“AMARÁS TEU DEUS DE TODO O TEU CORAÇÃO”

“Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de todas as tuas forças”, Marcos 12:30 

É muito fácil passarmos por cima deste versículo, pensando que o entendemos bem. Mas, na verdade, é um versículo e um mandamento que nos passa ao lado por via do uso de boca que fazemos dele. Tantas vezes o recitamos, tantas vezes o usamos que nunca ninguém se digna a questioná-lo um pouco que seja, ou mesmo a ver se não tem algo mais a dizer-nos do que aquilo que parece estar a dizer.

Nós sabemos que nem sempre usamos a nossa força toda para podermos fazer algo de forma perfeita. Um pedreiro não emprega toda sua força para assentar um tijolo com perfeição; um homem de amor não usa todo o seu vocabulário para expressar como, quem e porque ama como ama. Quem sabe correr, tem necessariamente de saber andar devagar. Porque Jacó amava o seu rebanho, ele disse ao seu irmão: “Meu senhor sabe que estes filhos são tenros e que tenho comigo ovelhas e vacas de leite; se forem obrigadas a caminhar demais por um só dia, todo o rebanho morrerá”, Gen.33:13. O amor dele não lhe permitia usar toda a sua força e toda a sua pressa para chegar a certo lugar. Uma leoa, quando transporta os seus filhotes em sua boca, não pode empregar toda a força que tem nas suas queixadas sob pena de matar as suas crias. Amar, para ela, é saber usar a força que tem da maneira certa e da maneira mais adequada. Não pode usar com os seus filhotes a mesma força que usa para matar um búfalo. Sabemos que a pessoa de entendimento nem sempre pode empregar todos os seus recursos de inteligência para obter um melhor entendimento das coisas. Muitas vezes, quanto menos se pensar num assunto, mais fácil se torna a sua resolução. O que é amar e servir de todo entendimento então? Existem pessoas que se concentram na concentração, de tal forma que não se centram no objecto dos seus pensamentos. Isso faz de nós hipócritas enganados, com fé e amor fingidos e forçados, pensando que entendemos quando nada sabemos, achando que fazemos sem sequer havermos começado a fazer ou, no mínimo, começado a saber fazer. E sabemos que, “o fim do mandamento é o amor que procede de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé não fingida; das quais coisas alguns se desviaram e se entregaram a discursos (…) querendo ser doutores da lei, embora não entendam nem o que dizem nem o que com tanta confiança afirmam”, 1Tim.1:5-7.

Sendo assim, a pessoa que se esforça, não é tão perfeita quanto alguém que faz sem se aperceber devido à naturalidade de sua santidade e dedicação imperturbável; a pessoa que emprega todos os seus recursos pela força é tão fingida e carente de verdade quanto o será um fariseu que só vive de hipocrisia. Cristo liberta-nos para amar e não nos prende para amar e nem nos liberta para sermos amados. Cristo só nos prende para amarmos como último recurso e isso se lhe pedirmos que assim o faça – o que nem sempre nos será concedido desse jeito, pois, se Ele o fizer conforme queremos e lhe pedimos, pode ser o início duma liberdade prometida, mas, nunca de uma liberdade actual. Na verdade, pode ser um novo cativeiro.

Sendo assim, este versículo torna-se ainda mais estranho e dos mais difíceis de entender, pois, o termo “toda a alma, toda a força, todo entendimento” torna-se muito estranho por isso mesmo. O amor é, muitas vezes, não fazer uso do que temos, do que sabemos, do que ensinamos, do que dispomos para ensinar. Muitas vezes, o nosso silêncio aprende ou ensina mais e melhor do que todas as palavras e versículos memorizados de toda a Bíblia em toda a nossa vida. É na liberdade do silêncio, na frescura de sermos aquilo que somos, que muitos dos segredos da salvação se revelam, revalidam, se compõem e se manifestam tanto a nós, como por nós. Quem fala muito, peca muito, dizem os Provérbios com razão. Mas, peca no sentido que impede de ouvir, impede que alguém possa digerir concedendo-lhe o tempo necessário de digestão de verdades, tornando-as, assim, conhecimento em vez de vida prática e efervescente. Alimentarmo-nos não é só comer: é dar tempo para digerir tudo quanto comemos também. Sabemos que, muitas vezes, o ouvir e o falar são coisas opostas. Sendo assim, como amaremos Deus com todo o nosso ouvido se temos, também, de amar Deus com todas as nossas palavras? São estas contradições aparentes que temos de questionar, pois, por elas, obteremos a razão deste mandamento dentro de todos nós, tendo a percepção de qual é o seu alcance e objectivo final.

O que este mandamento nos quer transmitir, o que este resumo da Lei de Deus nos quer fazer passar, será mais no sentido da disponibilidade de nossos recursos, que no uso ou usufruto dos mesmos. Com isto quero dizer que, mesmo sem usarmos o que somos, não deixaremos de usar o nosso tempo, a nossa atitude, os nossos projectos e recursos para Deus apenas. Vemos que, muitas pessoas, ao haverem lido as suas Bíblias e entendido tudo que poderiam haver entendido, se persistirem em ler mais ainda, poderão abafar verdades para que entenderam e contribuir que se tornem conhecimentos confusos, acusadores totalitários, em teimosias em vez de se tornarem vida prática pelo uso e pela apetência de se fazer do jeito de Deus e de forma real, usando todo o nosso tempo disponível para a aprendizagem da prática de tudo quanto aprendemos. O nosso objectivo não é aprender as coisas, mas antes aprender a fazer as coisas. Há que ler para sermos recordados do que aprendemos também. Nem tudo na Palavra de Deus é estudo. “Ensinado a observar as coisas” (Mat.28:20) nunca será o mesmo que “ensinado as coisas”. Logo se sentem ociosos e, assim que saem de seus quartos e se sentem pouco atarefados, buscam algo para fazer, disponibilizando o que são para algo que nunca os edificará na santidade e na Vida que tentaram aprender. Será logo ali que disponibilizam o seu ser e os seus recursos para aquilo que não devem. Ligam o televisor, falam das vidas de outros, passam o dia jogando, lendo revista – fazem de tudo menos disponibilizar o seu tempo e recursos para a parte interior em primeiro lugar, passando depois à prática de tudo aquilo que Deus lhes ensinou naquele tempo de culto privado em seus quartos. É por essa razão que, muitas vezes, Deus se recusa ensinar mais quem não aprendeu a lição como deveria ter aprendido e com a finalidade com que deveria ter aprendido. “Então lhes direi claramente: Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade. Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as põe em prática, será comparado a um homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha”, Mat.7:23-24.

