influência cristã àquele campo; foi uma decisão momentosa. William não quis mais continuar incógnito e libertou Newton de seu compromisso de segredo. A 12 de Janeiro, escreveu: "Quero que todo o mundo me ouça declarar que sou metodista; que Deus permita que isso possa ser dito com verdade". Billy herdara, pois, a fortuna do avô e tornara-se metodista!

A amizade de Newton com Wilberforce continuou intacta através dos anos. Em 1792, o pastor pediu conselho ao deputado do Parlamento quanto a dever ou não consumir o açúcar das Antilhas, e em 1795, Newton escreveu a recomendação de um pequeno livro que Wilberforce publicara com grande êxito, intitulado O Cristianismo Prático; Newton lera-o três vezes "com grande satisfação". John escrevia a Wilberforce pelo menos três vezes por ano, e por volta de 1804 o experiente político escrevia ao venerável guerreiro da cruz em termos extremamente ternos e afetuosos.

Um Político Evangélico

A humanidade e as reformas de Wilberforce foram o resultado direto da firmeza da sua fé evangélica, tal como aconteceu com o Lorde Ashley de Shaftesbury, um século depois. Depois de toda uma vida dedicada a tirar crianças das minas e das fábricas, a fazê-las descer das chaminés que limpavam e a afastá-las dos bairros miseráveis, Shaftesbury declarou ao seu biógrafo: "Penso que a religião de um homem, se é digna de alguma coisa, deve penetrar em todas as esferas da vida e guiar a sua conduta em todos os aspectos. Sempre tenho sido — e, se agradar a Deus, sempre serei — um evangélico dos evangélicos, e qualquer biografia que não retrate as minhas convicções religiosas inteira e enfaticamente não estará retratando a mim". O mesmo se pode dizer, com justiça, de Wilberforce.

Quando a transformação operada em Wilberforce se tornou conhecida, a sua família ficou profundamente preocupada. Um amigo achegado, William Pitt, de vinte e quatro anos, nesta ocasião Primeiro Ministro, chegou à conclusão que ele não devia estar passando bem. Os atrativos da sociedade deixaram de ter valor para ele, e comentou acerca de alguém que o lisonjeara ao ponto do servilismo: "Preferia que me tivesse cuspido no rosto". Mas Wilberforce amava a vida, e se atirou a ela com zelo incansável. O Lorde Macaulay, o brilhante historiador do reinado da Rainha Vitória, declarou, por ocasião da morte de Wilberforce, ter achado estranho um tal desejo de viver num homem que cria firmemente num mundo futuro e cujas possessões eram "uma fortuna reduzida, uma espinha dorsal enferma e um estômago desgastado". Talvez Macaulay nunca tivesse chegado a aprender que, ao contrário da opinião popular, os que mais se preocupam com as coisas celestiais são também os de maior utilidade na terra.

Possuidor de "opiniões metodistas" fortes, Wilberforce con­tinuou sendo um fiel membro da igreja. Com o passar dos anos, mostrou-se mais receoso face a alguns metodistas superentusiastas, por isso ficou contente em poder mudar-se para Wimbledon, para que não se tornasse um "metodista fanático e menosprezado". Da mesma maneira, receava a dissidência, dizendo que "a longo prazo, era altamente prejudicial para os interesses da religião". Contudo, o seu espírito evangélico abraçava a todos os que amavam a Cristo e proclamavam a verdade. Em 1798, defendeu com vigor os metodistas de Jersey, que recusavam estar de serviço no domingo, no exército de Sua Majestade, e, incentivado por seu antigo conselheiro da igreja de St. Mary, foi um grande partidário do Ato de Tolerância. Enu­merava entre os seus amigos muitos desses metodistas dissidentes e menosprezados, mas não os fanáticos.

Na política, Wilberforce era independente, desembaraçado e destemido. Nos vários assuntos pelos quais batalhou, a sua lealdade aos princípios acarretou-lhe, diversas vezes, a ira de Pitt, de políticos e de ministros de todas as alas; também a família real e o próprio rei George, acharam motivos para se oporem a ele. Certa ocasião, o povo cercou-o devido aos seus pontos de vista impopulares, sendo necessária a proteção da polícia. Como orador não tinha igual na Câmara, sem excluir Pitt, e este "rouxinol da Câmara dos Comuns" possuía uma sagacidade brilhante, uma mente rápida e alerta, um entendimento completo do estado da Câmara e conseguia prender a atenção dos deputados que ficavam fascinados mesmo com um discurso de três horas.

A Abolição da Escravatura

A escravatura foi o grande tema de disputa pelo qual o nome de Wilberforce é lembrado para sempre. Durante anos, os quackers tentaram impor a questão da escravatura sobre a consciência da nação, e, em 1774, o próprio John Wesley contribuiu para o debate com a obra Considerações Sobre a Escravatura. Dois anos mais tarde, foi apresentada ao Parlamento uma proposta, dizendo "que o comércio de escravos era contrário às leis de Deus e aos direitos do homem"; tal proposta recebeu pouco apoio. Em 1787, formou-se a Sociedade para a Abolição do Comércio de Escravos, tendo Granville Sharp como presidente. No mesmo ano, Wilberforce incumbiu-se de ser o porta-voz parlamentar e o cabeça do movimento contra a escravatura. Tendo John Newton por conselheiro e confidente, sentia-se mais confiante.

Apesar de sua saúde ter sofrido uma súbita crise, em que os médicos lhe deram apenas três semanas de vida, Wilberforce voltou à luta por volta do fim do ano, confirmando a sua participação no assunto, ao anotar no diário: "Toda a tarde foi ocupada com o assunto dos escravos; com apenas bolachas, vinho e água como alimento". Passava oito a nove horas por dia envolvido na questão dos escravos, e as terríveis histórias, acerca da escravatura, que ouvia durante o dia causavam-lhe sonhos horrorosos à noite.

A 11 de maio de 1789, em meio a uma oposição crescente da parte dos poderosos e ricos comerciantes da índia Ocidental e a lamentação incessante deles sobre a ruína económica das colónias e da Inglaterra, Wilberforce abriu o debate na Câmara dos Comuns, com um magistral discurso de três horas e meia. Quarenta e quatro anos mais tarde, e apenas seis dias antes de sua morte, a 29 de julho de 1833, foi aprovado pelo Parlamento um projeto de lei para a emancipação de todos os escravos, ficando assim concluída a obra a que dedicara a vida.

A Revolução Francesa acabou com as esperanças de uma vitória antecipada dos abolicionistas. O governo entrou em pânico ao pensar no surgimento de uma liberdade, em qualquer parte, que pudesse conduzir a uma bastilha britânica. Porém, Wilberforce continuou. Em princípios de 1790, era presidente de um comité selecionado, passando a maior parte do tempo a convocar testemunhas e a arquivar intermináveis documentos e testemunhos. O Conselho Privado também se ocupava na disputa; por isso, quando John Newton foi chamado a prestar declarações, foi o Primeiro Ministro que conduziu pessoalmente o antigo capitão de escravos ao seu lugar e o apresentou como amigo do Sr. Wilberforce.

