A CONVERSÃO VERDADEIRA E A FALSA

(True and False Conversion)

Por: Rev. Charles G. Finney

TEXTO --"Mas todos vós que acendeis fogo, e vos cingis com tições acessos, ide, andai entre as chamas do vosso fogo, e entre os tições que acendestes. Isto é que recebereis da minha mão: Em tormentos jazereis."-- Isaías 50:11

 É evidente pelo contexto destas palavras no capítulo, que o profeta se dirige àqueles que professam ser religiosos, que se dizem que estão salvos, mas que, na realidade, sua esperança era um fogo que eles mesmos tinham acendido, e as faíscas, criadas por este fogo. Antes de seguir adiante na discussão do tema, desejaria dizer que, como já me foi dada notícia de que minha intenção era discutir a natureza da conversão verdadeira e da falsa, não servirá de nada o escutá-lo, excepto para aqueles que sejam sinceros e o apliquem a si mesmos. Se você espera vi a beneficiar da mensagem, tem que resolver aplicá-lo fielmente, de modo tão sincero como se pensasse que estivesse no juízo solene. Se o fizer, pode esperar que o conduza a descobrir o seu verdadeiro estado, e se estiver enganado, dirigir-se ao verdadeiro caminho da salvação. Se você não quer faze-lo, estarei pregando em vão, e você ouvirá em vão.

Espero mostrar a diferença entre a conversão verdadeira e a falsa, a apresentarei o tema na seguinte ordem:

 I. Mostrar que o estado natural do homem é o de puro egoísmo.

II. Mostrar que o carácter do convertido é o de benevolência.

III. Que o novo nascimento consiste numa mudança do egoísmo para a benevolência.

IV. Contestar algumas objecções que podem resistir o ponto de vista que tomo e terminar com alguns comentários.

 I. Vou mostrar que o estado natural do homem, ou o estado em que se encontra o homem antes da conversão, é egoísmo puro e sem mistura. Com isso quero dizer que não conhece a benevolência do Evangelho. O egoísmo é considerar a felicidade própria como objectivo supremo, e buscar o bem próprio pelo fato de ser seu. O que é egoísta coloca sua própria felicidade e busca seu próprio bem porque é seu. De modo egoísta coloca sua própria felicidade por cima de outros interesses de maior valor; tais como a glória de Deus e o bem do universo. É evidente que a humanidade se encontra neste estado e digo isto por muitas considerações.

Todo o mundo sabe que os outros são todos egoístas. Todos os tratos da humanidade são conduzidos sobre este princípio. Se o homem o perde de vista e empreende tratos com a humanidade como se não fossem egoístas, senão desinteressados, os demais pensarão que aquele homem está louco.

II. No estado do convertido, o carácter predominante é o de benevolência.

Um indivíduo convertido é benevolente, e não egoísta, no essencial. Benevolente é uma palavra composta que propriamente significa desejar o bem, ou seja, escolher a felicidade suprema dos outros. Este é o estado e Deus. Nos é dito que Deus é amor; isto é, que é benevolente. A benevolência compreende todo seu carácter. Todos seus atributos morais são apenas modificações da benevolência. Um indivíduo convertido se assemelha a Deus neste aspecto. Não quero que se entenda que ninguém é convertido a menos que seja pura e perfeitamente benevolente, como Deus é; mas sim que no equilíbrio de sua mente a característica que prevalece é a benevolência. Com sinceridade busca o bem dos outros por amor a eles. E, por benevolência desinteressada não sente interesse no objectivo que persegue, senão que busca a felicidade dos outros por amor a eles e não com olhos a sua reacção a favor de si mesmo, que vai aumentar sua felicidade. Decide fazer bem porque se alegra na felicidade dos outros, e deseja a felicidade deles por ela em si mesma para glória de Deus. Deus é benevolente de modo puro e desinteressado. Ele não faz as criaturas felizes para assim aumentar a sua própria felicidade, senão que as ama por felicidade delas e as busca por amor às mesmas. Não que não se sinta feliz ao fomentar a felicidade das criaturas, mas não o faz para sua própria satisfação. O homem desinteressado sente-se feliz em fazer o bem. De outra maneira o fazer bem em si não teria nenhuma virtude e de outro modo o fazer bem não seria virtuoso em si. Noutras palavras, se não lhe fosse agradável fazer bem e não se alegrasse fazendo-o, não seria uma virtude nele.

A benevolência é a santidade. É o que a lei de Deus requer: Amarás ao Senhor teu Deus com todo teu coração, e com toda tua alma e com toda tua força, e a teu próximo com a ti mesmo. Com a mesma certeza que o convertido rende obediência à lei de Deus, e de modo tão seguro como ele é de Deus, é benevolente. É o rasgo mais saliente de seu carácter, o buscar a felicidade dos outros, e não a sua própria, como seu objectivo supremo.