O que a lei de Deus quer dizer para nós, é que, se não precisamos usar para Deus aquilo que temos, não usaremos para outros deuses e nem para outras coisas. Os nossos recursos ficam aguardando a sua oportunidade de serem usados ao invés de serem usados noutra coisa apenas porque não têm o que fazer. Quando a lei de Deus nos diz "de todo o coração", apenas quer dizer que, esteja parado ou sendo usado, todo ele pertencerá unicamente a Deus - e somente a Ele exclusivamente. Quando não for usado por Deus, descansa e espera a sua oportunidade mantendo-se disponível para Jesus, para quando precisar e como Ele precisar.

A indisponibilidade de nossos recursos de criação para algo que não seja de Deus é, maioritariamente, o que este versículo nos quer transmitir. Como exemplo disto que quero dizer, usemos as mulheres de Salomão para explicar melhor. Ele tinha mil mulheres. Se formos práticos e analisarmos a estranha vida que Salomão levava, vamos achar que, muito dificilmente ele dormiria com todas as suas mulheres num período dum ano. Caso ele conseguisse estar com três mulheres por dia, ele provavelmente conseguiria estar com todas uma vez por ano. Ora, isto é algo que podemos questionar, mas, deixemos de olhar para o lado de Salomão perguntemos uma coisa sobre as mulheres de Salomão: elas deixariam de lhe pertencer ou deixavam de ser suas se ele não pudesse estar com elas num período dum ano ou dois? Seria essa razão suficiente para elas saírem em busca de outros homens? Deixariam de ser suas mulheres se nem conseguissem dormir com ele? E se fossem buscar outros homens, achando que tinham razão se o fizessem, não lhes perguntariam porque não haviam pensado nisso antes de casarem com ele? A verdade é que, sendo fiéis, elas não estariam disponíveis para outros homens, pois pertenciam a Salomão mesmo quando não dormissem com ele. Só estariam disponíveis para ele, quando fossem chamadas. A mesma coisa poderemos dizer de nossos recursos para com Deus: estarão disponíveis apenas para Deus e Sua vontade assim que Ele nos chamar e para o que nos chamar - apenas.

A lei de Deus liberta para disponibilizar, para tornar acessível, prático e disponível sempre que Ele necessite de algo de tudo aquilo que permanecia continuamente e ininterruptamente preso para servir ao pecado em nós e fora de nós – mesmo que servisse Deus ocasionalmente. "Amarás o teu Deus de todo teu coração", significa apenas que, “não terás outros deuses diante de mim, não farás nenhuma imagem e não as servirás”. Nós, quando amamos Deus de todo o nosso coração, simplesmente não nos encontramos disponíveis para algo que não seja real, genuíno, desprovido de ilusão e sem fingimento, aplicando todos os nossos recursos na lei de Deus para sermos transformados a partir do lado de dentro de nós e para sermos práticos de seguida, sendo aquilo que somos e não apenas aquilo que pretendemos fazer parecer que somos ou que desejaríamos ser. “Bem-aventurado o homem que não anda segundo o conselho dos ímpios, nem se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores; antes tem o seu prazer na lei do Senhor e na sua lei medita de dia e noite. Pois será como a árvore plantada junto às correntes das águas, a qual dá o seu fruto na estação própria e cuja folha não cai; e tudo quanto fizer prosperará”, Sal.1:1-3.

A pessoa que não é genuína, faz o mal e tenta encobri-lo com boas obras, com simpatia que em nada é genuína e completamente livre de ser como é. Humildade é sermos o que somos e não colocar uma cara de pobre palhaço estampada em nosso rosto porque somos maus por dentro e queremos atenuar o que somos com a imagem que damos de nós próprios - e isso com o intuito de causarmos a nossa aceitação ou causarmos boa impressão. Amor é aquele que nem se nota já, que ama e se alegra com a alegria dos outros como se fosse a sua e isso sem se dar conta devido à naturalidade e à eficácia prática da real transformação que se operou. Sabedoria é aquela que é sábia e sólida e não aquela que recita tudo: até as vírgulas e pontos finais. As pessoas transformadas, na maioria das vezes, nem notam que mudaram porque estão activos e concentrados em viver e não em demonstrar. Quem se esforça em demonstrar da maneira evangélica actual, na verdade, ainda não mudou. Muitas vezes são os familiares de quem mudou e foi transformado que notam e comentam sobre a mudança e mesmo assim o próprio até se admira com todos os comentários que fazem acerca dele.

Este mandamento de Deus trata e lida apenas com disponibilidade dos nossos recursos e de todo o nosso ser a seu devido tempo, “na estação própria”. Amem.

José Mateus
zemateus@msn.com