Não há dúvida que a consciência e a energia de Newton foram uma grande inspiração para Wilberforce. Em 1787, Newton tinha publicado Considerações sobre o Comércio de Escravos Africanos, obra que se tornou uma das armas mais poderosas no arsenal dos abolicionistas. Wilberforce fez circular milhares de exemplares por todo o reino. O panfleto estava bem ponderado e apelava intensamente ao coração. Enquanto escrevia, o velho capitão tinha a seu lado o diário dos anos 1750-54, e embora, "tê-lo feito, eu o fiz na igno­rância", agora procurava usar toda a sua influência e poder a favor das tentativas de abolição daquele tráfico terrível.

O primeiro argumento destas Considerações era a estarrecedora perda de vidas dos marinheiros britânicos envolvidos no comércio; pois, segundo a sua estimativa, um em cada cinco marinheiros nunca mais retornava. Em segundo lugar, escreveu, aquele comércio brutal corrompia "toda inclinação dócil e humana" existente no homem, fazendo com que os marinheiros se assemelhassem a bestas selvagens. Foi sábio começar por estes pontos; na Inglaterra pouca gente se importava com os escravos, mas sempre havia alguém que se im­portasse com os marinheiros. Porém, Newton prosseguiu, detalhando a tortura, a crueldade e a barbaridade a que os escravos estavam expostos; renunciou a sugestão de que não passavam de animais insensíveis, alegando que havia encontrado mais casos de humanidade e honestidade entre os negros do que entre os brancos empregados em tal comércio. Descreveu o horror da Rota do Meio e testemunhou, com vivacidade, do mau trato que recebiam nas índias Ocidentais, onde fora estabelecido que era mais barato fazer um escravo trabalhar até morrer, e depois substituí-lo por outro, do que tratá-lo bem e permitir-lhe uma vida mais longa. Os escravos raramente viviam mais de nove anos nestas condições.

Eram argumentos fortes e contundentes. Porém, a eloquência, a razão e a humanidade foram derrotadas por preconceitos estúpidos e interesses mesquinhos, e, durante muitos anos, os "pigmeus", como eram chamados os abolicionistas, pouco conseguiram contra os "gigantes". Em 1788, a Corporação de Liverpool, cidade de onde Newton havia embarcado como traficante de escravos e na qual trabalhara como oficial aduaneiro, fez uma petição ao Parlamento contra as propostas abolicionistas, "que diziam respeito essen­cialmente à prosperidade da cidade e do porto de Liverpool". Apesar do labor incessante e de mais de quinhentas petições por todo o país, Pitt desinteressou-se da causa, a família real pronunciou-se com firmeza contra a abolição, e um projeto de lei destinado a uma "Abolição Gradual" colocou o assunto num canto até o século XIX. Wilberforce, encorajado por Newton, apresentava uma moção todos os anos, até que em 1798 foi derrotada apenas por quatro votos. Contudo, no início do novo século o comércio havia duplicado, e William sentia que a vida pública e os homens relacionados a ela o punham doente. Em 1804, os Comuns conseguiram uma maioria de votos, com 124 a favor e 49 contra, mas os Lordes bloquearam o projeto de lei depois de uma segunda leitura. Pitt morreu em 1806, tendo o novo Governo concordado em recomeçar a causa. A abolição geral recebeu a anuência real a 23 de fevereiro de 1807 e durou apenas dois dias, pois o governo caiu a 25 de fevereiro. Só em 1833 seriam finalmente libertos todos os escravos que pertenciam aos britânicos.

Assim, os esforços deste homem no Parlamento, um grupo de trabalhadores fiéis e diligentes, resmas de panfletos e um sábio e arrependido capitão de escravos conseguiram para a Inglaterra, em 1833, o que só a morte de quase meio milhão de homens e uma das guerras civis mais sangrentas da história conseguiram para a América em 1865. Os escravos estavam livres.

O Grupo de Clapham

Wilberforce não devia ser lembrado apenas por causa do mo­vimento abolicionista. Ele uniu-se a um grupo de outros jovens evangélicos para formar o "Grupo de Clapham". O seu alvo era trazer de volta a vida espiritual verdadeira à igreja anglicana e ajudar a humanidade onde quer que fosse possível. Henry, filho de John Thornton, era um dos membros e um amigo íntimo de Wilberforce. Fundaram então uma colónia para os escravos livres na Serra Leoa, financiaram as escolas dos vilarejos no oeste do país, escolas essas que haviam sido iniciadas por Hannah More, e formaram a Sociedade da Reforma dos Costumes, que apesar do estranho título conseguiu reformas de valor contra a blasfémia, a literatura indecente, os espectáculos proibidos e os castigos excessivos da época. Wilberforce visitou os condenados na prisão de Newgate e apoiou Elizabeth Fry na sua valiosa obra. Em 1796, enfrentou os muitos abusos verificados em hospitais de Londres, ocupando-se deles até que alguém decidisse fazer algo. Em 1800, Wilberforce, sendo grandemente encorajado por Newton, ajudou a fundar a Sociedade Missionária da Igreja, discutida primeiramente na Sociedade Eclética de John, e, por seus esforços, muitos missionários foram enviados a outros países. Em 1808, o nome de Wilberforce apareceu como um dos patrocinadores da Sociedade Bíblica.

Os evangélicos de Clapham eram incansáveis. Quando o projeto de lei para a abolição foi aprovado por 286 votos contra 16, saiu ao encontro de Wilberforce, na ocasião em que ele retornava a sua casa em Palace Yard, uma multidão de amigos para felicitá-lo. Entre eles encontrava-se Henry Thornton, também membro do Parlamento. "Bem, Henry", disse ele, "o que vamos abolir agora?" Thornton cruzou os braços e acompanhou-o até à porta. "Penso que a loteria", respondeu.

Wilberforce casou em 1797 e dedicou-se à esposa e à família. Punha "em primeiro lugar, os meus filhos; em segundo o Par­lamento"; todavia, dedicou a vida à causa da humanidade cristã. Tudo se deveu, em grande medida, àquele primeiro e vacilante encontro com John Newton e aos avisos e conselhos do velho pastor da igreja de St. Mary, com os quais sempre podia contar.

Hannah e sua Ilusória Esperança

Em 1773, uma certa jovem de 28 anos, bonita, esbelta e elegante, visitou Londres pela primeira vez. Foi logo bem acolhida no pri­vilegiado círculo de amizades do Dr. Johnson, tornando-se ime­diatamente o centro de atração, admiração e adulação em que Johnson e os seus amigos se distinguiam. Hannah More tinha publicado naque­le ano a sua primeira peça, Em Busca da Felicidade, que se tornou um sucesso imediato. Ironicamente o título demonstraria ser uma descrição dos próximos anos da sua vida.