 III. A verdadeira conversão é uma mudança do estado de supremo egoísmo àquela benevolência.

É uma mudança no objectivo da actividade, não uma mera mudança do meio de alcançar o seu fim. Não é verdade que os convertidos e os não convertidos difiram apenas nos meios que usam, enquanto perseguem o mesmo objectivo. Não é verdade que Gabriel e Satanás estejam tratando de alcançar o mesmo objectivo, os dois procurando sua própria felicidade, ainda que a busquem de modo distinto. Gabriel não obedece a Deus com olhos a incrementar sua própria felicidade. Um homem pode mudar seus meios e contudo apontar a conseguir o mesmo objectivo, sua própria felicidade. É possível que faça bem com os olhos postos num benefício temporário, terreno. Pode não crer na religião, nem na eternidade, e contudo fazer bem porque isto lhe é vantajoso neste mundo. Suponhamos, pois, que seus olhos se abrem, e vê a realidade da eternidade; e então torna-se religioso como meio de conseguir sua felicidade na eternidade. Pode-se ver bem que não há nenhuma virtude benévola nele. É a intenção que dá carácter ao acto, não o meio empregado para realizar a intenção. O convertido verdadeiro e o falso diferem nisto. O verdadeiro convertido escolhe a glória de Deus e o bem de seu reino como objectivo de seus esforços. Este objectivo o escolhe por si, pelo que é, porque o vê como seu maior bem, como um bem maior que sua própria felicidade individual. Não que seja indiferente a sua própria felicidade, senão que prefere a glória de Deus, porque é um bem maior, supremo. Olha à felicidade de cada indivíduo em particular segundo sua verdadeira importância, na medida que lhe é possível avaliá-la, e ele é que escolhe o sumo bem como seu objectivo supremo.

 IV. Agora vou mostrar algumas coisas em que os verdadeiros santos e as pessoas enganadas podem estar de acordo e algumas em desacordo.

1. Podem estar de acordo em levar uma vida estritamente moral.

A diferença está nos seus motivos. O verdadeiro santo leva uma vida moral por amor à santidade; a pessoa enganada, por considerações egoístas. Usa a moralidade como um meio para alcançar um fim, com olhos na sua própria felicidade. O verdadeiro santo tem moralidade como um objectivo singular.

2. Os dois podem orar igualmente, pelo menos quanto à forma.

A diferença está nos motivos. O verdadeiro santo ama a oração; o outro o faz porque espera conseguir algum benefício para si da oração. O verdadeiro santo espera um benefício para si da oração, mas este não é o motivo principal. O outro ora sem ter nenhum outro motivo.

3. Os dois podem ser diligentes na religião.

Um porque pode ter uma grande diligência, porque sua diligência é segundo seu conhecimento, deseja sinceramente e ama fomentar a religião, por amor à mesma. O outro pode mostrar uma diligência idêntica, com olhos de assegurar sua própria salvação e nada mais, ou porque tem medo de ir para o inferno se não faz a obra do Senhor, ou para aquietar sua consciência e não porque ama a religião em si.

4. Os dois podem ser conscientes no cumprimento do dever; o verdadeiro convertido porque quer e ama fazer este dever, o outro porque não se atreve a descuida-lo por mero egoísmo de conveniência.

5. Os dois podem prestar a mesma atenção a praticar a rectidão; o verdadeiro convertido porque ama a rectidão, o outro porque sabe que não pode ser salvo a menos que o faça. É sincero em suas transacções e negócios, porque isto é o único que assegura seu próprio interesse. Verdadeiramente, "já receberam sua recompensa". Conseguem a reputação de serem pessoas sinceras, mas não há motivo superior, e não haverá recompensa de Deus que sobre para eles.

6. Podem estar de acordo em seus desejos em muitos aspectos. Podem estar de acordo em seu desejo de servir a Deus; o verdadeiro convertido porque ama o serviço de Deus, e a pessoa enganada, pela recompensa, como o servo assalariado serve a seu senhor.

Podem estar de acordo em seus desejos de serem úteis, o verdadeiro convertido porque deseja ser útil em si; o enganado porque este é o meio de obter o favor de Deus. Na proporção em que tem sido despertada a importância de ter o favor de Deus será a intensidade de seus desejos em ser útil e prestável.

Em seu desejo pela conversão das almas, o verdadeiro santo porque quer glorificar a Deus; o enganado para ganhar o favor de Deus. Aquilo que o move a isto o mesmo, também o faz dar dinheiro às Sociedades Missionárias ou à Sociedade Bíblica. Motivos egoístas somente, para procurar a felicidade, o aplauso ou obter o favor de Deus.