Por volta de 1777, Hannah exibiu duas baladas que, juntamente com uma peça intitulada Percy, uma tragédia em cinco atos, estreada pela primeira vez a 10 de Dezembro, lhe asseguraram a fama. Daí em diante, tudo o que escreveu foi um êxito. Percy foi representada vinte e duas noites, o que era espetacular naqueles dias, tendo con­tinuado intermitentemente até 1815. O sucesso desta obra concedeu à dama de Gloucester um nome que ficou gravado na história do teatro inglês, cerca de seiscentas libras e um esgotamento nervoso.

Uma Amiga de Garrick

Hannah More nasceu numa pequena vila, a uns seis quilómetros de Bristol, no ano em que John Newton embarcou no Pegasus. O pai era o diretor da escola Fundação Fishponds. Hannah, aos três anos recebeu seis pences do pastor local por recitar o catecismo; aos quatro, compôs um poema simples e, em lugar de brinquedos, pedia papel para escrever. Em 1758, Hanna juntou-se às suas quatro irmãs para iniciar uma escola interna para meninas, em Bristol.

Bristol era uma cidade de progresso florescente e a Meca dos comerciantes prósperos; era, portanto, um centro da vida social, e a cidade atraía aos seus teatros, clubes e lugares de reuniões, nobreza e títulos sem conta. Muitos deles iam ao internato na rua Park, 43, aumentando assim a reputação da cidade. Cinco senhoras vivazes e decididas que dirigiam um colégio interno para jovens das classes média e alta era um caso que provocava contendas, e só pessoas de forte personalidade se posicionavam a favor. James Ferguson, o astrónomo, e Thomas Sheridan, pai do famoso dramaturgo, eram professores no colégio.

Quando Hannah foi a Londres para ser cortejada pela alta sociedade, tornou-se amiga íntima de David Garrick e sua esposa. David Garrick era o brilhante gerente de um famoso teatro em Drury Lane, era o ator mais célebre da atualidade e um dramaturgo de grandes dotes. Não admira, pois, que fosse um dos homens mais populares da sociedade londrina. Hannah permanecia com frequência na extravagante casa de campo de Garrick, em Hampton. Passeava pelos bem conservados e vastos prados que se estendiam através da estrada até o Tamisa, e desfrutava da novidade do túnel de Garrick, que evitava aquele caminho aborrecedor. Não levou muito tempo para que Hannah se encontrasse a elaborar as suas listas de pessoas da alta sociedade, para as suas próprias festas. Mas sofreu uma desilusão ao esperar encontrar satisfação nelas.

Depois da morte de David Garrick em 1779, Hannah ficou com a sua esposa até a época de ir para Bath, cidade onde as irmãs haviam aberto uma nova escola. Mas Bath crescia rapidamente e era barulhenta, e a reação de Hannah foi construir um encantador chalé em Wrington, a dezesseis quilómetros de Bristol. Foi aqui que começou a ser feliz, escrevendo poemas, tratando do jardim e recebendo um número interminável de visitantes influentes. Na realidade, Hannah teria permanecido na sua casa "Primavera Verde" por mais tempo, se não tivesse tido a infelicidade de ter como vizinho um lavrador desmazelado que, além de negligenciar as suas próprias terras, construía, perto da casa de Hannah, pocilgas que emanavam o cheiro característico que por certo muito embaraçou Hannah, quando o rico Henry Thornton e William Wilberforce a visitaram.

Cardiphonia

Dez anos após o seu sucesso imediato, Hannah More aborreceu-se da rotina fútil da sociedade, e o tempo que passou na "Primavera Verde" deu-lhe oportunidade para pensar. No ano de 1780, chegou-lhe às mãos um exemplar da recém-publicada obra de John Newton, Cardiphonia, que passou a moldar a sua maneira de pensar. Não que Hannah não fosse religiosa; era uma mulher de igreja e assistira, com o Dr. Johnson, ao seu último culto de comunhão; todas as suas peças e poemas mostravam uma propensão para o ensino moral que visava, com sinceridade, reformar os costumes. Mas a sua fé era do estilo tipicamente formal, de acordo com a moda em voga, sem garra ou vida. A correspondência contida em Cardiphonia estimulava o espírito a uma religião do coração e da alma. Ao mesmo tempo, Hannah começava a aproximar-se do "Grupo de Clapham", impressionando-a imensamente o forte zelo evangélico que emanava dele.

A poetisa e dramaturga escreveu ao autor de Cardiphonia, dirigindo-se àquele desconhecido na linguagem familiar de "Meu prezado Sr.". Como resposta, recebeu uma carta que começava por "Minha prezada Sra.", tendo-se desenvolvido a partir daí uma amizade achegada e duradoura, mantida essencialmente através de correspondência, mas também suplementada por uma visita à "Primavera Verde", em 1792. Lá, Newton teve conversas sérias com Hannah More, passeou pelo seu jardim e admirou-o, ganhou a afeição dos criados e, por distração, deixou o cachimbo alojado no tronco de uma groselheira negra. Em 1787, Newton escreveu que compreendia perfeitamente o seu estado de espírito e o anseio que sentia por ter paz: "Eu próprio já passei por tudo isso", assegurou-lhe, estimulando-a a esperar no Senhor: "Para seu encorajamento, está escrito, como que com letras de ouro, sobre a porta da mise­ricórdia divina: 'Pedi e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei, e abrir-se-vos-á'". Hannah More mantinha uma correspondência vasta e tinha um círculo de amigos ainda maior, mas era principalmente em Newton que procurava conselho para a sua alma, e em Wilberforce buscava alguém para compartilhar as suas crescentes opiniões evangélicas. Hannah não podia ter caído em melhores mãos.

Em 1789, Wilberforce visitou a "Primavera Verde" e aproveitou para dar uma volta pelo pitoresco cenário de Cheddar, uma aldeia de aspecto agradável, situada à base da cordilheira de Mendip. De volta ao chalé, em Wrington, Wilberforce comentou: "Muito bonito, mas a pobreza e o sofrimento das pessoas são terríveis". Era verdade. Os habitantes eram uma multidão selvagem e desenfreada; alguns deles viviam em buracos e vendiam raízes e estalactites aos turistas, para ganhar a vida. A cena de pobreza e de ignorância juntamente com os males que daí advinham, multiplicava-se por todo o lado, pelo que Wilberforce planejou a abertura de uma escola dominical em Cheddar. Foi com Hannah que decidiu o assunto: "Se tu te deres ao trabalho, as despesas ficam por minha conta". A obra subsequente custou a Wilberforce e a Thornton quatrocentas libras por ano.

As Escolas Dominicias de Cheddar e a Importância dos Hábitos

Era difícil convencer os lavradores bárbaros acerca dos be­nefícios que a educação traria aos pobres, e ainda mais difícil era conseguir que os filhos dos trabalhadores continuassem a ir à escola. Mas Hannah, mesmo tendo de percorrer os caminhos enlameados das fazendas, não desencorajava e, com tato e diplomacia por um lado e um pequeno suborno por outro (uma moeda a cada criança que frequentasse a escola com regularidade e um pão de gengibre de vez em quando) alcançou a vitória. A partir disso, depois se construiu uma escola industrial, onde se podia ensinar as moças a fiar, tecer, tricotar e todas as artes domésticas tão abandonadas naquelas localidades tremendamente pobres. Lia-se um sermão dominical (não havendo pregação improvisada, porque se temiam as rixas por causa do "entusiasmo metodista"). Formaram-se associações de mulheres e davam-se roupas como forma de ajuda.

Em quarenta aldeias de Somerset, Hannah corrigiu o erro de se dar aos pobres pão de peso abaixo do normal. Escreveu O Livro do Chalé, que continha conselhos sadios para ajudar os pobres a tirar melhor proveito daquilo que possuíam, incentivando os homens a plantar com sabedoria e as mulheres a comprar com prudência. Ao fim de dez anos, eram dezesseis as aldeias que possuíam a sua própria escola e professor. Hannah escreveu uma série de folhetos, contando histórias divertidas, fáceis de ler, intimamente ligadas às experiências dos trabalhadores e cheias de aplicações morais, espirituais e políticas. Era o tempo da Revolução Francesa, e o cheiro da pólvora e o golpe da guilhotina, tão perto da costa inglesa, constituíam panoramas de­sagradáveis.

Este trabalho prático de Hannah foi o resultado direto de uma transformação radical na sua maneira de pensar, a qual foi muitíssimo influenciada pela leitura de Cardiphonia e pela correspondência pessoal de John Newton. A opinião de Hannah quanto a escrever para o palco modificou-se. Ela confessou a Newton o que pensava disso anteriormente: "Fui levada a abrigar em mim o que agora sei ter sido uma esperança ilusória, isto é, que o palco, sob certas regras, podia converter-se numa escola de virtude". Mais tarde, ela escreveu: "Os frutos do Espírito e os frutos do palco, se traçássemos um paralelo, exibiriam um dos maiores contrastes já concebidos pela imaginação humana". A sra. More (naqueles dias a maioria das mulheres solteiras, em atingindo a meia-idade, passava a usar, como cortesia, o título de "Senhora") passava o tempo, e em especial os domingos, de maneira mais cuidadosa; na sua leitura incluía "os escritores mais espirituais", entre os quais se encontravam Baxter e, como não podia deixar de ser, Doddridge. Em 1788, Hannah estava apta a desmascarar, mais claramente do que qualquer uma das suas peças ou poemas o tinha feito, a vida frívola dos ricos. Publicou Considerações sobre a Importância dos Hábitos da Alta Sociedade para com a Sociedade em Geral, onde denunciou habilmente aqueles que admitiam a verdade do cristianismo, mas cujos interesses se limitavam aos bens deste mundo. Hannah condenou o hábito de se ocupar as cabeleireiras no dia do Senhor. Quando Newton leu isto, não pôde deixar de sorrir ao lembrar-se do velho William Wilson, o barbeiro de Olney, que, depois de se tornar batista, recusou pentear o cabelo de Lady Austen depois de sábado à noite, forçando-a assim a ficar sentada toda a noite para evitar despentear-se! Mas Hannah atacava todos aqueles artifícios que revelavam a hipocrisia da sociedade, tal como mandar um criado à porta com um "Não está em casa, senhor", para despedir uma visita indesejada. Ela, que atraíra milhares de pessoas às suas peças, condenava agora os teatros e os concertos ao domingo. No entanto, a sua linguagem era tão se­rena e meiga, que até os seus antigos amigos, que sabiam que o ataque era bem dirigido, não se ofendiam.

A atitude de Hannah para com a caridade tinha mudado. Condenava agora a opinião de que a "benevolência era um substituto do cristianismo", em vez de uma evidência dele. "Reduzir toda a religião à benevolência e toda a benevolência à dádiva de esmolas parece ser um dos erros que reinam entre algumas pessoas", concluiu. O livro foi recomendado calorosamente, tendo o próprio Bispo de Londres afirmado ser um livro que devia estar na biblioteca de toda a dama distinta e que, se não influenciasse o seu coração e os seus costumes, a culpa seria dela mesma.

Por volta de 1811, o conteúdo dos livros de Hannah era de uma natureza mais diretamente evangélica, com títulos tais como, O Espírito de Oração e Piedade Prática ou A Influência da Religião do Coração na Conduta da Vida.

Quatro das irmãs de Hannah morreram com intervalos de seis anos uma da outra, tendo a primeira morrido em 1813. A idade e a doença impediam Hannah de se dedicar tanto ao seu vigoroso trabalho de outrora. Vivia numa casa grande em Barley Hood e viveu quatorze anos a mais do que a última irmã, vindo a morrer em 1833, com a idade de oitenta e nove anos. O bem que Hannah More realizou através das suas escolas dominicais, folhetos e livros é incalculável. Em tudo isso, não há o perigo de se superestimar a influência da discreta correspondência de John Newton e de sua amizade com Hannah. No entanto, cem anos após a estreia da peça de teatro que a tornou famosa, Hannah More permanecia praticamente esquecida.

11. A Espera da Partida para o Senhor

Em Outubro de 1788, precisamente dois anos depois de estar residindo em sua nova casa, à rua Coleman, um local arejado e ameno, a sete minutos da igreja, Mary visitou em segredo um homem em Londres, considerado um cirurgião eminente e que era amigo de sua família. No dia seguinte, sentados na sala de jantar, antes do pastor retomar os seus deveres e enquanto conversavam, Mary falou com serenidade acerca de sua visita e do conselho do cirurgião. Quando viviam em Liverpool, Mary recebera uma pancada forte no peito, da qual se originou uma pequena protuberância que ambos depressa esqueceram. Todavia, a protuberância desenvolveu-se, e, quando Mary foi ao cirurgião este diagnosticou um tumor de tamanho razoável. A cirurgia não era possível; tudo o que o cirurgião lhe podia recomendar era uma vida calma e repouso. Ora, uma vida calma e repouso não só era virtualmente impossível no atarefado lar de Newton, mas, além disso, durante o inverno duro daquele ano Betsy adoeceu gravemente, e John e Mary tiveram muito trabalho ao tratar dela.