E quanto a glorificar a Deus, o verdadeiro convertido porque ama ver a Deus glorificado, a pessoa enganada porque sabe que este é o meio de ser salvo. O verdadeiro convertido pôs seu coração na glória de Deus, como seu grande objectivo, e o deseja como um fim, pela glória de Deus. O outro deseja esta glória como um meio para seu grande fim, o benefício próprio.

Com respeito ao arrependimento, o verdadeiro convertido aborrece o pecado por sua natureza odiosa, porque desonra a Deus. O outro, porque sabe que sem o arrependimento vai ser condenado.

E quanto ao crer em Jesus Cristo, o verdadeiro santo o deseja para glorificar a Deus, porque ama a verdade por si só. O outro o faz porque assim pode ter uma esperança maior de chegar ao céu.

Com respeito a obedecer a Deus, o verdadeiro santo o faz para aumentar sua santidade; o que professa falsamente, porque deseja a recompensa da obediência e não a obediência por si só.

7. Podem estar de acordo não só nos desejos, senão também nas resoluções. Podem decidir renunciar ao pecado e obedecer a Deus, procurar o progresso da religião e o reino de Cristo; e fazê-lo com grande energia de propósito, mas movidos por motivos opostamente distintos.

8. Podem estar de acordo também em seus desígnios. Fazem planos para glorificar a Deus, converter aos homens e estender o reino de Cristo; o verdadeiro santo por amor a Deus e a santidade; o outro por sua própria felicidade. Para o primeiro é um fim, para o outro um meio para perseguir o objectivo egoísta.

Podem tentar ser santos; o verdadeiro convertido porque ama a santidade porque a santidade glorifica a Deus, o enganado porque sabe que não pode ser feliz de outra maneira.

9. Eles podem concordar não somente nos seus desejos, decisões e desígnios, mas também em seus afectos para muitas coisas.

Podem os dois amar a Bíblia; o verdadeiro santo, porque é a verdade de Deus, se deleita nela e é um banquete para sua alma; o outro porque crê que lhe favorece e fomenta suas esperanças.

Podem servir os dois a Deus; o primeiro porque vê o carácter de Deus em sua suprema excelência e amor; o outro porque pensa em Deus como um amigo particular, que vai faze-lo feliz para sempre e relaciona a ideia de Deus com seu próprio interesse.

Os dois podem amar a Cristo. O verdadeiro convertido porque ama seu carácter; o enganado, porque lhe salva do inferno e lhe dá a vida eterna, então porque não amá-lo?

Podem os dois amar aos cristãos: o verdadeiro convertido porque lê neles a imagem de Cristo, e o enganado porque pertencem à sua própria denominação, ou porque estão do seu lado, sentindo que têm os mesmos interesses e esperanças que ele.

10. Podem estar de acordo em odiar as mesmas coisas. Podem odiar a infidelidade e oporem-se a ela extremamente; o santo porque isso se opõe a Deus e à santidade, e o enganado porque prejudica os interesses a que se dedica e destrói suas próprias esperanças para a eternidade. Podem também odiar o erro; o primeiro porque é detestável em si e contrário a Deus, o outro porque é contrário a seus pontos de vista e opiniões.

Lembro de ter visto escrito faz algum tempo um ataque a um ministro por publicar certas opiniões, "porque &endash; dizia o escritor &endash; estes sentimentos destruiriam todas as minhas esperanças para a eternidade". E esta é uma boa razão, a melhor que uma pessoa egoísta necessita para opor-se a uma opinião.

Os dois odeiam o pecado; o verdadeiro convertido porque é odioso a Deus, a pessoa enganada porque lhe prejudica. Tem ocorrido casos em que um indivíduo tem odiado seus próprios pecados, mas não os tem abandonado. Quantas vezes um bêbado, olhando para trás ao que era, e contrastando sua degradação presente com o que tinha sido, aborrece a bebida; mas não pela bebida em si, o que ela é, senão porque tem causado sua desgraça. E todavia segue bêbado, ainda que ao considerar os efeitos da mesma se sente cheio de indignação.

Os dois podem se sentir opostos aos pecadores. A oposição do verdadeiro santo é uma oposição benevolente, com miras a aborrecer seu carácter e conduta, já que estas subvertem o reino de Deus. O outro se opõe aos pecadores porque estes se opõem à religião que ele defende, porque não estão do seu lado.

11. Ou mesmo, os dois podem alegrar-se nas mesmas coisas. Ambos se alegram na prosperidade de Sião, e na conversão das almas; o verdadeiro convertido porque tem o coração posto nisso, e o considera o maior bem possível, e o enganado porque isto, em particular, crê que faz prosperar seus interesses.