Quando chegou a primavera de 1789, raras eram as vezes que a sra. Newton não sentia dores, e o uso de láudano, coisa que ela detestava, apenas lhe aliviava ligeiramente o sofrimento. Mary mal conseguia estar deitada durante uma hora à noite e, quando se mexia e se virava, o coração de John lacerava-se com pesar. Orou-se muito ao Senhor por Mary, e, no verão, ela conseguiu visitar Southampton com John e ir à igreja uma ou duas vezes. Mas, ao final do ano tinha perdido o apetite, e só o ver ou cheirar carne era insuportável para ela. Manteve uma preferência pelos pássaros pequenos, que, na época, eram uma comida delicada, tendo John admitido mais tarde: "Naquela época, eu dava mais valor a uma dúzia de cotovias que ao boi mais excelente de Smithfield".

John ia várias vezes por dia ao quarto de Mary para conversar com ela, naqueles intervalos em que não tinha de atender visitas nem ir à casa de ninguém. Os olhos, que haviam contemplado tanta miséria humana, durante os últimos sessenta e quatro anos, enchiam-se de lágrimas, mas um sorriso alegre e uma palavra de conforto da esposa bastavam para lhe tranquilizar a mente; e, quando Sally entrava para anunciar outra visita, John já estava em condições de voltar ao escritório, para falar das coisas de Deus com veemência. Mary ficava assentada na cama e continuava a ler os hinos do Dr. Watts, de William Cowper e, claro, de John Newton também.

Outubro de 1790 foi o pior tempo de todos. Durante duas semanas, a depressão e o desespero em que caiu transformaram-na numa pessoa diferente. Temia a morte e não permitia que se falasse nela; perdeu toda a esperança de estar salva e não achava consolo na Palavra de Deus; até para o marido, ela falava com indiferença. O coração de John estava a ponto de estourar, mas sabiamente atribuía à doença a causa daquele estado. Felizmente não passou de uma tempestade passageira, havendo Mary depressa se acalmado, sentindo-se uma vez mais em paz e alegre na presença do marido.

A coluna vertebral não resistiu e Mary já não conseguia mexer-se. Permanecia na cama, falava carinhosamente com John e apertava-lhe a mão nas suas, sendo estas a única parte do corpo que podia movimentar sem dor. John Thornton morreu um mês antes de Mary, o que foi mais uma tristeza para os dois.

No domingo, 12 de Dezembro, quando John se preparava para ir para a igreja, Mary chamou-o para lhe dizer adeus. John orou, ambos choraram e ele foi para o púlpito. Quando John regressou, Mary continuava viva e consciente, e, pelo mexer da mão, podia assegurar-lhe que o seu espírito tinha paz. Na quarta-feira, às sete horas da noite, Sally foi pedir ao Sr. Newton que se dirigisse ao quarto. Com um castiçal na mão, John tomou seu lugar junto à cama e ficou alerta durante três horas. A fraca luz projetava a sua figura na parede oposta do quarto, transformando-o num gigante. Era realmente um gigante; um homem devotado ao serviço de Deus, que agora entregava seu último e mais querido ídolo ao seu Senhor. Mary morreu a 15 de Dezembro de 1790, pouco antes das dez da noite. John reuniu os empregados à volta da cama e derramou seu coração em agradecimento a Deus.

"OMundo Parecia Acabar"

John confessou posteriormente que, quando Mary morreu, "o mundo parecia ter morrido com ela". Três dias após o acontecimento, escreveu ao seu velho amigo Bull: "Sinto-me fortalecido, consolado e satisfeito. Na verdade o Senhor é bom!... Confio em que nos encontraremos em breve para nunca mais nos separarmos". Este desejo não se cumpriu, visto que John viveria ainda mais dezessete anos. Apenas lamentava uma coisa acerca de sua longa e feliz união: ter feito de Mary o seu ídolo. Mesmo mais tarde, continuava a sentir que tinha havido no seu amor muito do bezerro de ouro.

Havia chegado a hora de pôr em prática as suas palavras. Não dissera várias vezes à congregação que a provação, quando corretamente aproveitada, era "uma honra" para o cristão? Havia olhos que estavam postos nele. Iria ele pôr em prática o que ensinara aos outros? Ofertas de ajuda chegaram de todas as partes, e John não teria tido dificuldade em ser substituído no púlpito, no domingo seguinte. Porém, não as aceitou, e, no domingo, a congregação da igreja de St. Mary Woolnoth viu o seu pastor subir os degraus do púlpito e anunciar o seu texto em Habacuque 3.17-18: "Ainda que a figueira não floresce, nem há fruto na vide; o produto da oliveira mente, e os campos não produzem mantimento; as ovelhas foram arrebatadas do aprisco, e nos currais não há gado, todavia eu me alegro no Senhor, exulto no Deus da minha salvação".

Esta era uma passagem que ele nunca escolhera como texto, nos vinte e seis anos que vivera como ministro do Evangelho; guardara-a durante muito tempo para esta ocasião, caso viesse a viver mais do que Mary. A congregação levantou-se para cantar o hino mais recente de Newton, o qual se baseava neste mesmo texto. Newton expressava nele o que agora sabia por experiência:

Alegrias domésticas, quão raras são!

Por poucos possuídas e conhecidas!

E os que as conhecem, acham que são

Também frágeis e passageiras.

Mas tu, que amas a voz do Salvador,

E em seu nome também descansas,

Ele é o mesmo Senhor,

Portanto, podes te alegrar em meio a mudanças!

 

Era um hino com apenas oito versos. O poema que John escreveu para Mary, no vigésimo quinto aniversário deles, continha vinte e um versos; mas, um ano depois que ela morreu, Newton assinalou a ocasião com um poema de trinta e oito versos! John resignou-se com a vontade de Deus, porém nunca com a ausência de Mary; podia vê-la por toda a casa. Ao contrário de Cowper, que manteve um silêncio absoluto quanto ao nome de Mary Unwin, depois desta ter morrido, John nunca se cansava de fazer referências a Mary Newton e à graça do Senhor, que o susteve durante aqueles terríveis meses em que ela esteve doente.

A Sociedade Eclêticca

No ano da morte de Mary, John recebeu um doutorado honorário da Universidade de New Jersey, na América. Devolveu-o com a seguinte observação cortês: "Sinto-me como uma pessoa nascida fora de seu tempo. Não tenho a pretensão nem o desejo de honras desta espécie. Ainda que a universidade superestime os meus feitos, mostrando assim a sua consideração, não devo esquecer-me de quem sou; seria vão e impróprio, se eu o aceitasse". John Newton nunca se esqueceu de que, enquanto a maioria dos jovens do seu tempo estudava para tirar os seus diplomas, ele não passava de um escravo degradado que traçara geometria na areia dos bananais da África Ocidental. Da Escócia chegaram algumas cartas que não lhe agradaram, em função das quais escreveu ao sr. Campbell, um velho amigo seu: "Fui ferido por duas ou três cartas que vinham dirigidas ao Dr. Newton". Instou com o amigo para que tratasse do assunto, sem demora, com os seus amigos escoceses, referindo-se nestes termos: "Não conheço essa pessoa, nunca, nunca a conhecerei, pela graça de Deus".