12. Os dois podem se chatear e se sentirem angustiados pelo baixo estado da religião nas igrejas; o verdadeiro convertido porque Deus é desonrado, e a pessoa enganada porque sua própria alma não está feliz, ou porque a religião não está em seu favor.

Os dois podem desfrutar da sociedade dos santos; o verdadeiro convertido porque sua alma se alegra na conversa espiritual, o outro porque espera tirar algumas vantagens da companhia. O primeiro desfruta porque "a boca fala do que o coração está cheio"; o outro porque lhe gosta falar sobre o grande interesse que sente na religião, e a esperança que tem de chegar ao céu.

13. Os dois podem desfrutar assistindo a reuniões religiosas; o santo porque seu coração se deleita nos actos de adoração, oração e louvor, e ouvindo a palavra de Deus em comunhão com Deus e com os santos, e o outro porque pensa que uma reunião religiosa é um bom lugar para fomentar sua esperança. Pode ter cem razões para querê-las, e delas nenhuma é pelas reuniões em si, pelo serviço prestado a Deus.

14. Os dois podem encontrar prazer em seu dever na oração. O santo porque o aproxima de Deus, se deleita na comunhão com Deus, onde se encontra livre para dirigir-se directamente a Deus, sem estorvos e conversar com Ele. A pessoa enganada encontra uma espécie de satisfação nela, porque é um dever orar a Deus em segredo e sente a satisfação própria de cumpri-lo. Pode inclusive sentir um certo prazer nela, uma espécie de emoção que confunde com a comunhão com Deus.

15. Os dois podem amar as doutrinas da graça; o verdadeiro santo porque são tão gloriosas; o outro porque as considera a garantia de sua própria salvação.

16. Os dois podem amar os preceitos da lei de Deus; o santo porque são tão excelentes, santos, justos e bons; o outro porque crê que lhe fará mais feliz se os ama, e portanto são um meio para sua felicidade.

Ambos podem consentir no castigo da lei. O verdadeiro santo porque considera que será justo em si que Deus lhe envie para o inferno. O enganado porque se regozija pensando que ele está fora de risco. Sente respeito para o feito, porque sabe que é recto e sua consciência o aprova, mas nunca consentiria nele em seu próprio caso.

17. É possível que sejam iguais em sua generosidade para dar às sociedades de beneficência. Sem dúvida que os dois podem dar somas iguais, mas os motivos são diferentes. Um dá para fazer bem e o mesmo daria se soubesse que não havia outra pessoa viva que desse. O outro para conseguir um mérito, para aquietar sua consciência e para inclinar para si o favor de Deus.

18. É possível que se neguem os dois as mesmas coisas. A abnegação não está confinada aos verdadeiros santos. Para dar-nos em conta dele basta olharmos aos mahometanos, indo para suas peregrinações a Meca. Olhe aos pagãos, atirando-se debaixo do carro de Juggernaut. Ou mesmo aos pobres ofuscados, dentro do mesmo mundo chamado cristão, os católicos que sobem degraus de escadarias de joelhos, derramando sangue. Um protestante dirá que não há religião aqui, mas não poderá negar que há um negar-se a si mesmo, seja qual seja o objectivo. O verdadeiro santo se negará a si mesmo para fazer mais bem a outros, não a ele mesmo. A pessoa enganada o fará por motivos egoístas de modo exclusivo.

19. Os dois podem estar dispostos a sofrer o martírio. Leia a vida dos mártires e não fica a menor dúvida que estavam dispostos a sofrer, mas alguns deles o faziam com a ideia errónea da recompensa do martírio e se lançavam à destruição porque estavam persuadidos que isto lhes assegurava o caminho livre para a vida eterna.

Em todos estes casos, os motivos de uma classe estão em directa oposição aos da outra. A diferença encontra-se nos objectivos. O primeiro escolhe seu próprio interesse, o outro o interesse de Deus como seu objectivo final. O que diz que os dois têm o mesmo objectivo diz que um pecador impenitente é tão benevolente como um cristão real; ou que um cristão não é benevolente, como Deus é, senão que busca sua própria felicidade, e que a procura na religião, não no mundo.

E este é o lugar apropriado para a resposta a uma pergunta que se costuma fazer: "Se estas duas classes de pessoas são tão semelhantes em tantos pontos, como vamos conhecer nosso próprio carácter real, a qual dos grupos pertencemos? Sabemos que o coração é enganoso sobre todas as coisas e perverso, e como vamos saber se amamos a Deus e a santidade por si mesmos ou bem se buscamos o favor de Deus e procuramos chegar ao céu como um benefício próprio?"