Mas se John Newton não desejava as promoções do mundo, certamente estava interessado em ser um competente ministro do evangelho e em encorajar os colegas ministros a sê-lo também. Enquanto vivera em Olney, frequentemente se reunira com homens evangélicos, quer dissidentes, quer pertencessem à igreja oficial e, tão logo chegou a Londres, procurou reunir um grupo semelhante.

A Sociedade Eclética começou em 1783, com um pequeno grupo de evangélicos apoiados por John Newton. Thomas Scott, que havia se mudado, naquele ano, para ser o capelão do Hospital Lock, foi um dos primeiros membros. Apesar do nome da sociedade, um tanto erudito, atinham-se meramente à prática de partilhar critérios sobre um tema escolhido, podendo desta forma se ajudarem mutuamente a formar uma opinião equilibrada. Em 1791, considerou-se apropriado redigir algumas regras. John pegou em seu pequeno caderno de anotações e escreveu no verso da capa dura um sumário das regras definidas em 26 de maio. Passariam a reunir-se às segundas-feiras na capela de St. John, situada na rua Bedford, pastoreada pelo Pr. Richard Cecil, e contribuiriam com um xelim, presumivelmente para cobrir o gasto com o chá, que se servia às quatro e meia. A presidência era alternada e com a "Bíblia sobre a mesa", coisa que John teve o cuidado de anotar, começava-se a reunião. O número de membros estava limitado a treze, e ninguém que vivesse a mais de oito quilómetros de Londres era admitido.

John conservou também um registro de alguns dos temas tratados, com notas ocasionais sobre os pontos de vista apresentados. As discussões eram longas e práticas: "Quais os perigos peculiares à juventude hoje em dia?" ou, mais apropriadamente para John: "Como fazer a velhice confortável e honrosa"; este último foi debatido a 31 de janeiro de 1791, quando John se sentia velho e sozinho, sem Mary. Noutra ocasião trataram do tema: "Como tirar maior proveito da visita aos enfermos?" Mas, noutra ocasião, o assunto já era mais doutrinário: "O que é o cristianismo com ou sem a doutrina da divindade de Cristo?"; "Como conciliar Paulo com Tiago no que concerne à justificação", e "Quem são os pregadores da Graça gratuita, e quem são os seus falsificadores?". Em Dezembro de 1795, trataram daquele velho problema que aborrecera a John no princípio de sua vida em Londres: "Qual a melhor maneira de se começar uma conversa sobre religião quando se está em grupo?" John anotou três palavras sob o título: "ser cortês, gradual". A 9 de Abril de 1792, o título tratado foi simplesmente "Acerca do comércio de escravos".

John considerou a Sociedade Eclética uma de suas reuniões mais importantes. Nunca faltava, a menos que fosse inevitável, e uma vez sentiu a necessidade de explicar a Mary que fora por causa do próprio bem dela, e não por causa da reunião da sociedade, que retardara a partida até terça-feira, para se encontrar com ela em Southampton. Mary estava acima da própria Sociedade Eclética.

Apesar de toda a sua comunhão com os dissidentes, John Newton era firme e convicto, embora não cego às faltas de sua igreja, nem às do Livro de Orações. Não aceitava nem usava certas frases no culto de batismos, e rejeitava em particular a declaração: "Esta criança está regenerada"; a regeneração significava muito mais para John Newton, do que apenas a aspersão com água. Rejeitava também a opinião de que os que morriam na infância só se salvariam se estivessem batizados: "Não posso pensar que a salvação de uma alma dependa, por exemplo, de um negligente e ébrio ministro do evangelho, que nunca pode ser encontrado, quando se precisa dele, para batizar uma criança moribunda". Pouco depois de chegar em Olney, Newton teve de fazer o enterro de um membro de sua igreja. Após, ele escreveu em seu diário: "Ousei omitir uma cláusula numa das orações, o que tenciono fazer sempre, em tais casos, daqui em diante". Sem dúvida, a pobre senhora não dera sinais de uma fé salvadora, e John era demasiado honesto para recitar servilmente a esperança de que "quando partirmos desta vida, podemos descansar nEle, como cremos que aconteceu a esta nossa irmã". Isto atraiu sobre ele muitas acusações, tanto de amigos como de inimigos. Mas John não desanimava. Quando as pessoas são contraditadas pelas Escrituras, pela experiência e pela observação, não importa quem sejam elas, declarou John, "pouca atenção presto aos seus juízos".

Betsy em Bedlam

Com a morte da sobrinha Eliza e de sua esposa Mary, John voltou-se naturalmente para Betsy Catlett como sua companhia. Com a idade de trinta anos, ela procurou arduamente preencher algumas das lacunas deixadas pela perda de Mary. Ficava carinhosamente atenta às necessidades de John, passeava com ele, quando ele fazia algum exercício; e, quando a vista de John começou a faltar também lia para ele em voz alta. Betsy trouxera alegria à casa, e John sentiu-se sempre grato por isso.

A morte de Eliza enchera Betsy Catlett de um mórbido medo de morrer. John aconselhou-a e, em grande medida, os seus temores desapareceram durante alguns anos. Em 1801, quando esperava casar-se com o dono de uma ótica perto de Royal Exchange e também membro da igreja de St. Mary, a sua saúde decaiu. Foi acometida de um desequilíbrio nervoso tão grave que John comentou, com tristeza, que ela passara dois meses na tenebrosa masmorra do Gigante Desespero. A pobre Betsy caiu numa tão deplorável condição mental que eventualmente teve de ser internada no Hospital Bethlehem. John fora muitas vezes a este lugar, não para passeio em uma tarde de domingo, como Cowper fazia quando jovem, mas para pregar aos internos; o pastor da rua Lombard também visitara as prisões de Londres pela mesma razão.

Já em 1775, durante uma visita a Londres, Newton foi pregar em Bridwell, prisão em que no princípio do século o público ia ver as mulheres serem açoitadas, e descreveu aquela sua congregação como uma de "arrombadores de casas, salteadores, batedores de carteiras e pobres mulheres desgraçadas, tais como as que infestam as ruas da cidade, mergulhadas no pecado, e que perderam a vergonha". Naquele dia de setembro, Newton tinha escrito a Sally, sua empregada, sobre os que ouviram a mensagem com atenção, os quais eram cerca de uma centena. Tinha-lhes contado a história de sua própria vida e pregado sobre 1 Timóteo 1.15: "Cristo Jesus veio ao mundo, para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal". Confessou ter havido muitas lágrimas, incluindo as suas. Mas aquela não fora a sua última visita a tais lugares. Quando fixou residência em Londres, sempre que possível ia pregar aos pacientes, nos hospitais, e aos encarcerados, nas prisões. Certa vez, escreveu que se alegrava por estar "fora do inferno, fora de Bedlam e fora de Newgate". Dos que iam para Bedlam, poucos regressavam; se não estivessem doidos, quando iam para lá, depressa o ficavam. Ali perdia-se toda a esperança.