Vou responder:

1. Se você é verdadeiramente benevolente, aparecerá em seus tratos diários. Este carácter, se é real, mostrar-se-á em seus assuntos, em todas as suas facetas. Se o egoísmo rege a sua conduta, é absolutamente certo que é verdadeiramente egoísta. Se nos nossos tratos com os homens somos egoístas, também o somos em nossos tratos com Deus. "Porque quem não ama a seu irmão que pode ver, como pode amar a Deus que não se pode ver?" A religião não é meramente amar a Deus, senão também amar o homem. Se em nossas transacções diárias mostramos que somos egoístas, não somos convertidos; de outro modo a benevolência não é essencial à religião, e um homem pode ser religioso sem amar a seu próximo como a si mesmo.

2. Se você não tem interesse na religião, os deveres religiosos não lhe interessam. Você acercar-se-á da religião como um trabalhador vai a sua tarefa, por amor a ganhar a vida. O que trabalha encontra prazer em seu trabalho, mas não é por ele em si. Preferiria não fazê-lo se pudesse. Em sua natureza é uma tarefa, e se tem algum prazer nela é porque espera de antemão os resultados, ele sustém o bem-estar da família, ele incrementa a sua propriedade.

Este é precisamente o estado de algumas pessoas com respeito à religião. Aproximam-se dela como um enfermo toma sua medicina, porque desejam seus efeitos e eles sabem que a necessitam, senão perecerão. É uma tarefa que nunca fariam pelo seu próprio valor. Suponhamos que um homem amasse trabalhar, como uma criança ama brincar. Eles fariam isto o dia todo e nunca ficariam cansados de fazê-lo, sem nenhum outro motivo senão o prazer que eles auferem. Então, assim é na religião, onde a amam pelo seu próprio valor, não haverá desanimo nela.

3. Se o egoísmo é o carácter prevalecente da sua religião, tomará às vezes uma forma, às vezes outra. Por exemplo: se for um período de frieza geral na igreja, os convertidos verdadeiros ainda desfrutariam em sua comunhão secreta com Deus, ainda que isto não chegará ao conhecimento dos demais. Mas a pessoa enganada nestes casos sente-se atraída pelo mundo. Agora, se os verdadeiros santos se levantam e fazem ruídos, falam da alegria em voz alta, de modo que a religião começa a ser um tema de conversação outra vez; talvez algum destes enganados comece a mover-se e parecerão mais diligentes que um verdadeiro santo. Ver-se-á impelido por suas convicções e não por seus afectos. Quando não há interesse público, não sente a convicção; mas quando a igreja se desperta sente a convicção e vê-se impelido a mover-se, para ter quieta a sua consciência. É só um egoísmo em outra forma.

4. Se você é egoísta, a sua alegria na religião dependerá principalmente da firmeza das suas esperanças acerca do céu e não do exercício pleno de seus afectos. Seus gozos não são aplicar-se às coisas religiosas, senão a de uma natureza muito distinta daquela dum verdadeiro santo. São em sua maioria meras antecipações. Quando se sente seguro para ir para o céu, então alegra-se muito na religião; depende tudo da esperança que sente ou não, não do amor, pelas coisas que espera. Ouve-se pessoas que perdem seu gozo na religião quando decresce sua esperança. A razão é evidente. Amam a religião não por ela em si, senão que seu gozo depende de sua esperança. Se os deveres da religião não sãos as coisas em que se alegra e se todos os gozos dependem da sua esperança, não tem uma verdadeira religião; tudo não passa de egoísmo.

Não digo que os verdadeiros santos não se gozam em sua esperança. Mas isto não é o principal neles. Pensam muito pouco em suas esperanças. Seus pensamentos se empregam e ocupam doutra coisa. A pessoa enganada, ao contrário, dá-se sempre conta de que não goza nos deveres da religião; só os cumpre porque confia que há um céu. Só tem o gozo nele como o homem que trabalha espera encontrar a recompensa de seu trabalho.

5. Se você é egoísta na religião, seus gozos serão principalmente em forma de antecipação. O verdadeiro santo desfruta já da paz de Deus e o céu começa já em sua alma. Não somente tem a perspectiva da mesma, senão que a vida eterna já começou realmente nele, em si. Tem fé, a que é a mesma substância das coisas que se esperam. Mais, tem já verdadeiros sentimentos celestiais nele. Goza de antemão gozos inferiores em grau, mas não distintos em natureza. Sabe que o céu já começou para ele e não está obrigado a esperar para provar os gozos da vida eterna. Seu gozo está em proporção à sua santidade e não em proporção a sua esperança.