Mas John Newton não perdeu a sua. Todos os dias ia com um criado até o fim da rua Coleman, onde depois viravam à direita na Muralha de Londres. Ali, John acenava e ficava atento à janela de Betsy, até ver aparecer um lenço branco que, em resposta, se agitava de um lado para o outro. Quer chovesse, quer fizesse sol, nunca voltava para casa sem ter visto aquele sinal. Newton era um homem de disciplina rígida; uma disciplina que aprendera no mar.

No decurso de um ano, Betsy melhorara de maneira notável e passava o tempo cuidando dos pacientes, da melhor maneira possível. Para grande alegria do tio, pôde regressar a casa, vindo a casar-se, em 1805, com o sr. Smith, o dono da ótica. O casal foi morar no número seis da rua Coleman, de onde Betsy pôde continuar a atender às necessidades de Newton, durante os últimos anos de sua vida. "Paz no coração, paz em casa e paz na igreja", foi como John descreveu aqueles últimos anos.

"Cartas a uma Esposa "

John e Betsy visitavam Southampton todos os anos, onde os únicos a oferecer-lhe o púlpito eram os dissidentes. Também percorria os condados, pregando e ensinando. Em 1793, John publicou Cartas a uma Esposa. Alguns dos seus amigos acharam indecoroso que ele revelasse, para que todos lessem, a correspondência íntima enviada a Mary, durante as suas longas viagens por mar e durante os períodos em que estiveram ausentes um do outro. Mas Newton não estava arrependido e supunha que tal revelação seria apreciada por muitos; nisso ele estava certo.

Os seus colegas e, em particular, os jovens que estavam iniciando no ministério tinham um lugar muito especial no coração do velho pastor. Visto que a pobreza e a fome não lhe eram estranhas, enviava com frequência donativos a homens que lhe eram mencionados, e um pastor evangélico pobre, de Devon, que nunca conheceu Newton, recebeu muitos sinais de encorajamento provenientes do ministro de Londres. Quando Newton escreveu a biografia do sr. Grimshaw, um pregador cheio de poder, de Haworth, foi que este achou apropriado doar o total do dinheiro apurado à Sociedade para Auxílio aos Pastores Pobres e Piedosos. Esta sociedade começou em 1788, com o entusiástico apoio de Newton, e ainda continua a ser importante. O amor que em Londres dedicava aos seus empregados domésticos era o mesmo que lhes dedicara em Olney; os servos envelheceram com o seu senhor. Por volta de 1793, reconheceu que um empregado novo podia ter feito o trabalho dos seus três, porque "Phoebe está definhando depressa, e penso que não durará muito; Crabb está muito asmático. Sally está mais ou menos". Phoebe definhou mais depressa do que Newton esperava, pois morreu no dia seguinte, após dezesseis anos de serviço. Era analfabeta e de origem simples, mas encontrara um lugar carinhoso no coração e no lar de Newton.

A 30 de março de 1800, Newton pregou perante o Prefeito de Londres e autoridades locais sobre o amor de Cristo. John não foi lisonjeado por ninguém e expôs o evangelho com clareza. As suas amizades haviam-se ampliado, tendo o próprio Dr. Johnson, que morreu em 1784, se tornado um dos seus amigos íntimos; o escultor, John Bacon, era há muito tempo um fiel amigo crente, e Newton começou a corresponder-se com William Carey, o missionário batista na índia.

O Velho Blasfemador Africano

Aos setenta e seis anos, continuava a pregar tão alto, tão prolongado e tantas vezes como antes; e mais, continuava a ser ouvido com aceitação. Aos oitenta, só conseguia pregar uma vez por mês, mas, como sempre, continuava a mostrar pontualidade nas horas e clareza nos assuntos. Por esse tempo Newton enxergava pouco, não podia conversar muito, e a memória começava a falhar-lhe. Mas continuava a pregar. Às vezes desviava-se do assunto, hesitava e tinha de ser lembrado em que ponto do sermão ficara; porém, a congregação não diminuía. Certa ocasião, desculpou-se por não ter reconhecido imediatamente determinado visitante. "Estou muito débil", desculpou-se, "nunca tinha passado pela experiência de ter setenta e nove anos".

Newton teve muitos ajudadores capazes durante o tempo em que esteve na igreja de St. Mary, e podia facilmente ter entregado a sua responsabilidade a um deles. Certo dia, o seu amigo, Richard Cecil, sugeriu-lhe que devia dar a sua obra por terminada "e parar, antes de você descobrir que já não consegue mais falar". O idoso homem respondeu, elevando a voz, como se estivesse dando uma ordem que tivesse de ser ouvida por entre o bramido do mar tempestuoso: "Não posso parar. O quê? o velho blasfemador africano parar, enquanto ainda pode falar?" Newton pregou seu último sermão em outubro de 1806, para ajudar um fundo destinado às viúvas e órfãos de Trafalgar. A ocasião não podia ter sido mais apropriada para o velho capitão do mar.

John não temia a velhice nem a morte. A alguém que perguntou por sua saúde, ele escreveu que, pela graça divina, estava per­feitamente bem, embora trabalhando sob um transtorno crescente, para o qual não havia cura, "isto é, a velhice". Mas sentia-se contente com esta condição: "Pois, quem quereria viver para sempre num mundo como este?" Newton sofria depressões ocasionais, mas repudiava-as como parte dos sintomas da velhice. Para aumentar a sua tristeza, ao final do século, os velhos amigos começaram a "cair como folhas no outono". A morte não poupa ninguém.

Newton deleitava-se em aconselhar os jovens que entravam no ministério, e eles afluíam ao seu gabinete. Um dos últimos a receber conselho espiritual dos lábios do velho blasfemador africano foi um jovem que estava prestes a empreender uma viagem missionária à índia, terra de onde nunca mais regressaria. Henry Martin tinha vinte e quatro anos e dentro de poucos meses partiria da Inglaterra. Este jovem graduado de Cambridge, brilhante mas frágil, viria a falar oito línguas diferentes, traduziria o Novo Testamento e os Salmos para o idioma persa e muitas porções bíblicas para o árabe antes de morrer prematuramente, só e sem amigos, nos ermos da remota Turquia, sete anos mais tarde.

Na primavera de 1805, Henry Martin tomou o café da manhã com o venerável Newton, que transmitiu a este jovem missionário muito conforto e muita coragem. Newton, ao relembrar a Henry o duro trabalho que o aguardava no serviço de Deus, falou-lhe acerca de um habilidoso jardineiro que dizia conseguir semear as sementes, enquanto assava a carne e preparava a salada para a refeição. "Mas", disse o idoso homem, "o Senhor não semeia carvalhos desta maneira". Quando Henry Martin sugeriu que talvez não vivesse para ver o fruto do trabalho que se propunha a fazer, Newton respondeu-lhe que o missionário teria como que uma visão do fruto de seu trabalho, o que ainda seria melhor. Martin falou-lhe da oposição que esperava encontrar e recebeu do velho pastor a resposta de que não devia esperar que Satanás gostasse dele por causa da obra que estava prestes a começar. Martin concluiu com as seguintes palavras: "No final, o idoso homem orou com uma doce simplicidade".