6. Outra diferença pela qual podemos saber se somos egoístas na religião é esta: a pessoa enganada tem o propósito de obedecer, enquanto que o outro prefere obedecer. Esta é uma importante distinção e eu temo que poucas pessoas a façam. Multidões têm o propósito de obedecer e não preferem obedecer. Preferência é a escolha verdadeira, ou obediência do coração. Você frequentemente ouve indivíduos falarem que têm o propósito de fazer esse ou aquele acto de obediência, mas não o fazem. E eles contarão o quanto é difícil executar seus propósitos. O verdadeiro santo, por outro lado, realmente prefere e seu coração escolhe obedecer e ele acha fácil obedecer. O primeiro tem o propósito de obedecer, como o que Paulo tinha antes de ser convertido, como nos conta no capítulo sete de Romanos. Ele tinha um propósito firme de obedecer, mas não obedecia, porque seu coração não estava nisso. O verdadeiro convertido prefere obedecer pelo próprio valor da obediência; ele realmente escolhe isso, e faz isso. O outro se propõe a ser santo, porque ele sabe que é o único caminho para ser feliz. O verdadeiro santo escolhe a santidade pelo seu próprio valor, pois ele é santo.

7. O verdadeiro convertido e a pessoa enganada diferem também em sua fé. O verdadeiro santo tem confiança no carácter geral de Deus, que o conduz a uma submissão a Deus sem atenuantes. É falado muito de classes de fé, sem muito sentido. A verdadeira confiança nas promessas especiais de Deus depende da confiança no carácter geral de Deus. Só há dois princípios pelos quais se obedece a qualquer governo, humano ou divino, o temor e a confiança. Não importa se trata do governo da família, um barco, uma nação ou um universo. Num caso os indivíduos obedecem pela esperança à recompensa e o temor ao castigo. No outro, pela confiança no carácter do governo, que obra por amor. O outro cede num externo de obediência, por esperança e por temor. O verdadeiro convertido tem a fé e a confiança em Deus que lhe conduz a obedecer porque ama a Deus. Esta obediência é fé. Tem confiança em Deus, pelo que se submete totalmente à mão de Deus.

O outro tem só uma fé parcial, e só uma submissão parcial. O diabo tem esta fé parcial. Crê e treme. Uma pessoa pode crer que Cristo veio para salvar aos pecadores e baseando-se nisto submete-se para ser salvo; ao fazê-lo não se submete a ele, para ser governado por ele. Sua submissão é só uma condição para ser salvo. Nunca tem a confiança sem reservas no carácter de Deus que lhe conduz a dizer: "Seja feita a tua vontade." Só se submete para ser salvo. Sua religião é a religião da lei. A do outro é a do Evangelho. A primeira é egoísta, a outra benevolente. Aqui está a verdadeira diferença entre as duas classes. A religião de um é externa e hipócrita. A do outro é santa e aceitável a Deus.

8. Só mencionarei uma diferença mais. Se a sua religião é egoísta, você alegrar-se-á de modo particular na conversão dos pecadores quando você tem participação nela, mas encontrará pouca satisfação quando tem lugar pela intervenção de outros. A pessoa egoísta alegra-se quando tem actividade e êxito na conversão de pecadores, pois pensa que terá recompensa como resultado. Mas não se deleita quando é a obra de outros, na verdade o que sente é inveja. O verdadeiro santo deleita-se de modo sincero em que outros sejam úteis, regozija-se quando os pecadores se convertem graças à intervenção dos outros como se fosse pela sua própria. Há alguns que tomam interesse num avivamento só enquanto lhes afecta em suas actividades, mas são indiferentes se os pecadores ficam sem se converter quando são salvos por obra dum evangelista ou um ministro que pertence a outra denominação. O verdadeiro espírito dum filho de Deus é dizer: "Senhor, envia a quem quiser, apenas que estas almas sejam salvas e teu nome seja glorificado."

V. Vou contestar a algumas objecções que se fazem contra este ponto de vista no tema.

OBJEÇÃO 1. "Não tenho que ter interesse em minha própria felicidade?"

Contestação. É próprio e justo que cada um se interesse em sua própria felicidade, desde que possa coloca-la numa escala relativa. Posta na balança com a glória de Deus e o bem do universo e apenas então decidir qual aquele valor que lhe pertence. Isto é precisamente o que faz Deus. E isto é o que quer dizer quando nos manda que amemos ao próximo como a nós mesmos.