Certa vez, o "idoso homem" fez uma apreciação do seu objetivo de vida, usando as seguintes palavras: "Parece que vejo neste mundo dois montes, um de felicidade humana e outro de miséria humana: ora, se puder tirar nem que seja um pouquinho de um dos montes e acrescentar um pouquinho ao outro, conseguirei o que quero". A 21 de Março de 1805, John escreveu pela última vez em seu diário. Os olhos doíam-lhe enquanto a mão trémula fazia deslizar a pena incertamente pela página. No entanto, a violência daquela tempestade no Atlântico, cinquenta e sete anos atrás, continuava viva em sua memória. Lembrava-se, como infalivelmente o fizera durante todos aqueles anos, do dia em que a luz do céu penetrou em sua alma. O idoso homem escreveu o seu registro final: "Já não consigo escrever bem; mas esforço-me por observar a dádiva deste dia com humildade, oração e louvor".

Espera da Partida "

0 século XVIII vivia preocupado com a morte; por isso, os relatos das cenas e das conversas nos leitos de morte constituíam a principal leitura do dia. Sempre que John Newton ouvia perguntar quais tinham sido as últimas palavras de um crente ilustre, ele respondia: "Não me interessa como a pessoa morreu, mas sim como viveu". Isso é o que importava para ele.

Em Janeiro de 1807, John Newton, cujas pernas resistentes haviam pisado os convés de pesados barcos, já não podia andar. No mês seguinte, ficou confinado ao quarto, mas, com Betsy e o marido ao seu redor, lendo para ele, achava grande conforto na Palavra de Deus. No meio do ano, John não era capaz sequer de reconhecer imediatamente as vozes dos seus amigos mais íntimos, e as costas, que em certa ocasião, por causa de Mary, foram dilaceradas pelo chicote, encontravam-se agora encurvadas e frágeis.

Falava pouco, mas, quando o fazia era de maneira animada e tranquilizadora. "Sou", disse comum sorriso franzido, "como uma pessoa que vai viajar numa diligência de correio, que espera a sua chegada a toda hora, olhando pela janela com insistência para ver se a vê chegar". Noutra ocasião, disse estar "empacotado e selado, à espera da hora da partida da diligência".

As flores primaveris floriram e morreram, e o verão passou com rapidez pela janela do quarto. As visitas, controladas por Betsy quanto ao tempo e ao número, iam e vinham, cumprimentando-se umas às outras e comentando sobre o estado do idoso homem em tons desnecessariamente baixos. Em agosto, pode-se ver nas ruas de Londres o prodígio da iluminação a gás; as ruas Beech e Whitecross foram iluminadas, e as multidões se juntavam para fitar as luzes potentes e brilhantes. Entretanto, enquanto a luz da vida de Newton se aproximava do fim e ele aguardava o último momento, o fatigado ancião exclamou para os amigos: "Mais luz, mais amor, mais liberdade. Doravante, espero que, ao fechar os olhos para as coisas aqui da terra, eu os abrirei num mundo melhor". Ele, que conduzira o seu barco por muitas águas sem sequer uma carta de navegação e fora, muitas vezes, violentamente sacudido por tempestades e vendavais, acrescentou: "Que maravilha é habitar à sombra das asas do Todo-Poderoso". John Newton mostrou-se inabalável na fé e satisfeito com a vontade do Senhor. As folhas caíam das árvores e formavam um tapete, desde a rua Coleman à rua Lombard, mas já não havia pastor para percorrer aqueles sete minutos até o seu púlpito. Em dezembro, segredou a um amigo: "A minha memória quase se foi; mas lembro-me de duas coisas: sou um grande pecador, e Cristo é um grande Salvador". Na noite de segunda-feira, 21 de dezembro de 1807, John Newton morreu com a idade de oitenta e dois anos. John foi sepultado em St. Mary Woolnoth, junto a Mary e Eliza. Porém, em 1893, os seus restos mortais, juntamente com os de Mary, foram trasladados para o cemitério de Olney, onde se encontram agora, num lugar marcado por um impressionante monumento de granito. Uma janela, na capela memorial de S. Pedro e S. Paulo, em Olney, retrata Newton com dois escravos aos seus pés, um em grilhões e o outro livre. Ele mesmo compôs o seu epitáfio, pedindo que isto, e nada mais que isto, fosse esculpido na lápide de mármore liso; não deveria haver qualquer outro monumento:

John Newton

Pastor, outrora um infiel e um libertino, servo de escravos na África, foi, pela rica misericórdia de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, preservado, restaurado, perdoado, e chamado para pregar a fé que durante muito tempo procurou destruir.

Serviu cerca de 16 anos como pastor de Olney, em Bucks, e 28 como pastor destas igrejas unidas.

A 1o de Fevereiro de 1750 desposou Mary, filha do falecido George Catlett, de Chatham, Kent, a quem entregou ao Senhor que a deu, em Dezembro de 1790.

No ano em que os lampiões se apagavam em algumas das ruas de Londres e o brilho do gás começava a espalhar-se lentamente pela cidade, John Newton morreu — uma pequena e trémula luz se extinguiu. Porém, a chama do seu ministério no púlpito, o seu exemplo, a sua correspondência e os seus hinos nunca cessaram de iluminar o povo de Deus, ainda que já tenham passado mais de duzentos e cinquenta anos após o seu nascimento.

Datas significativas na vida de John Newton

Nascimento

24 de Julho de 1725

Recrutado para o H.M.S. Harwich

25 de Fevereiro de 1744

Uma tempestade violenta leva-o à

10   de Março de 1748

sua primeira oração

21 de Março de 1748

Conversão de Newton

1 de Fevereiro de 1750

Casamento com Mary Catlett

11   de Agosto de 1750

Primeiro comando como capitão do Duque de Argyle

19 de Agosto de 1755

Inspetor de Alfândega em Liverpool

14 de Setembro de 1755

Almoço com Whitefield

29 de Abril de 1764

Ordenado como diácono

27 de Maio de 1764

Primeiro sermão como pastor, em Olney

14   de Agosto de 1767

Primeira estadia de Cowper na casa pastoral

12   de Agosto de 1773

Segunda estadia de Cowper na casa pastoral

19 de Dezembro de 1779

Primeiro sermão como pastor de St. Mary Woolnoth

7 de Dezembro de 1785

A primeira vez que aconselhou Wilberforce

15   de Dezembro de 1790

 

Morte de Mary

21 de março de 1805

Último registro em seu diário Morte

21 de dezembro de 1807