Mais, de fato você vai fazer aumentar sua própria felicidade precisamente na proporção em que a deixe fora dos seus objectivos. A sua felicidade será em proporção do seu desinteresse. A verdadeira felicidade consiste principalmente na satisfação dos desejos virtuosos. Pode haver prazer nas satisfações que são egoístas, mas não é uma felicidade verdadeira. Para serem virtuosos os desejos devem ser desinteressados. Suponhamos que um homem vê um mendigo na rua; está ali sentado deprimido, sem amigos e vai perecer. O homem sente-se comovido e compra-lhe um pão. O rosto do pobre brilha e seu olhar demonstra gratidão. É evidente que a satisfação do homem que praticou o acto será em relação à pureza de seu propósito. Se o fez só por benevolência, sua santificação é completa no acto em si. Se o fez por caridade em parte somente, não basta, necessita que seu acto seja reconhecido por outros. Suponhamos que se trata de um pecador no lugar do mendigo. E que alguém, movido pela compaixão o conduz ao Salvador. O homem é salvo. Se os motivos do que faz o acto são obter honra dos homens e assegurar-se o favor de Deus, este homem espera que seu acto seja feito público. Se seus motivos são totalmente desinteressados, a satisfação é completa e a alegria sem mistura. Nos deveres religiosos a felicidade está em proporção ao desinteresse.

Se o seu objectivo é fazer o bem em si mesmo e por si, logo você é feliz na proporção em que o faz. Mas se você persegue a própria felicidade, fracassará. É como a criança que persegue a sua sombra: nunca a alcança, sempre está adiante dele. Suponhamos pelo exemplo que dei, que você não tem o desejo de aliviar o mendigo, mas considera simplesmente o provável aplauso de certos indivíduos que ouvem sobre o que fez e comentam; só assim fica contente. Mas você não fica contente pelo fato dele estar aliviado em si. Ou suponha que você aponta para a conversão de pecadores; mas se não é o amor aos pecadores que o leva a fazer isto, como pode a conversão de pecadores faze-lo feliz? Isso não tende a satisfazer, pois o desejo impulsionou o esforço. A verdade é que Deus constituiu a mente do homem de tal forma que deve buscar a felicidade dos outros como seu objectivo, pois de contrário falha em sua intenção de poder encontrá-la. Aqui tem a verdadeira razão pela que o mundo, mesmo buscando a sua própria felicidade e não a dos outros, não alcança o seu objectivo.

OBJEÇÃO 2. "Não considerou Cristo o gozo posto diante dele? Não teve consideração Moisés à recompensa do premio: Não diz a Bíblia que amamos a Deus porque Ele nos amou primeiro?"

Resposta numero 1. É verdade que Cristo desprezou a vergonha e sofreu a cruz, e considerou o gozo posto diante dele. Mas, Qual era este gozo posto diante dele? Não sua própria salvação nem sua própria felicidade, senão o grande bem que resultaria da salvação do mundo. Ele era perfeitamente feliz em si. Seu objectivo era a felicidade dos outros. Este é o gozo proposto a Cristo. E o alcançou.

Resposta número 2. Moisés tinha considerado a recompensa do premio. Mas, era para seu próprio bem-estar? De modo algum. A recompensa do prémio era a salvação do povo de Israel. O que disse? Quando Deus lhe propôs destruir a nação e fazer dele uma grande nação, se Moisés tivesse sido egoísta teria dito: "Bem, Senhor, seja feito segundo aquilo que dizes." Mas, porque contestou? Seu coração estava posto na salvação de seu povo, na glória de Deus e não quis pensar nem um momento em si mesmo. "Se queres, perdoa-lhes seu pecado; e se não, tira-me de teu livro em que escreveu meu nome." E agregou: "Se os destróis, os egípcios saberão e todas as nações dirão: Jeová não pôde levar seu povo a uma terra prometida." Moisés não podia consentir na ideia de que seus próprios interesses fossem exaltados às custas da glória de Deus. Para sua mente benevolente, o maior premio era a glória de Deus e a salvação dos filhos de Israel, antes de qualquer vantagem pessoal que pudesse cair sobre ele.

Resposta número 3. Na expressão "amamos a Ele porque Ele nos amou primeiro" é evidente que cabem duas interpretações: pode ser que seu amor nos tenha proporcionado o caminho para que o devolvamos e a influência que nos foi feita que lhe amemos, ou talvez que o amemos pelo favor que tenha feito a nós. É evidente que o sentido não é este último, pois Jesus Cristo mesmo reprovou de modo expresso o princípio em seu sermão no monte: "Se amardes os que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem os cobradores de impostos também o mesmo?" Se amamos a Deus não por seu carácter, senão por seus favores, Jesus Cristo mesmo nos reprova.

OBJEÇÃO 3. "Não oferece a Bíblia a felicidade como recompensa pela virtude?"

Resposta. A Bíblia fala da felicidade como resultado da virtude, mas nunca diz que a virtude consiste em perseguir a própria felicidade. A Bíblia em seu espírito é oposta a isto e representa a virtude como fazer o bem a outros. Se a pessoa deseja o bem dos outros, será feliz em proporção da satisfação desse mesmo desejo. A felicidade é o resultado da virtude, mas a virtude não consiste na busca da própria felicidade, o qual seria uma incoerência.

OBEJEÇÃO 4. "Deus procura nossa própria felicidade, e temos nós que ser mais benevolentes que Deus? Não temos que ter como objectivo o mesmo objectivo de Deus? Não deveríamos buscar o mesmo que Deus busca?"

Contestação. Esta objecção não só é enganosa, senão fútil e tortuosa. Deus é benevolente para outros. Ele procura a felicidade de outros, a nossa. Se formos como Ele, temos que procurar isto mesmo, deleitar-nos em sua felicidade e glória e a glória e honra do universo, segundo seu valor real.

OBEJÇÃO 5. "Porque é que a Bíblia apela continuamente às esperanças e temores dos homens, se o considerar a própria felicidade não tem como ser motivo para tal?"

Resposta número 1. A Bíblia apela à constituição mental do homem, mas não apela ao seu egoísmo. O homem teme o dano e não há nada de mal em evitá-lo. Podemos ter o devido respeito pela nossa felicidade, segundo seu valor.

Resposta número 2. Novamente, a humanidade tem sido embrutecida pelo pecado e Deus não pode conseguir que os homens considerem seu verdadeiro carácter e as razões que tem para amá-lo, a menos que apele às suas esperanças e temores. Mas quando são despertados, então se apresenta-lhes o Evangelho. Quando um ministro prega sobre os terrores do Senhor até que tenha conseguido alarmar a seus ouvintes e desapertá-los, então eles prestarão atenção; mas assim que haja sido entendido, deve-lhes então apresentar o carácter de Deus completo diante de seus olhos, para conseguir que seus corações O amem por sua própria excelência.

OBJEÇÃO 6. "Não dizem os autores inspirados: Arrependam-se e creiam no Evangelho e sereis salvos?"

Resposta. Sim, mas requer-se o "verdadeiro" arrependimento; isto é, o abandonar o pecado porque é odioso em si. Não é um arrependimento verdadeiro abandonar o pecado como condição do perdão, ou dizer: "Vou sentir remorso pelos meus pecados, se me perdoares." Do mesmo modo que se requer verdadeira fé e verdadeira submissão; não uma fé condicional, ou uma submissão parcial. Isto é o que a Bíblia diz. Diz que seremos salvos mas deve ser por meio do arrependimento desinteressado, a submissão desinteressada.

OBJEÇÃO 7. "Não apresenta o Evangelho o perdão como um motivo para a submissão?"

Resposta. Depende do sentido em que se usa a palavra motivo. Caso se queira dizer que Deus apresenta diante dos homens o seu carácter e toda a verdade, como razões para motivar o pecador ao amor e ao arrependimento, digo: Sim. Sua comparação e sua boa vontade para perdoar são razões para amar a Deus, porque fazem parte da sua gloriosa excelência, que temos que amar. Mas se queremos ter por "motivo" uma condição, que o pecador está arrependido sobre a condição de ser perdoado, então digo que a Bíblia não defende em nenhum lugar este ponto de vista sobre o assunto. Nunca autoriza o pecador a dizer: "Vou-me arrepender se me perdoares" e não oferece o perdão como motivo para o arrependimento neste sentido.

Vou terminar com dois comentários.

1. Vemos, ao falar deste tema, porque é que os que professam religião têm pontos de vista tão diferentes a respeito a natureza do Evangelho.

Alguns o consideram como um mero assunto de acomodação ou facilitação para a humanidade, por meio do qual Deus se faz menos restrito do que era através da lei; e que assim podem seguir a moda e viver como mundanos e que o Evangelho virá para compensar as diferenças e salvá-los. Os outros vêem o Evangelho como uma provisão da benevolência divina, cuja principal intenção é destruir o pecado e promover a santidade e que portanto, em vez de tornar possível o ser menos santos do que eram sob a lei, todo o valor consiste no poder de torná-los mais santos.

2. Vemos o porquê de que algumas pessoas têm muito mais interesse em converter os pecadores, do que em ver a igreja santificada e a glorificar Deus através das boas obras do seu povo.

Muitos sentem uma simpatia natural pelos pecadores e querem salva-los do inferno; e se são ganhos já não terão com que se preocupar. Mas os verdadeiros santos sentem-se mais afectados pelo pecado como uma desonra a Deus. E estes estão mais afligidos ao ver que os cristãos pecam, porque ainda desonram mais a Deus. Parece que alguns não se preocupam muito com como vive a igreja tanto conquanto a obra da conversão siga adiante. Há os que não sentem ânsias de que Deus receba honra acima de tudo. Mostram que não são activados por amor à santidade, senão por mera compaixão pelos pecadores.

José Mateus
zemateus@msn.com